O documento descreve como as crônicas de João do Rio (1881-1921) retrataram as transformações sociais na cidade do Rio de Janeiro durante a Primeira República brasileira. João do Rio usou suas crônicas para descrever como a elite adotou um estilo de vida européia enquanto a camada popular vivia em condições precárias, relatando aspectos do cotidiano dos pobres e criticando o descaso com a miséria. Suas crônicas humanizaram as ruas e destacaram a importância da cultura e religi
História e Literatura na Primeira República: As transformações urbanas do Rio de Janeiro nas crônicas de João do Rio
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Universidade Nove de Julho – Uninove
Curso: História
Disciplina: História do Brasil III (2012-1)
Professor responsável: Geraldo José Alves
Fernanda Monique Lopes Pacheco – R.A. 911119269
TEMÁTICA: HISTÓRIA E LITERATURA NA PRIMEIRA REPÚBLICA
As transformações do cenário urbano da cidade do Rio de Janeiro na Primeira República nas crônicas de
João do Rio (1881-1921)
INTRODUÇÃO
A República herdou do Império um crescimento populacional impactante após a abolição da escravidão em
1888 e a chegada dos imigrantes acompanhada do êxodo rural para trabalhar nas zonas cafeeiras do estado
do Rio de Janeiro (CARVALHO, 2004:16). Tal crescimento demográfico implicou numa crise habitacional
levando a camada popular a viver em condições precárias de saneamento básico, tendo como
consequências problemas graves de saúde pública que resultariam em episódios como a Revolta da Vacina
(1904).
Enquanto a população mais humilde amontoava-se pelas beiradas da cidade, a elite vivia do arrivismo
social, “o estabelecimento da nova ordem desencadeou simultaneamente uma permutação em larga
amplitude dos grupos econômicos, ao promover a queima de fortunas seculares com o encilhamento,
transferidas para as mãos de um mundo de desconhecidos por meio de negociatas e excusas”. (SEVCENKO:
1983:25-26). Gerado durante o encilhamento, crise financeira que desvalorizava o valor monetário na
tentativa de obter investimento industrial causando uma constante especulação bancária e instabilidade
inflacionária nos produtos comercializados. O autor José Murilo de Carvalho no livro “Os Bestializados – O
Rio de Janeiro e República que não foi” afirma que “por dois anos, o novo regime pareceu uma autêntica
república de banqueiros, onde a lei era enriquecer a todo custo com o dinheiro de especulação”
(CARVALHO, 2004:20).
A chegada da República passava por grande instabilidade social em todo o país. A República da Espada
(1889 – 1894) vivenciou diversas revoltas que ameaçavam a unificação territorial brasileira, além da crise
financeira. Para isso a solução era “tirar os militares do poder e reduzir o nível de participação popular”
(CARVALHO, 2004:32). Foi durante o governo do presidente Rodrigues Alves (1902 – 1906) que se deu a
chamada regeneração da cidade que era “por si só esclarecedora do espírito que presidiu esse movimento
de destruição da velha cidade, para complementar a dissolução da velha sociedade imperial e de
montagem da nova estrutura urbana” (SEVCENKO, 1983:31).
Com a camada popular isolada, o centro do Rio de Janeiro passou a se espelhar nas cidades europeias em
busca de uma belle époque tropical. O então prefeito Pereira Passos tratou de ampliar a Avenida Central,
importou a decoração tipicamente francesa e promulgou leis como a proibição da transição de pessoas
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descalças, a caça aos mendigos e a vacina obrigatória, além de condenar hábitos tradicionais como as
serenatas e a boêmia. Havia um interesse em valorizar o conforto burguês, independente da interferência
negativa que isso causaria no cotidiano da população mais humilde. “A América Latina, neste período sob
estudo, tomou o caminho da ocidentalização na sua forma burguesa liberal” ( HOBSBAWM, 2008:139). No
caso do Brasil, os valores burgueses passaram a ser as referências das relações sociais e a justificação para
o isolamento da camada popular.
No que diz respeito à participação política nesse cenário transitório da Primeira República, a grande parcela
da população ficava de fora por conta das restrições impostas aos analfabetos, mendigos e mulheres. Com
isso, é evidente que só restava à elite as decisões políticas, impossibilitando que houvesse de fato uma
cidadania já que os direitos não eram iguais para todos nem na teoria e nem na prática. O povo, por sua
vez, não era resignado. A primeira década da República mostrou que o país sofreu várias ameaças de
fragmentação territorial e mesmo com o fim do poder dos militares, ainda houve revoltas, manifestações e
motins que não buscavam a participação política do povo, mas sim a paralisação da interferência daqueles
que possuíam condições de ter uma vida política ativa na vida da camada popular:
“Assistia-se à transformação do espaço público, do modo de vida e da mentalidade carioca,
segundo padrões totalmente originais; e não havia quem lhe pudesse opor. Quatro princípios
fundamentais regeram o transcurso da metamorfose, conforme veremos adiante: a
condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação
de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da
sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central
da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas;
e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.”
(SEVCENKO,1983:30)
OS EFEITOS DA BELLE ÉPOQUE CARIOCA NAS CRÔNICAS DE JOÃO DO RIO (1881 – 1921)
Foi a partir das transformações sociais e políticas da Primeira República que o meio jornalístico sentiu a
necessidade de se especializar por ser o principal veículo de comunicação social. Entre essa especialização,
a crônica passou a ter maior destaque por ser o gênero que mais alcançava todas as camadas sociais. Seria
“a literatura mais próxima da vida cotidiana” (ASPERTI, 2009:208). No regime anterior a crônica era apenas
nota de rodapé dos jornais, desenvolvida ao longo do tempo por nomes como José de Alencar e Machado
de Assis. Possuía flexibilidade para se adaptar ao leitor através dos seus diversos subgêneros e podia se
encaixar tanto no jornalismo quanto na literatura. Era através dela que o leitor podia “tomar conhecimento
dos fatos, informar-se do que acontecia em sua atualidade e, ao mesmo tempo, receber uma leitura de
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mundo; um posicionamento explícito de como o autor da crônica compreendia e relatava tais fatos.”
(TUZINO, 2009:15).
Segundo José Murilo de Carvalho, o cronista João do Rio (1881 – 1921) soube como ninguém relatar o que
se passava na vida subterrânea do Rio de Janeiro mesmo sendo um habitante elitizado da cidade
(CARVALHO, 2004:77-79). O escritor Capistrano de Abreu já dizia que “a crítica sintética, impessoal e
positiva, só parece possível fundada em dois princípios: o primeiro é que a literatura é a expressão da
sociedade; o segundo é que o estilo é o homem” (ABREU, 1931:11). É a partir da coletânea de crônicas do
autor reunidas no livro A Alma Encantadora das Ruas que analisaremos o alto (elite influenciada pelo
espírito belle époque) e o baixo (camada popular) da sociedade carioca durante a Primeira República.
Paulo Barreto, criador do pseudônimo João do Rio, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 5 de agosto de
1881. Ingressou no jornalismo cedo, aos 18 anos, colaborando com o jornalista abolicionista José do
Patrocínio no periódico A Cidade do Rio. Passou a assinar seus textos como João do Rio a partir de 1903
quando escrevia a coluna A Cidade para o jornal Gazeta de Notícias. Foi nesse período que começou a
relatar o que via na transfiguração da capital carioca: “Ah! Se a miséria dos fracos, contrastando com a
fortuna dos fortes é uma prova de civilização, podemos dizer com um orgulho para louvável, que estamos
civilizados.” Ao reunir suas crônicas jornalísticas do período de 1904 até 1907, publica o livro A Alma
Encantadora das Ruas.
Em suas crônicas, João do Rio mergulha no espaço urbano como um flâneur refletindo sobre o que via,
retratando aspectos do cotidiano da maioria da população que eram negados pela elite da belle époque
carioca.
“Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor e o lirismo
do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo
desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos de flâneur e praticar o mais interessante
dos esportes – a arte de flanar(...) Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o
vírus da observação ligado ao da vadiagem.” (RIO, 2011 [1908]: 31)
A clareza da substituição dos antigos hábitos coloniais pelos republicanos é justificada nas crônicas do
escritor porque “ele transita pelos dois mundos e por estar inserido enquanto colunista nas rodas da alta
sociedade e enquanto flâneur, na rua e no submundo, sentimos que esse antagonismo antigo/novo e
colonial/moderno o atingiu de maneira avassaladora a ponto de influenciar sobremaneira sua literatura.”
(OLIVEIRA, 2006:100). É partindo dessa aproximação com o povo que João do Rio consegue autenticar seus
escritos, retratando fatores sociais como a economia, cultura e política, “a literatura se torna
acentuadamente social, no sentido mundano da palavra... Manifesta-se na atividade dos profissionais
liberais, nas revistas, nos jornais, nos salões que então aparecem.” (CANDIDO, 2000: 142)
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O escritor João do Rio trata em cada crônica um aspecto diferente do cotidiano popular. Descreve as
profissões apresentando a rotina dos trabalhadores, aborda mendicidade feminina e o trabalho infantil, ou
seja, relata o que o submundo carioca fazia em busca do mínimo para sobreviver.
“É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes. O Rio tem também as suas
pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo
comércio; o Rio, como todas as outras grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos
desgraçados” (RIO, 2011 [1908]: 55-56)
Na crônica “Sono Calmo”, João do Rio acompanha a polícia em uma ronda pela cidade e vai parar em um
cortiço, deparando-se com pessoas amontadas sem o mínimo de higiene e saúde, sendo obrigadas a
sobreviver dia após dia diante da miséria, chamando a situação de “chaga lamentável da cidade” já que
naquele contexto os cortiços eram onde moravam os remanescentes da escravidão. É nessa mesma crônica
que se evidencia a ironia do escritor, principal elemento utilizado para tirar do leitor uma reflexão crítica a
respeito do assunto: “Os delegados da polícia são de vez em quando uns homens amáveis. Esses
cavalheiros chegam mesmo, ao cabo de certo tempo, a conhecer um pouco da sua profissão e um pouco do
trágico horror que a miséria tece na sombra da noite por essa misteriosa cidade”. (RIO, 2011 [1908]:174).
Entre os aspectos culturais, ele torna-se transeunte dos Cordões 1 definindo-os como “núcleos irredutíveis
da folia carioca que brotam como um fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem
da alma encantadora e bárbara do Rio”(RIO, 2011 [1908]:143) opondo-se ao carnaval da elite que era
tipicamente europeu, apelando para o Pierrô e a Colombina e fala também das várias religiões que
cercavam a cidade desde as cristãs até as africanas, dizendo “enquanto existir na terra um farrapo de
humanidade, esse farrapo será um moinho de orações” (RIO, 2011 [1908]:79). A religião representava para
a camada popular do Rio de Janeiro um suporte para sua miséria e dava sentido a tudo aquilo que envolvia
as relações sociais Nas crônicas “A Rua” e “A Musa das Ruas”, o autor humaniza as ruas cariocas, mas fica
claro que o que justifica o encanto delas são as ações sociais determinadas através das características de
cada grupo que ali vivia: “Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de
vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?” (RIO, 2011 [1908]: 37). Ao transitar por
elas como um flâneur, o escritor conclui na crônica “A Musa das Ruas” o porquê de haver algum encanto no
cotidiano da camada popular:
“Vagabundo sim! A Musa da cidade, a Musa constante e anônima, que tange todas as cordas da vida e é
como a alma da multidão, a Musa triste é vagabunda, é livre, é pobre, é humilde. E por isso todos lhe
sofrem a ingente fascinação, por isso a voz de um vagabundo, nas noites de luar, enche de lágrimas os
olhos dos mais frios, por isso ninguém há que não a ame – flor de ideal nascida nas sarjetas, sonho
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“O cordão é o Carnaval, o cordão é vida delirante, o cordão é o último elo das religiões pagãs.” – Festa de origem
africana.
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perpétuo da cidade à margem da poesia, riso e lágrima, poesia da encantadora alma das ruas!” (RIO,
2011 [1908]:252).
As crônicas de João do Rio, que eram aparentemente apenas literárias, traziam uma forte crítica ao descaso
do governo e da elite com relação à miséria em que vivia o povo. A crônica no geral desempenhou um
papel fundamental na construção histórica do Rio de Janeiro durante a Primeira República, relatando os
mínimos detalhes que originavam as glórias e as misérias da capital republicana que vivia obcecada em
busca de uma sociedade paralela a parisiense. É a partir da Primeira República que a crônica passa a ser
uma intersecção entre o Jornalismo e a Literatura. João do Rio nos permite compreendê-lo partindo da
relação entre o uso dos fatos do cotidiano social e dos elementos literários. Sua visão atual do contexto
vivido permitiu que captássemos diversas percepções a respeito das transformações que o Rio de Janeiro
vivia: “Nesse sentido, a narrativa do cotidiano das ruas tecidas a partir do olhar do flâneur deixa-nos
entrever a consciência de João do Rio do seu papel social enquanto escritor”. (CALADO, 2008:11)
CONCLUSÃO
O alto da sociedade carioca que desfrutava, de fato, o chamado “progresso” republicano olhava para o
baixo social como se fosse selvagem segundo Nicolau Sevcenko 2. Havia um desejo de ser estrangeiro 3 que
contrastava com as tradições populares da cidade do Rio de Janeiro. A relação da República com a
população só as distanciou mais ainda uma da outra, provando que a cidadania nunca foi posta em prática
na capital federal. O que possibilitou o reconhecimento da camada popular como, de fato, habitante e
participante da transição do Império para a República foram as tradições que mesmo sofrendo intensas
censuras da elite da belle époque, sobreviveram em meio aos padrões europeus incorporados pelo
presidente Rodrigues Alves e pelo prefeito Pereira Passos no período de 1903 até 1906. A mudança urbana
frenética que ocorreu no Rio de Janeiro estimulou a vergonha de ser brasileiro e o desejo de ser
estrangeiro. Através das crônicas de João do Rio podemos verificar que a junção da literatura com o
jornalismo serviu como denúncia de uma realidade. A essência literária na obra A Alma Encantadora das
Ruas é baseada na experiência do autor diante dos episódios escritos. É autêntica e isso permite que haja
uma interpretação reflexiva em suas crônicas que, de certa forma, persuadiam o leitor através do bom uso
da palavra e da ironia.
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“E por isso, quando o selvagem aparece, é como um parente que nos envergonha”. (SEVCENKO, 1983:35)
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BIBLIOGRAFIA
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