Apontamento da autoria de Pedro Falcão, na sua obra "Cascais Menino" sobre o seu projecto de reabertura da Ribeira das Vinhas, em Cascais, e reformulação da estrutura urbanística da Vila de Cascais.... Desenho do Arquitecto Rui da Palma Carlos sobre a ideia de Pedro Falcão.
A Transformação de Cascais em uma Vila Marítima e Acolhedora
1. Pelas Ruas e Pelas Águas de Cascais
por Pedro Falcão (1974)
Cascais tinha a sorte de ter uma ribeira que a atravessava. Uma
ribeira, imaginem! Um dos mais belos elementos decorativos que uma
povoação ode ambicionar e, sobretudo, uma povoação marítima, como
a nossa. Quando foi projectada a modernização da vila, os senhores
urbanistas, achando que a ribeira era só uma chatice eu lhes
complicava a vida e os projectos, não estiveram com meias medidas,
meteram-na dentro dum cano de esgoto e por cima lançaram a
Alameda dos Combatentes da Grande Guerra, lota do peixe, etc. e por
ali fora, até defronte da quinta do Dr. Moreira Baptista, onde termina o
cano e a ribeira volta a ser ribeira.
2. A ribeira desapareceu, pois e, no lugar onde estava, temos agora uma
avenida onde correm automóveis em vez de correr água. Pois não há
dúvida, a ribeira era metade da vila de Cascais, a sua ligação com o mar,
desapareceu, foi tapada sem a mínima cerimónia. Pois com a mesma
sem-cerimónia, nós, a quem apenas interessa a beleza da nossa terra,
vamos destapar outra vez a querida ribeira. Vamos arrebentar a avenida,
partir a porcaria daquele imundo cano de esgoto, mal cheiroso e
fabricante de cheias, logo que a chuva é muita, e repor a nossa ribeirinha
toda bonita. Este autêntico aleijão em que transformaram a minha terra
não me serve. Vou mas é fazer dela uma vila bem portuguesa, bem
marítima, bem cascaense! Uma vila que, ao crescer, não perca a alma.
Para que serve uma povoação sem alma?
Temos uma sorte formidável para o arranjo da ribeira. É o facto de a
parte baixa de Cascais ser praticamente plana, o que nos vai permitir
dar-lhe uma vida formidável. Claro que não vamos repor a ribeira
exactamente como ela era dantes, pois no Verão, com a maré vazia,
tornava-se um autêntico caixote do lixo. Não; vamos afundá-la e alargá-la
de maneira que se encha com a água do mar e permita às traineiras e
arrastões navegarem pela vila dentro e descarregarem peixe, mesmo
com a maré vazia.
Quem entrar na nossa terra passará a ver, depois do nosso arranjo, uma
vila de barcos atracados, com os seus mastros apontado para o céu no
meio das casas.
O quê? Custa caro? Quero lá saber se custa caro ou barato. Eu não
estou aqui para economizar, estou aqui para arranjar a minha linda terra
como ela merece ser arranjada.
Pelas Ruas e Pelas Águas de Cascais
por Pedro Falcão (1974)
3. Que graça; é tal o meu desejo de um Cascais bonito que já não consigo vê-
lo como de facto ainda está, mas sim tal como o vou imaginando. Já não há
o buraco do esgoto da ribeira, nem a Alameda os Combatentes da Grande
Guerra, nem parte do jardim. Em seu lugar lá está de novo a Ribeira das
Vinhas, mas toda valorizada, muito mais larga e mais funda do que era
dantes. A água do mar entra por ela dentro à vontade e lá vai, por ali fora.
Corre entre dois muros, feitos com pedras rústicas, tiradas das próprias
rochas das arribas. Tem cinco pontes com os seus elegantes arcos também
em rocha natural como a de Santa Marta. Dum lado e outro da ribeira há
jardins com grandes árvores, flores e banquinhos “de perder tempo”. Nas
escadas dos muros laterais estão atracadas dezenas de traineiras que ali
vieram descarregar o peixe. Têm todas mastros articulados para poderem
passar facilmente por baixo das pontes. Poucos automóveis se vêem. O
meu Cascais não é pista para automóveis, é terra para se estar, para
passear, para olhar, para gozar, para sossegar, e tudo isso se faz a pé.
Mandei construir “silos” muitos grandes à entrada da vila e assim quem
pretender visitá-la, deixa o carro no silo e segue a pé. Que sossego!
Cascais que chegou a ser uma espécie de pista de circo, com os peões aos
pulos a fugir dos automóveis, é agora uma terra calma onde as pessoas
passeam sem risco nem medo, onde se pode ir pela borda da ribeira até à
praia observando as embarcações e a faina do peixe com todo o ripanço e
onde se pode atravessar as ruas, e entrar e sair das lojas, sossegadamente
e sem perigo de morte! Uma autêntica terra de repouso, de sossego, onde
as pessoas sentem a impressão de deixarem de ser número sem
importância e voltarem a ser alguém, a ser gente.
A nossa terra marítima de Cascais, com a sua Praiazinha da Ribeira, com a
Ribeira das Vinhas serpenteando por ela dentro, com as suas românticas
pontes, os seus jardins, as suas flores, o seu arvoredo e os seus
banquinhos de perder tempo, transformou-se num paraíso. Num paraíso de
paz, de beleza, de sossego.
E o cheiro a maresia enche toda a povoação dessa sensação alegre e
fresca que vem do mar. Sim, a nossa querida vila de Cascais está a
transformar-se naquilo que nunca deveria ter deixado de ser uma terra
marítima e bem portuguesa.
Sinto uma alegria enorme ao contemplar a maravilha em que se transformou
a nossa terra! Oh, que euforia experimentaria o José Florindo de Oliveira se
pudesse ver isto!