3. a revista Bezouro é uma tentativa de abordar a cultura e a arte
de forma mais ampla,, fugindo ao que se encontra nos manuais
de turismo ou que costuma ser referendado pelas fontes oficiais.
Trata-se de uma publicação para retratar e interagir com uma São
Luís que teima em não se resumir ao oficialismo da cultura popular.
A intenção é fazer uma análise crítica da produção cultural local,incluindo tam-
bém o contexto social em que ela se insere, falando de arte sem fechar o olho
para o que está além.
Esta publicação é resultado de um projeto de extensão do curso de Comunicação
da Universidade Federal do Maranhão, habilitação jornalismo e seu conceito é de
autoria dos alunos de jornalismo em colaboração com estudantes de outros cur-
sos da UFMA. São futuros profissionais que acreditam e apostam em iniciativas
inovadoras que fogem à realidade do mercado de revistas maranhenses nesta
área.
O número zero trás artes visuais, música, literatura, teatro, cinema, história, além
de uma reportagem revelando o bairro do Desterro, onde o descaso do poder
público pelo patrimônio convive com a prostituição.
Todas as matérias seguem o critério de privilegiar trabalhos autorais e abor-
dagens pouco comuns a respeito do que a cidade vive e respira. A linguagem
também transita, em alguns casos, pelo jornalismo literário fugindo aos padrões
habituais que se pratica em São Luís.
Destaque para a diagramação e fotografias de Caroline Rêgo, aluna do curso de
Artes da UFMA.
Em tudo e por todo esse esforço que resultou neste produto final espera-se que
a Bezouro assegure sua periodicidade bimestral e se torne um espaço para
muitos outros autores que queiram construir novas formas de se fazer jornalismo
de revista.
O PDF poderá ser baixado no blog da revista (http://revistabezouro.blogspot.com/),
incluindo um conteúdo exclusivo.
Profa. Dra. Vera Lúcia Rolim Salles
02
4. --------------------------------------------------15_crime e castigo
REVISTA BEZOURO # 0
..................................................................................................29_poraí..................................................
--------------------___-----------------------------28_quadrinhos
:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::20_onde está a platéia?:::::::::::::::::::::::::::::
.....................................................................04_mulambo festival................................................
dezembro de 2010
>>>>>>>>>>>>>>>>>12_teatro documentário>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>
-----__-----------------____________________07_zeca baleiro
http://revistabezouro.blogspot.com
----------------------------------------------10_o ocaso da atenas
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
www.ufma.br
22_ desterro......................................................................................................................
REITOR
Natalino Salgado Filho
VICE-REITOR
Antônio José Silva Oliveira
CHEFE DO DEPARTAMENTO
DE COMUNICAÇÃO
Francisco Gonçalves
COORDENADOR DO CURSO
Esnel Fagundes
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Profa. Vera Lúcia Rolim Salles
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Pablo Habibe Figueiredo
EDITOR CHEFE
Pablo Habibe Figueiredo
CONSELHO EDITORIAL
Profa. Vera Lúcia Rolim Salles
Pablo Habibe Figueiredo
Jonilson Bruzzaca
Fábio Sabino
Capa: Eduardo Monteiro, baixista da MATÉRIAS
banda Pedra Polida, fotografado duran-
te o Mulambo Festival, por Amy loren
Caroline Rêgo. Pablo Habibe
Leonardo Costa
Anissa Ayala Rocha da Silva Cavalcante
Raíssa de Souza Oliveira
Ricardo Santos
Fábio Sabino
PROJETO GRÁFICO
Caroline Rêgo
FOTOGRAFIAS
Caroline Rêgo
REVISÃO GRÁFICA
Jonilson Bruzzaca
REVISÃO
Profa. Vera Lúcia Rolim Salles
Pablo Habibe Figueiredo
COLABORADORES
Marlon Silva
foto baterista da página 06 03
5. Para além de atrações internacionais, o
panorama da produção de shows de rock
em São Luís parece estar engatinhando MULAMBO
para fora do amadorismo. O que antes era
um jogo de empurra entre donos de bares FESTIVAL
por Pablo Habibe
e bandas, no que se refere à divulgação e
organização, cede lugar a uma cooperação,
ainda que vacilante.De positivo, vemos que
surgiram intermediários interessados no
produto. O modus operandi de bandas ten-
tando convencer don
show voltadas os de bares e casas de
cialmente esta mais para estilos comer-
a ceder um e belecidos como o reggae
não raro em spaço para seus eventos _
dos “mortos” dias da semana considera-
va quanto um_ ainda existe, tão produti-
ser, mas divide casamento infeliz pode
organizadas. espaço com iniciativas mais
Produtores (ba
apostado nas b sarone e casanova) que tem
ções lucrativas andas locais enquanto atra-
trabalho que e têm assumido uma parte do
possibilidades stá simplesmente além das
não se vive de de músicos diletantes. Ainda
rock, mas o ve
“de fa xame de tocar
vor” j
á não
é mais
uma p
risão.
04
6. A DIVULGAÇÃO
Fora os tradicionalmente inócuos spots de rádio e TV, a divul-
gação se fez majoritariamente boca a boca e pela internet, ex-
plorando canais de comunicação já estabelecidos pelas ban-
das _ que, até onde sabemos, sugeriram promover o evento
como um festival e ajudaram na venda dos ingressos.
Podemos destacar o blog criado pelos
grupos locais apenas para o festival
(http://mulambofestival.wordpress.com), disponibilizan-
do vídeos e entrevistas no meio já consagrado como
principal veículo para divulgação de cultura
independente em São Luís.
O potencial local para a produção de peças publici-
tárias poderia ter sido bem melhor aproveitado se
acionado com mais antecedência. Fica a dica.
O LOCAL
O Circo Nelson Brito (“Circo da Cidade”) tem O FESTIVAL
vantagens ainda insuperáveis para a realização Foi um processo em construção. O que
de eventos de pequeno e médio porte. Trata- deveria ser apenas o show de um grupo
se de um local com estacionamento e vizinho pernambucano (Mombojó) transformou-se,
ao terminal de integração da Praia Grande, com a adesão de bandas locais, em um
festival. Eventos recentes como o
tem banheiros passáveis e pode ser esvazia- show de lançamento do CD da Ga-
do rapidamente em caso de necessidade. ribaldo e O Resto do Mundo e os
A organização escolheu bem, mas a polÍ- números da audiência de bandas
cia não se fez presente o suficiente para como Pedra Polida e, principalmente,
coibir a ação dos “flanelinhas”, que da Nova Bossa em sites como myspa-
continuam transformando todos os mo- ce e youtube indicam que elas mais
toristas de São Luís em reféns, inde- ajudaram do que pegaram carona.
pendentemente de hora ou local. As bandas, aliás, tomaram a fren-
te várias vezes, trazendo auxiliares
próprios para iluminação, passagem
de som e indicando fornecedores de
equipamento, além de se preocupa-
rem com o registro em fotos, áudio e
vídeo de suas apresentações.
05
7. AS BANDAS
A escolha das bandas foi feliz em privilegiar as que militam com
trabalhos autorais. A maioria tem músicas e vídeos disponíveis na
internet e discos em produção, sendo que a Garibaldo
lançou o seu primeiro CD recentemente.
Vemos com bons olhos não só o fato de esta geração estar
aumentando geometricamente a aposta em suas próprias
composições, mas também pela quebra da barreira das refe-
rências obrigatórias à “cultura popular” (que hoje incluem o
reggae). Os grilhões do regionalismo não foram quebrados,
simplesmente deixaram de fazer sentido.
PEDRA POLIDA
Provavelmente a banda mais antiga em formação e tempo
de existência no Mulambo. A Pedra, já com quatro anos, está
devendo um CD (está quase pronto), mas é uma das que mais
ajudaram na formação da cena atual de São Luís. São cronis-
O EVENTO
tas da cidade e de sua geração soando pop, country e punk.
No dia do show, 27 de novembro de 2010, a passagem de
Causticamente engraçados normalmente, são suaves quando
som, marcada para as 13:00, só começou com três horas
querem e sádicos quando retratam nosso contexto.
e meia de atraso (afinal, estamos em São Luís). Também
GARIBALDO E O RESTO DO MUNDO
houve hesitação a respeito de se colocar uma ou duas
baterias no palco, visto que o Mombojó iria usar um set
Única que já está com o CD na praça. Paulo Henrique (o Garibal- de equipamentos a parte. Ficou só uma.
do) fez o disco sozinho com o produtor (Adnon Soares, da CASA- O show em si foi pontual e a Pedra Polida deu os pri-
LOUCA) e montou a banda a partir daí. São bons músicos e soam meiros acordes às 20:30 (uma surpresa, afinal, estamos
um pouco mais pesados que o disco, vale fazer a comparação. em São Luís). Fora alguns problemas com o volume
Os slides da guitarra de Pedro dão o clima das músicas. dos microfones no início da apresentação da Nova
Bossa, tudo correu sem maiores transtornos até a
MEGAZINES apresentação da banda pernambucana.
Costuma ter apresentações enérgicas, um peso pop O problema é que eles demoraram muito para chegar
com solos de guitarra. Uma banda com um set list tão e o público chegou a se aglomerar perto do palco só
organizado e até, as vezes, um pouco longo (não foi para descobrir que estavam vendo uma arrumação
o caso no festival), também fica devendo um disco dos roadies e algumas mensagens dos patrocina-
pronto. dores. Durante a espera a organização parece ter
entrado num transe “estereóptico” e tocou uma
FAROL VERMELHO seqüencia de reggaes, algo incompatível com o
Alterna covers do Barão Vermelho e músicas auto- evento (afinal, estamos em São Luís).
rais. Tem uma pegada rock com pitadas de blues Destaque para a “invasão” de palco perpetrada
e soa um pouco punk. Quem dá a cara para ba- por integrantes das outras bandas durante a apre-
ter com suas próprias músicas merece crédito, sentação da Farol Vermelho. Viu-se, pelo menos,
mas é preciso fazer a aposta e mergulhar sem uma briga na platéia, do lado de fora da ten-
salva-vidas, só falta tirar a última rodinha da da, sem qualquer intervenção dos seguranças
bicicleta. (que só encontramos ao sermos revistados na
entrada).O saldo é positivo, mas ainda é preciso
VENTURA melhorar...
Uma banda cover do Los Hermanos...
06
8. fotos divulgação
zeca
L
BA EIRO
Responde por Bala na Agulha _ refle-
xões de buteco, pastéis de memória e
outras frituras..., fala do Maranhão e
outras amenidades.
E ntre a passagem de som
com banda e a dos outros
cantores que participaram do
show de 5 de novembro de
2010, a Bezouro entrevistou
o cantor e compositor mara-
nhense Zeca Baleiro. Na pau-
ta, sua incursão literária com a
compilação dos textos do seu
blog no livro “Bala na Agu-
lha”. Para além da sua entrada
no mundo literário, Zeca tam-
bém chega a uma nova fase da
carreira agora com o selo de
gravação próprio.
07
9. Bezouro: O livro fala sobre “filosofias de buteco”.
Como surgiram estes textos? Foram realmente na
mesa de bar com os amigos?
Bezouro: A música teve que ceder espaço para o livro ou a
literatura é algo que você sempre fez e só mostrou agora?
Zeca: Não foi exatamente na mesa de bar, embora eventu-
almente alguma possa ter surgido na mesa de bar. Mas é Zeca: Bom, na verdade a escrita não é uma coisa tão estranha ao
um tipo de discussão e de abordagem que eu faço que po- universo do compositor porque a canção é também uma obra lí- Bezouro: Quanto ao título do livro, conta
deria ter nascido na mesa de bar. Por isso que eu chamei tero-musical, ou seja, metade literatura, metade música (se você para gente como foi feita a escolha do
de reflexões de buteco. São aquelas conversinhas, debates, considerar que letra de música é também poesia). Então, a palavra nome “Bala na Agulha”?
polêmicas que nem sempre ou quase nunca chegam a uma não é uma coisa totalmente estranha ao meu mundo. Assim, é ób-
conclusão, mas que servem para apimentar a rodada de vio que escrever em prosa, textos opinativos, reflexivos, então isso Zeca: Bala na Agulha é o nome da sessão que
chops, aquela conversa boa de bar entre amigos. Eu tento não é uma coisa nova para mim. Mas desde 2005 eu venho fazendo eu criei no site em 2005 para escoar esses
estabelecer com o leitor essa cumplicidade, como se fosse- isso no meu site regularmente. Esse livro é uma coletânea desses textos. É uma alusão meio óbvia ao meu
mos amigos conversando numa situação descontraída, em- textos. No meio do caminho fui convidado também para revista Isto nome, Zeca Baleiro. A minha empresa se
bora alguns assuntos lá sejam bastante sérios. É, virei colunista mensal. Isso também me deu mais disciplina, mais chama Ponto de Bala Produções, e isso tudo
cancha para escrever com mais freqüência, mais profissionalmente é meio relacionado. Então como já era uma
falando. Mas eu sempre gostei de escrever, só que eu não tinha sessão conhecida, eu não quis mexer nisso.
exposto isso. A literatura não roubou um espaço da canção porque Só acrescentei o subtítulo: reflexões de Bute-
Bezouro: O seu último álbum inaugura uma nova fase são textos que eu escrevo na espera de aeroportos de passagem de co, pastéis de memória e outras frituras, que
da sua carreira por ser lançado com selo próprio. Para som, de avião atrasado, hotéis, essas coisas todas. A vida do músi- explica um pouco mais o que é o livro. Essas
você, o que muda com isso? co é muito feita de espera, então se nesses intervalos tem alguma tais reflexões, um pouco da verdade das mi-
idéia pululando na cabeça, eu vou lá e escrevo. Eu consigo ter uma nhas memórias, da minha infância, da minha
Zeca: A princípio está trazendo muito trabalho, porque do- disciplina interna razoável para equilibrar os dois. adolescência, que eu passei no Maranhão,
brou o trabalho. Além de ser o criador, o cantor, o divulga- parte em Arari, cidade onde eu vivi minha
dor, eu também sou o empresário. Eu tenho que dar conta primeira infância na casa dos meus pais, e a
das contas, das coisas todas. Mas eu sempre gostei também outra parte é em São Luís.
desse outro lado, de ter um certo controle da própria carrei-
ra. Quando você trabalha com grandes gravadoras, você tem
um conforto de jogar na mão deles e só aparecer lá bonitinho e penteado. E quando você faz isso, você fica mais
inteirado das coisas, do esquema que há por trás da distribuição, da divulgação, da promoção do trabalho. Eu já
fazia isso, meio assim, de fora porque eu produzia pelo meu selo discos de outros artistas. Mas agora é a primeira
experiência com o meu próprio trabalho. Tem sido um aprendizado e tanto. Eu acho importante o artista tomar as Bezouro: No livro, assim como nas suas
rédeas e parar com essa postura romântica de que “ah, eu sou artista e só artista”, entende? O mundo não com-
porta esse tipo de postura, embora o cara seja genial. Eu acho importante o artista tomar as rédeas da sua carreira. composições, está refletido o retrato do
que você pensa? Existe alguma preten-
são em disseminar um pensamento com
Bezouro: Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas para chegar ao reconhecimento que tem o seu trabalho?
hoje? O que está diferente das condições de quando você começou a carreira? As dificuldades são Zeca: Acho que sim. Afinal, eu não sou só um
as mesmas? animador de auditório, embora eu ache im-
portante essa faceta da música dançante que
alegra a vida das pessoas, que leva luminosi-
Zeca: Os anos passam e as dificuldades de um músico permanecem praticamente as mesmas. Hoje o que se dade. Eu acho isso bacana. Mas eu não que-
tem a favor e contra é o mercado, e muito a favor são as novas tecnologias. No meu tempo de iniciante era uma ro ser só um animador de platéia, eu quero,
dificuldade para gravar um CD. Eram pouquíssimos estúdios de gravação que tinha na cidade. Tinha um que era óbvio, disseminar meu pensamento entre as
do finado Maestro Nonato, que foi um cara pioneiro. Mas quando o cara queria um disco, uma coisa mais re- pessoas e se possível encontrar eco. Eu acho
buscada, tinha que ir para Belém, Recife, e os centros mais movimentados eram São Paulo e Rio. Era tudo muito que o artista deveria ser, pelo menos, um pen-
precário mesmo. E mesmo lá para São Paulo era muito difícil ter acesso a um estúdio profissional, poder pagar sador do seu tempo, da sua época, da sua so-
músicos e tudo mais. Isso tudo simplificou muito com o grande advento da tecnologia de áudio, produtos, vários ciedade. Eu acho que é um papel natural que
softwares e tal. Simplificou e hoje no quintal da casa, no quartinho de casa o cara pode fazer um grande disco, o artista desempenha. Lógico, tem um tipo de
como fez Lobão, que eu participei e foi vendido em lojas de disco. Ele foi feito na dependência de empregada do artista que é voltado só pra entretenimento,
produtor, lá em Laranjeiras, no Rio. Então isso mudou muito, facilitou, criou um acesso maior para as pessoas, só para essa alegria, essa animação e tal, e
democratizou. Mas as dificuldades estão no negócio. É muito difícil você erguer a cabeça acima da manada e que eu não desprezo. Eu respeito e admiro.
ganhar uma distinção, um destaque. Primeiro porque tem muita gente produzindo coisas boas, e isso também Mas eu acho que o meu trabalho e o lugar em
foi uma coisa que a tecnologia contribuiu. As pessoas produzem melhor as coisas. Antigamente, às vezes, o cara que quero me inserir é esse, de um cara que
tinha umas músicas lindas e na hora de produzir, de levar para o disco, aquilo ali ficava tão chocho, tão sem vida além de fazer isso, também pode fazer as pes-
que não atraia a atenção de ninguém. Hoje em dia as pessoas produzem melhor com todas essas coisas que vão soas se mobilizarem e refletirem sobre a vida.
simplificando. Por outro lado, não tem mais o grande suporte das gravadoras, não tem mais acesso às rádios,
que eu acho uma coisa fundamental para a música ser propagada. Eu devo muito ao radio. Minhas músicas
tocaram muito, e ainda tocam um pouco menos do que antes, mas ainda tocam no rádio. Isso eu acho que é o
maior caminho para a propagação da música popular. Infelizmente o rádio hoje é o que a gente sabe, um meio
nada democrático. Enfim, mas as dificuldades são as mesmas, basicamente.
08
10. Bezouro: No seu último álbum, você desfila por canções que vão
de Cartola a Camisa de Vênus, e de Assis Valente a Foo Fighters.
Bezouro: Você que já saiu do Maranhão e volta sempre, como vê a situação do estado considera- Por que?
do o mais pobre do país, baixos índices de IDH, etc.?
Zeca: [risos] Esse disco, a princípio, era um disco de releituras. Era
Zeca: Isso é uma coisa que transborda da música, da cultura e vai para um assunto que é política. É um disco em que eu ia cantar outros compositores que de algu-
um assunto do qual eu nem gosto de falar porque me desagrada muito. É uma tristeza que o Ma- ma forma tiveram ou tinham alguma importância na minha histó-
ranhão seja o segundo estado mais miserável do país, perdendo apenas para Alagoas. Não à-toa, ria, ou lá atrás, ou mais recentemente. E com o tempo ele foi se
esses estados são dominados por “senhores feudais”. Isso é uma triste realidade que a gente tem transformando, foi virando um CD metade de releituras, metade
aqui, e que, pelo jeito, se eternizará. Eu fico triste por ser um maranhense, sabendo o potencial que de músicas autorais que eu compus e acabei fazendo um mix. Mas
o estado tem, não só cultural, mas econômico. A culi- ele, a priori, é um disco de releituras. Foi feito com músicas que eu
nária maranhense, por exemplo, é uma das mais belas gostava de cantar, e que, talvez num disco de carreira, produzido no
e ricas do país. Tem tanta riqueza natural ainda, tanto Bezouro: Quais foram suas maiores influências inte- estúdio, isso ficasse uma grande barafunda. Mas num disco ao vivo,
verde, tanta terra que é injustificável essa pobreza que lectuais? com uma sonoridade muito específica, só de violões, eu achei ficou
a gente vê, especialmente no interior. Eu viajo muito. Zeca: Eu fiz faculdade de agronomia na UEMA e jor- tudo uniforme, ficou coerente. Eu aproveitei também para escoar
Sempre que venho faço viagens, nas férias inclusive. nalismo na UFMA. Não me formei em nenhuma, esse projeto para livrar minha alma para os próximos trabalhos.
Vou a minha cidade, Arari, vou a Pedreiras, e vejo mas me relacionei com muita gente. Às vezes pes-
um quadro de miséria muito assustador que não era soas mais velhas, com mais informações que foram
para ter. Então, isso tem a ver com a má gestão, com a passando livros e discos. Foi tudo muito errático,
usura mesmo dos políticos. Nossos políticos são uma muito sinuoso. Não tenho uma formação acadêmi-
vergonha, isso é fato. Aliás, os políticos brasileiros são ca, escolar ou universitária de fato, do ciclo formal.
uma vergonha, né? E quanto mais no recanto do país, Eu fui aprendendo com a vida, pegando coisas que
no Brasil profundo, pior isso fica. Eu já confio mais na me interessavam, lendo bastante. Eu sempre gostei
sociedade civil, confio mais que as pessoas individu- de ler, por culpa do meu pai, que era um cara que
almente possam fazer transformações profundas do quase impunha para gente ler, e hoje eu agradeço. E
é isso, foi uma formação autodidata, portanto, toda
que pelas vias da política. cheia de acidentes, cheia de improvisos.
Bezouro: Com a cultura popular e os artistas locais
engajados como estão pelas verbas estatais aqui no Bezouro: O estado deve ter algum papel enquanto mecenas? Quem
Maranhão, você acha que a saída para a independência deve decidir que obras merecem apoio e visibilidade?
artística local ainda é o aeroporto?
Zeca: Eu acho que em um estado como o nosso não tem saída, tem
mesmo que patrocinar. O que também gera alguns vícios, porque
Zeca: Eu espero que não. Para mim não foi doloroso sair tem essa coisa do clientelismo, aquela coisa do cara que vai sema-
porque eu não saí daqui para nada. Eu saí porque eu nalmente ali e debruça o cotovelo no balcão da secretaria de cultu-
queria sair, eu queria conhecer outras cidades, outras ra e fica esperando verba. Não sabe fazer nada, nenhuma canção se
pessoas, outros lugares, outros modos de fazer arte, não tiver uma verba. Esse é o lado ruim. Mas em um estado como
inclusive. Eu não saí só porque “não tinha saída além o Maranhão, ainda com o processo cultural e mercadológico num
do aeroporto”. E eu acho que nem todo mundo tem estágio ainda tão primitivo, digamos assim, eu acho que é inevi-
essa estrutura. Tem gente que tem um apego com a tável, é imprescindível mesmo que o estado patrocine. Patrocínio
terra, com a família e que não gosta, nem tem estrutura esse que, também, dificilmente será justo, porque sempre vão ser
emocional para sair. Então, eu acho que é uma violência beneficiados alguns e outros não. É impossível ser justo com todos.
para essas pessoas terem que sair para fazer a sua vida, Mas eu acho que é um primeiro passo. Quando o Joãozinho Ribeiro,
o seu caminho. Seria muito bom se as pessoas pudes- que é compositor, amigo, parceiro, poeta, foi secretário de cultura
sem permanecer no seu lugar de origem e ainda assim ele tentou. Teve o seu mandato interrompido por razões políticas,
produzir e conseguir fazer uns trabalhos que se susten- mas ele fez uma coisa bacana, que foi criar mandatos de toda sorte
tem. Isso seria bacana, mas por enquanto, isso no Ma- para abrir concorrência, como deve ser um processo democrático.
ranhão é um sonho, uma utopia, uma coisa distante de Infelizmente, nem todo mundo pode ser contemplado, porque há
se realizar. Há cidades que já são um pouco mais auto- uma infinidade de gente produzindo. Mas eu acho que é um primei-
suficientes. Salvador, Recife, Belém, Fortaleza... Essas ro passo. E a atitude do povo eu acho que tem que ser transforma-
cidades maiores, mais ricas e culturalmente mais avan- da, talvez através de campanhas. Algo tem que ser feito. Uma coisa
çadas – não no sentido de produção, mas de ter merca- que eu sempre me preocupava quando morava aqui, e ainda me
do para escoar essa produção. Culturalmente, São Luís preocupo é com a formação de platéia. São Luís já fez parte de um
é uma sombra. O Maranhão é um estado riquíssimo, circuito de shows interessantes. Eu mesmo quando estudava aqui
que eu ponho entre os mais ricos, interessantes e pecu- gazeava aula e ia ver shows de tanta gente bacana que eu vi, como
liares. Isso, não por eu ser maranhense, mas porque eu no projeto Pixinguinha, nos anos 80. Então já fez parte de um circui-
enxergo isso. Mas ainda vai levar muito tempo para que to que hoje não faz mais. Hoje tem um monopólio do Axé, do Pago-
a gente consiga. É uma coisa de educação mesmo, de de. Nada contra nenhum gênero específico, mas quando um mono-
educação do povo, de formação de platéia. É um pro- pólio muito grande, monocultura, o povo vai se desacostumando
cesso lento e a gente mal começou. dos outros tipos de música, o que não é saudável. Tem muita coisa a
ser feita pelos artistas, pelas autoridades e também pelo povo.
09
11. o s
s
s
s s
Os
s
OCAS
OCAS
r s
s
da
ATENAS s
São Luís e a crise da cultura de leitura
por Leonardo Costa
10
12. E
s
s
nredada à sombra de um ufanismo intele
ctu
cesa lhe deu o nome de batismo, não é ma al, a “Hélade” dos trópicos, cuja herança fran-
is
por sucessivas gerações. Abraçada a uma sag que uma fotografia em preto e branco, cultuada
tradição oitocentista da “Atenas Maranhen a quixotesca, São Luís acorrento
de projetos educacionais mais audaciosos, se”, enquanto a presente vida cultural des u-se às raízes da
de incentivos governamentais contribuem somada aos exorbitantes preços do mercadofalece. A ausência
s
para a quase inexistência de uma cultura editorial e à falta
livresca na capital.
s
O problema, no entanto, não está restrito às variantes locais, sobretudo no que diz respeito ao baixo
s
índice de leitores. Dados da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada em, 2007, pelo Insti-
s
tuto Pró-Livro (IPL), apontaram que 4,7 livros são lidos, em média, por pessoa durante um ano, dos quais
3,4 são indicações obrigatórias de escolas ou universidades. Em termos regionais, o Norte (3,9 livros per
capita/ano) e o Nordeste (4,2 livros per capita/ano) ocupam as últimas posições. No caso de São Luís, o
estudante e livreiro José Lorêdo Filho acrescenta: “Aliado ao fenômeno nacional da aversão ao hábito de
ler, existe uma grande dificuldade para a circulação de determinadas obras, principalmente os clássicos”.
s
s
s
Outra queixa recorrente são os altos preços dos livros, explicados, em parte, pelos impostos que recaem
sobre o papel, sua matéria-prima, e pela produção a partir de pequenas tiragens, o que eleva o preço unitá-
rio do produto. Não bastassem esses fatores, a internet também passou a ser uma grande concorrente das
s
livrarias ludovicenses, porque as editoras acabam oferecendo o mesmo desconto a quem faz encomendas
virtuais. “Devido à quantidade cada vez mais rara de leitores, não se pode estocar livros sob pena de sair fi-
nanceiramente prejudicado. Trabalha-se, agora, com a consignação: o que não for vendido, a livraria devol-
ve para a editora”, afirma Marlene dos Santos, funcionária de um dos mais importantes estabelecimentos
desse gênero na cidade. Perguntada sobre os motivos da discrepância entre as instalações das livrarias de São
Luís e as das demais localidades, quase sempre dotadas de cibercafés e outras comodidades para os clientes,
Marlene é taxativa: “Aqui se lê muito pouco. Seria um investimento alto e sem possibilidade de retorno”.
Poucas são as iniciativas das esferas de poder com vistas à promoção da leitura. A exceção fica por
s
conta da Feira do Livro, que tem a organização da Fundação Municipal de Cultura (Func) e acontece
s
anualmente na Praça Maria Aragão, congregando escritores, artistas, vendedores e a população. Embora
a circulação do público seja um dado considerável (na edição de 2010, foram 220 mil pessoas), o evento
parece não receber o tratamento merecido. “Não há nenhum respeito com os livreiros: estamos dentro
de um ambiente quente, sujo e empoeirado. Isso demonstra que a Feira do Livro não é de interesse dos
governantes e só acontece por força de uma lei municipal”, desabafa Silvia Diniz, responsável por um
dos stands armados no Espaço Cultural, antigo galpão situado na Avenida Beira-Mar.
A perda do prestígio cultural de uma capital que já possuiu os melhores grêmios literários do país
não está ligada somente aos espaços reservados à comercialização do livro. Na verdade, não há uma
política articulada de publicação e editoração das obras, restando apenas atitudes isoladas de algumas
instituições, a exemplo do Fundação de Amparo a Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico do Maranhão (FAPEMA) e da Academia Maranhense de Letras (AML). “Na maioria das
vezes, existem bons escritores querendo publicar livro e tendo que arcar do próprio bolso, inclusive
recorrendo a empréstimos bancários, ou correndo atrás de patrocínios, freqüentemente negados”,
assevera o editor Claunísio Carvalho.
A concretização de uma realidade promissora, no tocante à formação de um número significativo
e influente de leitores, dependerá enormemente das escolhas realizadas no âmbito da cidadania, tendo
como meta a valorização da educação. Importante saber que o crescimento econômico por si só, acom-
panhado de efeitos colaterais devastadores, como os congestionamentos no trânsito e a especulação imo-
biliária, não levará São Luís a recuperar o tempo áureo de sua efervescência cultural.
11
13. Teatro
Documentário
por Anissa Ayala Rocha da Silva Cavalcante e
Raíssa de Souza Oliveira
12
14. P ouco conhecido e estudado no
Brasil, o teatro-documentário
está baseado num trabalho
de busca por registros como fo-
tos, diários, testamentos, dentre
outros documentos que captem a
realidade, evitando a interferên-
cia da ficção. Quem deseja tra-
balhar com esse gênero precisa
organizar um discurso a partir de
cuja encenação se promova uma
discussão pública.
A aluna do 6º período do Curso de Teatro da UFMA, Delcianny Garcês, já está trabalhan-
do com essa modalidade. Ela coordena o projeto de extensão intitulado “Experimento
Anne: memória e gênero na cena documental”, que denuncia a violência sexual sofrida
por meninas maranhenses, com mais ou menos 13 anos, trabalhando com as referências do
Diário de Anne Frank. O grupo já realizou apresentações em escolas, encontros, centros de artes cênicas
e, recentemente, o projeto foi apresentado, também, em formato de pôster no encontro da Associação
Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE).
Para Delcianny, o teatro-documentário não possui um conceito específico, se baseando a partir do dra-
ma-documentário. Esse gênero é “todo drama feito em cima de documentos históricos, não tem estética
e sim dramaturgia pautada na não-ficção”.O trabalho envolve alunos do curso de serviço social, teatro e
comunicação. Anderson França, aluno do curso de rádio e TV da UFMA, participa do projeto no intuito
de divulgar aos acadêmicos o teatro-documentário e, com isso, mostrar como essa arte se aproxima da
comunicação em termos de pesquisa e interdisciplinaridade. “O meu interesse em participar do grupo
surgiu da necessidade de apresentar aos alunos de comunicação, através de workshops, as outras ver-
tentes da nossa área, assim como a comunicação digital ou comunicação do teatro-documentário, for-
mas pouco conhecidas pelos acadêmicos”, afirma Anderson.
13
15. O utra questão interessante que o teatro-do-
cumentário aborda é quanto ao discurso. O
dado não-ficcional só será válido se houver,
por parte do público, um sentido a respeito do que
ali é encenado. É o caso de Tallysson Ramon, aluno
da UFMA, um apreciador das artes cênicas e
que conta como foi sua percepção diante
de um modelo de teatro-documentário. “Eu
assisti somente a uma peça de um outro
grupo. Não consegui compreender bem o
propósito que eles pretendiam passar. Tal-
vez porque eu não tinha conhecimento do
fato histórico ou pelo discurso trabalhado
por eles, não ter sido bem construído”, es-
clarece Ramon.
As dificuldades em se manter uma atividade
cultural independente como esta são gran-
des, principalmente pela questão financeira
e pelos custos com figurinos e cenários. O
projeto de Delcianny conta com recursos
próprios para se manter e com ajuda da
equipe e demais colaboradores que acredi-
tam na sua importância.
I
sso mostra como é necessário seguir um discurso abordado pelo teatro-docu-
mentário, a fim de proporcionar ao público uma boa recepção e um bom posi-
cionamento daquilo que é encenado. “O texto é feito em cima do diário de
Anne Frank, ou seja, toda a nossa dramaturgia se baseia nesse documento
fazendo o ligamento com outros autores teatrais e usando depoimentos de
meninas estupradas no Maranhão”, declara Delcianny e acrescenta: “Acre-
dito que conseguimos uma boa percepção do nosso público, pois, quando
fizemos a apresentação na Escola Mário Meireles, passamos um questioná-
rio (recepção teatral) e eles responderam bem pautados no assunto”.
O projeto de extensão termina em agosto de 2011, porém o grupo preten-
de continuar com a divulgação do trabalho em outras cidades. A equipe já
está presente no Orkut _Factual Experimentações Cênicas_ disponível para
contatos com outras pessoas interessadas no tema. “Esse projeto começou
sendo individual, depois passou a ser profissional e hoje, é a nossa vida”
finaliza Delcianny.
14
16. GO
CRIME E
CASTI
inconfidências
por trás da malha-
ção de um judas.
por Ricardo Santos
15
17. D
iz a lenda que a Igreja de São João Batista (Rua da Paz) foi erguida (1665) para pagar uma insólita promessa; o santo
deveria impedir que a sociedade descobrisse o caso do governador Ruy Vaz Siqueira com uma senhora casada. É uma iro-
nia que algo construído para encobrir uma traição tenha vindo a guardar os ossos daquele que foi “eleito” pela república
como o traidor nacional: Joaquim Silvério dos Reis, o delator do Tiradentes.
A história da Inconfidência Mineira é conhecida por todos, tomou vulto a ponto de a execução de Tiradentes marcar o único feriado
nacional dedicado a uma personalidade ausente da Bíblia, em que pesem as semelhanças forjadas e coincidências. A consagração de
mártires é expediente comum na gestação de nações e símbolos, união de povos em torno de ideais. Assim, o enforcamento de Tiraden-
tes foi utilizado pelos republicanos para derrubar o Império e consolidar o regime.
Entra aí a figura necessária do Coronel de Cavalaria Joaquim Silvério dos Reis. Acumulando em si todos os defeitos e vergonhas de
alguém que trai seus amigos por dinheiro (no caso uma dívida) e contribuindo para a idealização do seu companheiro de armas, o
Alferes da Silva Xavier. Esse drama com símbolos religiosos foi bastante trabalhado na construção da imagem de um sacrifício cristão.
As pinturas reproduzidas incessantemente nos livros escolares trazem o mártir de cabelos longos, barba grande e olhar sofrido, um Cris-
to medieval ou renascentista. Ora, Joaquim José da Silva Xavier era militar e, nessa época era comum que sua posição o levasse a ter
um mínimo de cuidado capilar. Houve uma intencionalidade na comparação: Tiradentes só passava por Cristo porque tinha um Judas.
“Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério:
que ele traiu Jesus Cristo,
tu trais um simples Alferes.”
(Romanceiro da Inconfidência - Cecília Meireles)
Silvério sofreu muitas perseguições e atentados nos anos após a morte de Tiradentes. Pela delação, passou a viver uma situação
ambígua: para o império lusitano foi um súdito leal, enquanto, para aqueles que queriam autonomia, um homem que se vendeu por
pouco. Chegaram a tentar incendiar sua casa no Rio de Janeiro, um entre outros atentados que ele sofreu. Depois da Inconfidência,
apesar de sua “delação premiada”, sua situação financeira seguiu prejudicada. Em Portugal tentou viver na corte, mas foi rejeitado
pelo príncipe, futuro Dom João VI.
Devido às guerras napoleônicas que assolavam a Europa, a corte portuguesa vem para o Brasil e Joaquim Silvério decide retornar.
Ao fim da vida vem para o Maranhão, terra que ele nunca mais deixará. Seus ossos foram enterrados na Igreja que fica em frente
a um prédio conhecido como Palácio das Lágrimas.
O seu túmulo não pode mais ser visto. Sucessivas reformas resguardaram seus ossos, que lá continuam, mas não sua lápide ou
qualquer memorial de seu destino. As grandes histórias tem sua força por serem contadas e recontadas sempre e sempre, mesmo
que se mudem as personagens e os sentidos.
Religião, política e história são formas que o homem desenvolveu naturalmente para se entender e se situar no mundo. Uma não
precede à outra na construção da realidade humana. É só prestar atenção e ver como os grandes dramas se sobrepõem e se mis-
turam no imaginário, tal é o misto de lenda e esquecimento que tornou-se o fim, a vida e a “obra” de Joaquim Silvério dos Reis.
16
21. O nde
Está a
Pla-
téia?
OS PARADOXOS DA ILHA QUE
NÃO CULTIVA UMA CULTURA
CINEMATOGRÁFICA
por Amy Loren
20
22. S
ão Luís atravessa um período de crescimento em termos
de exibição de filmes do circuito não-comercial. É mais
um esforço de pessoas engajadas nesse meio do que
uma demanda por esse segmento. Pontos de cultura, iniciativas
universitárias e meios de comunicação de grande circulação têm
promovido a exposição de filmes que geralmente são exibidos
apenas em festivais. A estrutura (muitas vezes precária) é sem-
pre receptiva, mas conta com uma audiência limitada.
Essa realidade apresenta uma faceta da cultura para a qual não
é dada visibilidade. Ao contrário do que diz o senso comum,
segundo o qual a produção cultural alternativa seria cara, logo
inacessível, vivemos em São Luís um momento curioso.
U
Não se pode dizer que em São Luís nunca houve um público ma tentativa para
apreciador da sétima arte. As exibições, geralmente realizadas reverter esta situaç
idealizou um proje ão partiu do jornal
to de exibição de fi O Imparcial, que
no antigo teatro São Luíz, atual Teatro Arthur Azevedo, eram local tem uma boa lmes batizado com
estrutura e oferece o Cine Ímpar. O
cheias. Nos anos 70 , o cinema foi aos poucos perdendo espaço nativo, indo de pro sessões de filmes
duções européias do circuito alter-
para outras formas de entretenimento. e amplamente div a japonesas. As ex
ulgadas. “Para atra ibições são todas gr
ponsável até criou ir o público para n atuitas
a ‘sessão secreta’, ossas sessões, a eq
É conhecido o conceito de que a questão sócio-econômica na hora da aprese na qual o nome do uipe res-
ntação. Infelizmen filme é revelado so
interfere diretamente no consumo de produtos culturais esperado”, explica te, a presença do mente
o coordenador do público não cresce
pelas classes menos abastadas. Sempre em pauta, as dis- Espaço Ímpar, Célio u como o
Sérgio.
cussões sobre o espaço público e as dificuldades impostas pela Outro grupo é o C
ineclube Casarão U
Indústria Cultural, em geral apontam para a dificuldade enfren- ligado ao Departa niversitário, projeto
mento de Comunic de extensão da UFM
tada pelo trabalhador no consumo de peças teatrais e literatu- O grupo realizou a ação e que promo A,
Semana de Audiovi ve exibições às qu
ra. Os preços seriam muito altos. No que diz respeito à platéia res premiados com sual na Universidad intas-feiras.
o Cícero Filho (Ai Q e. O evento trouxe
dos ditos filmes alternativos, São Luís anda na contramão. Mesmo assim as ex ue Vida) e Eliane C direto-
ibições promovidas affé (Narradores d
pelo Casarão aind e Javé).
O
público significativo a não alavancaram
. um
Cine Praia Grande, espaço já consagrado na cidade por
sediar festivais e ser um centro de atividades culturais Não se pode dizer, portanto, que São Luís não tenha uma base para o desenvolvimento
com boas condições para a exibição e acessibilidade, da cultura cinematográfica. Aqui é promovido um evento de cinema nacionalmente
raramente se encontra lotado. A resposta do público aos filmes respeitado, o Festival Guarnicê de Cinema.
em si é muito fraca, recrudescendo somente com a presença de Em um cenário em que o discurso é de que o consumo desses bens não se dá da mes-
“celebridades’ em eventos como o Guarnicê. Tudo isso com um ma maneira que o dos produtos comerciais, o que explica que a arte cinematográfica
preço baixo (R$ 4) e três sessões diárias. seja oferecida com acesso facilitado e mesmo assim a resposta do público continue
fraca? Quais são os fatores que levam a este quadro?
21
23. DESTERRO
personagens de um mundo decadente
por Fábio Sabino
“Submerso no des-
cuido, apartado do
interesse público de
preservar algo que
ninguém sabe o que
é, ou mesmo se
já foi um dia.”
22
24. MARIA, A DEVOTA.
“Meu filho, nesse mundo, a pessoa tem que ter três
amigos: Deus, a justiça e a polícia”, foi o que me disse
Dona Maria quando indagada sobre seus ”negócios”
e sua boa relação com as autoridades públicas, tendo
ela como pano de fundo, uma infinidade de imagens
de Nossa Senhora da Conceição,
Ao comentar sobre o fluxo de prostitutas na porta de
seu estabelecimento, desconversa: “Eu tenho meu bar
aqui, essas mulheres ficam por aí, eu até evito elas,
tem umas desbocadas, que não sabem se comportar
no ambiente. Já falei pra elas, bagunçou aqui eu po-
nho logo pra rua! Mas eu não mexo com isso, quem LUZIA, A SUICIDA
traz umas meninas dos interiores é essa tal aí (refe-
rindo-se à dona de uma pousada na mesma rua). Eu Diferente do que aconteceu na Manaus do inicio do século
procuro ajudar, dou trabalho aqui no bar, tem uma até XX, o que todos os relatos e pesquisas apontam é que aqui,
Apesar de “maldita” e malvista, quem movimentava o
que queria se matar, eu levei ela para igreja e ela hoje na “belle époque” ludovicense, difícilmente encontraría-
comércio naquela época era a zona, e sua permanência
tá boa. Tem umas que saem daqui até casadas”. mos cocottes francesas e polonesas em bordéis dançando
pode ser atribuída ao fato de ter se tornado um ponto
A proprietária do bar São Sebastião (que a mesma bolero. Como afirma Dona Andrelina Macedo, antiga mora-
rentável, próximo ao centro comercial e histórico da ci-
resistiu chamar de cabaré ou ainda inferninho) con- dora (que após 5 ou 6 cervejas descubro também ter “feito
dade, com um grande número de trabalhadores infor-
ta que há mais de 40 anos trabalha na região e que salão”) “dava mesmo era muita paraíba, cearense e umas
mais e um fluxo considerável de turistas.
vivenciou ascensões, quedas e promessas que fazem caboca da Maioba, desses interior aí! .
Restaurantes, quitandas, pequenas lojas de roupa, em
o nome “Oscar Frota” ser bem mais do que o de uma O relato mais precioso sobre a prostituição na área acabou
suma, o comércio em geral, dependia quase que exclu-
extinta fábrica. por vir da própria Dona Andrelina. Ao ser indagada sobre a
sivamente de um outro, o sexual. Boa parte dos produ-
visão da comunidade sobre a ZBM, acabou por contar sua
tos era negociada com as donas de pensão. Segundo
Na pequena rua em formato de L, onde se encontra própria história.
Maria “elas (as madames) não vinham comprar pessoal-
um enorme esgoto a céu aberto e onde é mais fácil A vida de Andrelina era algo que lembrava em muito uma
mente, mandavam alguém para negociar com a gente,
encontrar prostitutas, mesmo durante o dia, a “fauna rapsódia, um improviso folclórico que parecia até inven-
ou então, a gente deixava as mercadoria lá”. Havia toda
urbana” é bastante variada. Fora do horário de funcio- tado de tanto que resumia bem o que seria uma “vida de
uma demanda por alimentação, remédios (em especial
namento dos “bares” surgem mototaxistas, funcioná- puta”: Aos doze anos saíra da casa dos pais, segundo ela,
para anemia e preparação de ”receitas abortivas”) e pe-
rios das onipresentes gráficas, entregadores de bebida para visitar uma tia no centro e só voltou 5 anos depois.
ças de vestuário de toda natureza. As moças eram rece-
e um ou outro membro do baixo clero do funciona- Nesse entretempo, foi morar na casa de uma madame (es-
bidas e preparadas pelas madames. Deveriam “descer”
lismo público, em alguns casos agindo com perfeita tamos falando aqui dos anos 60) na rua 28 de julho, onde se
sempre bem vestidas e bem alimentadas. Quando saí-
naturalidade e em outros, fugindo de cruzar olhares revezava no trabalho de “agradar” os clientes e se esconder
am para atender um cliente, não voltavam para o salão
e andando com passo aflito de quem tomou a rua er- da polícia, num velho guarda roupa.
com o mesmo vestido, trocavam desde o sapato até as
rada. Sobre o público que freqüentava o lugar e a lembrança de
jóias, que pertenciam às donas de pensão.
O Oscar Frota, ao mesmo tempo substituto e conti- alguma autoridade da época: políticos, promotores, juízes,
Nesse enredo de relativa prosperidade, houve quem
nuação dos cabarés e pensões das ruas da Palma e 28 que desfrutaram dos seus serviços, respondeu: “Isso eu não
fizesse muito dinheiro, houve quem gastasse tão rápi-
de julho, concentra a prostituição feminina da área. sei dizer, mas umas amigas eram bancadas por umas figuras
do quanto se ganhava. “Eu não repetia roupa. Quem
Enquanto os seus precursores tornaram-se marca do ricas da época, uns tão até vivos hoje (confesso nessa hora
freqüentava o salão era gente de dinheiro e ninguém ia
passado áureo, datado da metade do século XX, os ter feito mentalmente um exercício especulativo). Nesse
pra lá desarrumado, feito meninote” afirma Dona Jan-
inferninhos atuais são marca da região chamada “de tempo era de mais respeito. A gente não podia passá nem
dira, ex-mulher de salão. “Eu tinha tudo do bom que
cima” do Desterro, ponto de tráfico e de uma prosti- na calçada que eles (os donos dos melhores hotéis) não
fosse possível conseguir naquele tempo, esbanjava,
tuição decadente. O status da década de 1950, fase deixavam. Tocava até banda militar nas festas e os homens
mas aí peguei menino e tive que sair no mundo, por-
considerada, por alguns historiadores como de gla- do quartel (situado onde hoje é o Convento das Mercês),
que mulher buchuda não ficava, não! Depois é que fui
mour da ZBM (Zona do Baixo Meretrício), passa, nos donos de embarcações e de trapiches vinham conhecer ‘as
arranjar marido.”
anos 70, a ser retratado como reino da promiscuidade meninas novas’ e tomar uísques. Nesse tempo não tinha
e da marginalidade freqüente nas páginas policiais dos criança fazendo ponto, vadiando e cheirando droga e nem
jornais da cidade. briga de vagabundos como hoje”. »
23
25. » Era grande a presença de marinheiros, donos de loja, oficiais da polícia
e do exército que se reuniam nos clubes náuticos dos portugueses e
depois se dirigiam para a zona. Até que, segundo Andrelina, o assassi-
nato de um tenente, de nome Marinho, por causa de uma briga entre
o exército e a marinha, acabou por marcar o principio da “decadência”
da ZBM. Aproveitei para questionar um pequeno grupo de profissionais se poderíamos ter uma
conversa rápida sobre as suas vidas e seu trabalho. Entre respostas entrecortadas como
Cabe lembrar que essa visão da saudosa boemia não mantinha, na “vai ter que pagar a hora”, “pra conversar é mais caro”, recebi um “sim” do grupo, com a
época, o mesmo prestígio de hoje, sendo também alvo de suspeitas de condição de que pagasse algumas cervejas, o que resultou na breve entrevista abaixo:
degeneração dos costumes. Agora que se tornou parte da memória,
integrou-se à paisagem imaginária da versão bucólica do bairro. Como é a rotina do trabalho de vocês?
Passadas algumas décadas, somam-se um sem número de casos e - Tem uns clientes que nem querem nada, só conversar, beber cerveja. E a gente conver-
“causos” acerca de como a rotina local girava ao redor da vida na zona. sa. Tem muita coisa misturada nessa coisa da prostituição. Só que a gente não aceita dizer
Locais de festividades e de circulação das pessoas “honestas”, pontos essas coisas da gente. Todo mundo pensa mal do trabalho, mas ninguém sabe de nada.
de encontros de jovens tinham como referência negativa o “puteiro”. - A gente tem mais liberdade é com o horário, tem dia que dá pra fazer um dinheiro até
Da mesma forma “putas famosas” são mencionadas incessantemente bom, apesar de que queima muito a gente com as pessoas, mas ninguém quer pagar
pelos moradores mais idosos. nada de ninguém, né? Só falar mal.
O caso de Luzia é o mais curioso e se afasta um pouco do perfil médio E quanto aos filhos e maridos?
encontrado. Como revelou Maria, a devota, Luzia, a suicida, foi trazida - Filhos, umas tem outras não. Umas aqui já perderam filho. A gente vai criando, a maio-
do interior por familiares poucos anos atrás e, desde o início, atraiu a ria aqui é preocupada com a criação dos filho. Marido (uma voz dissidente grita: é tudo
atenção da dona de bar. A razão seria a menina ter uma “tristeza que corno... risos...risos) tem umas aqui que tem, umas dizem que tem, uma é até sapata,
não passava” e ficar pensando obsessivamente em se matar. No dizer mas não vou dizer quem é. Mas a maioria é só fica ou umas descolam um coroa e tal.
da católica fervorosa, graças a Nossa Senhora, após muitas orações e
um longo tempo, Luzia melhorou , sendo designada para os trabalhos E o lance com os clientes?
de casa e hoje, passada a “tristeza”, leva rotina normal e me serviu a - Tem os fixos e uns que aparecem. A gente fica no bar só sacando, umas ficam na rua
cerveja que temperou a entrevista com sua patroa (embora não tenha mesmo. O cara aparece, a gente acerta e pronto! Dá uma volta, rapidinho e volta. Chato
perdido o olhar suicida). é que tem uns malas que arranjam confusão, fica rebaixando preço, tem uns esperto que
ainda quer bater, mas aí fede pro lado deles, cara de mulher não se bate.
ELAS, AS MENINAS
Como é a freqüência de clientes? Vêm caras ricos? Rola disputa entre vocês?
A prostituição de hoje parece obedecer a uma lógica distinta, até por- - Dá muito cliente sexta, sábado depois que os ônibus vem deixar os peões das fábricas e
que há competição com a de luxo, negociada por telefone ou internet, os caras da lojas terminam expediente. Mas é só liso, uns mineiros, baianos que traba-
feita em geral por meninas de classe média. No universo dos atuais lham nessas empreiteiras que alugam quartos pra eles por aqui. Com grana mesmo, só
inferninhos, misturam-se mulheres de idade muitas vezes indefinível, um ou outro esquema, mas é por fora daqui. Tem uns caras que se fingem de rico quan-
com adolescentes. A maioria diz ter vindo da periferia de São Luis, do do tão bêbados, mas são só esses cara de moto, empregado de loja, tudo liso.
interior do estado, de regiões pobres da Baixada. Algumas têm casa - De vez em quando sai umas brigas de umas mulheres por causa de homem, de dinheiro.
própria, filhos ou mesmo maridos (que algumas disseram saber do seu Mas não é toda hora.
ofício).
No começo da tarde vão saindo dos casarões e pousadas, descendo Como vocês acham que a comunidade vê o trabalho de vocês?
nas paradas de ônibus do Mercado Central ou transitando ao lado do - Tem gente que fala, tem quem passe e nem olhe. Tem umas mulheres que trabalham
esgoto a céu aberto e, em meio a uma confusão de máquinas caça- pras pousadas, faz comida, lava roupa, faz manicure, pedicure da gente. Mas é só das
níqueis e corredores apertados entre as mesas, cada uma vai tentando dona de bar e das meninas que morar aqui mesmo. As que moram longe só vem aqui pra
tirar dali o dinheiro do pão (da televisão nova ou para pagar o aluguel trabalhar. Eu não sei nem te dizer, nêgo diz que falam pelas costas que aqui só tem vaga-
da kitnet). bunda e tem drogado. Mas aqui eu trabalho muito mais que muitas por aí, que ficam só
Recostadas pelos muros ou nas mesas avaliando os clientes (ou mesmo nas costas de marido.
descansando), as prostitutas sustentam uma postura quase sempre ar-
redia a olhares e questionamentos indiscretos, mas, ao mesmo tem- (Em tempo: a respeito da placa que indicava uma obra de saneamento e drenagem a ser
po, a de quem está ali, afinal, para comercializar. A reação esperada à realizada no Portinho pela prefeitura e, que, segundo relatos poderia por abaixo toda a
figura de alguém com caderno e gravador na mão fazendo perguntas área do Oscar Frota, responderam que não acreditavam nisso e se fosse verdade, ficariam
aos donos de bares é, no mínimo, de estranheza, e é de se supor que peladas em frente à prefeitura).
gerasse mal estar, mas, surpreendentemente, isso fez com que muitas
delas se movessem de um, as vezes rude, senso de reserva e intimida-
de, demonstrando curiosidade e mesmo perguntando, ironicamente,
se eu era da policia ou tinha “gazeado” aula.
24
26. CREUDECY, A DESTERRADA
Não há uma definição oficial dos limites entre os bairros da O tráfico parece ter ocupado o centro da vida eco-
Praia Grande, Desterro e Portinho. Perguntando a dois mo- nômica da área, que, durante um longo período, foi
radores distintos, provavelmente serão obtidas respostas de empresas como OLEAMA, CEMAR, fábricas de
variadas ou mesmo opostas. gelo e do comercio portuário. Vendedores de crack
Embora esteja em local reconhecido nos planos de urba- e maconha ocupam uma parte considerável de ca-
nização como Desterro, a antiga ZBM parece ao mesmo sarões, habitados ou não, e favorecem a evasão dos
tempo não pertencer a nenhuma dessas áreas, pois muitas moradores.
pessoas que constantemente transitam entre esses limites A antiga separação entre zona de “classe” e o Des-
dificilmente reconhecem os cabarés e pousadas como par- terro, apontada como zona de violência, onde fun-
te do “seu” bairro (embora o Oscar Frota mantenha uma cionavam casas de cômodos, cabarés inferiores se
relação de troca de serviços com o entorno). comparados aos da ZBM, foi, pelo menos no imagi-
Parte da atual antipatia se explica pela penetração do cra- nário popular, o que, como afirma Creudecy em sua
ck e dos traficantes que parecem espreitar a todo tempo tese, reforça a existência de uma suposta divisão
de dentro de prédios abandonados. Essa razão não explica, oficial em relação à área que abrigou a antiga ZBM
entretanto, todos os sentimentos que circundaram a região de São Luís. Segundo a professora essa “divisão”,
ao longo tempo. Segundo Luzia Margareth Rego, antropó- não só é muito simplista, como, provavelmente, já
loga, “o baixo meretrício vem inevitavelmente associado desapareceu na geléia geral do tráfico e dos muitos
à idéia da animalidade da carne, da bestialidade do sexo abandonos sofridos pela área.
(...) atestando o último degrau de degradação atingido pela Hoje, o lugar que antes recebia com os cuidados que
humanidade. Tudo aí passava pelo crivo do negativo, do o dinheiro pudesse pagar, parece ter sumido no des-
sombrio, da brutalidade humana”. Numa sociedade que cuido e no interesse público de preservar algo que
desejava para seus meninos e meninas o amor respeitável ninguém sabe o que é, ou mesmo se já foi um dia.
do casamento futuro, não seria aceitável a concorrência do Sobrou o rastro, de um lado, da zona de “segunda
amor–ladrão. linha”, do xirizal, pobre e inverossímil e, do outro, da
Na opinião de Creudecy Silva, professora, pesquisadora e ZBM iluminada, tão chique quanto ficta, concentra-
ex-moradora do Desterro “o principal problema hoje são da na rua da Palma, que era freqüentada por gran-
as drogas. Eu tenho uma filha e quero que ela cresça num finos de terno, sapato e empáfia, onde , segundo
ambiente saudável, e o Desterro, faz tempo, já não é esse dizem, até Valdick Soriano já foi.
lugar ”. Ela afirma que, de certa forma, foi sendo “expul-
sa” do lugar onde viveu sua infância e adolescência e onde
ainda vivem seus familiares, pelo abandono da comunidade
por parte de iniciativas públicas e privadas. “O que se deno-
minava Zona do Baixo Meretrício já se encerrou há muito
tempo e o que resta são, talvez, resquícios da ZBM associa-
dos ao tráfico de droga”, acrescenta.
25
30. poraí
___________________________________
DE ASSALTO
Quanto um homem pode ansiar pelo seu algoz? Qual o
humor e a roupa adequada para receber o gatuno que
espreita?
É provável que você nunca tenha se detido em pergun-
tas como essas e é a partir desse mote que o já premiado
dramaturgo Igor Nascimento, em parceria com o Grupo
DRAO Teatro da (in)constância, parte para um rocambo-
lesco monólogo sobre os temores, invectivas e meneios
de um homem solitário que, na madrugada, se vê com a
casa sendo invadida por um ladrão.
Fica claro no monólogo “De Assalto” que o autor quer, e
por vezes consegue, criticar e expor, humoristicamente,
a “solidão-do-tamanho-de-um-apartamento” da qual o
homem moderno padece. Embora este tema seja pra lá
de mastigado na literatura e no teatro contemporâneo,
trata-se de um verdadeiro cavalo de tróia na estética
maranhense e a abordagem vale o ingresso.
Nosso des-herói é “posto em carnes” pelo
ator Nuno Lilah Lisboa que, descontado
certo histrionismo, demonstra grande do-
GARIBALDO E O RESTO mínio do “fazer teatral” e magnetismo so-
DO MUNDO bre um público pouco acostumado à mo-
nólogos. Fica aqui o destaque para o som e
Este primeiro disco da Garibaldo e O Resto do Mun- a iluminação que dão vivacidade às pausas
do, lançado em 2010, trás a possibilidade de se fazer no texto e dialogam constantemente com
uma comparação interessante com o som que a banda os humores e ações do personagem.
produz ao vivo. O projeto foi gestado e produzido por O trabalho de Igor Nascimento desponta
Paulo Henrique (o Garibaldo) com o produtor Adnon (pela ótima qualidade somada à falta de
Soares (ESTÚDIO CASALOUCA). A banda veio depois, concorrência) como uma opção alentadora
com o CD pronto. para quem se interessa por algo além de
Com todos os instrumentos gravados ou programados “Um Lindo, Quase Teatro”.
por Adnon, que participou de algumas composições, O monólogo voltará a ser apresentado em
e Paulo Henrique, o disco é mais denso do que pesa- 2011 em datas e locais a serem definidos.
foto divulgação
do. O peso é mais presente nas apresentações ao vivo. FICHA TÉCNICA
A banda, com destaque para os slides da guitarra de ESPETÁCULO: “De Assalto”
Pedro, não fica devendo nada, tratando-se apenas de Duração: 45 minutos
uma abordagem um pouco diferente e igualmente in- Direção: Igor Nascimento.
teressante. Elenco: Nuno Lilah Lisboa Nazareth
Adnon e Paulo Henrique souberam aproveitar bem o Iluminação: Milena Silva.
estúdio, fazendo intervenções geralmente felizes como Operadora de luz: Milena Silva.
o “comunicado” em espanhol de El Paso (que ficaria Operador de Som: Denis Carlos.
melhor sem o que pareceram uns
scratches no início) e jogando
bem com efeitos como delay e re-
verb em faixas como Veludo.
No final, o resultado agrada. O
disco não se prendeu às limita-
ções que existem em apresenta-
ções ao vivo da mesma maneira
que a banda achou abordagens
interessantes no palco sem adul-
garibaldo e o
terar o CD. Vale a pena comprar resto do mundo
tanto o ingresso quanto o disco. 2010
foto caroline rêgo
29