1. Tecnologia, Escolha e o Sétimo Reino
Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE
Qualquer reflexão sobre o papel fundamental que a tecnologia exerce na vida contemporânea
parece deixar um certo sentimento de ambivalência. Ao mesmo tempo que têm contribuído
para salvar vidas, promover o bem-estar do ser humano, assim como oferecer mais liberdade
de escolha, os avanços tecnológicos muitas vezes são alcançados a um custo ambiental nem
sempre desprezível. Em artigo no portal Edge.org (da Edge Foundation, Inc.) intitulado “The
Technium and the 7th Kingdom of Life”, publicado em 19/07/2007, Kevin Kelly, possivelmente
um dos mais importantes pensadores contemporâneos dedicados a questões fundamentais
sobre a natureza e a evolução da tecnologia, se propõe não apenas a analisar o significado da
tecnologia em nossas vidas, mas sobretudo a investigar onde estaria situada a tecnologia no
universo e na condição humana. Lembrando que a tecnologia, como um sistema em si próprio
ao qual ele atribui a denominação de “technium”, parece ser uma força dominante na cultura
de hoje e de tempos passados, Kelly se pergunta o que podemos esperar dessa força, e, em
última análise, o que a governa. Vislumbrando objetivos tão ambiciosos quanto visionários,
declara que sua intenção é buscar um melhor entendimento das conseqüências de longo prazo
da tecnologia no mundo, colocando-a no mesmo patamar que a natureza biológica, a história
do universo, a física do cosmo, e o próprio futuro.
É bem verdade que no senso comum há um sentimento de que cada nova tecnologia nos traz
novos problemas assim como novas soluções. Deveríamos então buscar por uma conceituação
dessa coisa chamada tecnologia de modo que pudéssemos atingir um grau mínimo de
comprensão a ponto de sermos capazes de avaliar se essa aparentemente incessante geração
de novidades seria algo a que deveríamos, ou sequer poderíamos, responder. Uma das
respostas de puro reflexo aos problemas causados pela tecnologia seria a proibição. Desde a
energia nuclear até os alimentos geneticamente modificados, para mitigar os efeitos
detrimentais restringimos seu uso a certas fronteiras cuidadosamente delimitadas. Nesse
mesmo espírito estaria o princípio de que há certas idéias que não deveríamos sequer cogitar,
rumos de pesquisa que deveríamos proibir a priori, bem como tecnologias que nunca
deveriam ser experimentadas fora do laboratório, talvez sequer dentro do laboratório. Uma
teoria contrária, no entanto, defende que as proibições não funcionam e que não há como
administrar a tecnologia simplesmente proibindo seu uso. Ao contrário, é preciso saber
deslocar, substituir, adaptar, sintonizar, enfim, transferir uma tecnologia para um outro papel
sem ter que eliminá-la.
Ainda com toda essa conceituação à nossa disposição, a bem da verdade não chegamos a um
bom entendimento do que de fato é tecnologia, nem mesmo como defini-la. Segundo Alan
Kay, “tecnologia é qualquer coisa inventada depois que você nasceu”. Para Danny Hillis, no
entanto, “tecnologia é qualquer coisa que ainda não funciona propriamente”, numa referência
ao que é novo e ainda não se tornou transparente. Conforme lembra Kelly, tecnologia no
sentido moderno é um termo que não havia sido sequer inventado até que em 1829 o médico
e botanista Jacob Bigelow publicou umas notas de aulas proferidas em Harvard sobre a
“aplicação das ciências às artes úteis” sob o título “Elements of Technology”. Não obstante, a
2. humanidade já vinha fazendo tecnologia há séculos, mas ainda não tinha uma palavra para
denominá-la. (Curiosamente, a primeira menção da palavra “tecnologia” em um
pronunciamento de um presidente americano à sua população – o chamado “State of the
Union Address” – somente ocorreu em 1952.)
Fundador e/ou editor de alguns dos mais importantes veículos sobre tecnologia (Whole Earth
Review, Whole Earth Catalog, Wired), além de ter sido co-fundador da WELL, uma das
primeiras e mais marcantes comunidades virtuais de que se tem notícia, Kelly é mais
conhecido como o autor de “Out of Control: The New Biology of Machines, Social Systems, and
the Economic World” (1994), no qual apresenta uma perspectiva sobre os mecanismos de
organização complexa. Tendo sido leitura obrigatória para os principais atores da série de
filmes “Matrix”, o livro gira em torno de temas como cibernética, emergência, auto-
organização, sistemas complexos, e teoria do caos, e trata essencialmente de um suposto
ponto de convergência de diversas áreas da ciência e da filosofia contemporâneas: a
inteligência não é organizada sob forma de uma estrutura centralizada mas, é muito mais
parecida com uma espécie de colméia de pequenos componentes.
Em livro a ser publicado em Outubro de 2010 com o título “What Technology Wants” (Viking
Adult), assim como em palestra de mesmo título proferida ao portal TED.com em 2005 e outra
também ao TED em Novembro de 2009, Kelly se refere à tecnologia como uma entidade
“biológica”, a saber, o technium, com sua própria agenda e sua própria trajetória de longo
prazo. Entre as características fundamentais do technium estariam: aumentar a diversidade,
maximizar a liberdade e as escolhas, expandir o espaço do possível, incrementar a
especialização, aumentar a densidade do poder e do significado, engajar matéria e energia,
atingir ubiqüidade e liberação, aumentar a complexidade e a co-dependência social assim
como a natureza auto-referencial, alinhar-se com a natureza, bem como acelerar a
evolutibilidade. De modo geral, a tendência da tecnologia seria aumentar a diversidade de
artefatos, métodos, e técnicas, levando a uma maior multiplicidade de possibilidades e de
escolhas.
Ainda como parte de sua concepção da tecnologia como uma entidade biológica, Kelly sugere
tratar tecnologias específicas como se fossem indivíduos ou espécies que fariam parte do
sistema emergente denominado technium. Nesse sentido, um organismo tecnológico
individual teria um tipo de resposta, mas numa ecologia composta de espécies que co-
evoluem iríamos encontrar uma entidade elevada – o technium – que se comportaria de forma
bem diferente de uma espécie individual. O technium seria um certo superorganismo de
tecnologia que teria sua própria força, que por sua vez seria em parte cultural (influenciada
por e influenciadora dos humanos), mas que também seria parcialmente não-humana,
parcialmente não-indígena à física da própria tecnologia. E esse superorganismo seria como se
fosse um filho da humanidade, que nós humanos teríamos que treinar imbuindo-o de certos
princípios e valores que apreciamos antes que se tornasse mais autônomo do que seria hoje.
Enfim, argumenta Kelly, a tecnologia teria sua própria história natural, e não seria uma
entidade meramente derivada do humano, pois suas raízes remontariam ao Big Bang. O
technium teria muitas características em comum com a vida biológica, a mente, e outros
“sistemas extrópicos auto-sustentáveis próximos-ao-equilíbrio”. (A extropia seria definida
3. como “o grau de inteligência, ordem funcional, vitalidade, energia, capacidade e impulso de
um sistema vivo ou organizacional para o melhoramento e o crescimento.”) A tecnologia,
portanto, poderia ser entendida numa escala cósmica como algo que teria se desenvolvido a
partir do Big Bang.
Numa certo sentido, propõe Kelly, poder-se-ia pensar no technium como o sétimo reino da
vida. Em outras palavras, além dos seis reinos (Archaebacteria, Eubacteria, Protista, Fungi,
Plantae, e Animalia) definidos segundo a classificação de alguns biólogos tais como Lynn
Margulis, o technium, enquanto sistema extrópico que se originou de animais, seria
considerado o sétimo.