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PARADOXOS DE UM COMEDIANTE:
                    QORPO SANTO



                             Carmem Gadelha




                            Fevereiro - 1996




Carmem Gadelha é Doutora em Comunicação e Cultura
Professora de Poética do Espetáculo
Curso de Direção Teatral
ECO/UFRJ
Louco, sim louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia
Cadáver adiado que procria?
               Fernando Pessoa




                                         2
PROSCÊNIO



                                                            Corre a pena tão depressa
                                                                     - No papel,
                                                            Que eu não sei se é puro fel,
                                                                     Ou se mel
                                                            O que nele escrevi, ou lancei!
                                                                     Eu lerei
                                                            Quando acabar; então verei
                                                                     Se falei
                                                            Com fel ou mel o que eu narrei!
                                                                                  Q.S.




          Nascido em 1829 (Vila do Triunfo) e morto em 1883 (Porto Alegre), José Joa-
quim de Campos Leão (Qorpo-Santo) – anterior em décadas a Alfred Jarry (1873-1907)
- viria a tornar-se “precursor do teatro de absurdo”. Este título traz consigo não apenas a
responsabilidade de definir o dramaturgo. Importa inserir sua produção num circuito que
reúne tantas diversificadas obras e procedimentos artísticos quantos problemas a respei-
to.
          As dezessete peças do teatro de Qorpo-Santo vieram à luz pelas encenações do
Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (cerca de um
século depois de escritas). Seguiram-se montagens e publicações de textos isolados até a
edição crítica de Qorpo-Santo - teatro completo1, realizada pelo gaúcho Guilhermino
César. A obra dramática integra os volumes da Ensiqlopédia ou Seis mezes de huma
enfermidade: fragmentos poéticos, notas sobre política, medicina, direito, astronomia,
culinária, filosofia, conforme enumera Maria Valquíria Alves Marques em Escritos so-
bre um Qorpo2. Baseada na edição feita por Qorpo-Santo em sua própria tipografia (não
sobreviveram os manuscritos), Denise Espírito Santo da Silva defendeu a dissertação de
mestrado A poesia satírica de José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo (Faculdade
de Letras da UFRJ, 1994). Esse trabalho constitui-se na primeira edição crítica da poesia
de Q.S. A autora inseriu a obra poética no âmbito do romantismo brasileiro como sua


1
    MEC/SEAC/FUNARTE/SNT, Rio de Janeiro, 1980.
2
    Anna Blume, São Paulo, 1993.



                                                                                              3
contraface grotesca, ao lado de Sousândrade, Bernardo de Guimarães, Laurindo Rabelo,
Joaquim José da Silva (o Sapateiro Silva)3.
          Um louco, perante sua família, seus conterrâneos e contemporâneos e ainda para
alguns críticos de nossos dias.
          Ser precursor do teatro do absurdo coloca sobre os ombros do morto o peso da
tarefa de alçar um dramaturgo brasileiro à alegre e ufanista posição de vanguarda da
vanguarda. Jarry começou a escrever no final do século passado, enquanto Qorpo-Santo
realiza sua obra (poesia e prosa) entre os anos 60 e 80 do mesmo século. O teatro foi
inteiramente produzido no primeiro semestre de 1866.
          Mas quais as relações da loucura (ou do louco) com a escrita e com a obra? Esta
pergunta, deve substituir o (talvez fácil) diagnóstico do autor. Em primeiro lugar, por-
que interessa-nos aquilo que emerge como obra. Pois é na rede complexa do discurso
que se dá a presença problemática do autor. Nessa rede, procuramos dialogar com ele,
especialmente na sua condição de travestido em personagem de si mesmo (ou com per-
sonagens em busca de criar seu autor).
          Já é grande a quantidade de teses, dissertações e artigos jornalísticos dedicados
ao estranhamento ou ao deslumbre provocados pela obra de Qorpo-Santo. Salta aos o-
lhos a direção das abordagens, sempre voltadas para o autor - seja por suposta loucura,
seja por genialidade. Nossa preocupação centra-se numa pesquisa em torno do não-
senso, da sátira, do grotesco - elementos presentes no palco brasileiro desde a sua ori-
gem. Por isso verificamos em nossa tradição teatral como ela se assenta numa reação em
busca da liberdade. (Reagimos contra a opressão como quem ri da monstruosidade ou
do grotesco da colonização, sendo nós grotescos colonizados...) Nessa tradição, o enfo-
que foi dirigido ao discurso, aos personagens, ao palco e à crítica.
          O discurso ocupa posição axial neste trabalho. Eixo não linear, não aristotélico.
Múltiplo eixo. Acontece que o teatro de Qorpo-Santo explode no âmago da modernida-
de. E o discurso está presente como questão em todos os aspectos pelos quais se possa
abordar o texto: ele se evidencia quando se trata do personagem; quando se pensa no
palco, território de seu exercício. Ou, ainda, quando nos voltamos para o diálogo com a
crítica. Coisas do teatro: a especificidade de Qorpo-Santo frente aos outros autores de


3
    A referida dissertação encontra-se editada: QORPO-SANTO. Poemas. Organização, Introdução e Notas



                                                                                                   4
sua época, maneira de ser do grotesco; a representação na modernidade; as vozes do
discurso e o sujeito da enunciação; o tempo no teatro e o tempo em Q.S.; o herói impos-
sível; o romantismo e sua paródia; a ação dissolvida e sua possibilidade de ser teatro.
        Os personagens estão no segundo capítulo. Se não se movem na linha temporal
da ação, qual o seu estatuto e o seu modo de ser? Com o fim da metafísica, é possível
manter a noção de personagem como decalque da idéia de homem? Qorpo-Santo, en-
quanto personagem, é sujeito autor (autobiografia e auto-retrato)?
        O palco (espaço de exercício da linguagem) preocupa-nos enquanto território da
ação. Fascina-nos, sobretudo, a cena complexa onde cobras e dragões expelem venenos
que a realidade - subordinada ao discurso do senso comum - critica ou rejeita, pois lhe
escapam dos limites. Resíduos? Dejetos? Ou estrume fomentador do novo? Estudare-
mos a história do palco, no terceiro capítulo, como meio de compreender a existência
de um espaço onde se organiza a gramática do discurso de Q.S. Trata-se de pensar o
percurso que vai da transcendência à cena imanente; da origem à “morte” do teatro; da
representação a questões sobre sua (im)possibilidade. De Homero e Hesíodo à tragédia
grega, do palco medieval ao italiano e daí à explosão moderna da linguagem cênica.
        Na cena seguinte (último capítulo) a protagonista é a crítica: sempre presente (às
vezes malograda) ânsia de “traduzir o pensamento do autor”, conferindo, a ele e à obra,
inteligibilidade. O próprio Qorpo-Santo comparece como crítico, em sua ótica perma-
nentemente exótica, cuspindo fogo e assumindo o papel do palhaço, que, no dizer de
Muniz Sodré, “é o louco profissional. E só ele pode sorrir sonoramente ante o escândalo
da existência e levar-nos a reconhecer a nossa condição tragicômica.”4




de Denise Espírito Santo. ContraCapa, Rio de Janeiro, 2000.
4
  MUNIZ SODRÉ. A comunicação do grotesco. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 81.



                                                                                          5
DISCURSO



                                                                 Os ventos levem
                                                                 Ao mundo inteiro,
                                                                 - Versos que saem
                                                                 Do meu tinteiro!

                                                                 As brisas tragam
                                                                 Para o meu tinteiro,
                                                                 - Versos que correm
                                                                 No mundo inteiro!
                                                                               Q.S.




       No período romântico brasileiro - instalado entre as décadas de 40 a 80 do século
passado, as letras desenvolveram um discurso voltado para as tradições européias. Ao
lado disso, uma proposta de desenvolvimento da nacionalidade a partir do sentimento de
independência em relação ao domínio da metrópole portuguesa. Em contrapartida, a
Revolução Francesa contribuiu com ideais de liberdade que apontaram primeiro para a
Independência e depois para a luta contra a Monarquia. Estabeleceram também modelos
de bom gosto de certo modo sufocantes para a afirmação nativista de nossa produção
cultural. Neste bojo surgiu a obra - teatral e poética - de Qorpo-Santo, revestida de uma
paródia julgada de mau gosto, uma vez que o grotesco tende a mostrar o lixo jogado
debaixo do tapete.
       Qorpo-Santo tem um teatro realizado fora do círculo de produção teatral carioca,
o maior da época. O Rio de Janeiro era ponto de confluência de idéias e discussões: me-
ca de atração para autores e artistas interessados na possibilidade de manter-se numa
atividade permanente e profissional, num mercado emergente de arte. Isolado em sua
província (Rio Grande do Sul), Qorpo-Santo pôde escrever obra radicalmente diferenci-
ada dos modelos românticos.




                                                                                        6
Assumindo, como é próprio do romantismo, a cor local, a produção teatral brasi-
leira apresenta bifurcações. Dramas de feição política e social onde a Independência do
Brasil se encena na afirmação da nacionalidade (Gonçalves Dias, Agrário de Menezes,
Castro Alves, Alencar). Comédias também bifurcadas e permeadas pelo realismo: há a
presença francesa da chamada alta comédia (Alencar, Macedo) e a orientação popular
ibérica (Martins Pena, França Jr, Artur Azevedo). Não há exagero em se dizer que o
drama colocou no palco a nacionalidade malograda. A comédia, ao satirizar estrangeiros
e estrangeirismos de nacionais, afirmou e nutriu a nacionalidade que surgia e um modo
brasileiro de ser e de fazer teatro. É exatamente a comédia que, testemunhando o nasci-
mento da nação na Monarquia, acompanhará seu crescimento, corroendo-lhe criticamen-
te as bases.
       Martins Pena, apontado pela crítica como “fundador da comédia nacional” (em-
bora o título possa ser questionado), cria uma obra onde o realismo dá suporte a situa-
ções de non sense. Com isso, vemos que o non sense encontra-se na raiz da comédia
brasileira. Em Os dous ou O inglês maquinista, Mr. Gainer pretende fazer e comerciali-
zar açúcar de ossos:

               GAINER - Eu explica e mostra...até nesta tempo não se tem feito caso das osso, estruin-
               do-se grande quantidade delas, e eu agora faz desses osso açúcar superfina...
       São tempos em que o capital inglês impõe-se à nossa economia. E, após a “Inde-
pendência ou Morte”, é fundamental responder à dominação cultural com sátiras onde o
dominador é alvo da ironia do dominado. Ingleses, falsos ingleses, franceses e alemães
aparecem também em comédias de Macedo e França Jr. ou Azevedo, no papel de verda-
deiros bufões a correr atrás de “privilégios” oficiais para seus planos mirabolantes. Mr.
James, de Caiu o ministério (França Jr.), quer construir uma estrada de ferro para o Cor-
covado e descreve a “tecnologia de ponta” que pretende utilizar. Os trens serão movidos
a cachorros raivosos, instalados no interior das rodas:

               MR. JAMES - Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de ro-
               da. Ora, cachorra dentro de roda no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais
               cachorra mexe, mais o roda caminha!
       Os temas da comédia do século XIX - genericamente chamada “de costumes” -
são amplos, alguns deles abordados também por Qorpo-Santo:
       a) problemas da família (casamento, namoro, a convivência com os criados, bis-
bilhotice). No filão da dita “alta comédia”, a tônica é a moralização de feições burgue-



                                                                                                    7
sas. “A honra não se remenda”, poderia dizer Alencar. Em duas de suas comédias (na
verdade, melodramas), os pecados cometidos pela mãe (As asas de um anjo) têm conse-
qüências na filha, que os paga na peça seguinte, Expiação. A chamada “baixa comédia”
de Martins Pena ou França Jr. apresenta certa cumplicidade com o que então se conside-
ra erro: namoros escondidos, adultérios. Qorpo-Santo radicaliza as abordagens. As rela-
ções naturais mostra a família inteiramente desacreditada: ela revela a sua face de bor-
del. Em Eu sou vida; eu não sou morte, o tema do adultério é apresentado de forma a
não se saber quem é o marido e quem é o amante;
          b) a sátira política já chocava os mais “avançados”, pois era vanguarda para a
época, investindo contra os ministérios, as eleições, os meirinhos, os funcionários públi-
cos, a politicagem. Como se fazia um deputado, de França Jr., trata das eleições de ca-
bresto: o oportunista Dr. Henrique, bacharel em Direito, não quer ser eleito de maneira
desonesta. Mas cede aos apelos dos belos olhos de sua namorada, desejosa de tornar-se
“esposa de deputado”. Esta peça sofreu censura do Conservatório Dramático e o autor
precisou trocar o tempo do verbo no título: faz por fazia. Qorpo-Santo escreve Um cre-
dor da fazenda nacional, em que o desesperado Credor, diante da mal intencionada ino-
perância dos funcionários públicos, toca fogo na repartição. Além disso, cria, em plena
Monarquia, o rei bufo de Hoje sou um; e amanhã outro;
c) os hábitos.
          Embora se possa reconhecer pontos de contato entre a temática de Qorpo-Santo e
seus contemporâneos, o non sense do gaúcho pretende mesmo enlouquecer o senso co-
mum. Surgem, então, inevitáveis questões sobre a organização de seu discurso e o dese-
jo de mapear a sua especificidade. A abordagem bufa de certos temas caros ao roman-
tismo, como o da defesa da pátria (Hoje sou um; e amanhã outro) faz pensar num “ou-
tro” grotesco dos modelos românticos. Bufonaria que também pode caracterizar-se por
ser paródia:

                   A paródia satírica propõe-se fazer rir à custa de seu modelo, do qual ela denuncia, não
                   menos eficazmente que uma crítica séria, as fraquezas. Ela cumpre um grande papel nas
                   querelas, sobretudo nas querelas literárias.5
ou caricatura:


5
    CÈBE, Jean-Pierre. La caricature et la parodie dans le monde romain antique des origines à Juvenal.
         Boecard ed. Paris, 1966, p. 11.



                                                                                                        8
Representação deformada do real, a caricatura se alimenta dos defeitos, físicos, intelec-
                tuais ou morais daqueles que ela toma por alvo. Não somente ela traz à luz estes defei-
                tos, mas força-os até o extremo. Ela implica, conseqüentemente, um modo de ser realis-
                ta.6
        Mas este caráter grotesco é, por si só, objeto de especulações. Imagine-se o es-
cândalo causado por Q.S. a uma sociedade maravilhada com os edulcorados persona-
gens de A moreninha, O guarani, Senhora, O tronco do ipê. Neles, o amor, a honra, a
credibilidade são avalizados pelos fios de barba e pela inviolabilidade do hímen.
        Mikhail Bakhtin7 define o grotesco medieval como uma expressão de “outro la-
do” das relações sociais. As hierarquias se invertem: o elevado (o céu, o sagrado) inter-
cambia-se com o baixo (a terra, o ventre, o profano); o decoro dá lugar ao obsceno e ao
escatológico. Essa degradação significa renascimento, regeneração: o túmulo-ventre
restaura a vida. As imagens grotescas do corpo opõem-se aos ideais de perfeição; ele é
disforme e mostra suas transformações em processo. Em QS, há casos de gravidez mas-
culina. Um assovio mostra a pança do criado Gabriel ameaçada pelo amo Fernando:

                GABRIEL - Ai! não me fures, que eu tenho um filho de seis meses arranjado pela Sra.
                Luduvina, aquela célebre parteira que o Sr. meu amo melhor que eu conhece...[...]
É que, no dizer de Pinski,

                Ao aproximar o que está distante, ao unir as coisas que se excluem entre si, ao violar as
                noções habituais, o grotesco artístico se assemelha ao paradoxo lógico.8
        Mas, da Idade Média ao romantismo, o percurso do grotesco é de abandono da
praça pública (carnaval de todos) em direção à formalização artística do palco (lugar de
atores perante um público). Chega-se a um “grotesco de câmara” (expressão de Bakh-
tin), “espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência agu-
da do seu isolamento”9. Mais uma vez, QS mostra-se diferenciado: seu carnaval, embora
fora da praça e destinado às dimensões do espaço físico do palco, dá-se sem a menor
sombra de tristeza. Impõe-se uma liberdade, antes de tudo, do discurso, que não reco-
nhece legitimidade em nenhuma norma. Celebra-se, no palco, não um retorno ao carna-
val medieval (onde a ordem do mundo se suspende temporariamente), mas a instauração
de um mundo que se sabe e se quer em permanente convulsão.


6
  CÈBE, Jean-Pierre. Op. cit., p. 8.
7
  BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de François
        Rabelais.). Hucitec/UnB, São Paulo, 1987.
8
  Apud BAKHTIN, op. cit., p. 29
9
  BAKHTIN, op. cit., p. 33.



                                                                                                       9
O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destróem a seri-
                edade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a
                consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o
                desenvolvimento de novas possibilidades.10
        Muito úteis são para nós as considerações de Bakhtin sobre esse “avesso do
mundo”. Entretanto, se se trata de avesso, estamos remetidos a um mundo dicotomiza-
do, no qual, embora uma face não viva sem a outra (como uma folha de papel), uma não
se deixa penetrar pela outra. A ordem racional permanece intocada, pois o carnaval é
intervalo aberto no seio da vida ordinária. Mesmo no romantismo, a ordem do mundo é
preservada em seus fundamentos e o disforme é transbordamento das formas.11 A ordem
proposta por Qorpo-Santo ficou para debaixo do tapete ou para trás do espelho, dada a
radicalidade do seu discurso perante as normas vigentes, tanto sociais quanto artísticas.
        O grotesco em Qorpo-Santo tem feições diferenciadas. Instaura um mundo cujos
fundamentos já estão minados de início, pois a linguagem não mais funciona no interior
da noção de representação. O penso logo existo, ao identificar o ser e o pensamento,
cava sua própria sepultura: abre caminho para interrogações sobre o ser da linguagem, o
sujeito da enunciação. A relação sujeito/objeto (em que o primeiro é ativo na busca de
conhecimento do segundo) faz do homem um objeto de seu próprio conhecimento. A
fundação das modernas ciências positivas faz surgir o homem em sua finitude. Diz Fou-
cault que a finitude é

                marcada pela espacialidade do corpo, pela abertura do desejo e pelo tempo da lingua-
                gem; e, contudo, ela é radicalmente outra: nela, o limite não se manifesta como determi-
                nação imposta ao homem do exterior (por ter uma natureza ou uma história), mas como
                finitude fundamental que só repousa sobre seu próprio fato e se abre para a positividade
                de todo limite concreto.12
        Além disso, modernamente, os estudos do discurso focalizam um conjunto de
vozes comumente denominado “sujeito da enunciação” (Benveniste)13. Assim, a hetero-
geneidade enunciativa se manifesta enfeixada como “polifonia”: manifestação explícita
de uma multiplicidade de vozes citadas pelo autor empírico do texto (Bakhtin14 e Authi-
er-Revuz)15. Citações conscientes ou não, manifestadas pela pluralidade do texto (Bar-


10
   Idem, p. 43.
11
   Cf. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Perspectiva, São Paulo, s.d.
12
   FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Martins Fontes, São Paulo, 1992, p. 331.
13
   BENVENISTE, Emile. Problemas de lingüística geral, I e II. Pontes Ed., Campinas, 1989.
14
   BAKHTIN, Mikhail. Le marxisme et la philosophie du langage. Paris, Minuit, 1977.
15
   AUTHIER-REVUZ, J. “Heterogenetés enonciatives”. In Langages, 73. Larousse, Paris, 1984.



                                                                                                     10
thes)16, constituída por um entrelaçamento de fatos pré-existentes: história, tradição,
mito, literatura. Esta polifonia inclui, certamente, o discurso de QS. Como paródia, ele
põe em cena os seus referentes e anuncia uma nova expressão que convoca o analista
para identificar-lhe as vozes. Em outras palavras, diria Deleuze17 que a obra literária não
é a expressão de um homem, mas o lugar aberto por esse homem para que todo um povo
se pronuncie.
           O personagem Impertinente, de As relações naturais, é um defunto-autor que es-
creve sobre um vivo escritor. Ele está sentado, vê-se defunto e escreve sobre si mesmo
(o escritor vivo). Nós o veremos no capítulo sobre os personagens, a executar sua imper-
tinência. O Brás Cubas machadiano conta, já morto, a sua vida: caminha do presente
para o passado. Impertinente transita num futuro do pretérito (ele morreria); e o tempo
se transforma em pretérito do futuro (um morto que vive o seu futuro de morto escre-
vendo sobre seu passado de vivo). O único tempo, portanto, é o do teatro: o presente que
engloba em si todo passado e todo futuro. A noção de representação repousa sobre a
linha do tempo cronológico e se rompe junto com ela:

                    IMPERTINENTE - Já estava admirado; e consultando a mim mesmo, já me parecia
                    grande felicidade para esta freguesia o não dobrarem os sinos...E para eu mesmo não
                    ouvir os tristes sons do fúnebre bronze! [...]
O sino dobra pelo próprio Impertinente. Ele se refere ao morto, que é ele mesmo como
se estivesse vivo. A finitude de Impertinente traz em seu bojo o infinito. Ele, mais tarde,
trocará sucessivamente de nome: tráfego incessante através do finito. A analítica da fini-
tude, diz Foucault, dar-se-á inteiramente na repetição - espaço da identidade e da dife-
rença entre o positivo e o fundamental. Conseqüência da morte da metafísica. O homem
pergunta o que ele é, mas nada assegura este ser. Eu sou vida; eu não sou morte é título
que coloca dois termos equivalentes como se fossem diferenças; trata-se de uma reitera-
ção. Nesta peça,

                    LINDA - [...] Sim, se não é o diabo em pessoa, há ocasiões em que parece o demônio;
                    enfim, o que terá ele naquela cabeça!? [...]
Vida,trabalho e linguagem fundamentam-se em seu Mesmo (onde a Diferença é a mes-
ma coisa que a Identidade, em oposição à Representação do saber clássico); é nesse es-


16
     BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris, Du Seuil, 1964.
17
     DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris, Minuit, 1973.




                                                                                                    11
paço que o transcendental repete o empírico e o cogito repete o impensado. Um pensa-
mento atravessado desta forma pelo impensado requer um discurso que ponha a nu e
seja - ele mesmo - esta e outras tensões: discurso virtual (tendente ao infinito), interpe-
lação do conhecimento a partir daquilo que lhe escapa. O cogito moderno não afirma o
ser, mas coloca-o em questão.
          O teatro de Qorpo-Santo se sabe fora da episteme; sabe que nas margens e tam-
bém no interior do homem habita o seu outro:

                  o Outro, fraterno e gêmeo, nascido não dele, nem nele, mas ao lado e ao mesmo tempo,
                  numa idêntica novidade, numa dualidade sem apelo. [...] é-lhe, ao mesmo tempo, exteri-
                  or e indispensável: um pouco a sombra projetada do homem surgindo no saber; um pou-
                  co a mancha cega a partir da qual é possível conhecê-lo.18
O inconsciente para o qual Foucault chama atenção não se encontra na interioridade do
sujeito individual, mas como algo que preenche, circunda e constitui o modo de ser do
homem moderno.
          Um mundo (sujeito e objeto) todo ele hybris, onde não pode haver lugar para o
herói tal como o conceberam os gregos. O herói é pólo de um conflito entre ele e o
mundo; não a imitação de um homem, mas de uma ação. Num cosmos organizado, cada
força, divina ou humana, mantém territorialmente localizados seus atributos e atribui-
ções (Zeus é senhor dos raios e comanda as tempestades). Não se admite o exceder-se
de nenhuma força, pois deste modo atributos e atribuições de outrem serão invadidos.
Tal é a desmedida. E hybris é negação da transcendência. Gerd Bornheim19 chama aten-
ção para o desaparecimento da tragédia a partir do momento, no mundo cristão, em que
a “imitação de Cristo” tende a hipertrofiar a subjetividade e amesquinhar a extensão do
mundo objetivo, o que torna impossível a tragédia. O homem cristão (e romântico) con-
siste em desmedida enquanto homem. O herói não tem ser ou só o tem em aparência.
Deseja, como Werther, a morte, para reencontrar suas medidas no Absoluto. O herói
romântico não é trágico (é dramático), pois desaparece o conflito com sua medida trans-
cendente. Por outro lado, se o herói não reconhece como legítima a ordem do mundo,
torna-se cômico (ou bufão alienado de sua época, como os personagens de Q.S.). Diz




18
     FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. cit., pp. 342-43.
19
     BORNHEIM, Gerd. Teatro: a cena dividida. L&PM, Porto Alegre, 1983.



                                                                                                     12
Hegel: “na comédia, é pelo riso que tudo destrói e invalida, que o indivíduo assegura o
triunfo da personalidade fortemente apoiada em si mesma.”20
           Sujeito e mundo em desmedida, fim das fronteiras entre o trágico e o cômico,
reino do grotesco. Não mais o grotesco medieval descrito por Bakhtin como lado irra-
cional da dicotomia com o racional. Mas o grotesco que - não como avesso - é situação
essencial do mundo e do sujeito: repete o Outro no Mesmo infinito da finitude.
           É como “outro” do romantismo que a obra de Qorpo-Santo mostra-se paródia
grotesca. O rei de Hoje sou um; e amanhã outro defende a pátria e quer ser “modelo
bufo” de herói. Ele tanto deseja ser impecável, que chega a abandonar a batalha no auge
para trocar de roupa e voltar à luta. A Rainha acompanha da janela os lances do comba-
te, manda recados ao Rei, observa, de binóculo, as cabeças, braços e pernas que voam
pelos ares. Como se se tratasse de espetáculo ou jogo, ela comanda a “torcida”:
                   A RAINHA [...] Enquanto, Damas, os nossos canhões marítimos destróem os nossos i-
                   nimigos, vamos desta janela animar as nossas tropas de terra com nossa presença, a fim
                   de que se houver algum desembarque, eles conheçam que seríamos capazes de os acom-
                   panhar com uma arma em punho! [...]
           Em Eu sou vida; eu não sou morte, as cenas de amor de Lindo e Linda, dignas
do mais desbragado folhetim, acabam em briga porque ela não achou suficientes os elo-
gios e as comparações poéticas.

                   LINDO - Bem. Vou fazer-lhe as mais mimosas que à minha imaginação abundante,
                   crescente, e algumas vezes até demente - ocorrem! Lá vai uma: A Sra. é pera que não se
                   come!
                   LINDA - Essa não presta!
           Em Um assovio, a paródia ao romantismo se faz com a presença em cena de um
dos seus autores: Almeida Garrett, grafado por Qorpo-Santo como Garret. Um parto
trata de uma estudantada, tema de comédias de França Jr. ou Macedo, nas quais farras e
inocentes brincadeiras acabam em namoro sério ou casamento. Aqui, as ciências estão
confundidas umas com as outras e a atitude dos rapazes é livrar-se da cabra e dos cabri-
tos que nasceram em cena (!), como se descressem do “desafio científico” de cuidar
deles.
           Duas páginas em branco compõe-se de dois pequenos atos onde um esboço de
enredo se desenvolve: agruras de um jovem casal apaixonado e obrigado a se separar.



20
     HEGEL. Estética (VII) - Poesia. Lisboa, Guimarães & Ed., 1980, p. 327.



                                                                                                      13
Mancília aparece de “cabelos desgrenhados, aspecto muito triste e lacrimosa”, num
dramalhão apocalíptico:

                     MANCÍLIA – [...] Deus! Deus! Deus! (bate no chão com um pé) não me acode!? Não
                     me vale nesta aflição! oh! Então não há esse Ente supremo! sim! não... eu cria... mas a-
                     gora... crerei ainda!? fugi... vou... (levanta os braços, corre à porta e encontra o guarda
                     que a vem buscar, dá um grito de dor e cai como morta; os soldados fogem espavoridos
                     [...])
Aqui, as vozes dissonantes do discurso polifônico tomam forma ativa e a ação busca sua
nova performance, destronada que foi, junto com o cogito. Um tempo novo, sem passa-
do e sem futuro.
           É inevitável lembrar Aristóteles, na Poética, onde a ação se define por ser uma
narrativa com princípio, meio e fim. Uma cadeia de acontecimentos na qual o meio é
efeito do princípio e causa do fim, que é, por sua vez, efeito e não causa mais nada. Esta
cadeia repousa na noção linear de tempo cronológico. Para Hegel, a ação

                     deriva tanto do caráter íntimo das personagens que a efetuam, como da natureza subs-
                     tancial dos fins e conflitos que a acompanham ou que provoca.21
Trata-se, portanto, de uma sucessão de causas e efeitos levada a cabo pelo embate entre
o sujeito e o objeto (homem X natureza, circunstâncias).
           Na obra de Qorpo-Santo, verifica-se uma quebra da unidade de ação, considera-
da classicamente como condição sine qua non para a existência do drama. No entanto,
realizando uma obra que desconstrói radicalmente esta noção, Qorpo-Santo opera ar-
güindo permanentemente sobre o que é o teatro, pois falar dele sem “ação” é afirmá-lo
por sua negação. Ou fazê-lo pensamento de seu impensado.
           Dizíamos de uma não-ação como fundamento da expressão dramática. Contra-
senso ou sentido em jogo com o não-senso. Nesta relação, um teatro que se funda em
seu ser paradoxal. Se a cadeia de causas e efeitos se quebrou (e com ela a linearidade do
tempo), impõe-se um discurso onde sentidos opostos são afirmados simultaneamente; é
assim que o Impertinente, de As relações naturais, pode estar morto e, ao mesmo tempo,
efetuar ações de vivo. Impertinente não é, no entanto, um morto-vivo: ele é puro proces-
so de tornar-se um e outro, alegoria da própria impertinência (não pertencimento a) para
com o senso comum. Operação em um tempo que se furta ao presente porque é indife-



21
     Idem, p. 277.



                                                                                                             14
renciação de passado e futuro. Paradoxo evidente: o teatro é o lugar privilegiado do pre-
sente; nele a ação (como “ato”, “agir”) se dá mediante a presença corpórea do agente.
       No discurso grotesco, os limites estabelecidos pelo senso comum se eliminam e
dão lugar a um ultrapassar de limites tornado possível pela eliminação de hierarquias
sociais, inversões dos ditames da natureza biológica. O marinheiro escritor traz à cena
outro homem grávido. Nesta peça, o personagem Marquinfálio chega a entrar em traba-
lhos de parto:

                 MARQUINFÁLIO - [...] Oh! que dor de barriga...parece-me que estou prenho, Senhor!
                 Senhor! me acuda (apertando a barriga), estou prenho! Quero parir! Me acudam! Ve-
                 nha a parteira. Venha o médico! Eu caio, acudam-me! Eu morro! (Miguelítico e Enci-
                 clopédio querem agarrá-lo, entra uma criada com uma xícara de chá, às carreiras.)
Marquinfálio é homem e está grávido; Findinga é “parteira, médico e criado”. Situação
que Gilles Deleuze poderia chamar de “identidade infinita”

                 dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do
                 mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do
                 efeito. É a linguagem que fixa os limites [...] mas é ela também que ultrapassa os limites
                 e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado[...]22
Devir que se dá nas dimensões locais de um corpo aberto para o mundo e com ele mis-
turado: são barrigas, narizes e pernas que se destacam do tronco na peça Mateus e Ma-
teusa, em monumentais brigas deste octogenário e muito amoroso casal que atira um no
outro exemplares da Constituição do Império. Mateus usa a própria perna para açoitar
Mateusa. Corpo disforme e sempre incompleto, abrigo do devir e topologia sem história,
porque sem passado e futuro.
       Esta ação é puro ato, não-representação, verbo no infinitivo (substantivável) e in-
finitivo impessoal, fora da limitação das flexões modais e temporais. Ser morto e vivo,
homem e grávido, criada e médico são atributos que perdem sua funcionalidade e ultra-
passam todos os finitos corporais e espaciais, num presente sempre insuficiente e sem-
pre afirmado pelo acontecer em cena.
       Ação fragmentada, descontinuidade. A Vizinha de O marinheiro escritor está
conversando e se desentende com Mário. Sai e volta algumas falas depois, cumprimenta
como se não tivesse saído pouco antes: “Até os acho mais gordinhos”, diz ela.
       O lugar é qualquer um; ou um não-lugar; inesperadas contigüidades desfazem
continuidades: em As relações naturais, a sala de uma casa de família é também a de




                                                                                                        15
um bordel. Espaço múltiplo (ou único) para o exercício de múltiplos atributos e lugares:
pai, mãe, filhas, sala de visitas/cliente, alcoviteira, prostitutas, bordel. Basta estar dentro
da cena para estar dentro e fora, além e aquém da porta: o Truquetruque, na mesma pe-
ça, bate e ninguém lhe responde:

                   TRUQUETRUQUE (batendo na porta) - Estará ou não em casa? A porta está fechada,
                   não vejo (vigia no buraco da chave) se é por dentro se é por fora que está a chave[...]
           Atos teatrais que não dão lugar à moral, pois a ação não é mais a manifestação da
“substância eterna” em suas contradições particulares ou essenciais, tão cara a Hegel. O
ato se esgota e se potencializa no mesmo movimento. A existência se encerra em pe-
quenos acidentes (e incidentes) cotidianos.
           As dezessete peças de Qorpo-Santo são divididas pelo autor em atos, quadros e
cenas. A maioria delas apresenta estas unidades como universos fechados em si mes-
mos, sem continuidade em outros. Mudam-se temas, situações, personagens. Alteram-se
tempos e espaços; ou mantém-se múltiplas e abertas temporalidades e espacialidades
que abrigam impertinências (portas que não limitam o dentro e o fora; simultaneidades
incongruentes). É possível que infinitas combinações matemáticas dêem coesão a esses
fragmentos. As dezessete peças formam um calidoscópio onde a ação desaparece dei-
xando lugar apenas a um contínuo e infinito desdobrar-se de acontecimentos no territó-
rio finito do palco.
           Falamos acima em “afirmar o teatro pela sua negação”. Paradoxo que fundamen-
ta a teatralidade deste “devir louco”: QS sabia das virtualidades cênicas de seu texto. Ao
final de Um credor da fazenda nacional, uma rubrica sugere mais de um desfecho:

                   (Já se vê que há descomposturas; repreensões; atropelamento, carreiras em busca
                   d’água; ligeireza para se apagar; aparecimento de alguns outros empregados ao ouvir o
                   grito de fogo, etc. Pode acabar assim; ou com a cena da entrada do Inspetor, repreen-
                   dendo a todos pelo mal que cumprem seus deveres; e terminando por atirarem com li-
                   vros e penas; atracações e descomposturas etc.)
O não-senso também se revela como projeto, juntamente com a deliberada intenção do
riso. O final de Certa entidade em busca de outra traz uma rubrica e uma nota:

                   (Escusado é dizer que nada devem poupar os cômicos para tornar mais interessante e a-
                   gradável o gracejo.)
                                                           *




22
     DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Perspectiva, São paulo, 1974, p. 2



                                                                                                       16
Note-se - podem começar a cena os três últimos, dando alguns saltos, proferindo pala-
               vras sem nexo ao discurso, mostrando a respeito de Brás algum desatinamento, e retira-
               rem-se ao aparecer ou sentirem o rumor da vinda daquele.
        A obra de Qorpo-Santo, como paródia, ultrapassou as dimensões do modelo -
exercício da infinitude de seu ser obra de arte. Este discurso dircorre e transcorre fora da
linearidade temporal aristotélica: cria dimensões imprevistas, a partir de ironias, litotes,
caricaturas. Massa crua a escorrer por entre os dedos de quem quiser detê-la. Obra de
arte que não coube em seu tempo, incapaz de lê-la; não cabe ainda numa modernidade
que classifique o autor como louco. Permanecem o enigma e o desafio às interpreta-
ções.




                                                                                                  17
PERSONAGEM




                                                                    Para comermos;
                                                                    Para bebermos,
                                                                    Não precisamos
                                                                    De certos dramas!
                                                                                   Q.S.




          Pode-se mesmo nomear como “personagens” esses seres que se deslocam pelo
palco sem percorrer a linha da ação (princípio, meio e fim, segundo Aristóteles)?23
          Considere-se, de novo, a produção da obra de Qorpo-Santo: décadas de 60 a 80
do século passado, período inserido, como vimos, no romantismo brasileiro. Não é de
admirar que somente um século depois de escritos, seu teatro e sua poesia tenham vindo
à luz: a estética do cor-de-rosa e do azul-bebê, da flor como metáfora feminina, do ho-
mem como sustentáculo da moral, do amor “até que a morte nos separe” (ou junte no
suicídio) impunha-se e empurrava para as margens suas contrapartidas bufas e/ou gro-
tescas. Veja-se os casos de Sousândrade e Bernardo Guimarães, também catapultados do
terreno do “bom gosto” e do “bom senso”.
          Ao mesmo tempo, o romantismo se define por um investimento no sujeito dota-
do de vontade e que atua em nome de uma verdade fundamentada no Absoluto - instân-
cia última e essencial do sujeito mesmo. O que dizer de “personagens” que não execu-
tam as regras do senso comum, não expandem sua verdade para além dos limites de seu



23
     ARISTÓTELES. Poética. Globo, Porto Alegre, 1966.



                                                                                          18
próprio discurso, atuam em linhas entrecruzadas de tempo e habitam espaços “do outro
lado do espelho”?
        Para tentar uma aproximação do problema, será útil relembrar, com Michel Fou-
cault24, que o cogito cartesiano identifica o pensamento ao ser. Mas ao fazê-lo, abre o
espaço para o surgimento do homem como objeto de seu próprio pensamento. Ao lado
das ciências positivas do século XIX, o homem passa a determinar-se por sua finitude,
sem se esgotar, no entanto, em nenhuma das ciências que procuram compreender o seu
ser: a biologia, a história, a economia, as ciências da linguagem. O único “outro” possí-
vel habita o Mesmo: infinito que preenche e circunda o finito. O conhecimento do ho-
mem por si mesmo resulta da interrogação a partir desse outro: pensamento do impen-
sado. O surgimento do cogito, que entroniza o homem como sujeito de todo saber, traz,
no mesmo movimento, sua destituição. Pois o homem passa a se ver também como ob-
jeto sujeitado a outras leis: do trabalho, da vida e da linguagem, anteriores a ele. O nas-
cimento do homem como sujeito coincide com sua morte.
        A “analítica da finitude” toma o lugar, portanto, da metafísica; abole este outro,
redimensiona a representação. Abala-se a noção de personagem como decalque da idéia
de homem: imagem de um homem que é, por sua vez, imagem de seu outro transcen-
dental (Platão)25.
        A representação cria uma forma de presença do ausente. No teatro, verifica-se
um paradoxo, pois alguém está materialmente presente no espaço do palco. Mas se a
representação abalou-se no âmbito da cultura, resta uma presença problemática: o per-
sonagem não é em nenhum outro lugar metafísico, mas está e é nesse estar corpóreo
sobre o palco. Duplo corpo, segundo Roland Barthes (Essais critiques)26: composição
do corpo do ator e suas realizações sígnicas.
        Quando estudamos o discurso, observamos a expressão do personagem Imperti-
nente, de As relações naturais. Assim vimos o que nele havia de impertinência. Agora,
que analisamos características de personagens, verifiquemos como o conteúdo (discur-
so) é uma necessidade do continente (personagem). Por isso, examinemos Impertinente



24
   FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. cit.
25
   PLATON. “Cratyle”. In Oeuvres complètes. Gallimard, Paris, 1950, v. I.
26
   BARTHES, Roland. Essais critiques. Du Seuil, Paris, 1964.



                                                                                        19
no contexto de sua impertinência. Ele sabe-se morto, escreve sobre si mesmo como se
estivesse vivo; imprime, na finitude, as marcas do infinito:

                IMPERTINENTE – [...] Não sei porém o que me inspirou ao mais improfícuo trabalho!
                Vou levantar-me; continuá-lo; e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem
                agora os ecos que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a
                oração pela alma desse a cujos dias Deus pôs termo com a sua Onipotente voz ou vonta-
                de!
                E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei - As relações naturais.
         Menciona que vai escrever “em um morto: talvez nesse por quem agora” dobram
os sinos (negritos nossos). Escreve-se a si mesmo em situação de morto; inscreve-se em
um circuito infinito de trânsito através da heteronímia. E o inscrever(-se) é executar(-
se): colocar em função o defunctus (aquele que já passou, experimentou, sofreu). Como
personagem, a impertinência tem que ser pertinente, o que só na (re)presentação é pos-
sível. Mas o discurso e o teatro de Q.S. são (a)presentação, isto é: teatro em sua forma
cruel, crua. A impertinência de ser-a-morrer ou vir-a-ser morto quando já se sabe da
morte.
         Ao longo da peça, a impertinência (não pertencimento a definições finitas) mu-
dará seu nome para Truquetruque, Ele, Malherbe. Suas filhas serão filhas e amantes; a
mulher (Consoladora/Intérpreta) será sua alcoviteira; o criado Inesperto será seu amo.
Trânsito que também se define pela situação de morto e vivo, processo de tornar-se um
e outro. Ele está morto e nega-se a ouvir os sinos que por ele dobram; quer sair a passei-
o; sua “ingrata e nojenta imaginação” é sujeito que lhe tira um jantar; a comédia será
escrita nele/por ele mesmo, inspirado pelos sinos. Tudo isto é, ao mesmo tempo, signifi-
cante e significado, sujeito e predicado, continente e conteúdo da própria comédia - vi-
vida no palco como se fosse escrita na página de um livro (o corpo). Visão multicalidos-
cópica, multicêntrica: todos os caminhos divergem de incontáveis Romas. Conferir,
mais adiante, situação parecida, com os personagens Ruibarbo e Cário.
         O escritor que Impertinente é aparece em várias peças, ora assinando-se Qorpo-
Santo, ora QS ou C-S. Este é mais um dos problemas sobre os quais se colocam indaga-
ções. O fato de aparecer o nome do autor como personagem autoriza considerar a obra
como um espaço de confidência de um possível sujeito-autor? Os heterônimos (caso de
Fernando Pessoa) são autores ou personagens criadoras? A heteronímia se dá por doen-
ça mental do autor ou por necessidade de expressão que extrapola as instâncias do indi-
víduo? Seja como for, o aparecimento (ou comparecimento) de Qorpo-Santo multiplica-



                                                                                                  20
do em vários personagens não aponta para um desejo autobiográfico. Aliás, estaria bem
de acordo com o romantismo traçar o próprio retrato com as linhas de um sujeito inves-
tido de transcendência, num modelo hegeliano...
       Comecemos pelo autor/personagem. A obra funcionaria como uma instância on-
de o autor expressa seu mundo interior e individual. Por esta via, a crítica de arte, ins-
trumentalizada pela psicanálise, pode tentar o acesso à obra a partir do autor e vice-
versa. A sua vida, os embates com o seu momento histórico são trilhas que conduzem à
obra; e esta, vista como confidência, dá por sua vez acesso à “alma” criadora do artista.
O campo psicanalítico - preocupado com os processos de linguagem e expressão do ser
humano - é fértil em conceitos e discussões a respeito. O conceito de “sublimação” trata
de uma transferência realizada pelo indivíduo: ele desvia um interesse libidinal para o
campo da fantasia. Obtém, assim, um alívio de suas pressões internas, ao mesmo tempo
em que alcança a possibilidade de, com sua obra, fornecer também aos outros a oportu-
nidade de se identificar com a obra e obter prazer e alívio. Mas isso se dá sob algumas
condições:

               Para que esse deslocamento se faça, é necessário, contudo, que o novo objeto seja valo-
               rizado socialmente. Não é necessário que ele seja socialmente útil, [...] mas sim que ele
               corresponda a ideais simbólicos e a valores sociais vigentes numa determinada socieda-
               de. Esse processo passa pelo ideal do eu.27
       Alguns problemas se colocam. Pode-se dizer que sempre foi assim, mesmo
quando a arte era antes de tudo uma instância de confirmação da coletividade, com suas
crenças e formulações religiosas? Quando a obra de arte imitava o mundo divino e por-
tanto longe estava de expressar anseios particulares do mundo interior do artista? Esta
afirmação do sujeito artista, através da obra, efetuava-se no passado? Efetua-se hoje?
Neste caso, a presença do artista superpõe-se à obra, sem que nenhuma ou pouca auto-
nomia reste a ela.
       Ao tentar uma aproximação da obra de Qorpo-Santo, estas questões se tornam
sérias. Boa parte da crítica teatral tem relegado a produção dramatúrgica e poética do
gaúcho a um plano de importância nula ou secundária: trata-se de “tolices de um pobre
louco”. Sendo assim, o exame das peças e da poesia contribuem antes ao estudo de um
caso clínico do que ao exame de fatos propriamente ligados à arte e sua linguagem. Ma-
neira de empurrar o problema para áreas do conhecimento onde alguns terrenos já se




                                                                                                     21
palmilham com alguma desenvoltura. Veremos, no capítulo dedicado à crítica, proble-
mas relativos ao louco e ao poeta: seu lugar de Outro na Cultura Ocidental.
        Qorpo-Santo escreveu obra relativamente vasta. Mas quem a editaria, no Rio
Grande do Sul do século XIX? O gesto de montar a própria gráfica e editar por si mes-
mo a sua obra pode ser tido como gesto convicto de quem quer tornar-se autor. Esta
atitude torna possível a ultrapassagem da infâmia de ser louco e faz chegar até nós a
fama de um artista. Ao tratar dos homens infames, Foucault considerou aqueles que,

                 nas suas infelicidades, nas suas paixões, naqueles amores e naqueles ódios, houvesse al-
                 go de cinzento e de ordinário aos olhos daquilo que habitualmente temos por digno de
                 ser relatado; que, contudo, tenham sido atravessados por um certo ardor, que tenham si-
                 do animados por uma violência, uma energia, um excesso na malvadez, na vilania, na
                 baixeza, na obstinação ou no infortúnio, tais que lhes proporcionassem, aos olhos daque-
                 les que os rodeavam, e à medida da sua própria mediocridade, uma espécie de medonha
                 ou lamentável grandeza.28
        Superada a infâmia e atingida a condição de “autor”, examine-se esta função. Ela
é “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns
discursos no interior de uma sociedade”29. Vejamos de que maneira Qorpo-Santo insiste
em imprimir a sua marca - inclusive tornando-se personagem do autor que ele é -, ao
mesmo tempo, dissolvendo-a.
        Para sair da condição de infame, é necessário estabelecer um discurso no qual o
leitor/fruidor construa uma idéia de “autor”. É necessário realizar uma criação - espaço
de origem da escrita. E desaparecer ou criar um modo de aparecer como discurso. Diz
Foucault: “trata-se de retirar ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento
originário e de o analisar como uma função variável e complexa do discurso”30. Deste
modo, o esforço de um “pobre louco” para estabelecer contato com o mundo real através
da organização de uma linguagem pode constituir aquilo mesmo que faz da obra de
Qorpo-Santo a criação radical de uma obra de arte. Em contrapartida, o mesmo Fou-
cault, em História da loucura, diz que a obra de um louco afirma-se pelo que ela não é:
arte. Mas se impõe como arte ao espelhar a loucura da sociedade.31

27
   GARCIA-ROZA. Introdução à metapsicologia freudiana (3). Zahar, Rio, 1995, p. 143.
28
    FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In O que é um autor? Passagens, Lisboa, 1992,
         p. 97.
29
   FOUCAULT. “O que é um autor?” In O que é um autor? Op. cit., p. 46.
30
   Idem, p. 70.
31
   FOUCAULT, Michel. História da loucura. Perspectiva, São Paulo, 1993. Referimo-nos ao último capí-
         tulo, “O círculo antropológico”. Nele, Foucault contrapõe as experiências da loucura nos séculos
         XVIII e XIX, interrogando sobre a verdade da loucura e suas determinações; o olhar que incide



                                                                                                      22
Dizíamos sobre o modo como, no mundo moderno, o pensamento encontra-se a-
travessado em todas as direções pelo não-pensamento. Isto constitui o advento do in-
consciente, “mancha negra” (expressão de Foucault) que habita o homem e o circunda.
Mas Foucault adverte: é necessário não sucumbir à tentação de psicologizar todo conhe-
cimento, não tentar fundar na psicologia uma ciência geral32. A advertência serve para
que compreendamos a produção de arte inserida num modo do homem estar no mundo e
não reduzida apenas à expressão de um indivíduo. E ponderemos, com Deleuze:

                  [...] Se bem que ela remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento co-
                 letivo de enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não é assunto de pai-mãe: não
                 há delírio que não passe pelos povos, as raças e as tribos, e não freqüente a história uni-
                 versal.33
        Apontamos para o problema da heteronímia e tomamos por base os argumentos
arrolados por filósofos contemporâneos a respeito da obra, da criação e do autor. Passe-
mos a descrever o campo onde esses problemas devem ser examinados: as peças teatrais
de Qorpo-Santo.
         Na edição de Qorpo-Santo - teatro completo34, aparece o seguinte “recado” do
dramaturgo a possíveis encenadores:

                           As pessoas que comprarem e quiserem levar à Cena qualquer das Minhas Co-
                 médias - podem; bem como fazer quaisquer ligeiras alterações, corrigir alguns erros e
                 algumas faltas, quer de composição, quer de impressão, que a mim por numerosos es-
                 torvos - foi impossível.
Vê-se, no trecho acima, que, para Qorpo-Santo, não está em questão a figura jurídica do
autor - aquele que recolhe somas por direito autoral e pode ser responsabilizado pelo
que diz ou escreve - cujo advento se dá em torno do século XVIII. Importa, sim, o ato de
convocar outras autorias a completar-lhe a obra e, paradoxalmente, torná-la o que ela é:
incompletude. Ele vive, por assim dizer, algo como um pressentimento do texto cênico:




         sobre o louco: reconhecimento de quem olha, pois o lugar da loucura é o de uma noite na qual se
         esconde a verdade do homem, abismo da sanidade. A psicologia aparece como parte das revira-
         voltas do homem moderno com a verdade: conhecimento que, portanto, não esgota o verdadeiro.
         A linguagem do louco dá-se como explosão lírica. Mas uma explosão que é “ausência de obra”,
         repetição dessa ausência, como no caso de Artaud. “A loucura é ruptura absoluta de obra” (p.
         529). Em Nietzsche, sua loucura é o lugar a partir do qual “seu pensamento se abre sobre o mun-
         do moderno” (p. 529), para argüi-lo sobre sua saúde. “[...] no tempo dessa obra que desmoronou
         no silêncio, o mundo sente sua culpabilidade” (p. 530).
32
   Cf. FOUCAULT. As palavras e as coisas, op. cit.
33
   DELEUZE, Critique et clinique, op. cit., p. 15.
34
   Obra citada.



                                                                                                         23
obra que se constrói com tal autonomia perante o texto, que pode chegar até mesmo a
dispensá-lo.
       Porém, mais curioso é o comparecimento da assinatura do autor no interior de
algumas peças. Ele se torna personagem. Ocupa um lugar de sujeito; lugar que se torna-
rá vazio para abrigar um novo nome. Em Um credor da fazenda nacional, o Credor se
apresenta:

               CONTADOR - Será...(lendo) Castro...Car...Cirilo, Dilermando!?
               CREDOR - Não! É um requerimento meu, assinado - José Joaquim de Qampos Leão,
               Qorpo-Santo.
Diante da inoperância dos funcionários, o Credor é substituído por um personagem de
nome “Outro”; e assim realiza o desejo de seu mesmo: incendeia a repartição que não
lhe paga a dívida.
       Em várias das peças, a função escritor passa do homem empírico José Joaquim
de Campos Leão para um personagem que se assina Qs, C-S. e ainda outros. A vida apa-
rece como escrita. Esses “escritores” comportam-se como quem procura fixar o discurso
(escrita) para nele fixar sua existência (seu ser). Em Lanterna de fogo,

               ROBESPIER - [...] Ainda eu não fiz o que fez certo escritor francês, que escreveu du-
               zentos livros! Mas o tenho feito talvez em milhões de mulheres; e tãobém de homens
               cousa que julgo que ele tãobém não faria. [...]
Robespier se refere, provavelmente, a Balzac. Note-se a insistência na preposição em. A
escrita se inscreve em alguém ou algo. Absorve e funde-se com este algo e lhe dá con-
sistência. Se Robespier não fez duzentos livros, Balzac não escreveu (em) milhões de
mulheres e homens. As duas escritas (ou inscrições) se equivalem.
       Em Um parto, transtornos na composição de uma comédia:

               CÁRIO (depois que entra) - Como se transtornam as coisas do mundo! Quando pensaria
               eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira visita, havia de transtornar uma co-
               média!? Quanto é preciso ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regi-
               me certo ou invariável!
       O “mais importante trabalho” de Cário é o mesmo “mais improfícuo trabalho”
de Impertinente (As relações naturais): trocou-se apenas o sinal da operação de compor
a escrita. Nos dois casos, o ato de escrever se dá no momento mesmo em que a “obra”
acontece em cena; escrita e palco coincidem no tempo presente. A fala de Cário é a úl-
tima do segundo ato. Ele continuará a composição da comédia assumindo o nome de
Ruibarbo. A obra se sabe obra e sujeito. Continuando a escrita, Ruibarbo “justifica” a




                                                                                                  24
proposta ortográfica do escritor empírico Qorpo-Santo; ou seja, o personagem tornou-se
autor, ao contrário da anterior transformação do autor em personagem:

                RUIBARBO – [...] quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas
                em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do
                Império do Brasil! [...] Bem sei que a razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e
                em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso
                ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos
                importemos com as origens!
         Na peça A impossibilidade da santificação; ou A santificação transformada, a
função de escritor é preenchida por cinco diferentes figuras. Além disso, a peça é ante-
cedida por uma longa “Explicação”. Nela o editor do volume de Qorpo-Santo - Teatro
completo, Guilhermino César, considera que

                o elemento confessional patenteia-se. O A. relata aí o seu conflito em termos confusos.
                Assim, em lugar dos “começos de comédia prometidos no título, temos nesse trabalho
                de Qorpo-Santo mais um testemunho da perturbação mental que o dominava em 1866.35
Ressaltamos o caráter burlesco da “Explicação”, o que impessoaliza a narrativa e coloca
o sujeito empírico num lugar estranho ao discurso, distanciando-se de si e criando um
outro.
         A peça se inicia com o personagem C-S recebendo a visita de um credor e em
seguida a de um velho amigo (V.A.). Chega depois uma viúva e C-S se despede como se
a visita fosse ele. De fato, C-S passa a ocupar este papel. Daí, mostra-se construindo a
narrativa de que faz parte:

                C-S - [...] Substituída por alguns minutos entretanto por uma velha impertinente com
                quem entretive o seguinte colóquio:[...]
Rapivalho toma o lugar do escritor, passa-o a Bipolar e em seguida é Ridinguínio a tor-
nar-se escritor da peça que neste momento se encerra:

                RIDINGUÍNIO (para o público) - Não há dúvida, comecei por Comédia e acabo por
                Romance! Representar-se-á portanto em todo o mundo habitado, pela primeira vez, uma
                novíssima peça teatral tríplice, chamada - Comédia, Romance e Reflexões! (Bate nas
                palmas até cair o pano.)
Como se vê, Ridinguínio cumpre também a função de público a aplaudir seu próprio
espetáculo.
         Duas páginas em branco esboça em dois pequenos atos (as páginas) um enredo:
agruras de um jovem casal apaixonado e obrigado a se separar. A fala final de Mancília
refere-se à escrita:




                                                                                                    25
MANCÍLIA - Das duas páginas em branco, eu já fui hoje uma escritada; a outra o meu
                velhinho (batendo-lhe no ombro) há de escritar amanhã.

A personagem sabe: ela é a escrita. Uma página que deixou de ser branca. Ou permane-
ce branca: potencialidade de todas as escritas.
        Em Dous irmãos, o homem se apresenta fora de sua alta hierarquia perante os
outros seres:

                ANTÔNIO (para José) Conheces Pedro, o Marinho?
                JOSÉ - Não; quem é? Onde mora? é cousa que se coma, que se beba, que se vista?! ou
                que se durma; se passeie, ou se dance!?
                (A cada palavra - coma, beba, etc - faz todo sinal com a boca, lábios, etc.)
Uma briga de arrancar narizes e queixos dá-se entre Antônio e José, até que entra Ma-
nuel. Antônio refaz a ele a pergunta, desta vez tratando o irmão com o nome de José. Ou
seja: Manuel tomou o lugar de José e este o de Pedro (ausente).
        Qorpo-Santo põe em causa a própria noção de personagem como sujeito de uma
narração. Para Anatol Rosenfeld, o que constitui a narrativa, seja teatral ou de ficção, é o
personagem, definido na “dimensão temporal do evento ou da ação”36. Mas que signifi-
ca “situar-se no tempo e ser tempo”? O próprio conceito de tempo explode em QS numa
fragmentação de linguagem que não deixa lugar à mais remota “imitação de caracteres”,
tão cara a Aristóteles37 e ao racionalismo. Comportamentos, padrões morais escoam;
junto com eles, qualquer esboço de um modelo universal de homem. Cai-se, então, num
radical desprestígio da idéia de indivíduo-personagem como decalque do indivíduo,
ideal ou empírico.
        Sendo de tal modo evanescentes, as personagens de QS apresentam-se em ima-
gens que mostram seu duplo: seu espectro. Ao se instaurar a imagem de um morto-vivo
ou de um criado-amo, cria-se um ponto zero na contraposição de um sinal positivo e um
negativo. Mas a imagem não se fixa no zero para tornar-se um nada. Ela passa pelo zero
no sentido de sua recriação, que é, ao mesmo tempo, revisão de seu passado (de morto a
vivo, de criado a amo). Trata-se de um jogo de cartas: as figuras não têm volume ou
reverso; combinam-se e recombinam-se infinitamente entre si; vivem suas vigências no
curto instante que as separa de um novo lugar de sujeito, um novo recombinar-se. É

35
   CÉSAR, Guilhermino. In Qorpo-Santo – teatro completo, op. cit., p. 321.
36
   ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem”. In CÂNDIDO, Antônio et alii. A personagem de
        ficção. Perspectiva, São Paulo, 1981, p. 23.
37
   ARISTÓTELES, op. cit.



                                                                                                26
desta maneira que também o autor comparece: carta de baralho. Ou para deixar, no seu
lugar, o riso: único sujeito, tal como o sujeito do discurso, para Mallarmé, é a palavra,
conforme lembra Foucault em As palavras e as coisas.38
        A problematização do ato de escrever transparece nessa dramaturgia. A presença
explícita do personagem QS (às vezes CS ou mesmo Qorpo-Santo) inclui um olhar que
observa, questiona e instaura mais uma modalidade de sujeito: a do crítico (leitor) no
interior da própria obra. Vale lembrar a “brechtiana” e bufa autocrítica no discurso de A
separação de dois esposos

                MULHER - Tu és o diabo! Ainda não vi um homem mais ciumento! Tudo ele faz nas-
                cer, ou pender, do, ou para o sentido, ou lado mau! Quase que ia dizendo - Arre lá con-
                tigo! Mas como me parece não ser expressão portuguesa; ou ser um erro contra as regras
                de sintaxe...salvo se quiséssemos fazer dessas palavras um advérbio de aversão ou de
                espanto; não direi. Mas...estás hoje algum tanto insuportável!
Diz Foucault:

                Olhando para as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe dis-
                so, que a função autor permaneça constante na sua forma, na sua complexidade e mesmo
                na sua existência. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fos-
                sem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse.39
        Se há desaparecimento do autor para dar lugar à obra, junto com ela emerge a
“função autor”. O interesse de Foucault é pensar o exercício da função, as condições, o
domínio etc.
        A este baile de máscaras, as identidades comparecem para se perder. Vejamos o
ponto de vista de Barthes sobre o sujeito autor:

                a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da pró-
                pria enunciação que o define, basta para fazer “suportar” a linguagem, quer dizer, para a
                esgotar.40
Não sei se acabo por concluir ou confundir. Mas não resisto a lembrar que Qorpo-Santo
nomeou personagens de seu teatro com paráfrases de nomes de personagens do seu tem-
po ou de sua tradição.O Robespierre da Revolução Francesa torna-se Robespier em Lan-
terna de fogo; o poeta clássico Malherbe no bufo Malherbe de As relações naturais;
Almeida Garrett perde um t em Um assovio. Acontece que o século XIX brasileiro (es-
pecialmente em sua segunda metade) é um fulcro de idéias em que se afunilam as tradi-


38
   FOUCAULT. As palavras e as coisas. Op. cit.
39
   FOUCAULT. “O que é um autor?” In O que é um autor? Op. cit., p. 70.
40
   BARTHES, Roland. O rumor da língua. Edições 70, Lisboa, 1987, p. 51.




                                                                                                      27
ções e se esparge a modernidade. Vimos, em Foucault, a introdução de um discurso que
rompe com uma certa idéia de representação e inaugura a “parceria” da poesia (Mallar-
mé) e da filosofia (Nietzsche)41 . Qorpo-Santo, não leu nem sofreu influência direta
desses autores, mas viveu no seio de um século pululante de manifestações.




41
     FOUCAULT. As palavras e as coisas, op. cit.



                                                                                  28
PALCO




                                                                  O tempo há de vir
                                                                  Em que te hás de rir!
                                                                                    Q.S.




       Não é por mor da digressão que faremos um passeio pela história da cena, mas
para traçar o caminho que vai da transcendência à imanência, da origem àquilo que al-
guns têm como morte do teatro (sua possível reencarnação). No percurso, a irrupção de
Qorpo-Santo, seu modo de desconstruir a cena transcendente em pleno auge (roman-
tismo brasileiro). Modo também de reconstruir um palco onde o corpo (o seu próprio)
comparece não para consagrar sua ausência, mas para ocupar seu espaço como e de si-
mesmo.
       É a oralidade que propicia o rompimento de fronteiras espaciais e temporais, a-
través do canto. Pouco antes do advento da polis, do alfabeto, da moeda, Hesíodo (sécu-
lo VIII-VII A.C.) quase os prevê em Os trabalhos e os dias, mas não pode conceber
ainda uma poesia não oral. Cultor de Memória (Mnemosyne), o poeta nomeia; ao fazê-
lo, torna presente a coisa nomeada. Cerca de dois séculos mais tarde, Platão - homem da
polis, da escrita em prosa e do pensamento metafísico - diz que o nome é signo, conven-
cional ou não, da coisa (Crátilo).
       A Teogonia de Hesíodo é sinopse de mitos de muitas procedências; poesia de te-
or encantatório, estruturante do cosmos e do mundo:

             sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
             e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações.
             (27-28)




                                                                                           29
As Musas podem mentir, não trazendo os fatos à luz; dando ao não-ser o estatuto
de ser, através da enunciação; identificando o símil e o ser-mesmo. Ou podem desocul-
tar: retirar os fatos do reino noturno do não-ser e fundá-los como presença. O tempo é o
do presente, revelação que joga no esquecimento o passado e o futuro. Desse rompimen-
to de limites temporais funda-se o Ser, “encanto das vozes”42 (Musas presentes no poe-
ta), presença do divino. Reciprocidade indissolúvel de ser e linguagem: um está no ou-
tro; um se manifesta no outro; cada um é si-mesmo e o outro.
           As Musas são filhas de Zeus e de Mnemosyne:

                   ele a freqüentou nove vezes
                   quando girou o ano e retornaram as estações
                   com as mínguas das luas e muitos dias completaram-se.
                   (68-9)
           Bisnetas (ou quarto elo da cadeia genealógica) da Terra, esta, como Zeus, só ga-
nha ser ao aparecer no e pelo canto das Musas. Elas são, então, divindades primordiais.
O tempo ganha espessura na imbricação linguagem/ser. Zeus é sujeito que funda e obje-
to fundado pelo canto; as Musas não o sucedem, mas lhe são contemporâneas; são, elas
e ele, tempos contíguos (não contínuos), permanentes. O canto do poeta (e nele o das
Musas) suspende o presente empírico e instala deuses e homens num presente cósmico,
que vige na e da não-vigência de passado e futuro. Nada se sucede, nada continua, nada
é causa ou efeito. Alteridade e Ipseidade coincidem tanto quanto diferem entre si, propi-
ciando a concomitância de seres e eventos. Se as Musas presentificam o que é, as Moirai
definem o ser e o circunscrevem: impedem que cada deus seja (ou queira ser) o que ele
não é; se as Musas fundam o tempo, as Moirai fundam o espaço. Tempo e espaço, por
sua vez, são qualidades instauradas pelo deus que as ocupa; tornam-se seus atributos:
seu ser e qualidades não anteriores a ele.
           O canto presentifica o ser de Zeus como modelo: seu poder e sua justiça dão a
medida do poder e da justiça dos reis, cuja Verdade se funda no canto.
           Os hinos de Hesíodo, as epopéias de Homero, os cantos dionisíacos são formas
teatrais totalizadas, anteriores à subdivisão da poesia em gêneros. Teatro constituído
pelo ato de cantar, dançar, tocar a lira, revelar verdades e dizer “mentiras símeis aos



42
     Cf. a importante “Introdução” do Professor J.A. A. Torrano à Teogonia de Hesíodo. Massao Ohno, São
            Paulo, 1981.



                                                                                                     30
fatos”. Representar é (a)presentar: fazer presente. A bacante que se embriaga e canta
Dionisos torna-se o próprio deus embriagado.
       As narrativas de Homero e Hesíodo atuam no sentido contrário ao da catarse a-
ristotélica, que procura identificar o espectador com o herói da tragédia para purgá-lo
das emoções (piedade e terror) vividas pelo personagem. Identificação com o mundo
jurídico da polis, distanciamento do mito. Distância de palco e platéia delimitada pelo
modo de ocupação dos espaços físicos.
       Um habitante da polis, já na passagem do século VI para o V A.C., destacou-se
do coro ditirâmbico e passou a dialogar com ele. Antes disso, Arquíloco de Paros entoou
os primeiros cantos líricos e abriu caminho para o sujeito trágico - que copiará uma i-
déia de herói. Representará: tornará presente um ser ausente, que pré-existe e pré-
consiste, independentemente do discurso que o enunciará. Representar é repetir o já ha-
vido (passado mítico) e projetar (idealizar) o que deverá ser. Aristóteles fixa o tempo da
narrativa em passado, presente, futuro (Poética). A polis cria um tempo profano (histó-
rico) que será bom e proveitoso conforme o êxito das ações. Antígona traz para o palco
o tempo mítico (Antígona) e a lei da cidade (Creonte): trágica é a desmedida (hybris)
de ambos os lados. Na luta entre o tempo mítico e o atual da polis, instala-se a terapia
catártica, que propicia uma pedagogia do bom senso e do senso comum. Imita-se agora a
Idéia disciplinadora das idéias. Representar é repetir o duplo ideal da polis. O teatro é o
lugar onde se contempla o mito para submetê-lo a exame pelo pensamento racional:
verificação da identidade entre o modelo (o mito) e a cópia (o espetáculo). Contemplar é
perceber o mundo – ato que engendra o sujeito contemplativo.
       No teatro medieval, a cena dedica-se aos episódios da história sagrada. A partir
dos adros das igrejas, toma-se o espaço das ruas com duas modalidades básicas de pal-
co: um, sobre rodas, percorre praças e ruas onde o aguarda o público. O outro, chamado
“palco simultâneo”, subdivide-se em tantos compartimentos (“mansões”) quantos fo-
rem os episódios narrados. Neste caso, o público é que se desloca.
       O palco grego dispõe de maquinarias que fazem mudar a paisagem, voar os deu-
ses. O medieval possui alçapões, desloca nuvens, comporta dragões a cuspir chamas;
verticaliza o mundo ao construir perante o espectador os espaços de inferno, terra e céu.
Em ambos, a ordem divina fixa o mundo e o dá por conhecido. Encenar os mitos gregos




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ou passagens da Bíblia judaico-cristã é repetir didaticamente os ditames de uma ética e
uma moral que se querem eternas.
       A fachada de um templo grego ou o fogo infernal a subir de um alçapão do palco
medieval são marcos materiais que atualizam os feitos do passado (como são, nas cida-
des, os monumentos). Os cenários dão lugar à presença virtual dos mitos (tempo e lugar
para sua vigência); presença atual da convenção que materializa tempo e lugar da narra-
tiva. Conexão de tempos e espaços virtuais e atuais.
       O Renascimento concebe o universo como um campo infinito, descentrado e
sem margens. Funda-se uma nova metafísica, na qual o homem deixa de ser sujeito re-
ceptivo às informações do mundo e dobra-se sobre si mesmo para tornar-se também
objeto de seu próprio conhecimento. A partir de agora, construirá sua consciência e sua
identidade. A liberdade assim adquirida manifesta-se na atitude do homem viajante.
Explorar novos mundos é explorar a ausência de centro, desterritorializar-se e reterrito-
rializar-se nas novas terras descobertas: deslocar as próprias origens. A nova Física de
Galileu e a nova Geografia, a paixão pela descoberta, as viagens pelo espaço inauguram
não apenas uma nova era. Cria-se sobretudo uma nova experiência de tempo (também
viagem) onde a memória concretiza-se como História. Este novo sujeito viajante, des-
bravador de “mares nunca dantes navegados”, assenhoreia-se de um mundo sem mapas
e constrói os percursos para as cartografias.
       O palco é campo liso, informe, tornado território pelas idas e vindas da narrativa.
O texto diz o lugar de um episódio, uma tabuleta indica a saída de uma casa para ou-
tra.O cenário figura o ambiente de forma sintética. O teatro de Shakespeare coloca em
cena Grécia (Sonho de uma noite de verão) e Roma (Antônio e Cleópatra), desloca-se
para Veneza (O mercador de Veneza, Otelo), Verona (Romeu e Julieta), Dinamarca
(Hamlet), uma ilha misteriosa (A tempestade). Mundos distantes em tempo e espaço, tão
mais dóceis à invenção de Shakespeare quanto maior for sua curiosidade pelos hábitos
de estrangeiros visitantes ou visitados por ingleses - milagres das novas rotas comerci-
ais.
       Hamlet vive o drama do homem reflexivo em exercício radical da dúvida; Ro-
meu e Julieta morrem pela escolha amorosa. Habitam um palco, o elisabetano, que se
configura como espaço liso, neutro, à espera das marcas da ação. Destaque-se a mobili-




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dade oferecida por esta cena, herdeira da medieval. Em um dado momento, quando sur-
giram as primeiras companhias profissionais, a velha carroça acomodou-se no pátio de
alguma hospedaria:

            se aproveitar esse palco era utilizar recursos tradicionais do teatro popular da Idade Média,
            usá-lo era, também, gozar da liberdade medieval, nascida do total desconhecimento das
            convenções do teatro da antigüidade.43
       A “liberdade medieval” refere-se principalmente à não observação (por desco-
nhecimento) das unidades aristotélicas: o enredo se estrutura em longos períodos de
tempo e múltiplos locais. É suficiente que um personagem se desloque de um lado a
outro da plataforma para que mude o lugar da ação.
       A monumentalidade do teatro medieval - com o seu ostensivo apelo aos sentidos
- indica a atitude de materializar o mundo espiritual: instalar o reino de Deus na Terra.
Ou fazer esquecer a Terra e apontar para o Céu, como faziam as esquálidas madonas
cuja silhueta vertical é a mesma das catedrais góticas, por exemplo. Mas para Shakespe-
are importam a agilidade da ação fracionada e as mudanças de lugar. Importa agora
olhar o mundo como ele pode vir a ser, no campo neutro do palco: lugar aberto para a
fixação de territórios, a exemplo das terras do Novo Mundo.
       Neutro e também eficaz é o palco italiano. À frente de um cenário único constru-
ído (geralmente uma fachada com três portas ou três portas para três fachadas diferentes,
o texto é recitado, bem como são executadas as piruetas e pantomimas. A perspectiva
horizontaliza o olhar, tal como na pintura. O desejo é de ver o homem habitando um
mundo caracterizado definitivamente como objeto para o conhecimento. Perspectiva
que inclui o próprio sujeito que olha, tornando-o objeto.
       Ao fim do século XIX, as distâncias e fronteiras começam decididamente a apa-
gar-se. As experiências de Antoine (Paris) e Stanislavski (Moscou), por exemplo, têm
suas teorias e práticas rapidamente divulgadas. É a era, também, da iluminação elétrica.
Esses dois fatores aliam-se para traçar os contornos definitivos do teatro do século XX.
Para o naturalismo, a oportunidade de reproduzir o real como nunca antes possível, se-
guindo a trilha do ilusionismo do século XVIII. Para os simbolistas, a luz elétrica pro-
porciona a delimitação de espaços oníricos: a luz se torna cenografia. A tecnologia da
eletricidade dá sustentação a ambas as postulações.




                                                                                                      33
A ambição naturalista mostra, desde o nascedouro, o seu limite: a representação
não tardará a exibir a teatralidade, ao invés da pretendida cópia fiel da natureza. Com o
advento do cinema, o teatro obriga-se a buscar redefinições, sua identidade. A arquitetu-
ra do palco passa a ser questionada em relação à platéia. Antoine, com suas exigências
de exatidão naturalista, conduz à consciência de que: 1) a boca-de-cena é algo a ser mo-
dulado; ela não será mais apenas moldura neutra do palco; 2) o espaço fala das relações
entre as personagens e o mundo. Mais tarde, Brecht irá explorar exatamente as contradi-
ções entre esses elementos; 3) a “quarta parede” fecha imaginariamente o palco e o se-
para da platéia. Enquanto o espectador toma a atitude de um voyeur que flagra os acon-
tecimentos “verdadeiros” da cena, os atores fingem ignorar que são vistos e podem ago-
ra dar as costas (!) ao público.
        A tradicional representação na ribalta

             rompe a ilusão teatral; lembra ao espectador que ele existe enquanto espectador, e que aque-
             le que fala e age na sua frente não é somente um personagem, mas ao mesmo tempo alguém
             que representa um personagem. Trata-se portanto de uma modalidade da representação tea-
             tral que pode ser condenada em nome de certos princípios (e é essa a posição de Antoine),
             mas que pode ser igualmente reabilitada em nome de princípios diferentes (Brecht).44
        A cópia naturalista, exacerbando a busca da verdade, realça essa ausência. No
máximo, a verdade da cópia (e não a cópia da verdade) aparece como teatralidade. An-
toine busca nos objetos do real a sua materialidade histórica. Mas a posta de carne ver-
dadeira colocada no lugar de um adereço de papelão mostra apenas que ambos não pas-
sam de “efeitos do teatro”.45
        Com o naturalismo e o simbolismo, todos os elementos do espetáculo passam a
ser alvos de indagações. Em Antoine e Stanislavski, a luz cria atmosferas e pode marcar
o tempo (dia/noite, inverno/verão). Com Appia, Craig, Vilar, ela será cenografia; en-
quanto em Brecht, Grotowski, Peter Brook, ela não permitirá que o espectador se esque-
ça de estar no teatro. É o fim daquela luz que apenas tornava visível o espetáculo.
        O espaço naturalista dedica-se ao ideal de fazer esquecer o teatro; o simbolista
indaga sobre sua especificidade. Compor a cena será como construir um quadro em três
dimensões. Organizam-se as formas, relacionam-se as cores, os cheios e os vazios, os


43
   BÁRBARA HELIODORA. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Paz e Terra,
       Rio de Janeiro, 1978, p. 172.
44
   ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral, 1880-1980. Zahar, Rio, 1982, p. 29.
45
   ROUBINE, Jean Jacques, op. cit.



                                                                                                      34
claros e os escuros. A cor simbolista encontrará seus correspondentes na subjetividade
do espectador: o vermelho é sangue e poder; o negro, a morte e a dor.
          Com o simbolismo, Jarry pôde radicalizar a proposta de solicitar do espectador
sua participação imaginativa. Num ataque ao figurativismo, o dramaturgo pede a Lugné-
Poe (encenador de Ubu rei) cartazes que indiquem os campos de neve. Se o cartaz faz
ver o campo de neve, ele é, ao mesmo tempo, cartaz. Mostra-se ao espectador que o
lugar é o teatro a evocar a neve. Processo que nega a verossimilhança e afirma a teatra-
lidade. O ator deve, portanto, abrir mão de assemelhar-se ao personagem: ele poderá
cumprir a função de porta, por exemplo, modelando para tal o seu corpo.
          Meyerhold chega a falar de um “quarto criador” ao referir-se ao espectador posto
ao lado do autor, do diretor e do ator. Alguém que, ao assumir as convenções, verá o
teatro como teatro. O ator, por seu lado, jamais pode esquecer-se da presença do públi-
co. Qualquer semelhança com Brecht não é mera coincidência.
          No centro do problema, a pergunta sobre o que são o teatro e o palco. De qual-
quer ângulo que se responda, o espectador surge comprometido com o espetáculo. Ao
longo de todo o século XX, ele aprenderá a “ler” as sugestões e alusões nos lugares da
afirmação, da descrição e da redundância.
          O naturalismo situa-se numa linha limítrofe: encerra uma era onde a verossimi-
lhança (desde Aristóteles) afirmava-se como o próprio do teatro: reino do texto e da
palavra; lugar da verdade transcendente. Sua explosão abre a era do encenador, que rei-
na sobre a cena - mundo do espaço e da imanência. Tem-se como definitiva, neste senti-
do, a encenação do Tartufo, de Molière, por Antoine, em 1907. A unidade de lugar de-
saparece e cede espaço a quatro cenários da casa de Orgonte. É o fim da cena clássica
como ponto de convergência de destinos e personagens diante de um palácio ou templo.
Muito apropriadamente, lembra Jean-Jacques Roubine46 que firma-se uma “semântica
do palco”. Nela, a encenação não mais tem por tarefa realçar as preciosidades de uma
obra-prima através de sua recitação. Trata-se agora de conferir ao texto um sentido; ex-
plicitar suas entrelinhas. O encenador será autor. Daí que autores como Nelson Rodri-
gues dediquem-se a “escrever a cena”. Pode haver quem, humoristicamente, sugira a



46
     ROUBINE, op. cit., pp. 25-26.



                                                                                       35
edição de suas “rubricas completas”. No mesmo caminho, Q.S. e seu diálogo com os
possíveis leitores e encenadores.
           De certa maneira, o teatro moderno retoma a “véspera” da tragédia grega: a pala-
vra de Homero e Hesíodo instaurava a presença do objeto nomeado. O palco naturalista
segue o caminho de, segundo Roubine, uma possível

                concretização do sonho do capitalismo industrial: a conquista do mundo real. Conquista ci-
                entífica, conquista colonial, conquista estética... O fantasma original do ilusionismo natura-
                lista não é outra coisa senão essa utopia demiúrgica que se propõe a provar que dominamos
                o mundo, reproduzindo-o.46
           Dominar o mundo pelo conhecimento era o sonho de Zola. Colocar a vida sob a
mira de um microscópio construído pelo romance (O romance experimental) ou pelo
teatro (O naturalismo no teatro). Copiar a realidade é apreendê-la no ato mesmo de co-
nhecê-la. No bojo mesmo da estética da reprodução do real, a teatralidade simbolista
abre caminho para um teatro onde o pensamento fura as malhas do conhecido e abre-se
para a representação de seu próprio abismo.
           Jacques Derrida47, ao analisar as propostas formuladas por Antonin Artaud em
cartas e manifestos sobre o “teatro da crueldade”, chama atenção para alguns aspectos
interessantes do ponto de vista de uma crítica à prática e à teoria do teatro no Ocidente.
Crítica centrada na idéia da origem do teatro coincidindo com sua morte: Dionysos é
sacrificado pelo palco da polis. Buscar a véspera da origem é colocar-se no limite da
representação. Limite humanista do teatro clássico e sua metafísica. Pois, para atraves-
sar as noções de imitação e catarse, é preciso destruir os caracteres individuais e colo-
car-se na plena alegria do devir. Estão em jogo os próprios alicerces do teatro, num pa-
ra-além das técnicas e tecnologias do palco. Uma vez abalado este, necessária e inevita-
velmente abala-se o público. Artaud desentroniza a palavra para dar toda potência à ce-
na; a representação não mais repetirá um presente (do texto) anterior a ela e espacializa-
do alhures. Buscar a representação originária é instaurá-la no seu próprio espaço. Trata-
se de




47
     DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Perspectiva, São Paulo, 1995. Referimo-nos ao ensaio
         “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”.



                                                                                                           36
Espaçamento, isto é, produção de um espaço que nenhuma palavra poderia resumir ou com-
             preender, em primeiro lugar supondo-o a ele próprio e fazendo assim apelo a um tempo que
             já não é o da dita linearidade fônica [...]48
        Representação experimentada no âmbito das imagens do sensível tornado pre-
sente por si mesmo. Crueldade entendida na sua acepção mais pura: o “cru”, o “puro”, o
“rigor”, o “si-mesmo”. Os manifestos de Artaud são um gesto e um grito de morte ao
texto e seu poder de submeter o palco. No entanto, a palavra tem lugar garantido, mas
regulado no interior do sistema mais amplo do teatro. Não se trata, portanto, de panto-
mima ou improviso. A palavra comparecerá descarnada, despida de sua roupagem con-
ceitual; importam as sonoridades, as intensidades. Espaço compreendido no intervalo
entre som e conceito, significado e significante, alma e corpo, autor e ator. Escritura
hieroglífica, de coordenação do fonético com o pictórico. Palavra-objeto.
        O fim das dicotomias sujeito/objeto, espectador/espetáculo, palco/platéia impõe
a destruição da cena clássica e sua metafísica; coloca no lugar a festa e sua imanência.
Em vez de repetição, presença: presente não furtado de si próprio. Festa que consome o
presente, sem a economia da repetição. Diferença decididamente pura.
        Mas a proposta de Artaud49 envia o problema da representação para os limites do
possível: se a festa não pode repetir-se, o teatro não se dá. Se o pensamento de uma re-
presentação sem representação aponta para o impossível,

             se não nos ajuda a regular a prática teatral, permite-nos talvez pensar a sua origem, a véspe-
             ra e o limite, pensar o teatro de hoje a partir da abertura da sua história e no horizonte da
             sua morte.50
        Na linha de um teatro fora do perímetro da metafísica, Qorpo-Santo trabalha na
repetição da diferença (no seio do Mesmo, como vimos com Foucault). Pois se sua cena
não quer repetir o Modelo transcendente, ela deseja repetir seu presente de cena; ser
espetáculo e não festa. Presente afirmativo de um palco que, no entanto, esgota-se em si
mesmo. Presentação. Teatralidade situada entre a desconstrução do palco (desteatraliza-
ção) e sua reafirmação (reteatralização). Uma nova gramática que não se contenta em
deter-se (deixar-se deter) por nenhum desses movimentos; por nenhum modelo, porque
quer continuamente remodelar-se.

48
   DERRIDA, op. cit., p. 157.
49
   ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Max Limonad, São Paulo, 1984. Conferir especialmente as
       cartas e manifestos sobre a crueldade.
50
   DERRIDA, op. cit., p. 174.




                                                                                                        37
Em As relações naturais, o criado Inesperto informa sobre a impossibilidade de
todos os modelos apriorísticos. Suas tarefas domésticas realizam-se no mesmo movi-
mento de desfazerem-se. Ordenar o mundo é vê-lo desobedecer à ordem:

           INESPERTO [...] - Por mais que arrume (atirando com uma bota para um lado; com um li-
           vro para outro, com uma bandeja no chão; com um espanador para um canto; e assim com
           tudo o mais que se achava arrumado), sempre encontro esta sala, este quarto, ou como o
           quiserem chamar...câmara, dormitório, ou não sei que mais - desarrumado! [...]
       Nesta (des)ordem, o corpo, o homem e o mundo fogem a toda hierarquia. O a-
moroso casal octogenário de Mateus e Mateusa briga atirando um contra o outro peda-
ços do respectivo corpo (ele) ou exemplares da Bíblia e da Constituição do Império (e-
la). Na disputa final, Mateus chega a quase desmontar-se como um boneco. Não é ex-
cessivo lembrar que o Sacatrapo (Os encantos de Medéia) de Antônio José da Silva (O
Judeu) perde a cabeça em cena e fica rodando às cegas até encontrá-la e recolocá-la.
Não é de espantar: O Judeu está inserido na feérica tradição cômica medieval. Seu palco
(o Teatro do Bairro Alto de Lisboa), na primeira metade do século XVIII, pretende um
máximo de ilusão através do aparato de maquinaria, como é próprio da estética barroca.
       O palco de Qorpo-Santo é máquina de desmascaramento da ilusão. Escrita onde
a palavra e o objeto apresentam-se em indissolúvel unidade. Ou a unidade pode desfa-
zer-se para efeitos cômicos. A palavra-hieróglifo de Artaud realiza-se na livre associa-
ção de sons e imagens. Nessas trilhas já caminhava Q.S. em Um assovio:

           LUDUVINA - Visto que me troca o nome, eu lhe trocarei o chapéu. (Tira o que ele tem na
           cabeça e põe-lhe outro mais esquisito.) O nome que me deu, regula com o chapéu que eu
           lhe ponho: e dê graças a Deus não o deixar com a calva à mostra!
       A concretude da palavra (indissolubilidade de nome e presença da coisa nomea-
da) pode levar a limites de “encenabilidade”; ou servir como provocação ao encenador.
Veremos os estudantes de Um parto em apuros com a proliferação de uma cabra em
cena. Estes cenários (ou adereços) vivos radicalizam o desconstruir-se do palco (ou
impõem uma teatralidade radicalmente assentada na presença). Vejamos agora as com-
pras de Simplício em Lanterna de fogo:

           SIMPLÍCIO (entrando) - Que diabo de zangas estou eu sempre a ter! Hoje fui ao mercado
           fazer compras do necessário para o dia; o que havia de achar para comprar! Galinhas mor-
           tas, frangos vivos, gatos e ratos! (Atira com todas estas cousas, as quais trazia dentro de
           um saco que vinha às costas; saltam ratos, gatos, galinhas e frangos por todo o cenário.)




                                                                                                   38
O início desta mesma peça mostra Robespier dizendo que procura um objeto
(herança de seu pai). Ao final, ele declara que o objeto é a mulher presente em cena.
Entre as duas pontas, episódios aleatórios: procura sem método ou direção.
          Vale a pena lembrar a encenação realizada há mais de vinte anos pelo Giramun-
do Teatro de Bonecos, de Belo Horizonte, sob direção de Álvaro Apocalypse. As rela-
ções naturais aparecia ambientada num cenário detalhada e requintadamente realista.
Mesmo não tendo assistido ao espetáculo, pode-se imaginar o efeito de transbordamento
de estruturas provocado pelo contraste entre o texto e a cena.
          Embora correndo o risco de recair na digressão, passemos rapidamente os olhos
por experiências teatrais recentes e seu uso do espaço. Comecemos por relembrar, com
Roubine51 , a encenação de Orlando Furioso (poema de Ariosto), realizada por Luca
Ronconi (Itália, 1969). Nas três versões do espetáculo, Ronconi (inspirado em Artaud)
aprofunda gradativamente a proposta de fragmentar a narrativa. Na primeira versão, o
público assiste sentado em cadeiras giratórias: ele é circundado pelas aventuras cava-
lheirescas, monstros, feiticeiras, amores de Carlos Magno e seus soldados. Na segunda,
movem-se espectadores e espetáculo; cenas simultâneas passam através do público em
carrinhos móveis. Na terceira e última versão, o encenador explora a verticalidade do
espaço, usando a tradicional maquinaria para fazer voarem cavalos de metal, animais
pré-históricos, hipogrifos. Os carrinhos que conduzem cenas e atravessam em velocida-
de os espaços onde se encontra o público não apenas ultrapassam os limites ce-
na/espectador. O público entrosa-se no espetáculo: ele é floresta, mar, participa das bata-
lhas:

               há feridos e mortos espalhados pelo chão, agonizando e gemendo. Alguns espectadores fo-
               ram vistos precipitando-se piedosamente para tentar socorrê-los. Na verdade, essa epopéia
               acabou sendo um triunfo da ilusão teatral!52
          A ausência de lugares marcados e o risco de machucar-se com os carrinhos colo-
     cam o espectador numa situação de desconforto físico que se soma à necessidade de
     escolher as seqüências da narrativa. Participação corporal e intelectual, portanto. Lu-
     dismo, trânsito pelo imprevisto, disponibilidade: como numa feira popular.



51
     ROUBINE, op. cit.
52
     Idem, p. 95.




                                                                                                     39
Mais recentemente, entre nós, experiências como o Tiradentes de Aderbal Freire
Filho (Rio de Janeiro, 1992) colocam o espectador a caminhar pelos espaços da ação e a
tomar vinho com os Inconfidentes. Experiências que celebram a festa permanecendo nos
limites do espetáculo. Ao tomar vinho com Cláudio Manuel da Costa, o espectador co-
mo que se torna também inconfidente, porém sem estar de posse dos meandros da repre-
sentação. Não sabe o texto, não conhece as seqüências - prerrogativas do ator. Permane-
cem, ator e espectador, o primeiro no tempo presente da narrativa; o outro, no limiar do
presente empírico com a adesão ao tempo ficcional. Artaud radicalizado romperia o li-
mite.
        A digressão, embora mais uma vez longa, é útil para que percebamos a enverga-
dura da empreitada de Qorpo-Santo. Ele fragmentou o seu texto como que a intuir (ou
mesmo pretender) um espaço em explosão. Nele, o tempo não pode linearizar-se. Num
espaço como o de Orlando, o calidoscópio textual seria levado às últimas conseqüên-
cias.




                                                                                     40
CRÍTICA

                                                   Será que para termos ciência não devamos tê-la? Ilusão!
                                                   Tantos têm uma e outra coisa... logo, este mundo é incom-
                                                   preensível.
                                                   Q.S.




          Cessou a euforia dos anos de descoberta. Tendo em vista a já grande quantidade
de ensaios, teses e dissertações universitárias provocadas pelo louco de Vila do Triunfo,
é necessário agora retomar a discussão e repensar o já dito. São três os pontos de vista
centrais: 1)trata-se mesmo de um louco, portanto não há obra de arte; 2) louco, porém
genial; 3)artista. Um denominador comum salta aos olhos: as considerações são feitas a
partir do autor e não a partir da obra.
          Embora buscando dialogar com cada um destes três pontos de vista, não é nosso
desejo encaminhar argumentação voltada para o autor. Interessa pensar a obra e sua in-
serção na cultura brasileira (mais especificamente no que diz respeito ao teatro); sua
linguagem, seu mundo interior.
          Já vimos, com Foucault, indagações sobre a função do autor. Vejamos agora,
com Roland Barthes53, o outro lado da questão: aquilo que convencionamos chamar
obra. Sua existência é material; seu destino, o de habitar as prateleiras e dar suporte ao
texto. Este, por sua vez, é uma tecitura que habita a linguagem e dá suporte ao discurso.
O texto foge das estantes para atravessar a obra ou um conjunto de obras. Essa travessia
dá-se sob o signo da rebeldia a classificações e hierarquias: o texto se volta contra as
idéias de “boa literatura”, gênero. Além disso, situa-se nos limites de racionalidade ou
legibilidade das regras de enunciação. O texto aparece fora do âmbito da doxa, no lugar
do paradoxo, onde o significado e o significante tensionam-se - potência de variações.



53
     BARTHES, Roland. O rumor da língua. Edições 70, Lisboa, 1987.



                                                                                                         41
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Paradoxos de um comediante: o discurso de Qorpo Santo

  • 1. PARADOXOS DE UM COMEDIANTE: QORPO SANTO Carmem Gadelha Fevereiro - 1996 Carmem Gadelha é Doutora em Comunicação e Cultura Professora de Poética do Espetáculo Curso de Direção Teatral ECO/UFRJ
  • 2. Louco, sim louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia Cadáver adiado que procria? Fernando Pessoa 2
  • 3. PROSCÊNIO Corre a pena tão depressa - No papel, Que eu não sei se é puro fel, Ou se mel O que nele escrevi, ou lancei! Eu lerei Quando acabar; então verei Se falei Com fel ou mel o que eu narrei! Q.S. Nascido em 1829 (Vila do Triunfo) e morto em 1883 (Porto Alegre), José Joa- quim de Campos Leão (Qorpo-Santo) – anterior em décadas a Alfred Jarry (1873-1907) - viria a tornar-se “precursor do teatro de absurdo”. Este título traz consigo não apenas a responsabilidade de definir o dramaturgo. Importa inserir sua produção num circuito que reúne tantas diversificadas obras e procedimentos artísticos quantos problemas a respei- to. As dezessete peças do teatro de Qorpo-Santo vieram à luz pelas encenações do Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (cerca de um século depois de escritas). Seguiram-se montagens e publicações de textos isolados até a edição crítica de Qorpo-Santo - teatro completo1, realizada pelo gaúcho Guilhermino César. A obra dramática integra os volumes da Ensiqlopédia ou Seis mezes de huma enfermidade: fragmentos poéticos, notas sobre política, medicina, direito, astronomia, culinária, filosofia, conforme enumera Maria Valquíria Alves Marques em Escritos so- bre um Qorpo2. Baseada na edição feita por Qorpo-Santo em sua própria tipografia (não sobreviveram os manuscritos), Denise Espírito Santo da Silva defendeu a dissertação de mestrado A poesia satírica de José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo (Faculdade de Letras da UFRJ, 1994). Esse trabalho constitui-se na primeira edição crítica da poesia de Q.S. A autora inseriu a obra poética no âmbito do romantismo brasileiro como sua 1 MEC/SEAC/FUNARTE/SNT, Rio de Janeiro, 1980. 2 Anna Blume, São Paulo, 1993. 3
  • 4. contraface grotesca, ao lado de Sousândrade, Bernardo de Guimarães, Laurindo Rabelo, Joaquim José da Silva (o Sapateiro Silva)3. Um louco, perante sua família, seus conterrâneos e contemporâneos e ainda para alguns críticos de nossos dias. Ser precursor do teatro do absurdo coloca sobre os ombros do morto o peso da tarefa de alçar um dramaturgo brasileiro à alegre e ufanista posição de vanguarda da vanguarda. Jarry começou a escrever no final do século passado, enquanto Qorpo-Santo realiza sua obra (poesia e prosa) entre os anos 60 e 80 do mesmo século. O teatro foi inteiramente produzido no primeiro semestre de 1866. Mas quais as relações da loucura (ou do louco) com a escrita e com a obra? Esta pergunta, deve substituir o (talvez fácil) diagnóstico do autor. Em primeiro lugar, por- que interessa-nos aquilo que emerge como obra. Pois é na rede complexa do discurso que se dá a presença problemática do autor. Nessa rede, procuramos dialogar com ele, especialmente na sua condição de travestido em personagem de si mesmo (ou com per- sonagens em busca de criar seu autor). Já é grande a quantidade de teses, dissertações e artigos jornalísticos dedicados ao estranhamento ou ao deslumbre provocados pela obra de Qorpo-Santo. Salta aos o- lhos a direção das abordagens, sempre voltadas para o autor - seja por suposta loucura, seja por genialidade. Nossa preocupação centra-se numa pesquisa em torno do não- senso, da sátira, do grotesco - elementos presentes no palco brasileiro desde a sua ori- gem. Por isso verificamos em nossa tradição teatral como ela se assenta numa reação em busca da liberdade. (Reagimos contra a opressão como quem ri da monstruosidade ou do grotesco da colonização, sendo nós grotescos colonizados...) Nessa tradição, o enfo- que foi dirigido ao discurso, aos personagens, ao palco e à crítica. O discurso ocupa posição axial neste trabalho. Eixo não linear, não aristotélico. Múltiplo eixo. Acontece que o teatro de Qorpo-Santo explode no âmago da modernida- de. E o discurso está presente como questão em todos os aspectos pelos quais se possa abordar o texto: ele se evidencia quando se trata do personagem; quando se pensa no palco, território de seu exercício. Ou, ainda, quando nos voltamos para o diálogo com a crítica. Coisas do teatro: a especificidade de Qorpo-Santo frente aos outros autores de 3 A referida dissertação encontra-se editada: QORPO-SANTO. Poemas. Organização, Introdução e Notas 4
  • 5. sua época, maneira de ser do grotesco; a representação na modernidade; as vozes do discurso e o sujeito da enunciação; o tempo no teatro e o tempo em Q.S.; o herói impos- sível; o romantismo e sua paródia; a ação dissolvida e sua possibilidade de ser teatro. Os personagens estão no segundo capítulo. Se não se movem na linha temporal da ação, qual o seu estatuto e o seu modo de ser? Com o fim da metafísica, é possível manter a noção de personagem como decalque da idéia de homem? Qorpo-Santo, en- quanto personagem, é sujeito autor (autobiografia e auto-retrato)? O palco (espaço de exercício da linguagem) preocupa-nos enquanto território da ação. Fascina-nos, sobretudo, a cena complexa onde cobras e dragões expelem venenos que a realidade - subordinada ao discurso do senso comum - critica ou rejeita, pois lhe escapam dos limites. Resíduos? Dejetos? Ou estrume fomentador do novo? Estudare- mos a história do palco, no terceiro capítulo, como meio de compreender a existência de um espaço onde se organiza a gramática do discurso de Q.S. Trata-se de pensar o percurso que vai da transcendência à cena imanente; da origem à “morte” do teatro; da representação a questões sobre sua (im)possibilidade. De Homero e Hesíodo à tragédia grega, do palco medieval ao italiano e daí à explosão moderna da linguagem cênica. Na cena seguinte (último capítulo) a protagonista é a crítica: sempre presente (às vezes malograda) ânsia de “traduzir o pensamento do autor”, conferindo, a ele e à obra, inteligibilidade. O próprio Qorpo-Santo comparece como crítico, em sua ótica perma- nentemente exótica, cuspindo fogo e assumindo o papel do palhaço, que, no dizer de Muniz Sodré, “é o louco profissional. E só ele pode sorrir sonoramente ante o escândalo da existência e levar-nos a reconhecer a nossa condição tragicômica.”4 de Denise Espírito Santo. ContraCapa, Rio de Janeiro, 2000. 4 MUNIZ SODRÉ. A comunicação do grotesco. Vozes, Petrópolis, 1988, p. 81. 5
  • 6. DISCURSO Os ventos levem Ao mundo inteiro, - Versos que saem Do meu tinteiro! As brisas tragam Para o meu tinteiro, - Versos que correm No mundo inteiro! Q.S. No período romântico brasileiro - instalado entre as décadas de 40 a 80 do século passado, as letras desenvolveram um discurso voltado para as tradições européias. Ao lado disso, uma proposta de desenvolvimento da nacionalidade a partir do sentimento de independência em relação ao domínio da metrópole portuguesa. Em contrapartida, a Revolução Francesa contribuiu com ideais de liberdade que apontaram primeiro para a Independência e depois para a luta contra a Monarquia. Estabeleceram também modelos de bom gosto de certo modo sufocantes para a afirmação nativista de nossa produção cultural. Neste bojo surgiu a obra - teatral e poética - de Qorpo-Santo, revestida de uma paródia julgada de mau gosto, uma vez que o grotesco tende a mostrar o lixo jogado debaixo do tapete. Qorpo-Santo tem um teatro realizado fora do círculo de produção teatral carioca, o maior da época. O Rio de Janeiro era ponto de confluência de idéias e discussões: me- ca de atração para autores e artistas interessados na possibilidade de manter-se numa atividade permanente e profissional, num mercado emergente de arte. Isolado em sua província (Rio Grande do Sul), Qorpo-Santo pôde escrever obra radicalmente diferenci- ada dos modelos românticos. 6
  • 7. Assumindo, como é próprio do romantismo, a cor local, a produção teatral brasi- leira apresenta bifurcações. Dramas de feição política e social onde a Independência do Brasil se encena na afirmação da nacionalidade (Gonçalves Dias, Agrário de Menezes, Castro Alves, Alencar). Comédias também bifurcadas e permeadas pelo realismo: há a presença francesa da chamada alta comédia (Alencar, Macedo) e a orientação popular ibérica (Martins Pena, França Jr, Artur Azevedo). Não há exagero em se dizer que o drama colocou no palco a nacionalidade malograda. A comédia, ao satirizar estrangeiros e estrangeirismos de nacionais, afirmou e nutriu a nacionalidade que surgia e um modo brasileiro de ser e de fazer teatro. É exatamente a comédia que, testemunhando o nasci- mento da nação na Monarquia, acompanhará seu crescimento, corroendo-lhe criticamen- te as bases. Martins Pena, apontado pela crítica como “fundador da comédia nacional” (em- bora o título possa ser questionado), cria uma obra onde o realismo dá suporte a situa- ções de non sense. Com isso, vemos que o non sense encontra-se na raiz da comédia brasileira. Em Os dous ou O inglês maquinista, Mr. Gainer pretende fazer e comerciali- zar açúcar de ossos: GAINER - Eu explica e mostra...até nesta tempo não se tem feito caso das osso, estruin- do-se grande quantidade delas, e eu agora faz desses osso açúcar superfina... São tempos em que o capital inglês impõe-se à nossa economia. E, após a “Inde- pendência ou Morte”, é fundamental responder à dominação cultural com sátiras onde o dominador é alvo da ironia do dominado. Ingleses, falsos ingleses, franceses e alemães aparecem também em comédias de Macedo e França Jr. ou Azevedo, no papel de verda- deiros bufões a correr atrás de “privilégios” oficiais para seus planos mirabolantes. Mr. James, de Caiu o ministério (França Jr.), quer construir uma estrada de ferro para o Cor- covado e descreve a “tecnologia de ponta” que pretende utilizar. Os trens serão movidos a cachorros raivosos, instalados no interior das rodas: MR. JAMES - Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de ro- da. Ora, cachorra dentro de roda no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha! Os temas da comédia do século XIX - genericamente chamada “de costumes” - são amplos, alguns deles abordados também por Qorpo-Santo: a) problemas da família (casamento, namoro, a convivência com os criados, bis- bilhotice). No filão da dita “alta comédia”, a tônica é a moralização de feições burgue- 7
  • 8. sas. “A honra não se remenda”, poderia dizer Alencar. Em duas de suas comédias (na verdade, melodramas), os pecados cometidos pela mãe (As asas de um anjo) têm conse- qüências na filha, que os paga na peça seguinte, Expiação. A chamada “baixa comédia” de Martins Pena ou França Jr. apresenta certa cumplicidade com o que então se conside- ra erro: namoros escondidos, adultérios. Qorpo-Santo radicaliza as abordagens. As rela- ções naturais mostra a família inteiramente desacreditada: ela revela a sua face de bor- del. Em Eu sou vida; eu não sou morte, o tema do adultério é apresentado de forma a não se saber quem é o marido e quem é o amante; b) a sátira política já chocava os mais “avançados”, pois era vanguarda para a época, investindo contra os ministérios, as eleições, os meirinhos, os funcionários públi- cos, a politicagem. Como se fazia um deputado, de França Jr., trata das eleições de ca- bresto: o oportunista Dr. Henrique, bacharel em Direito, não quer ser eleito de maneira desonesta. Mas cede aos apelos dos belos olhos de sua namorada, desejosa de tornar-se “esposa de deputado”. Esta peça sofreu censura do Conservatório Dramático e o autor precisou trocar o tempo do verbo no título: faz por fazia. Qorpo-Santo escreve Um cre- dor da fazenda nacional, em que o desesperado Credor, diante da mal intencionada ino- perância dos funcionários públicos, toca fogo na repartição. Além disso, cria, em plena Monarquia, o rei bufo de Hoje sou um; e amanhã outro; c) os hábitos. Embora se possa reconhecer pontos de contato entre a temática de Qorpo-Santo e seus contemporâneos, o non sense do gaúcho pretende mesmo enlouquecer o senso co- mum. Surgem, então, inevitáveis questões sobre a organização de seu discurso e o dese- jo de mapear a sua especificidade. A abordagem bufa de certos temas caros ao roman- tismo, como o da defesa da pátria (Hoje sou um; e amanhã outro) faz pensar num “ou- tro” grotesco dos modelos românticos. Bufonaria que também pode caracterizar-se por ser paródia: A paródia satírica propõe-se fazer rir à custa de seu modelo, do qual ela denuncia, não menos eficazmente que uma crítica séria, as fraquezas. Ela cumpre um grande papel nas querelas, sobretudo nas querelas literárias.5 ou caricatura: 5 CÈBE, Jean-Pierre. La caricature et la parodie dans le monde romain antique des origines à Juvenal. Boecard ed. Paris, 1966, p. 11. 8
  • 9. Representação deformada do real, a caricatura se alimenta dos defeitos, físicos, intelec- tuais ou morais daqueles que ela toma por alvo. Não somente ela traz à luz estes defei- tos, mas força-os até o extremo. Ela implica, conseqüentemente, um modo de ser realis- ta.6 Mas este caráter grotesco é, por si só, objeto de especulações. Imagine-se o es- cândalo causado por Q.S. a uma sociedade maravilhada com os edulcorados persona- gens de A moreninha, O guarani, Senhora, O tronco do ipê. Neles, o amor, a honra, a credibilidade são avalizados pelos fios de barba e pela inviolabilidade do hímen. Mikhail Bakhtin7 define o grotesco medieval como uma expressão de “outro la- do” das relações sociais. As hierarquias se invertem: o elevado (o céu, o sagrado) inter- cambia-se com o baixo (a terra, o ventre, o profano); o decoro dá lugar ao obsceno e ao escatológico. Essa degradação significa renascimento, regeneração: o túmulo-ventre restaura a vida. As imagens grotescas do corpo opõem-se aos ideais de perfeição; ele é disforme e mostra suas transformações em processo. Em QS, há casos de gravidez mas- culina. Um assovio mostra a pança do criado Gabriel ameaçada pelo amo Fernando: GABRIEL - Ai! não me fures, que eu tenho um filho de seis meses arranjado pela Sra. Luduvina, aquela célebre parteira que o Sr. meu amo melhor que eu conhece...[...] É que, no dizer de Pinski, Ao aproximar o que está distante, ao unir as coisas que se excluem entre si, ao violar as noções habituais, o grotesco artístico se assemelha ao paradoxo lógico.8 Mas, da Idade Média ao romantismo, o percurso do grotesco é de abandono da praça pública (carnaval de todos) em direção à formalização artística do palco (lugar de atores perante um público). Chega-se a um “grotesco de câmara” (expressão de Bakh- tin), “espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência agu- da do seu isolamento”9. Mais uma vez, QS mostra-se diferenciado: seu carnaval, embora fora da praça e destinado às dimensões do espaço físico do palco, dá-se sem a menor sombra de tristeza. Impõe-se uma liberdade, antes de tudo, do discurso, que não reco- nhece legitimidade em nenhuma norma. Celebra-se, no palco, não um retorno ao carna- val medieval (onde a ordem do mundo se suspende temporariamente), mas a instauração de um mundo que se sabe e se quer em permanente convulsão. 6 CÈBE, Jean-Pierre. Op. cit., p. 8. 7 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de François Rabelais.). Hucitec/UnB, São Paulo, 1987. 8 Apud BAKHTIN, op. cit., p. 29 9 BAKHTIN, op. cit., p. 33. 9
  • 10. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destróem a seri- edade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades.10 Muito úteis são para nós as considerações de Bakhtin sobre esse “avesso do mundo”. Entretanto, se se trata de avesso, estamos remetidos a um mundo dicotomiza- do, no qual, embora uma face não viva sem a outra (como uma folha de papel), uma não se deixa penetrar pela outra. A ordem racional permanece intocada, pois o carnaval é intervalo aberto no seio da vida ordinária. Mesmo no romantismo, a ordem do mundo é preservada em seus fundamentos e o disforme é transbordamento das formas.11 A ordem proposta por Qorpo-Santo ficou para debaixo do tapete ou para trás do espelho, dada a radicalidade do seu discurso perante as normas vigentes, tanto sociais quanto artísticas. O grotesco em Qorpo-Santo tem feições diferenciadas. Instaura um mundo cujos fundamentos já estão minados de início, pois a linguagem não mais funciona no interior da noção de representação. O penso logo existo, ao identificar o ser e o pensamento, cava sua própria sepultura: abre caminho para interrogações sobre o ser da linguagem, o sujeito da enunciação. A relação sujeito/objeto (em que o primeiro é ativo na busca de conhecimento do segundo) faz do homem um objeto de seu próprio conhecimento. A fundação das modernas ciências positivas faz surgir o homem em sua finitude. Diz Fou- cault que a finitude é marcada pela espacialidade do corpo, pela abertura do desejo e pelo tempo da lingua- gem; e, contudo, ela é radicalmente outra: nela, o limite não se manifesta como determi- nação imposta ao homem do exterior (por ter uma natureza ou uma história), mas como finitude fundamental que só repousa sobre seu próprio fato e se abre para a positividade de todo limite concreto.12 Além disso, modernamente, os estudos do discurso focalizam um conjunto de vozes comumente denominado “sujeito da enunciação” (Benveniste)13. Assim, a hetero- geneidade enunciativa se manifesta enfeixada como “polifonia”: manifestação explícita de uma multiplicidade de vozes citadas pelo autor empírico do texto (Bakhtin14 e Authi- er-Revuz)15. Citações conscientes ou não, manifestadas pela pluralidade do texto (Bar- 10 Idem, p. 43. 11 Cf. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Perspectiva, São Paulo, s.d. 12 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Martins Fontes, São Paulo, 1992, p. 331. 13 BENVENISTE, Emile. Problemas de lingüística geral, I e II. Pontes Ed., Campinas, 1989. 14 BAKHTIN, Mikhail. Le marxisme et la philosophie du langage. Paris, Minuit, 1977. 15 AUTHIER-REVUZ, J. “Heterogenetés enonciatives”. In Langages, 73. Larousse, Paris, 1984. 10
  • 11. thes)16, constituída por um entrelaçamento de fatos pré-existentes: história, tradição, mito, literatura. Esta polifonia inclui, certamente, o discurso de QS. Como paródia, ele põe em cena os seus referentes e anuncia uma nova expressão que convoca o analista para identificar-lhe as vozes. Em outras palavras, diria Deleuze17 que a obra literária não é a expressão de um homem, mas o lugar aberto por esse homem para que todo um povo se pronuncie. O personagem Impertinente, de As relações naturais, é um defunto-autor que es- creve sobre um vivo escritor. Ele está sentado, vê-se defunto e escreve sobre si mesmo (o escritor vivo). Nós o veremos no capítulo sobre os personagens, a executar sua imper- tinência. O Brás Cubas machadiano conta, já morto, a sua vida: caminha do presente para o passado. Impertinente transita num futuro do pretérito (ele morreria); e o tempo se transforma em pretérito do futuro (um morto que vive o seu futuro de morto escre- vendo sobre seu passado de vivo). O único tempo, portanto, é o do teatro: o presente que engloba em si todo passado e todo futuro. A noção de representação repousa sobre a linha do tempo cronológico e se rompe junto com ela: IMPERTINENTE - Já estava admirado; e consultando a mim mesmo, já me parecia grande felicidade para esta freguesia o não dobrarem os sinos...E para eu mesmo não ouvir os tristes sons do fúnebre bronze! [...] O sino dobra pelo próprio Impertinente. Ele se refere ao morto, que é ele mesmo como se estivesse vivo. A finitude de Impertinente traz em seu bojo o infinito. Ele, mais tarde, trocará sucessivamente de nome: tráfego incessante através do finito. A analítica da fini- tude, diz Foucault, dar-se-á inteiramente na repetição - espaço da identidade e da dife- rença entre o positivo e o fundamental. Conseqüência da morte da metafísica. O homem pergunta o que ele é, mas nada assegura este ser. Eu sou vida; eu não sou morte é título que coloca dois termos equivalentes como se fossem diferenças; trata-se de uma reitera- ção. Nesta peça, LINDA - [...] Sim, se não é o diabo em pessoa, há ocasiões em que parece o demônio; enfim, o que terá ele naquela cabeça!? [...] Vida,trabalho e linguagem fundamentam-se em seu Mesmo (onde a Diferença é a mes- ma coisa que a Identidade, em oposição à Representação do saber clássico); é nesse es- 16 BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris, Du Seuil, 1964. 17 DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris, Minuit, 1973. 11
  • 12. paço que o transcendental repete o empírico e o cogito repete o impensado. Um pensa- mento atravessado desta forma pelo impensado requer um discurso que ponha a nu e seja - ele mesmo - esta e outras tensões: discurso virtual (tendente ao infinito), interpe- lação do conhecimento a partir daquilo que lhe escapa. O cogito moderno não afirma o ser, mas coloca-o em questão. O teatro de Qorpo-Santo se sabe fora da episteme; sabe que nas margens e tam- bém no interior do homem habita o seu outro: o Outro, fraterno e gêmeo, nascido não dele, nem nele, mas ao lado e ao mesmo tempo, numa idêntica novidade, numa dualidade sem apelo. [...] é-lhe, ao mesmo tempo, exteri- or e indispensável: um pouco a sombra projetada do homem surgindo no saber; um pou- co a mancha cega a partir da qual é possível conhecê-lo.18 O inconsciente para o qual Foucault chama atenção não se encontra na interioridade do sujeito individual, mas como algo que preenche, circunda e constitui o modo de ser do homem moderno. Um mundo (sujeito e objeto) todo ele hybris, onde não pode haver lugar para o herói tal como o conceberam os gregos. O herói é pólo de um conflito entre ele e o mundo; não a imitação de um homem, mas de uma ação. Num cosmos organizado, cada força, divina ou humana, mantém territorialmente localizados seus atributos e atribui- ções (Zeus é senhor dos raios e comanda as tempestades). Não se admite o exceder-se de nenhuma força, pois deste modo atributos e atribuições de outrem serão invadidos. Tal é a desmedida. E hybris é negação da transcendência. Gerd Bornheim19 chama aten- ção para o desaparecimento da tragédia a partir do momento, no mundo cristão, em que a “imitação de Cristo” tende a hipertrofiar a subjetividade e amesquinhar a extensão do mundo objetivo, o que torna impossível a tragédia. O homem cristão (e romântico) con- siste em desmedida enquanto homem. O herói não tem ser ou só o tem em aparência. Deseja, como Werther, a morte, para reencontrar suas medidas no Absoluto. O herói romântico não é trágico (é dramático), pois desaparece o conflito com sua medida trans- cendente. Por outro lado, se o herói não reconhece como legítima a ordem do mundo, torna-se cômico (ou bufão alienado de sua época, como os personagens de Q.S.). Diz 18 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. cit., pp. 342-43. 19 BORNHEIM, Gerd. Teatro: a cena dividida. L&PM, Porto Alegre, 1983. 12
  • 13. Hegel: “na comédia, é pelo riso que tudo destrói e invalida, que o indivíduo assegura o triunfo da personalidade fortemente apoiada em si mesma.”20 Sujeito e mundo em desmedida, fim das fronteiras entre o trágico e o cômico, reino do grotesco. Não mais o grotesco medieval descrito por Bakhtin como lado irra- cional da dicotomia com o racional. Mas o grotesco que - não como avesso - é situação essencial do mundo e do sujeito: repete o Outro no Mesmo infinito da finitude. É como “outro” do romantismo que a obra de Qorpo-Santo mostra-se paródia grotesca. O rei de Hoje sou um; e amanhã outro defende a pátria e quer ser “modelo bufo” de herói. Ele tanto deseja ser impecável, que chega a abandonar a batalha no auge para trocar de roupa e voltar à luta. A Rainha acompanha da janela os lances do comba- te, manda recados ao Rei, observa, de binóculo, as cabeças, braços e pernas que voam pelos ares. Como se se tratasse de espetáculo ou jogo, ela comanda a “torcida”: A RAINHA [...] Enquanto, Damas, os nossos canhões marítimos destróem os nossos i- nimigos, vamos desta janela animar as nossas tropas de terra com nossa presença, a fim de que se houver algum desembarque, eles conheçam que seríamos capazes de os acom- panhar com uma arma em punho! [...] Em Eu sou vida; eu não sou morte, as cenas de amor de Lindo e Linda, dignas do mais desbragado folhetim, acabam em briga porque ela não achou suficientes os elo- gios e as comparações poéticas. LINDO - Bem. Vou fazer-lhe as mais mimosas que à minha imaginação abundante, crescente, e algumas vezes até demente - ocorrem! Lá vai uma: A Sra. é pera que não se come! LINDA - Essa não presta! Em Um assovio, a paródia ao romantismo se faz com a presença em cena de um dos seus autores: Almeida Garrett, grafado por Qorpo-Santo como Garret. Um parto trata de uma estudantada, tema de comédias de França Jr. ou Macedo, nas quais farras e inocentes brincadeiras acabam em namoro sério ou casamento. Aqui, as ciências estão confundidas umas com as outras e a atitude dos rapazes é livrar-se da cabra e dos cabri- tos que nasceram em cena (!), como se descressem do “desafio científico” de cuidar deles. Duas páginas em branco compõe-se de dois pequenos atos onde um esboço de enredo se desenvolve: agruras de um jovem casal apaixonado e obrigado a se separar. 20 HEGEL. Estética (VII) - Poesia. Lisboa, Guimarães & Ed., 1980, p. 327. 13
  • 14. Mancília aparece de “cabelos desgrenhados, aspecto muito triste e lacrimosa”, num dramalhão apocalíptico: MANCÍLIA – [...] Deus! Deus! Deus! (bate no chão com um pé) não me acode!? Não me vale nesta aflição! oh! Então não há esse Ente supremo! sim! não... eu cria... mas a- gora... crerei ainda!? fugi... vou... (levanta os braços, corre à porta e encontra o guarda que a vem buscar, dá um grito de dor e cai como morta; os soldados fogem espavoridos [...]) Aqui, as vozes dissonantes do discurso polifônico tomam forma ativa e a ação busca sua nova performance, destronada que foi, junto com o cogito. Um tempo novo, sem passa- do e sem futuro. É inevitável lembrar Aristóteles, na Poética, onde a ação se define por ser uma narrativa com princípio, meio e fim. Uma cadeia de acontecimentos na qual o meio é efeito do princípio e causa do fim, que é, por sua vez, efeito e não causa mais nada. Esta cadeia repousa na noção linear de tempo cronológico. Para Hegel, a ação deriva tanto do caráter íntimo das personagens que a efetuam, como da natureza subs- tancial dos fins e conflitos que a acompanham ou que provoca.21 Trata-se, portanto, de uma sucessão de causas e efeitos levada a cabo pelo embate entre o sujeito e o objeto (homem X natureza, circunstâncias). Na obra de Qorpo-Santo, verifica-se uma quebra da unidade de ação, considera- da classicamente como condição sine qua non para a existência do drama. No entanto, realizando uma obra que desconstrói radicalmente esta noção, Qorpo-Santo opera ar- güindo permanentemente sobre o que é o teatro, pois falar dele sem “ação” é afirmá-lo por sua negação. Ou fazê-lo pensamento de seu impensado. Dizíamos de uma não-ação como fundamento da expressão dramática. Contra- senso ou sentido em jogo com o não-senso. Nesta relação, um teatro que se funda em seu ser paradoxal. Se a cadeia de causas e efeitos se quebrou (e com ela a linearidade do tempo), impõe-se um discurso onde sentidos opostos são afirmados simultaneamente; é assim que o Impertinente, de As relações naturais, pode estar morto e, ao mesmo tempo, efetuar ações de vivo. Impertinente não é, no entanto, um morto-vivo: ele é puro proces- so de tornar-se um e outro, alegoria da própria impertinência (não pertencimento a) para com o senso comum. Operação em um tempo que se furta ao presente porque é indife- 21 Idem, p. 277. 14
  • 15. renciação de passado e futuro. Paradoxo evidente: o teatro é o lugar privilegiado do pre- sente; nele a ação (como “ato”, “agir”) se dá mediante a presença corpórea do agente. No discurso grotesco, os limites estabelecidos pelo senso comum se eliminam e dão lugar a um ultrapassar de limites tornado possível pela eliminação de hierarquias sociais, inversões dos ditames da natureza biológica. O marinheiro escritor traz à cena outro homem grávido. Nesta peça, o personagem Marquinfálio chega a entrar em traba- lhos de parto: MARQUINFÁLIO - [...] Oh! que dor de barriga...parece-me que estou prenho, Senhor! Senhor! me acuda (apertando a barriga), estou prenho! Quero parir! Me acudam! Ve- nha a parteira. Venha o médico! Eu caio, acudam-me! Eu morro! (Miguelítico e Enci- clopédio querem agarrá-lo, entra uma criada com uma xícara de chá, às carreiras.) Marquinfálio é homem e está grávido; Findinga é “parteira, médico e criado”. Situação que Gilles Deleuze poderia chamar de “identidade infinita” dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a linguagem que fixa os limites [...] mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado[...]22 Devir que se dá nas dimensões locais de um corpo aberto para o mundo e com ele mis- turado: são barrigas, narizes e pernas que se destacam do tronco na peça Mateus e Ma- teusa, em monumentais brigas deste octogenário e muito amoroso casal que atira um no outro exemplares da Constituição do Império. Mateus usa a própria perna para açoitar Mateusa. Corpo disforme e sempre incompleto, abrigo do devir e topologia sem história, porque sem passado e futuro. Esta ação é puro ato, não-representação, verbo no infinitivo (substantivável) e in- finitivo impessoal, fora da limitação das flexões modais e temporais. Ser morto e vivo, homem e grávido, criada e médico são atributos que perdem sua funcionalidade e ultra- passam todos os finitos corporais e espaciais, num presente sempre insuficiente e sem- pre afirmado pelo acontecer em cena. Ação fragmentada, descontinuidade. A Vizinha de O marinheiro escritor está conversando e se desentende com Mário. Sai e volta algumas falas depois, cumprimenta como se não tivesse saído pouco antes: “Até os acho mais gordinhos”, diz ela. O lugar é qualquer um; ou um não-lugar; inesperadas contigüidades desfazem continuidades: em As relações naturais, a sala de uma casa de família é também a de 15
  • 16. um bordel. Espaço múltiplo (ou único) para o exercício de múltiplos atributos e lugares: pai, mãe, filhas, sala de visitas/cliente, alcoviteira, prostitutas, bordel. Basta estar dentro da cena para estar dentro e fora, além e aquém da porta: o Truquetruque, na mesma pe- ça, bate e ninguém lhe responde: TRUQUETRUQUE (batendo na porta) - Estará ou não em casa? A porta está fechada, não vejo (vigia no buraco da chave) se é por dentro se é por fora que está a chave[...] Atos teatrais que não dão lugar à moral, pois a ação não é mais a manifestação da “substância eterna” em suas contradições particulares ou essenciais, tão cara a Hegel. O ato se esgota e se potencializa no mesmo movimento. A existência se encerra em pe- quenos acidentes (e incidentes) cotidianos. As dezessete peças de Qorpo-Santo são divididas pelo autor em atos, quadros e cenas. A maioria delas apresenta estas unidades como universos fechados em si mes- mos, sem continuidade em outros. Mudam-se temas, situações, personagens. Alteram-se tempos e espaços; ou mantém-se múltiplas e abertas temporalidades e espacialidades que abrigam impertinências (portas que não limitam o dentro e o fora; simultaneidades incongruentes). É possível que infinitas combinações matemáticas dêem coesão a esses fragmentos. As dezessete peças formam um calidoscópio onde a ação desaparece dei- xando lugar apenas a um contínuo e infinito desdobrar-se de acontecimentos no territó- rio finito do palco. Falamos acima em “afirmar o teatro pela sua negação”. Paradoxo que fundamen- ta a teatralidade deste “devir louco”: QS sabia das virtualidades cênicas de seu texto. Ao final de Um credor da fazenda nacional, uma rubrica sugere mais de um desfecho: (Já se vê que há descomposturas; repreensões; atropelamento, carreiras em busca d’água; ligeireza para se apagar; aparecimento de alguns outros empregados ao ouvir o grito de fogo, etc. Pode acabar assim; ou com a cena da entrada do Inspetor, repreen- dendo a todos pelo mal que cumprem seus deveres; e terminando por atirarem com li- vros e penas; atracações e descomposturas etc.) O não-senso também se revela como projeto, juntamente com a deliberada intenção do riso. O final de Certa entidade em busca de outra traz uma rubrica e uma nota: (Escusado é dizer que nada devem poupar os cômicos para tornar mais interessante e a- gradável o gracejo.) * 22 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Perspectiva, São paulo, 1974, p. 2 16
  • 17. Note-se - podem começar a cena os três últimos, dando alguns saltos, proferindo pala- vras sem nexo ao discurso, mostrando a respeito de Brás algum desatinamento, e retira- rem-se ao aparecer ou sentirem o rumor da vinda daquele. A obra de Qorpo-Santo, como paródia, ultrapassou as dimensões do modelo - exercício da infinitude de seu ser obra de arte. Este discurso dircorre e transcorre fora da linearidade temporal aristotélica: cria dimensões imprevistas, a partir de ironias, litotes, caricaturas. Massa crua a escorrer por entre os dedos de quem quiser detê-la. Obra de arte que não coube em seu tempo, incapaz de lê-la; não cabe ainda numa modernidade que classifique o autor como louco. Permanecem o enigma e o desafio às interpreta- ções. 17
  • 18. PERSONAGEM Para comermos; Para bebermos, Não precisamos De certos dramas! Q.S. Pode-se mesmo nomear como “personagens” esses seres que se deslocam pelo palco sem percorrer a linha da ação (princípio, meio e fim, segundo Aristóteles)?23 Considere-se, de novo, a produção da obra de Qorpo-Santo: décadas de 60 a 80 do século passado, período inserido, como vimos, no romantismo brasileiro. Não é de admirar que somente um século depois de escritos, seu teatro e sua poesia tenham vindo à luz: a estética do cor-de-rosa e do azul-bebê, da flor como metáfora feminina, do ho- mem como sustentáculo da moral, do amor “até que a morte nos separe” (ou junte no suicídio) impunha-se e empurrava para as margens suas contrapartidas bufas e/ou gro- tescas. Veja-se os casos de Sousândrade e Bernardo Guimarães, também catapultados do terreno do “bom gosto” e do “bom senso”. Ao mesmo tempo, o romantismo se define por um investimento no sujeito dota- do de vontade e que atua em nome de uma verdade fundamentada no Absoluto - instân- cia última e essencial do sujeito mesmo. O que dizer de “personagens” que não execu- tam as regras do senso comum, não expandem sua verdade para além dos limites de seu 23 ARISTÓTELES. Poética. Globo, Porto Alegre, 1966. 18
  • 19. próprio discurso, atuam em linhas entrecruzadas de tempo e habitam espaços “do outro lado do espelho”? Para tentar uma aproximação do problema, será útil relembrar, com Michel Fou- cault24, que o cogito cartesiano identifica o pensamento ao ser. Mas ao fazê-lo, abre o espaço para o surgimento do homem como objeto de seu próprio pensamento. Ao lado das ciências positivas do século XIX, o homem passa a determinar-se por sua finitude, sem se esgotar, no entanto, em nenhuma das ciências que procuram compreender o seu ser: a biologia, a história, a economia, as ciências da linguagem. O único “outro” possí- vel habita o Mesmo: infinito que preenche e circunda o finito. O conhecimento do ho- mem por si mesmo resulta da interrogação a partir desse outro: pensamento do impen- sado. O surgimento do cogito, que entroniza o homem como sujeito de todo saber, traz, no mesmo movimento, sua destituição. Pois o homem passa a se ver também como ob- jeto sujeitado a outras leis: do trabalho, da vida e da linguagem, anteriores a ele. O nas- cimento do homem como sujeito coincide com sua morte. A “analítica da finitude” toma o lugar, portanto, da metafísica; abole este outro, redimensiona a representação. Abala-se a noção de personagem como decalque da idéia de homem: imagem de um homem que é, por sua vez, imagem de seu outro transcen- dental (Platão)25. A representação cria uma forma de presença do ausente. No teatro, verifica-se um paradoxo, pois alguém está materialmente presente no espaço do palco. Mas se a representação abalou-se no âmbito da cultura, resta uma presença problemática: o per- sonagem não é em nenhum outro lugar metafísico, mas está e é nesse estar corpóreo sobre o palco. Duplo corpo, segundo Roland Barthes (Essais critiques)26: composição do corpo do ator e suas realizações sígnicas. Quando estudamos o discurso, observamos a expressão do personagem Imperti- nente, de As relações naturais. Assim vimos o que nele havia de impertinência. Agora, que analisamos características de personagens, verifiquemos como o conteúdo (discur- so) é uma necessidade do continente (personagem). Por isso, examinemos Impertinente 24 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. cit. 25 PLATON. “Cratyle”. In Oeuvres complètes. Gallimard, Paris, 1950, v. I. 26 BARTHES, Roland. Essais critiques. Du Seuil, Paris, 1964. 19
  • 20. no contexto de sua impertinência. Ele sabe-se morto, escreve sobre si mesmo como se estivesse vivo; imprime, na finitude, as marcas do infinito: IMPERTINENTE – [...] Não sei porém o que me inspirou ao mais improfícuo trabalho! Vou levantar-me; continuá-lo; e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem agora os ecos que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a oração pela alma desse a cujos dias Deus pôs termo com a sua Onipotente voz ou vonta- de! E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei - As relações naturais. Menciona que vai escrever “em um morto: talvez nesse por quem agora” dobram os sinos (negritos nossos). Escreve-se a si mesmo em situação de morto; inscreve-se em um circuito infinito de trânsito através da heteronímia. E o inscrever(-se) é executar(- se): colocar em função o defunctus (aquele que já passou, experimentou, sofreu). Como personagem, a impertinência tem que ser pertinente, o que só na (re)presentação é pos- sível. Mas o discurso e o teatro de Q.S. são (a)presentação, isto é: teatro em sua forma cruel, crua. A impertinência de ser-a-morrer ou vir-a-ser morto quando já se sabe da morte. Ao longo da peça, a impertinência (não pertencimento a definições finitas) mu- dará seu nome para Truquetruque, Ele, Malherbe. Suas filhas serão filhas e amantes; a mulher (Consoladora/Intérpreta) será sua alcoviteira; o criado Inesperto será seu amo. Trânsito que também se define pela situação de morto e vivo, processo de tornar-se um e outro. Ele está morto e nega-se a ouvir os sinos que por ele dobram; quer sair a passei- o; sua “ingrata e nojenta imaginação” é sujeito que lhe tira um jantar; a comédia será escrita nele/por ele mesmo, inspirado pelos sinos. Tudo isto é, ao mesmo tempo, signifi- cante e significado, sujeito e predicado, continente e conteúdo da própria comédia - vi- vida no palco como se fosse escrita na página de um livro (o corpo). Visão multicalidos- cópica, multicêntrica: todos os caminhos divergem de incontáveis Romas. Conferir, mais adiante, situação parecida, com os personagens Ruibarbo e Cário. O escritor que Impertinente é aparece em várias peças, ora assinando-se Qorpo- Santo, ora QS ou C-S. Este é mais um dos problemas sobre os quais se colocam indaga- ções. O fato de aparecer o nome do autor como personagem autoriza considerar a obra como um espaço de confidência de um possível sujeito-autor? Os heterônimos (caso de Fernando Pessoa) são autores ou personagens criadoras? A heteronímia se dá por doen- ça mental do autor ou por necessidade de expressão que extrapola as instâncias do indi- víduo? Seja como for, o aparecimento (ou comparecimento) de Qorpo-Santo multiplica- 20
  • 21. do em vários personagens não aponta para um desejo autobiográfico. Aliás, estaria bem de acordo com o romantismo traçar o próprio retrato com as linhas de um sujeito inves- tido de transcendência, num modelo hegeliano... Comecemos pelo autor/personagem. A obra funcionaria como uma instância on- de o autor expressa seu mundo interior e individual. Por esta via, a crítica de arte, ins- trumentalizada pela psicanálise, pode tentar o acesso à obra a partir do autor e vice- versa. A sua vida, os embates com o seu momento histórico são trilhas que conduzem à obra; e esta, vista como confidência, dá por sua vez acesso à “alma” criadora do artista. O campo psicanalítico - preocupado com os processos de linguagem e expressão do ser humano - é fértil em conceitos e discussões a respeito. O conceito de “sublimação” trata de uma transferência realizada pelo indivíduo: ele desvia um interesse libidinal para o campo da fantasia. Obtém, assim, um alívio de suas pressões internas, ao mesmo tempo em que alcança a possibilidade de, com sua obra, fornecer também aos outros a oportu- nidade de se identificar com a obra e obter prazer e alívio. Mas isso se dá sob algumas condições: Para que esse deslocamento se faça, é necessário, contudo, que o novo objeto seja valo- rizado socialmente. Não é necessário que ele seja socialmente útil, [...] mas sim que ele corresponda a ideais simbólicos e a valores sociais vigentes numa determinada socieda- de. Esse processo passa pelo ideal do eu.27 Alguns problemas se colocam. Pode-se dizer que sempre foi assim, mesmo quando a arte era antes de tudo uma instância de confirmação da coletividade, com suas crenças e formulações religiosas? Quando a obra de arte imitava o mundo divino e por- tanto longe estava de expressar anseios particulares do mundo interior do artista? Esta afirmação do sujeito artista, através da obra, efetuava-se no passado? Efetua-se hoje? Neste caso, a presença do artista superpõe-se à obra, sem que nenhuma ou pouca auto- nomia reste a ela. Ao tentar uma aproximação da obra de Qorpo-Santo, estas questões se tornam sérias. Boa parte da crítica teatral tem relegado a produção dramatúrgica e poética do gaúcho a um plano de importância nula ou secundária: trata-se de “tolices de um pobre louco”. Sendo assim, o exame das peças e da poesia contribuem antes ao estudo de um caso clínico do que ao exame de fatos propriamente ligados à arte e sua linguagem. Ma- neira de empurrar o problema para áreas do conhecimento onde alguns terrenos já se 21
  • 22. palmilham com alguma desenvoltura. Veremos, no capítulo dedicado à crítica, proble- mas relativos ao louco e ao poeta: seu lugar de Outro na Cultura Ocidental. Qorpo-Santo escreveu obra relativamente vasta. Mas quem a editaria, no Rio Grande do Sul do século XIX? O gesto de montar a própria gráfica e editar por si mes- mo a sua obra pode ser tido como gesto convicto de quem quer tornar-se autor. Esta atitude torna possível a ultrapassagem da infâmia de ser louco e faz chegar até nós a fama de um artista. Ao tratar dos homens infames, Foucault considerou aqueles que, nas suas infelicidades, nas suas paixões, naqueles amores e naqueles ódios, houvesse al- go de cinzento e de ordinário aos olhos daquilo que habitualmente temos por digno de ser relatado; que, contudo, tenham sido atravessados por um certo ardor, que tenham si- do animados por uma violência, uma energia, um excesso na malvadez, na vilania, na baixeza, na obstinação ou no infortúnio, tais que lhes proporcionassem, aos olhos daque- les que os rodeavam, e à medida da sua própria mediocridade, uma espécie de medonha ou lamentável grandeza.28 Superada a infâmia e atingida a condição de “autor”, examine-se esta função. Ela é “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”29. Vejamos de que maneira Qorpo-Santo insiste em imprimir a sua marca - inclusive tornando-se personagem do autor que ele é -, ao mesmo tempo, dissolvendo-a. Para sair da condição de infame, é necessário estabelecer um discurso no qual o leitor/fruidor construa uma idéia de “autor”. É necessário realizar uma criação - espaço de origem da escrita. E desaparecer ou criar um modo de aparecer como discurso. Diz Foucault: “trata-se de retirar ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de o analisar como uma função variável e complexa do discurso”30. Deste modo, o esforço de um “pobre louco” para estabelecer contato com o mundo real através da organização de uma linguagem pode constituir aquilo mesmo que faz da obra de Qorpo-Santo a criação radical de uma obra de arte. Em contrapartida, o mesmo Fou- cault, em História da loucura, diz que a obra de um louco afirma-se pelo que ela não é: arte. Mas se impõe como arte ao espelhar a loucura da sociedade.31 27 GARCIA-ROZA. Introdução à metapsicologia freudiana (3). Zahar, Rio, 1995, p. 143. 28 FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In O que é um autor? Passagens, Lisboa, 1992, p. 97. 29 FOUCAULT. “O que é um autor?” In O que é um autor? Op. cit., p. 46. 30 Idem, p. 70. 31 FOUCAULT, Michel. História da loucura. Perspectiva, São Paulo, 1993. Referimo-nos ao último capí- tulo, “O círculo antropológico”. Nele, Foucault contrapõe as experiências da loucura nos séculos XVIII e XIX, interrogando sobre a verdade da loucura e suas determinações; o olhar que incide 22
  • 23. Dizíamos sobre o modo como, no mundo moderno, o pensamento encontra-se a- travessado em todas as direções pelo não-pensamento. Isto constitui o advento do in- consciente, “mancha negra” (expressão de Foucault) que habita o homem e o circunda. Mas Foucault adverte: é necessário não sucumbir à tentação de psicologizar todo conhe- cimento, não tentar fundar na psicologia uma ciência geral32. A advertência serve para que compreendamos a produção de arte inserida num modo do homem estar no mundo e não reduzida apenas à expressão de um indivíduo. E ponderemos, com Deleuze: [...] Se bem que ela remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento co- letivo de enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não é assunto de pai-mãe: não há delírio que não passe pelos povos, as raças e as tribos, e não freqüente a história uni- versal.33 Apontamos para o problema da heteronímia e tomamos por base os argumentos arrolados por filósofos contemporâneos a respeito da obra, da criação e do autor. Passe- mos a descrever o campo onde esses problemas devem ser examinados: as peças teatrais de Qorpo-Santo. Na edição de Qorpo-Santo - teatro completo34, aparece o seguinte “recado” do dramaturgo a possíveis encenadores: As pessoas que comprarem e quiserem levar à Cena qualquer das Minhas Co- médias - podem; bem como fazer quaisquer ligeiras alterações, corrigir alguns erros e algumas faltas, quer de composição, quer de impressão, que a mim por numerosos es- torvos - foi impossível. Vê-se, no trecho acima, que, para Qorpo-Santo, não está em questão a figura jurídica do autor - aquele que recolhe somas por direito autoral e pode ser responsabilizado pelo que diz ou escreve - cujo advento se dá em torno do século XVIII. Importa, sim, o ato de convocar outras autorias a completar-lhe a obra e, paradoxalmente, torná-la o que ela é: incompletude. Ele vive, por assim dizer, algo como um pressentimento do texto cênico: sobre o louco: reconhecimento de quem olha, pois o lugar da loucura é o de uma noite na qual se esconde a verdade do homem, abismo da sanidade. A psicologia aparece como parte das revira- voltas do homem moderno com a verdade: conhecimento que, portanto, não esgota o verdadeiro. A linguagem do louco dá-se como explosão lírica. Mas uma explosão que é “ausência de obra”, repetição dessa ausência, como no caso de Artaud. “A loucura é ruptura absoluta de obra” (p. 529). Em Nietzsche, sua loucura é o lugar a partir do qual “seu pensamento se abre sobre o mun- do moderno” (p. 529), para argüi-lo sobre sua saúde. “[...] no tempo dessa obra que desmoronou no silêncio, o mundo sente sua culpabilidade” (p. 530). 32 Cf. FOUCAULT. As palavras e as coisas, op. cit. 33 DELEUZE, Critique et clinique, op. cit., p. 15. 34 Obra citada. 23
  • 24. obra que se constrói com tal autonomia perante o texto, que pode chegar até mesmo a dispensá-lo. Porém, mais curioso é o comparecimento da assinatura do autor no interior de algumas peças. Ele se torna personagem. Ocupa um lugar de sujeito; lugar que se torna- rá vazio para abrigar um novo nome. Em Um credor da fazenda nacional, o Credor se apresenta: CONTADOR - Será...(lendo) Castro...Car...Cirilo, Dilermando!? CREDOR - Não! É um requerimento meu, assinado - José Joaquim de Qampos Leão, Qorpo-Santo. Diante da inoperância dos funcionários, o Credor é substituído por um personagem de nome “Outro”; e assim realiza o desejo de seu mesmo: incendeia a repartição que não lhe paga a dívida. Em várias das peças, a função escritor passa do homem empírico José Joaquim de Campos Leão para um personagem que se assina Qs, C-S. e ainda outros. A vida apa- rece como escrita. Esses “escritores” comportam-se como quem procura fixar o discurso (escrita) para nele fixar sua existência (seu ser). Em Lanterna de fogo, ROBESPIER - [...] Ainda eu não fiz o que fez certo escritor francês, que escreveu du- zentos livros! Mas o tenho feito talvez em milhões de mulheres; e tãobém de homens cousa que julgo que ele tãobém não faria. [...] Robespier se refere, provavelmente, a Balzac. Note-se a insistência na preposição em. A escrita se inscreve em alguém ou algo. Absorve e funde-se com este algo e lhe dá con- sistência. Se Robespier não fez duzentos livros, Balzac não escreveu (em) milhões de mulheres e homens. As duas escritas (ou inscrições) se equivalem. Em Um parto, transtornos na composição de uma comédia: CÁRIO (depois que entra) - Como se transtornam as coisas do mundo! Quando pensaria eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira visita, havia de transtornar uma co- média!? Quanto é preciso ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regi- me certo ou invariável! O “mais importante trabalho” de Cário é o mesmo “mais improfícuo trabalho” de Impertinente (As relações naturais): trocou-se apenas o sinal da operação de compor a escrita. Nos dois casos, o ato de escrever se dá no momento mesmo em que a “obra” acontece em cena; escrita e palco coincidem no tempo presente. A fala de Cário é a úl- tima do segundo ato. Ele continuará a composição da comédia assumindo o nome de Ruibarbo. A obra se sabe obra e sujeito. Continuando a escrita, Ruibarbo “justifica” a 24
  • 25. proposta ortográfica do escritor empírico Qorpo-Santo; ou seja, o personagem tornou-se autor, ao contrário da anterior transformação do autor em personagem: RUIBARBO – [...] quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do Brasil! [...] Bem sei que a razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos importemos com as origens! Na peça A impossibilidade da santificação; ou A santificação transformada, a função de escritor é preenchida por cinco diferentes figuras. Além disso, a peça é ante- cedida por uma longa “Explicação”. Nela o editor do volume de Qorpo-Santo - Teatro completo, Guilhermino César, considera que o elemento confessional patenteia-se. O A. relata aí o seu conflito em termos confusos. Assim, em lugar dos “começos de comédia prometidos no título, temos nesse trabalho de Qorpo-Santo mais um testemunho da perturbação mental que o dominava em 1866.35 Ressaltamos o caráter burlesco da “Explicação”, o que impessoaliza a narrativa e coloca o sujeito empírico num lugar estranho ao discurso, distanciando-se de si e criando um outro. A peça se inicia com o personagem C-S recebendo a visita de um credor e em seguida a de um velho amigo (V.A.). Chega depois uma viúva e C-S se despede como se a visita fosse ele. De fato, C-S passa a ocupar este papel. Daí, mostra-se construindo a narrativa de que faz parte: C-S - [...] Substituída por alguns minutos entretanto por uma velha impertinente com quem entretive o seguinte colóquio:[...] Rapivalho toma o lugar do escritor, passa-o a Bipolar e em seguida é Ridinguínio a tor- nar-se escritor da peça que neste momento se encerra: RIDINGUÍNIO (para o público) - Não há dúvida, comecei por Comédia e acabo por Romance! Representar-se-á portanto em todo o mundo habitado, pela primeira vez, uma novíssima peça teatral tríplice, chamada - Comédia, Romance e Reflexões! (Bate nas palmas até cair o pano.) Como se vê, Ridinguínio cumpre também a função de público a aplaudir seu próprio espetáculo. Duas páginas em branco esboça em dois pequenos atos (as páginas) um enredo: agruras de um jovem casal apaixonado e obrigado a se separar. A fala final de Mancília refere-se à escrita: 25
  • 26. MANCÍLIA - Das duas páginas em branco, eu já fui hoje uma escritada; a outra o meu velhinho (batendo-lhe no ombro) há de escritar amanhã. A personagem sabe: ela é a escrita. Uma página que deixou de ser branca. Ou permane- ce branca: potencialidade de todas as escritas. Em Dous irmãos, o homem se apresenta fora de sua alta hierarquia perante os outros seres: ANTÔNIO (para José) Conheces Pedro, o Marinho? JOSÉ - Não; quem é? Onde mora? é cousa que se coma, que se beba, que se vista?! ou que se durma; se passeie, ou se dance!? (A cada palavra - coma, beba, etc - faz todo sinal com a boca, lábios, etc.) Uma briga de arrancar narizes e queixos dá-se entre Antônio e José, até que entra Ma- nuel. Antônio refaz a ele a pergunta, desta vez tratando o irmão com o nome de José. Ou seja: Manuel tomou o lugar de José e este o de Pedro (ausente). Qorpo-Santo põe em causa a própria noção de personagem como sujeito de uma narração. Para Anatol Rosenfeld, o que constitui a narrativa, seja teatral ou de ficção, é o personagem, definido na “dimensão temporal do evento ou da ação”36. Mas que signifi- ca “situar-se no tempo e ser tempo”? O próprio conceito de tempo explode em QS numa fragmentação de linguagem que não deixa lugar à mais remota “imitação de caracteres”, tão cara a Aristóteles37 e ao racionalismo. Comportamentos, padrões morais escoam; junto com eles, qualquer esboço de um modelo universal de homem. Cai-se, então, num radical desprestígio da idéia de indivíduo-personagem como decalque do indivíduo, ideal ou empírico. Sendo de tal modo evanescentes, as personagens de QS apresentam-se em ima- gens que mostram seu duplo: seu espectro. Ao se instaurar a imagem de um morto-vivo ou de um criado-amo, cria-se um ponto zero na contraposição de um sinal positivo e um negativo. Mas a imagem não se fixa no zero para tornar-se um nada. Ela passa pelo zero no sentido de sua recriação, que é, ao mesmo tempo, revisão de seu passado (de morto a vivo, de criado a amo). Trata-se de um jogo de cartas: as figuras não têm volume ou reverso; combinam-se e recombinam-se infinitamente entre si; vivem suas vigências no curto instante que as separa de um novo lugar de sujeito, um novo recombinar-se. É 35 CÉSAR, Guilhermino. In Qorpo-Santo – teatro completo, op. cit., p. 321. 36 ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem”. In CÂNDIDO, Antônio et alii. A personagem de ficção. Perspectiva, São Paulo, 1981, p. 23. 37 ARISTÓTELES, op. cit. 26
  • 27. desta maneira que também o autor comparece: carta de baralho. Ou para deixar, no seu lugar, o riso: único sujeito, tal como o sujeito do discurso, para Mallarmé, é a palavra, conforme lembra Foucault em As palavras e as coisas.38 A problematização do ato de escrever transparece nessa dramaturgia. A presença explícita do personagem QS (às vezes CS ou mesmo Qorpo-Santo) inclui um olhar que observa, questiona e instaura mais uma modalidade de sujeito: a do crítico (leitor) no interior da própria obra. Vale lembrar a “brechtiana” e bufa autocrítica no discurso de A separação de dois esposos MULHER - Tu és o diabo! Ainda não vi um homem mais ciumento! Tudo ele faz nas- cer, ou pender, do, ou para o sentido, ou lado mau! Quase que ia dizendo - Arre lá con- tigo! Mas como me parece não ser expressão portuguesa; ou ser um erro contra as regras de sintaxe...salvo se quiséssemos fazer dessas palavras um advérbio de aversão ou de espanto; não direi. Mas...estás hoje algum tanto insuportável! Diz Foucault: Olhando para as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe dis- so, que a função autor permaneça constante na sua forma, na sua complexidade e mesmo na sua existência. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fos- sem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse.39 Se há desaparecimento do autor para dar lugar à obra, junto com ela emerge a “função autor”. O interesse de Foucault é pensar o exercício da função, as condições, o domínio etc. A este baile de máscaras, as identidades comparecem para se perder. Vejamos o ponto de vista de Barthes sobre o sujeito autor: a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da pró- pria enunciação que o define, basta para fazer “suportar” a linguagem, quer dizer, para a esgotar.40 Não sei se acabo por concluir ou confundir. Mas não resisto a lembrar que Qorpo-Santo nomeou personagens de seu teatro com paráfrases de nomes de personagens do seu tem- po ou de sua tradição.O Robespierre da Revolução Francesa torna-se Robespier em Lan- terna de fogo; o poeta clássico Malherbe no bufo Malherbe de As relações naturais; Almeida Garrett perde um t em Um assovio. Acontece que o século XIX brasileiro (es- pecialmente em sua segunda metade) é um fulcro de idéias em que se afunilam as tradi- 38 FOUCAULT. As palavras e as coisas. Op. cit. 39 FOUCAULT. “O que é um autor?” In O que é um autor? Op. cit., p. 70. 40 BARTHES, Roland. O rumor da língua. Edições 70, Lisboa, 1987, p. 51. 27
  • 28. ções e se esparge a modernidade. Vimos, em Foucault, a introdução de um discurso que rompe com uma certa idéia de representação e inaugura a “parceria” da poesia (Mallar- mé) e da filosofia (Nietzsche)41 . Qorpo-Santo, não leu nem sofreu influência direta desses autores, mas viveu no seio de um século pululante de manifestações. 41 FOUCAULT. As palavras e as coisas, op. cit. 28
  • 29. PALCO O tempo há de vir Em que te hás de rir! Q.S. Não é por mor da digressão que faremos um passeio pela história da cena, mas para traçar o caminho que vai da transcendência à imanência, da origem àquilo que al- guns têm como morte do teatro (sua possível reencarnação). No percurso, a irrupção de Qorpo-Santo, seu modo de desconstruir a cena transcendente em pleno auge (roman- tismo brasileiro). Modo também de reconstruir um palco onde o corpo (o seu próprio) comparece não para consagrar sua ausência, mas para ocupar seu espaço como e de si- mesmo. É a oralidade que propicia o rompimento de fronteiras espaciais e temporais, a- través do canto. Pouco antes do advento da polis, do alfabeto, da moeda, Hesíodo (sécu- lo VIII-VII A.C.) quase os prevê em Os trabalhos e os dias, mas não pode conceber ainda uma poesia não oral. Cultor de Memória (Mnemosyne), o poeta nomeia; ao fazê- lo, torna presente a coisa nomeada. Cerca de dois séculos mais tarde, Platão - homem da polis, da escrita em prosa e do pensamento metafísico - diz que o nome é signo, conven- cional ou não, da coisa (Crátilo). A Teogonia de Hesíodo é sinopse de mitos de muitas procedências; poesia de te- or encantatório, estruturante do cosmos e do mundo: sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações. (27-28) 29
  • 30. As Musas podem mentir, não trazendo os fatos à luz; dando ao não-ser o estatuto de ser, através da enunciação; identificando o símil e o ser-mesmo. Ou podem desocul- tar: retirar os fatos do reino noturno do não-ser e fundá-los como presença. O tempo é o do presente, revelação que joga no esquecimento o passado e o futuro. Desse rompimen- to de limites temporais funda-se o Ser, “encanto das vozes”42 (Musas presentes no poe- ta), presença do divino. Reciprocidade indissolúvel de ser e linguagem: um está no ou- tro; um se manifesta no outro; cada um é si-mesmo e o outro. As Musas são filhas de Zeus e de Mnemosyne: ele a freqüentou nove vezes quando girou o ano e retornaram as estações com as mínguas das luas e muitos dias completaram-se. (68-9) Bisnetas (ou quarto elo da cadeia genealógica) da Terra, esta, como Zeus, só ga- nha ser ao aparecer no e pelo canto das Musas. Elas são, então, divindades primordiais. O tempo ganha espessura na imbricação linguagem/ser. Zeus é sujeito que funda e obje- to fundado pelo canto; as Musas não o sucedem, mas lhe são contemporâneas; são, elas e ele, tempos contíguos (não contínuos), permanentes. O canto do poeta (e nele o das Musas) suspende o presente empírico e instala deuses e homens num presente cósmico, que vige na e da não-vigência de passado e futuro. Nada se sucede, nada continua, nada é causa ou efeito. Alteridade e Ipseidade coincidem tanto quanto diferem entre si, propi- ciando a concomitância de seres e eventos. Se as Musas presentificam o que é, as Moirai definem o ser e o circunscrevem: impedem que cada deus seja (ou queira ser) o que ele não é; se as Musas fundam o tempo, as Moirai fundam o espaço. Tempo e espaço, por sua vez, são qualidades instauradas pelo deus que as ocupa; tornam-se seus atributos: seu ser e qualidades não anteriores a ele. O canto presentifica o ser de Zeus como modelo: seu poder e sua justiça dão a medida do poder e da justiça dos reis, cuja Verdade se funda no canto. Os hinos de Hesíodo, as epopéias de Homero, os cantos dionisíacos são formas teatrais totalizadas, anteriores à subdivisão da poesia em gêneros. Teatro constituído pelo ato de cantar, dançar, tocar a lira, revelar verdades e dizer “mentiras símeis aos 42 Cf. a importante “Introdução” do Professor J.A. A. Torrano à Teogonia de Hesíodo. Massao Ohno, São Paulo, 1981. 30
  • 31. fatos”. Representar é (a)presentar: fazer presente. A bacante que se embriaga e canta Dionisos torna-se o próprio deus embriagado. As narrativas de Homero e Hesíodo atuam no sentido contrário ao da catarse a- ristotélica, que procura identificar o espectador com o herói da tragédia para purgá-lo das emoções (piedade e terror) vividas pelo personagem. Identificação com o mundo jurídico da polis, distanciamento do mito. Distância de palco e platéia delimitada pelo modo de ocupação dos espaços físicos. Um habitante da polis, já na passagem do século VI para o V A.C., destacou-se do coro ditirâmbico e passou a dialogar com ele. Antes disso, Arquíloco de Paros entoou os primeiros cantos líricos e abriu caminho para o sujeito trágico - que copiará uma i- déia de herói. Representará: tornará presente um ser ausente, que pré-existe e pré- consiste, independentemente do discurso que o enunciará. Representar é repetir o já ha- vido (passado mítico) e projetar (idealizar) o que deverá ser. Aristóteles fixa o tempo da narrativa em passado, presente, futuro (Poética). A polis cria um tempo profano (histó- rico) que será bom e proveitoso conforme o êxito das ações. Antígona traz para o palco o tempo mítico (Antígona) e a lei da cidade (Creonte): trágica é a desmedida (hybris) de ambos os lados. Na luta entre o tempo mítico e o atual da polis, instala-se a terapia catártica, que propicia uma pedagogia do bom senso e do senso comum. Imita-se agora a Idéia disciplinadora das idéias. Representar é repetir o duplo ideal da polis. O teatro é o lugar onde se contempla o mito para submetê-lo a exame pelo pensamento racional: verificação da identidade entre o modelo (o mito) e a cópia (o espetáculo). Contemplar é perceber o mundo – ato que engendra o sujeito contemplativo. No teatro medieval, a cena dedica-se aos episódios da história sagrada. A partir dos adros das igrejas, toma-se o espaço das ruas com duas modalidades básicas de pal- co: um, sobre rodas, percorre praças e ruas onde o aguarda o público. O outro, chamado “palco simultâneo”, subdivide-se em tantos compartimentos (“mansões”) quantos fo- rem os episódios narrados. Neste caso, o público é que se desloca. O palco grego dispõe de maquinarias que fazem mudar a paisagem, voar os deu- ses. O medieval possui alçapões, desloca nuvens, comporta dragões a cuspir chamas; verticaliza o mundo ao construir perante o espectador os espaços de inferno, terra e céu. Em ambos, a ordem divina fixa o mundo e o dá por conhecido. Encenar os mitos gregos 31
  • 32. ou passagens da Bíblia judaico-cristã é repetir didaticamente os ditames de uma ética e uma moral que se querem eternas. A fachada de um templo grego ou o fogo infernal a subir de um alçapão do palco medieval são marcos materiais que atualizam os feitos do passado (como são, nas cida- des, os monumentos). Os cenários dão lugar à presença virtual dos mitos (tempo e lugar para sua vigência); presença atual da convenção que materializa tempo e lugar da narra- tiva. Conexão de tempos e espaços virtuais e atuais. O Renascimento concebe o universo como um campo infinito, descentrado e sem margens. Funda-se uma nova metafísica, na qual o homem deixa de ser sujeito re- ceptivo às informações do mundo e dobra-se sobre si mesmo para tornar-se também objeto de seu próprio conhecimento. A partir de agora, construirá sua consciência e sua identidade. A liberdade assim adquirida manifesta-se na atitude do homem viajante. Explorar novos mundos é explorar a ausência de centro, desterritorializar-se e reterrito- rializar-se nas novas terras descobertas: deslocar as próprias origens. A nova Física de Galileu e a nova Geografia, a paixão pela descoberta, as viagens pelo espaço inauguram não apenas uma nova era. Cria-se sobretudo uma nova experiência de tempo (também viagem) onde a memória concretiza-se como História. Este novo sujeito viajante, des- bravador de “mares nunca dantes navegados”, assenhoreia-se de um mundo sem mapas e constrói os percursos para as cartografias. O palco é campo liso, informe, tornado território pelas idas e vindas da narrativa. O texto diz o lugar de um episódio, uma tabuleta indica a saída de uma casa para ou- tra.O cenário figura o ambiente de forma sintética. O teatro de Shakespeare coloca em cena Grécia (Sonho de uma noite de verão) e Roma (Antônio e Cleópatra), desloca-se para Veneza (O mercador de Veneza, Otelo), Verona (Romeu e Julieta), Dinamarca (Hamlet), uma ilha misteriosa (A tempestade). Mundos distantes em tempo e espaço, tão mais dóceis à invenção de Shakespeare quanto maior for sua curiosidade pelos hábitos de estrangeiros visitantes ou visitados por ingleses - milagres das novas rotas comerci- ais. Hamlet vive o drama do homem reflexivo em exercício radical da dúvida; Ro- meu e Julieta morrem pela escolha amorosa. Habitam um palco, o elisabetano, que se configura como espaço liso, neutro, à espera das marcas da ação. Destaque-se a mobili- 32
  • 33. dade oferecida por esta cena, herdeira da medieval. Em um dado momento, quando sur- giram as primeiras companhias profissionais, a velha carroça acomodou-se no pátio de alguma hospedaria: se aproveitar esse palco era utilizar recursos tradicionais do teatro popular da Idade Média, usá-lo era, também, gozar da liberdade medieval, nascida do total desconhecimento das convenções do teatro da antigüidade.43 A “liberdade medieval” refere-se principalmente à não observação (por desco- nhecimento) das unidades aristotélicas: o enredo se estrutura em longos períodos de tempo e múltiplos locais. É suficiente que um personagem se desloque de um lado a outro da plataforma para que mude o lugar da ação. A monumentalidade do teatro medieval - com o seu ostensivo apelo aos sentidos - indica a atitude de materializar o mundo espiritual: instalar o reino de Deus na Terra. Ou fazer esquecer a Terra e apontar para o Céu, como faziam as esquálidas madonas cuja silhueta vertical é a mesma das catedrais góticas, por exemplo. Mas para Shakespe- are importam a agilidade da ação fracionada e as mudanças de lugar. Importa agora olhar o mundo como ele pode vir a ser, no campo neutro do palco: lugar aberto para a fixação de territórios, a exemplo das terras do Novo Mundo. Neutro e também eficaz é o palco italiano. À frente de um cenário único constru- ído (geralmente uma fachada com três portas ou três portas para três fachadas diferentes, o texto é recitado, bem como são executadas as piruetas e pantomimas. A perspectiva horizontaliza o olhar, tal como na pintura. O desejo é de ver o homem habitando um mundo caracterizado definitivamente como objeto para o conhecimento. Perspectiva que inclui o próprio sujeito que olha, tornando-o objeto. Ao fim do século XIX, as distâncias e fronteiras começam decididamente a apa- gar-se. As experiências de Antoine (Paris) e Stanislavski (Moscou), por exemplo, têm suas teorias e práticas rapidamente divulgadas. É a era, também, da iluminação elétrica. Esses dois fatores aliam-se para traçar os contornos definitivos do teatro do século XX. Para o naturalismo, a oportunidade de reproduzir o real como nunca antes possível, se- guindo a trilha do ilusionismo do século XVIII. Para os simbolistas, a luz elétrica pro- porciona a delimitação de espaços oníricos: a luz se torna cenografia. A tecnologia da eletricidade dá sustentação a ambas as postulações. 33
  • 34. A ambição naturalista mostra, desde o nascedouro, o seu limite: a representação não tardará a exibir a teatralidade, ao invés da pretendida cópia fiel da natureza. Com o advento do cinema, o teatro obriga-se a buscar redefinições, sua identidade. A arquitetu- ra do palco passa a ser questionada em relação à platéia. Antoine, com suas exigências de exatidão naturalista, conduz à consciência de que: 1) a boca-de-cena é algo a ser mo- dulado; ela não será mais apenas moldura neutra do palco; 2) o espaço fala das relações entre as personagens e o mundo. Mais tarde, Brecht irá explorar exatamente as contradi- ções entre esses elementos; 3) a “quarta parede” fecha imaginariamente o palco e o se- para da platéia. Enquanto o espectador toma a atitude de um voyeur que flagra os acon- tecimentos “verdadeiros” da cena, os atores fingem ignorar que são vistos e podem ago- ra dar as costas (!) ao público. A tradicional representação na ribalta rompe a ilusão teatral; lembra ao espectador que ele existe enquanto espectador, e que aque- le que fala e age na sua frente não é somente um personagem, mas ao mesmo tempo alguém que representa um personagem. Trata-se portanto de uma modalidade da representação tea- tral que pode ser condenada em nome de certos princípios (e é essa a posição de Antoine), mas que pode ser igualmente reabilitada em nome de princípios diferentes (Brecht).44 A cópia naturalista, exacerbando a busca da verdade, realça essa ausência. No máximo, a verdade da cópia (e não a cópia da verdade) aparece como teatralidade. An- toine busca nos objetos do real a sua materialidade histórica. Mas a posta de carne ver- dadeira colocada no lugar de um adereço de papelão mostra apenas que ambos não pas- sam de “efeitos do teatro”.45 Com o naturalismo e o simbolismo, todos os elementos do espetáculo passam a ser alvos de indagações. Em Antoine e Stanislavski, a luz cria atmosferas e pode marcar o tempo (dia/noite, inverno/verão). Com Appia, Craig, Vilar, ela será cenografia; en- quanto em Brecht, Grotowski, Peter Brook, ela não permitirá que o espectador se esque- ça de estar no teatro. É o fim daquela luz que apenas tornava visível o espetáculo. O espaço naturalista dedica-se ao ideal de fazer esquecer o teatro; o simbolista indaga sobre sua especificidade. Compor a cena será como construir um quadro em três dimensões. Organizam-se as formas, relacionam-se as cores, os cheios e os vazios, os 43 BÁRBARA HELIODORA. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978, p. 172. 44 ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral, 1880-1980. Zahar, Rio, 1982, p. 29. 45 ROUBINE, Jean Jacques, op. cit. 34
  • 35. claros e os escuros. A cor simbolista encontrará seus correspondentes na subjetividade do espectador: o vermelho é sangue e poder; o negro, a morte e a dor. Com o simbolismo, Jarry pôde radicalizar a proposta de solicitar do espectador sua participação imaginativa. Num ataque ao figurativismo, o dramaturgo pede a Lugné- Poe (encenador de Ubu rei) cartazes que indiquem os campos de neve. Se o cartaz faz ver o campo de neve, ele é, ao mesmo tempo, cartaz. Mostra-se ao espectador que o lugar é o teatro a evocar a neve. Processo que nega a verossimilhança e afirma a teatra- lidade. O ator deve, portanto, abrir mão de assemelhar-se ao personagem: ele poderá cumprir a função de porta, por exemplo, modelando para tal o seu corpo. Meyerhold chega a falar de um “quarto criador” ao referir-se ao espectador posto ao lado do autor, do diretor e do ator. Alguém que, ao assumir as convenções, verá o teatro como teatro. O ator, por seu lado, jamais pode esquecer-se da presença do públi- co. Qualquer semelhança com Brecht não é mera coincidência. No centro do problema, a pergunta sobre o que são o teatro e o palco. De qual- quer ângulo que se responda, o espectador surge comprometido com o espetáculo. Ao longo de todo o século XX, ele aprenderá a “ler” as sugestões e alusões nos lugares da afirmação, da descrição e da redundância. O naturalismo situa-se numa linha limítrofe: encerra uma era onde a verossimi- lhança (desde Aristóteles) afirmava-se como o próprio do teatro: reino do texto e da palavra; lugar da verdade transcendente. Sua explosão abre a era do encenador, que rei- na sobre a cena - mundo do espaço e da imanência. Tem-se como definitiva, neste senti- do, a encenação do Tartufo, de Molière, por Antoine, em 1907. A unidade de lugar de- saparece e cede espaço a quatro cenários da casa de Orgonte. É o fim da cena clássica como ponto de convergência de destinos e personagens diante de um palácio ou templo. Muito apropriadamente, lembra Jean-Jacques Roubine46 que firma-se uma “semântica do palco”. Nela, a encenação não mais tem por tarefa realçar as preciosidades de uma obra-prima através de sua recitação. Trata-se agora de conferir ao texto um sentido; ex- plicitar suas entrelinhas. O encenador será autor. Daí que autores como Nelson Rodri- gues dediquem-se a “escrever a cena”. Pode haver quem, humoristicamente, sugira a 46 ROUBINE, op. cit., pp. 25-26. 35
  • 36. edição de suas “rubricas completas”. No mesmo caminho, Q.S. e seu diálogo com os possíveis leitores e encenadores. De certa maneira, o teatro moderno retoma a “véspera” da tragédia grega: a pala- vra de Homero e Hesíodo instaurava a presença do objeto nomeado. O palco naturalista segue o caminho de, segundo Roubine, uma possível concretização do sonho do capitalismo industrial: a conquista do mundo real. Conquista ci- entífica, conquista colonial, conquista estética... O fantasma original do ilusionismo natura- lista não é outra coisa senão essa utopia demiúrgica que se propõe a provar que dominamos o mundo, reproduzindo-o.46 Dominar o mundo pelo conhecimento era o sonho de Zola. Colocar a vida sob a mira de um microscópio construído pelo romance (O romance experimental) ou pelo teatro (O naturalismo no teatro). Copiar a realidade é apreendê-la no ato mesmo de co- nhecê-la. No bojo mesmo da estética da reprodução do real, a teatralidade simbolista abre caminho para um teatro onde o pensamento fura as malhas do conhecido e abre-se para a representação de seu próprio abismo. Jacques Derrida47, ao analisar as propostas formuladas por Antonin Artaud em cartas e manifestos sobre o “teatro da crueldade”, chama atenção para alguns aspectos interessantes do ponto de vista de uma crítica à prática e à teoria do teatro no Ocidente. Crítica centrada na idéia da origem do teatro coincidindo com sua morte: Dionysos é sacrificado pelo palco da polis. Buscar a véspera da origem é colocar-se no limite da representação. Limite humanista do teatro clássico e sua metafísica. Pois, para atraves- sar as noções de imitação e catarse, é preciso destruir os caracteres individuais e colo- car-se na plena alegria do devir. Estão em jogo os próprios alicerces do teatro, num pa- ra-além das técnicas e tecnologias do palco. Uma vez abalado este, necessária e inevita- velmente abala-se o público. Artaud desentroniza a palavra para dar toda potência à ce- na; a representação não mais repetirá um presente (do texto) anterior a ela e espacializa- do alhures. Buscar a representação originária é instaurá-la no seu próprio espaço. Trata- se de 47 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Perspectiva, São Paulo, 1995. Referimo-nos ao ensaio “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”. 36
  • 37. Espaçamento, isto é, produção de um espaço que nenhuma palavra poderia resumir ou com- preender, em primeiro lugar supondo-o a ele próprio e fazendo assim apelo a um tempo que já não é o da dita linearidade fônica [...]48 Representação experimentada no âmbito das imagens do sensível tornado pre- sente por si mesmo. Crueldade entendida na sua acepção mais pura: o “cru”, o “puro”, o “rigor”, o “si-mesmo”. Os manifestos de Artaud são um gesto e um grito de morte ao texto e seu poder de submeter o palco. No entanto, a palavra tem lugar garantido, mas regulado no interior do sistema mais amplo do teatro. Não se trata, portanto, de panto- mima ou improviso. A palavra comparecerá descarnada, despida de sua roupagem con- ceitual; importam as sonoridades, as intensidades. Espaço compreendido no intervalo entre som e conceito, significado e significante, alma e corpo, autor e ator. Escritura hieroglífica, de coordenação do fonético com o pictórico. Palavra-objeto. O fim das dicotomias sujeito/objeto, espectador/espetáculo, palco/platéia impõe a destruição da cena clássica e sua metafísica; coloca no lugar a festa e sua imanência. Em vez de repetição, presença: presente não furtado de si próprio. Festa que consome o presente, sem a economia da repetição. Diferença decididamente pura. Mas a proposta de Artaud49 envia o problema da representação para os limites do possível: se a festa não pode repetir-se, o teatro não se dá. Se o pensamento de uma re- presentação sem representação aponta para o impossível, se não nos ajuda a regular a prática teatral, permite-nos talvez pensar a sua origem, a véspe- ra e o limite, pensar o teatro de hoje a partir da abertura da sua história e no horizonte da sua morte.50 Na linha de um teatro fora do perímetro da metafísica, Qorpo-Santo trabalha na repetição da diferença (no seio do Mesmo, como vimos com Foucault). Pois se sua cena não quer repetir o Modelo transcendente, ela deseja repetir seu presente de cena; ser espetáculo e não festa. Presente afirmativo de um palco que, no entanto, esgota-se em si mesmo. Presentação. Teatralidade situada entre a desconstrução do palco (desteatraliza- ção) e sua reafirmação (reteatralização). Uma nova gramática que não se contenta em deter-se (deixar-se deter) por nenhum desses movimentos; por nenhum modelo, porque quer continuamente remodelar-se. 48 DERRIDA, op. cit., p. 157. 49 ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Max Limonad, São Paulo, 1984. Conferir especialmente as cartas e manifestos sobre a crueldade. 50 DERRIDA, op. cit., p. 174. 37
  • 38. Em As relações naturais, o criado Inesperto informa sobre a impossibilidade de todos os modelos apriorísticos. Suas tarefas domésticas realizam-se no mesmo movi- mento de desfazerem-se. Ordenar o mundo é vê-lo desobedecer à ordem: INESPERTO [...] - Por mais que arrume (atirando com uma bota para um lado; com um li- vro para outro, com uma bandeja no chão; com um espanador para um canto; e assim com tudo o mais que se achava arrumado), sempre encontro esta sala, este quarto, ou como o quiserem chamar...câmara, dormitório, ou não sei que mais - desarrumado! [...] Nesta (des)ordem, o corpo, o homem e o mundo fogem a toda hierarquia. O a- moroso casal octogenário de Mateus e Mateusa briga atirando um contra o outro peda- ços do respectivo corpo (ele) ou exemplares da Bíblia e da Constituição do Império (e- la). Na disputa final, Mateus chega a quase desmontar-se como um boneco. Não é ex- cessivo lembrar que o Sacatrapo (Os encantos de Medéia) de Antônio José da Silva (O Judeu) perde a cabeça em cena e fica rodando às cegas até encontrá-la e recolocá-la. Não é de espantar: O Judeu está inserido na feérica tradição cômica medieval. Seu palco (o Teatro do Bairro Alto de Lisboa), na primeira metade do século XVIII, pretende um máximo de ilusão através do aparato de maquinaria, como é próprio da estética barroca. O palco de Qorpo-Santo é máquina de desmascaramento da ilusão. Escrita onde a palavra e o objeto apresentam-se em indissolúvel unidade. Ou a unidade pode desfa- zer-se para efeitos cômicos. A palavra-hieróglifo de Artaud realiza-se na livre associa- ção de sons e imagens. Nessas trilhas já caminhava Q.S. em Um assovio: LUDUVINA - Visto que me troca o nome, eu lhe trocarei o chapéu. (Tira o que ele tem na cabeça e põe-lhe outro mais esquisito.) O nome que me deu, regula com o chapéu que eu lhe ponho: e dê graças a Deus não o deixar com a calva à mostra! A concretude da palavra (indissolubilidade de nome e presença da coisa nomea- da) pode levar a limites de “encenabilidade”; ou servir como provocação ao encenador. Veremos os estudantes de Um parto em apuros com a proliferação de uma cabra em cena. Estes cenários (ou adereços) vivos radicalizam o desconstruir-se do palco (ou impõem uma teatralidade radicalmente assentada na presença). Vejamos agora as com- pras de Simplício em Lanterna de fogo: SIMPLÍCIO (entrando) - Que diabo de zangas estou eu sempre a ter! Hoje fui ao mercado fazer compras do necessário para o dia; o que havia de achar para comprar! Galinhas mor- tas, frangos vivos, gatos e ratos! (Atira com todas estas cousas, as quais trazia dentro de um saco que vinha às costas; saltam ratos, gatos, galinhas e frangos por todo o cenário.) 38
  • 39. O início desta mesma peça mostra Robespier dizendo que procura um objeto (herança de seu pai). Ao final, ele declara que o objeto é a mulher presente em cena. Entre as duas pontas, episódios aleatórios: procura sem método ou direção. Vale a pena lembrar a encenação realizada há mais de vinte anos pelo Giramun- do Teatro de Bonecos, de Belo Horizonte, sob direção de Álvaro Apocalypse. As rela- ções naturais aparecia ambientada num cenário detalhada e requintadamente realista. Mesmo não tendo assistido ao espetáculo, pode-se imaginar o efeito de transbordamento de estruturas provocado pelo contraste entre o texto e a cena. Embora correndo o risco de recair na digressão, passemos rapidamente os olhos por experiências teatrais recentes e seu uso do espaço. Comecemos por relembrar, com Roubine51 , a encenação de Orlando Furioso (poema de Ariosto), realizada por Luca Ronconi (Itália, 1969). Nas três versões do espetáculo, Ronconi (inspirado em Artaud) aprofunda gradativamente a proposta de fragmentar a narrativa. Na primeira versão, o público assiste sentado em cadeiras giratórias: ele é circundado pelas aventuras cava- lheirescas, monstros, feiticeiras, amores de Carlos Magno e seus soldados. Na segunda, movem-se espectadores e espetáculo; cenas simultâneas passam através do público em carrinhos móveis. Na terceira e última versão, o encenador explora a verticalidade do espaço, usando a tradicional maquinaria para fazer voarem cavalos de metal, animais pré-históricos, hipogrifos. Os carrinhos que conduzem cenas e atravessam em velocida- de os espaços onde se encontra o público não apenas ultrapassam os limites ce- na/espectador. O público entrosa-se no espetáculo: ele é floresta, mar, participa das bata- lhas: há feridos e mortos espalhados pelo chão, agonizando e gemendo. Alguns espectadores fo- ram vistos precipitando-se piedosamente para tentar socorrê-los. Na verdade, essa epopéia acabou sendo um triunfo da ilusão teatral!52 A ausência de lugares marcados e o risco de machucar-se com os carrinhos colo- cam o espectador numa situação de desconforto físico que se soma à necessidade de escolher as seqüências da narrativa. Participação corporal e intelectual, portanto. Lu- dismo, trânsito pelo imprevisto, disponibilidade: como numa feira popular. 51 ROUBINE, op. cit. 52 Idem, p. 95. 39
  • 40. Mais recentemente, entre nós, experiências como o Tiradentes de Aderbal Freire Filho (Rio de Janeiro, 1992) colocam o espectador a caminhar pelos espaços da ação e a tomar vinho com os Inconfidentes. Experiências que celebram a festa permanecendo nos limites do espetáculo. Ao tomar vinho com Cláudio Manuel da Costa, o espectador co- mo que se torna também inconfidente, porém sem estar de posse dos meandros da repre- sentação. Não sabe o texto, não conhece as seqüências - prerrogativas do ator. Permane- cem, ator e espectador, o primeiro no tempo presente da narrativa; o outro, no limiar do presente empírico com a adesão ao tempo ficcional. Artaud radicalizado romperia o li- mite. A digressão, embora mais uma vez longa, é útil para que percebamos a enverga- dura da empreitada de Qorpo-Santo. Ele fragmentou o seu texto como que a intuir (ou mesmo pretender) um espaço em explosão. Nele, o tempo não pode linearizar-se. Num espaço como o de Orlando, o calidoscópio textual seria levado às últimas conseqüên- cias. 40
  • 41. CRÍTICA Será que para termos ciência não devamos tê-la? Ilusão! Tantos têm uma e outra coisa... logo, este mundo é incom- preensível. Q.S. Cessou a euforia dos anos de descoberta. Tendo em vista a já grande quantidade de ensaios, teses e dissertações universitárias provocadas pelo louco de Vila do Triunfo, é necessário agora retomar a discussão e repensar o já dito. São três os pontos de vista centrais: 1)trata-se mesmo de um louco, portanto não há obra de arte; 2) louco, porém genial; 3)artista. Um denominador comum salta aos olhos: as considerações são feitas a partir do autor e não a partir da obra. Embora buscando dialogar com cada um destes três pontos de vista, não é nosso desejo encaminhar argumentação voltada para o autor. Interessa pensar a obra e sua in- serção na cultura brasileira (mais especificamente no que diz respeito ao teatro); sua linguagem, seu mundo interior. Já vimos, com Foucault, indagações sobre a função do autor. Vejamos agora, com Roland Barthes53, o outro lado da questão: aquilo que convencionamos chamar obra. Sua existência é material; seu destino, o de habitar as prateleiras e dar suporte ao texto. Este, por sua vez, é uma tecitura que habita a linguagem e dá suporte ao discurso. O texto foge das estantes para atravessar a obra ou um conjunto de obras. Essa travessia dá-se sob o signo da rebeldia a classificações e hierarquias: o texto se volta contra as idéias de “boa literatura”, gênero. Além disso, situa-se nos limites de racionalidade ou legibilidade das regras de enunciação. O texto aparece fora do âmbito da doxa, no lugar do paradoxo, onde o significado e o significante tensionam-se - potência de variações. 53 BARTHES, Roland. O rumor da língua. Edições 70, Lisboa, 1987. 41