Por outras geo carto-grafias - profa. dra. valéria cazetta
1. 1
POR OUTRAS GEO-CARTO-GRAFIAS
Profa. Dra. Valéria Cazetta
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP)
vcazetta@usp.br
Resumo
No período contemporâneo a educação escolar é cruzada por saberes oriundos de universos culturais entre
os mais distintos possíveis e, nesse sentido, convém pensar em que medida somos educados tanto quanto
ou mais por essas outras linguagens multifacetadas que nos chegam de maneira informal para além dos
muros e da cultura da escola e da cultura escolar. Nossa pretensão é discutir a linguagem cartográfica
como não sendo a única ou a mais importante na formação de professores de geografia, mas sim, pensá-la
no entrecruzamento com outras linguagens geográficas e não geográficas na busca de sentidos. É a partir
do entrecruzamento de outras linguagens, tais como, fotografias aéreas (verticais e oblíquas), fotografais
comuns, imagens orbitais, mapas, cartas topográficas, desenhos entre outros, que vislumbramos a
contribuição da cartografia na formação de um pensamento menos dogmático e mais híbrido acerca da
formação de um pensamento menos dogmático e mais híbrido acerca do que é Realidade espacial.
Palavras-chave: educação geográfica, cartografia escolar, geografia escolar, representação, linguagens
geográficas
Introdução
Considerando que no período contemporâneo a educação escolar é cruzada por saberes oriundos
de universos culturais entre os mais distintos possíveis, convém pensar, em que medida somos educados
tanto quanto ou mais por essas outras linguagens multifacetadas que nos chegam de maneira informal para
além dos muros e da cultura da escola e da cultura escolar, lembrando aqui do filme francês Entre os
Muros da Escola1
. Nossa pretensão aqui não é discutir o referido filme, mas tomá-lo como inspiração para
pensar que a linguagem cartográfica não seria a única ou a mais importante na formação de professores de
geografia, mas sim, pensá-la no entrecruzamento com outras linguagens geográficas e não geográficas na
busca de sentidos... seja no plural, seja no singular. São nos detalhes dos olhares sobre os lugares,
captados tanto corporal e imageticamente, como por meio de aparelhos que talvez possamos descobrir
outras formas de inventar a vida.
Buscar sentido ou sentidos nas coisas que fazemos no e pelo mundo ou por nós mesmos envolve,
sobretudo, lidar com a diversidade de linguagens, das quais lançamos mão para produzir nossa existência
e resistência numa época em que determinados grupos querem ser os principais marcadores da história,
tentando homogeneizar jeitos de viver, ver e olhar, entender, filmar, cartografar, fotografar... as pessoas e
os lugares.
A partir do entrecruzamento com outras linguagens, tais como, fotografias aéreas (verticais e
oblíquas), fotografias comuns, imagens orbitais, mapas, cartas topográficas, desenhos entre outros, é que
vislumbramos a contribuição da cartografia na formação de um pensamento menos dogmático e mais
híbrido acerca dos homens e mulheres que animam o espaço geográfico.
Nesse sentido, escrever acerca de uma temática, supostamente, clássica na formação de
professores de geografia, isto é, a Cartografia, obrigou-nos a dividir o texto em três partes:
• (Des)Contextualizando a linguagem cartográfica na formação de professores de geografia
• Representação, Reapresentação ou Apresentação da Realidade ou realidades geográficas?
• Para além de uma suposta Verdade e Realidade contida nos mapas
1
Entre les Murs, França, 2008. Longa-metragem francês de Laurent Cantet - baseado no livro homônimo de François Bégaudeau,
cujo cenário se dá em uma classe de 7ª série da periferia de Paris.
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Por meio delas tecemos nossa argumentação em favor de uma política formativa de professores
que leve em consideração “a complexidade dos fenômenos e a impossibilidade de apreendê-los
diretamente” (CASTRO, 2003, p.118) por uma única linguagem, no caso, a linguagem cartográfica.
(Des)Contextualizando a linguagem cartográfica na formação de professores de geografia
É de todos sabido que a cartografia, uma das principais linguagens da ciência geográfica, ainda
não se constituiu como um dos eixos norteadores dos currículos das licenciaturas em Geografia no Brasil,
embora ninguém descarte sua importância, principalmente ao lermos os trabalhos dos pesquisadores
brasileiros publicados nos anais tanto dos Colóquios de Cartografia para Escolares como nos dos
Encontros de Prática de Ensino em Geografia (ENPEG). No entanto, cabe destacar os avanços que estão
ocorrendo nas pesquisas realizadas na área de Cartografia Escolar.
Rosângela Doin de Almeida (2002), em sua conferência de abertura para o 1o
Simpósio Ibero
Americano de Cartografia para Criança, estabeleceu, a partir de um levantamento quantitativo dos textos
das mesas redondas e comunicações apresentadas nos quatro últimos colóquios de Cartografia para
Crianças, a emergência de quatro temas principais de investigação na área da Cartografia Escolar:
• Representação do espaço, que inclui conteúdos de cunho teórico a
respeito da representação espacial na criança, linguagem cartográfica, mapas
mentais e representação de conceitos socioespaciais;
• Metodologia de ensino, que envolve conteúdos teórico-práticos voltados
para a busca de caminhos didáticos no ensino da Cartografia Escolar,
incluindo iniciação cartográfica, educação especial (deficientes visuais) e
ensino-aprendizagem de habilidades e conceitos específicos;
• Tecnologias e produção de materiais didáticos cartográficos, incluindo
trabalhos a respeito de atlas escolares, maquetes, multimídia, educação à
distância, sensoriamento remoto e geoprocessamento;
• Formação docente, incluindo pesquisas sobre saberes e práticas
docentes, cotidiano escolar, currículo e formação de professores.
Mesmo com os avanços destas investigações, tanto em termos qualitativos quanto em termos
quantitativos, parece-nos que as práticas educativas geográficas que envolvem, supostamente, o trabalho
com mapas, constituem-se ainda um dos grandes desafios na prática dos professores da educação básica.
Isto nos leva a pensar sobre os cursos de formação de professores de geografia atualmente existentes no
Brasil e seus desdobramentos no que diz respeito ao tipo de formação predominante e à estrutura
curricular dessas licenciaturas. De acordo com Almeida (2002)
poucos são os trabalhos sobre a formação profissional em Cartografia
Escolar, tema que diz respeito aos cursos de licenciatura e às ações voltadas
para a atualização de professores – ações que consideramos o principal meio
de divulgação dos trabalhos nesta área. Ao nosso ver, a formação docente é
um importante tema de investigação em Cartografia Escolar, uma vez que os
professores são os mediadores principais do conhecimento veiculado nas
escolas. Avançar nesse sentido é uma condição para evitar que a Cartografia
Escolar cristalize-se como um tópico isolado no currículo, perdendo seu
vínculo com a produção e transmissão de conhecimentos na escola.
Adriano Rodrigo Oliveira (2009, p.483), em seu recente ensaio, intitulado Geografia e
Cartografia escolar: o que sabem e como ensinam professoras das séries iniciais do Ensino
Fundamental?, afirma
que ensinar o mapa para os escolares e compreender o seu processo de ensino
e aprendizagem são desafios permanentes para os professores da escola
fundamental (…) Pensamos que realizar pesquisas sobre como professoras
realizam seu trabalho de ensinar por meio da linguagem cartográfica na escola
3. 3
é de fundamental importância para compreendermos o processo de ensino de
mapas.
Concordamos também com este autor ao dizer que embora a literatura seja escassa no que se
refere às pesquisas com o ensino de mapas e a prática docente, são importantes as
investigações que persigam a compreensão do cotidiano escolar, dos saberes e
do trabalho docente com o uso de mapas na sala de aula, sendo que o domínio
da linguagem cartográfica é fundamental para aprender geografia na escola.
Lembramos também que mapas são utilizados no ensino de história e
ciências, o que reafirma a importância da cartografia (OLIVEIRA, 2009,
p.483)
Compactuamos com as afirmações anteriores no que diz respeito à importância dos mapas para a
Educação Geográfica, porém é bom lembrarmos que a cartografia é uma das linguagens do pensar e fazer
geográficos (CAZETTA, 2005 e 2007; SEEMANN, 2002). O geógrafo Jörn Seemann (2005), afirma que
teríamos uma subutilização de linguagens alternativas na geografia, incluindo os mapas, fotografias,
músicas, entre outras – tidas muitas vezes mais como técnicas ao invés de práticas geográficas centrais.
De acordo com este mesmo autor
o ensino de Cartografia nas universidades muitas vezes se restringe a uma
abordagem bastante técnica e matemática (cálculos de escalas, projeções
cartográficas, etc) longe da realidade e imaginação dos estudantes. Mapas nos
livros didáticos deixam de ser explorados, porque não há instruções para
mostrar como lê-los, e as publicações acadêmicas também não se tornam mais
cartográficas pela inclusão de um mapa (muitas vezes usado como “enfeite” e
sem ligação com o texto).
Convém ainda destacar que a área de pesquisa no que se refere à pós-graduação (mestrado e
doutorado) em Geografia Escolar ou Didática da Geografia que também poderia incluir a Cartografia
Escolar, inexiste. O que temos em grande medida são linhas de pesquisa na área de ensino de Geografia
nos programas de Pós-Graduação em Geografia (SPOSITO, 2003; SUERTEGARAY, 2005 e 2007). Além
disso, não conseguimos ainda criar a área de pesquisa em Educação Geográfica tanto no Conselho
Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) quanto na Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Isto posto, como pensamos o papel da cartografia na formação de professores de geografia no
contexto atual – entrecruzado, por um lado, pelos “meios de comunicação, a veiculação de informações
pela mídia e as tecnologias cada vez mais sofisticadas (...) transformando a nossa realidade em uma
seqüência rápida de imagens virtuais as quais, muitas vezes, não conseguimos processar na nossa mente
por imagens e sons” (SEEMANN, 2003, p. 49), e por outro, por uma tentativa de homogeinização
curricular, como no caso Proposta Curricular do Estado de São Paulo lançada pela Secretaria de Educação,
no início do final do ano de 2008, sem mencionar os clássicos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
lançados no final da década de 1990?
Representação, Reapresentação ou Apresentação da Realidade ou realidades geográficas?
Geralmente quando se fala em Geografia ou algo que tenha alguma dimensão espacial ou passível
de espacialização, inevitavelmente remetemo-nos aos mapas com seus inextrincáveis códigos que
supostamente retratariam ou espelhariam algum aspecto da realidade ou do real. Entramos no complexo
campo da representação da realidade geográfica com suas diversas escalas de abordagem e pontos de
vista. Ou ainda, será que mais do que representar a Realidade ou as realidades geográficas a partir das
fotos, mapas, imagens orbitais (disponibilizadas no google earth entre outros sites) etc, não estaríamos em
grande medida apresentando jeitos de vermos e olharmos os recortes do espaço geográfico, distintos
daquele ponto de vista frontal por meio do qual estamos mais ou menos habituados?
4. 4
Wencesláo Machado de Oliveira Júnior (2003 e 2004), ao partir de uma perspectiva benjaminiana
acerca da linguagem nos diz “que as coisas só ganham existência quando são nomeadas, ou seja, ‘ditas’
ou ‘escritas’ por alguma linguagem inventada e utilizada pelos homens e mulheres na sua busca de
compreender o mundo. Sendo assim, uma linguagem mais do representar ou reapresentar algo, ela o
apresentaria, dando existência a ele neste momento”.
Quando se fala em representação, geralmente sua conceituação está vinculada à espacialização.
Segundo a geógrafa inglesa Doreen Massey (2008, p.43), “não se trata apenas de que a representação seja
equiparada à espacialização, mas que as características daí derivadas são atribuídas ao próprio espaço”, ou
seja, “trata-se de uma velha associação, muitas e muitas vezes subjugamos o espaço ao textual e ao
conceitual, à representação”. Para Massey, na associação do espaço com a representação, o espaço foi
privado de dinamismo e contraposto ao tempo. Os espaços, lugares... seriam passíveis de serem fixados
por meio das representações (cartográficas). O dinamismo inerente a qualquer lugar desapareceria, criando
um imaginário em nossa memória, fixado por formas e itinerários únicos. Partindo do entendimento desta
autora, isto ocorre devido ao entendimento que se faz do espaço e do tempo, ambos separáveis e
representáveis. Porém,
é necessária uma reimaginação das coisas como processos (...) para
reconceituação dos lugares, de um modo que possa desafiar localismos
exclusivistas, baseados em reivindicações de uma autenticidade eterna. Em
vez de coisas como entidades discretas preestabelecidas, há, agora, um
movimento em direção ao reconhecimento do contínuo devir, que está na
natureza de seu novo ser. O novo, então, bem como a criatividade, é uma
característica essencial da temporalidade” (MASSEY, 2008, p.44).
Daí esta autora falar em cartografias situacionistas como aquelas que
buscam desorientar, desfamiliarizar, provocar uma visão a partir de um
ângulo inusitado. Por outro lado, e mais significativo (...) buscam expor as
incoerências e fragmentações do próprio espacial (...). Aqui o espacial é uma
arena de possibilidades (...). Portanto, com toda a certeza, o espaço não é um
mapa e um mapa não é espaço, mas mesmo mapas não devem pretender
impor sincronias coerentes.
De acordo com o sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2000, p.198), os mapas são
“distorções reguladas da realidade, distorções organizadas de territórios que criam ilusões credíveis de
correspondência. Imaginando a irrealidade de ilusões reais, convertemos correspondências ilusórias em
orientação pragmática” (...), em ordenamentos políticos precisos. De acordo com este mesmo autor, são
três os mecanismos por meio dos quais os mapas distorcem a realidade: a escala, a projeção e a
simbolização. Não vamos aqui nos deter na conceituação destas idéias, vista que já foram apresentadas por
vários geógrafos e não geógrafos. O que nos interessa é pensar em que medida alterando-se a escala, a
projeção e a simbologia dos mapas sejam eles temáticos ou não, altera-se também o nível de detalhamento
e/ou generalização acerca das geografias dos lugares apresentadas pelos mapas, bem como sua Verdade e
a Realidade.
Os mapas, assim como qualquer outra linguagem não nos apresenta conceitos, definições prontas
e acabadas e nem sequer um suposto conhecimento geográfico acerca do espaço; eles não falam por si sós
e congelam por meio de escolhas políticas de seus elaboradores, determinados recortes do espaço e do
tempo. Nesse sentido, deixemos de acreditar nos mapas ou na linguagem cartográfica, pois estariam eles a
nos apresentar inverdades sobre os lugares? Haveria alguma outra linguagem para substituir os mapas que
apresentasse a Realidade ou Real de modo mais realista do que os mapas? Para ambas as perguntas, a
resposta é negativa.
Acreditamos que a questão central reside em como nos cursos de formação de professores de
geografia (e de pedagogia) encaminhamos o processo de mediação desta linguagem no entrecruzamento
com outras, como por exemplo, fotografias aéreas (oblíquas e verticais) e imagens orbitais. Citamos essas
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por serem as mais utilizadas nos estudos geográficos, embora não menos presente no universo da
educação não-formal.
Cada linguagem possui suas limitações devido às circunstâncias que cada uma delas é produzida.
A maneira como um mapa é elaborado é totalmente distinto do modo como uma imagem orbital ou
fotografia aérea, seja ela oblíqua ou vertical, são obtidas. Haverá um repertório cultural mais ou menos
amplo em termos de memórias visuais e espaciais cotidianas em nossos alunos (da educação básica ou da
educação superior) a depender do universo cultural de onde provem, pois “nossas coleções de imagens
ficam preservadas cuidadosamente em nosso imaginário e passam a ser um dos referentes para
entendermos o mundo, seja pela insistência de seus significados inscritos culturalmente e outros que
atribuímos a elas, seja pelas suas qualidades formais e composicionais que nos seduzem, ou pela
proximidade e intimidade que mantemos com estas imagens e os vínculos afetivos que criamos nas
interações entre nós e as imagens” (CUNHA, 2007, p.113).
Temos aqui duas idéias que nos interessam: a primeira reside na linguagem cartográfica que ao
possibilitar um tipo de conhecimento que necessita ser decodificado produz imaginários geográficos fixos,
lineares, horizontalizados. Ou seja, “no mapa rodoviário não dirigimos fora dos limites do mundo
conhecido” (MASSEY, 2008, p.165). Uma segunda idéia reside no devir da corporeidade no espaço. Isto
é, entre representar cartograficamente um lugar e as corporeidades que o animam, haveria uma dada
Verdade e, por conseguinte, uma dada Realidade geográfica em circulação, responsáveis por produzir em
nós práticas sociais mais ou menos plenas de uma determinada organicidade espacial.
Para além de uma suposta Verdade e Realidade contida nos mapas
Há um consenso em atribuirmos à cartografia como sendo a principal linguagem na formação de
geógrafos e de professores de geografia. No intuito de ampliar a afirmação anterior, fomos buscar
inspiração no curta-metragem do gaúcho Jorge Furtado (1986), O dia em que Dorival enfrentou a guarda,
e na epígrafe de Antônio Machado, extraída do ensaio “Agamenon e seu Porqueiro”, no livro Pedagogia
Profana, de autoria do espanhol Jorge Larrosa (2006).
No caso do curta-metragem que narra a saga de um prisioneiro (Dorival) que contesta uma suposta
hierarquia militar que o impede de tomar banho no cárcere, temos uma proibição, instituída como
Verdade, independente de quem a diga. Ou seja, todos proíbem o banho de Dorival, porém há um
desconhecimento desta proibição partindo do carcereiro até o capitão.
Na epígrafe de Antônio Machado, temos que
A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou o seu porqueiro.
Agamenon: De acordo.
O porqueiro: não me convence.
Larrosa destaca que o porqueiro não é dono de nada, ao contrário de Agamenon - proprietário dos
porcos e do próprio porqueiro. No referido ensaio, Larrosa não irá dedicar-se a nenhum destes dois
personagens, mas aquele que diz “A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou o seu porqueiro”, pois
suspeita que o mesmo seja “outro servidor de Agamenon, ao qual poderíamos chamar seu
‘filósofo’. Sem dúvida, Agamenon tem uns quantos servidores que garantem sua força
física, seu poder sobre os porcos e a vida de seus súditos. Mas, certamente, conta também
com alguns servidores que garantem sua força ‘simbólica’, isto é, seu poder sobre as
mentes e as consciências. Alguns reforçam o poder de seu braço, outros asseguram o poder
de sua verdade. E para assegurar o poder de sua verdade é conveniente que essa verdade
seja reconhecida como a verdade, isto é, que apareça como independente da força. Por isso
o que faz o filósofo de Agamenon é fixar as regas do jogo da verdade ou, se quiserem, as
condições de luta pela verdade (LARROSA, 2006, p.151-152).
Quais são nossos interesses neste texto ao nos remetermos ao curta-metragem e a epígrafe?
Porque perseguimos duas idéias: a de Verdade e a de Realidade com a finalidade de buscar aproximações
na maneira como vimos pensando atualmente a cartografia na formação de professores de Geografia.
6. 6
Como encontramos em Oliveira Júnior (2002) referência a esta mesma epígrafe deste ensaio,
caminhemos junto dele a partir deste momento, pois assim como para este autor, a nós também
interessaram duas idéias nas citações acima.
A primeira: a Verdade (e a Realidade), para que seja tida como a única, precisa parecer
desprovida da Força, ou seja, ela seria a Verdade simplesmente por ser a Verdade, diga-a
quem quer que for. A segunda: pensar a Verdade (e a Realidade) como coisas já existentes,
das quais estamos mais ou menos próximos, tem perdido espaço para o pensamento da
Verdade e da Realidade como coisas que nós mesmos construímos e damos existência em
nossos discursos e práticas sociais (OLIVEIRA JÚNIOR, 2002, p.354).
Supostamente parece que os mapas representam a Realidade e a Verdade ou mesmo que chegam a
nos dar um retrato da geografia de um dado lugar. De acordo com Massey (2008, p.160), mapas dizem
respeito a espaço, são formas de representação, compreendida como espacialização “mas um mapa de uma
geografia não é aquela geografia – ou aquele espaço (...)”. O problema abordado pela referida autora no
que diz respeito aos mapas não são porque estes operam como uma “tecnologia do poder” e/ou por conta
da “visão do alto”, mas, sim, se pensarmos que a distância vertical no mapa nos traz a verdade. “A forma
dominante de mapeamento, porém, coloca o observador, ele mesmo não observado, fora e acima do objeto
do olhar”, ou seja, os “mapas atuais do tipo ocidental dão a impressão de que o espaço é uma superfície –
que é a esfera de uma completa horizontalidade” (MASSEY, 2008, p.160). Nesse sentido, as rugosidades
dos territórios e a densidade existencial de suas gentes são passíveis de ganharem contornos lineares que
nos fazem crer numa dada idéia de Verdade e Realidade acerca do espaço e suas geografias.
Temos então um espaço que é cartográfico e um outro espaço que é dinâmico e plural. Para
Massey (2008, p.161), o espaço “não pode ser, jamais, aquela simultaneidade completa na qual todas as
interconexões já tenham sido estabelecidas, na qual cada lugar já está (e nesse momento imutavelmente)
ligado a todos os outros. Finalizações em aberto e estórias em curso são verdadeiros desafios para a
cartografia. Mapas, naturalmente, variam”. Então, perguntamos, como lidar com este limite pensando em
uma educação geográfica contemporânea, cuja marca principal reside na multiplicidade de geografias que
nos chegam sem parar seja por meio da tevê e outros meios de comunicação de massa (mass media), seja a
partir da internet, por meio de vários sites que disponibilizam mapas e imagens orbitais?
O espaço geográfico com seus distintos territórios, lugares, paisagens, regiões e suas diversas
gentes não constituem a representação que se faz deles, seja por meio de mapas, plantas urbanas, cartas
topográficas, fotografias aéreas (oblíquas e verticais) e as imagens orbitais (em falsa-cor, infravermelho
em branco e preto, colorida natural, pancromática). A espacialização difere do espaço e
espaciliazar/representar fenômenos não quer dizer que estamos dizendo algo ou alguma coisa acerca da
geografia ou geografias de um dado lugar. O que temos será uma nova apresentação a partir de escolhas
do que deverá ser lembrado, tornado visível.
Para Massey (2008, p.159) no mapa, o “espaço” é uma superfície plana e contínua, um produto
acabado, um sistema coerente e fechado. “Com o mapa podemos nos localizar e encontrar nosso caminho.
E sabermos, também, onde os outros estão. Portanto, sim, este mapa pode me fazer sonhar, fazer minha
imaginação divagar. Mas também me oferece ordem, deixa-me tomar as rédeas do mundo”.
Em sua tese de doutorado, Valéria Cazetta (2005) questiona por que os mapas sempre estão e/ou
são associados ao que é geográfico, tornando-se dois andantes inseparáveis, dando idéia, seja em contexto
acadêmico, seja em contexto escolar, de que devemos necessariamente lançar mão de mapas, não
importando a sua qualidade político-estética-ideológica? Já Doreen Massey (2008), pergunta se não
seriam os mapas um arquétipo2
de representação?
2
De acordo com a psicanálise Junguiana “o conceito de arquétipo... deriva da observação reiterada de que os mitos e os contos da
literatura universal encerram temas bem definidos que reaparecem sempre e por toda a parte. Encontramos esses mesmos temas
nas fantasias, nos sonhos, nas idéias delirantes e ilusões dos indivíduos que vivem atualmente. A essas imagens e
correspondências típicas, denomino representações arquetípicas (...) É muito comum o mal-entendido de considerar o arquétipo
como algo que possui um conteúdo determinado; em outros termos, faz-se dele uma espécie de “representação” inconsciente, se
assim se pode dizer. É necessário sublinhar o fato de que os arquétipos não tem conteúdo determinado; eles só são determinados
em sua forma e assim mesmo em grau limitado. Uma imagem primordial só tem um conteúdo determinado a partir do momento
em que se torna consciente e é, portanto, preenchida pelo material da experiência consciente (...) As representações não são
herdadas; apenas suas formas o são. Assim consideradas, correspondem exatamente aos instintos que, por seu lado, também só
7. 7
Para Cazetta (2005, p.48), “talvez uma possível resposta esteja situada no surgimento desta
ciência ao impregnar ao longo de sua legitimação, enquanto campo disciplinar do conhecimento uma
memória3
cultural do mapa, que por sinal foi distinta ao longo da constituição da ciência geográfica”, mas
“que ganhou força com o advento da modernidade quando a linguagem cartográfica passou a ser vista
como um instrumental técnico e isolado (o mapa em si)”.
Boaventura de Sousa Santos (2000) afirma que todos os conceitos dos quais se lança mão para
representar a realidade (e à volta dos quais constituem-se as diferentes ciências sociais e suas
especializações, a sociedade e o Estado, o indivíduo e a comunidade, a cidade e o campo, as classes
sociais e as trajetórias pessoais, a produção e a cultura, o direito e a violência, o regime político e os
movimentos sociais, a identidade nacional e o sistema mundial) estão inseridos em um contexto espacial,
físico e simbólico, ou seja, em um contexto da representação cartográfica. O geógrafo Jörn Seemann
(2005) ao falar da abundância de metáforas utilizadas nos estudos geográficos, afirma que as mesmas
giram em torno da cartografia, ou seja, os mapas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Algo ainda a ser discutido nas pesquisas vinculadas à Educação Geográfica diz respeito às
concepções de currículo que permeiam os cursos de graduação no que se refere à formação de professores
de geografia. Um outro flanco decorrente do anterior seria pensar o currículo escolar de modo não
acadêmico, ou seja, pensá-lo não a partir das determinações dos documentos oficiais ora lançados pelo
Governo Federal, ora lançados pela Secretaria de Estado da Educação do Estado de são Paulo, ora
lançados pela prefeitura do município de São Paulo. Pensamos que somente desta maneira teremos
condições de traçar de maneira mais cuidadosa as tendências (de)formativas dos professores de geografia
no Brasil, bem como, produzir uma cartografia situacionista do conhecimento escolar geográfico que é
distinto do conhecimento geográfico acadêmico-científico, porém não menos verdadeiro e legítimo do que
o anterior.
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são determinados em sua forma. É impossível provar a existência dos arquétipos ou dos instintos, a não ser que eles mesmos se
manifestem de maneira concreta (...) A melhor tentativa de explicação não será mais do que uma tradução relativamente bem
sucedida, num outro sistema de imagens” (JUNG, 1963, p.352-353).
3
Este termo possui uma variedade de definições. No contexto deste ensaio não cabe discutir as concepções de memória sejam elas
assentadas no individual, no coletivo, no social, entre outras.
8. 8
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