Este ensaio compara a obra de Kant "A Crítica da Faculdade do Juízo" e a obra de Mukarovsky "A Obra de Arte como Fator Semiológico", discutindo o conceito de belo, a ruptura com a tradição metafísica e se a obra de arte tem um fim utilitário.
Revista de letras da FAJESU explora temas literários e linguísticos
1.
2. ISSN 1808-3617
MARGINAHLIA - revista de letras
n. 01, jan./jun. 2007
FACULDADE JESUS MARIA JOSÉ – FAJESU
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Irmã Floriana Lais Filgueiras
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EDITOR
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CONCEPÇÃO DA CAPA E DIAGRAMAÇÃO
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REVISÃO
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Alessandro Eloy Braga
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Semestral
3. A revista MARGINAHLIA é semestralmente publicada em formato eletrônico pela Coordenação
do Curso de Letras da Faculdade Jesus Maria José (FAJESU) e destina-se à veiculação de
estudos acadêmicos voltados para a área de Letras.
Toda correspondência ou solicitação de exemplares deverá ser enviada à:
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Os trabalhos publicados nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.
Ficha catalográfica elaborada pela
Biblioteca Madre Rita
Marginahlia: Revista de Letras / Faculdade Jesus Maria José – FAJESU –
N.1 (jan./jun. 2007). Taguatinga-DF: FAJESU, 2007. 64 p.
Semestral.
ISSN 1808-3617
1. Literatura. 2. Lingüística. 3. Língua portuguesa. 4. Língua inglesa.
5. Educação. I. Faculdade Jesus Maria José – FAJESU.
4. sumário
ENSAIOS
A Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant,
e A Obra de Arte como Fator Semiológico, de Jan Mukaróvsky:
um diálogo sobre o belo e o caráter utilitário da obra de arte
[6-13] ................................................................................................................... Tiago Nascimento de Carvalho
Metamorfoses da catástrofe: “imagens do inferno” no
desfecho de A montanha mágica
[14-19] ...................................................................................................................... Gilmário Guerreiro da Costa
O problema da originalidade em Budapeste, de Chico Buarque
[20-23] ..................................................................................................................... Calos Luciano Silva Coutinho
Leitura, literatura e leitura da literatura na escola
[24-34] .................................................................................................................................. Ana Regina Gomes
A temática existencial e a vontade no Modernismo
[35-39] ..................................................................................................................... Filipe Rodrigues de Alcântara
Ensino de Língua Estrangeira: um breve histórico
[40-46] ........................................................................................................... Rejane Matias de Souza dos Santos
ARTIGOS
Como as relações afetivas influenciam no resultado
das apresentações orais de aprendizes de LE (inglês)?
[47-50] ................................................................................................................. Ana Cristina da Silveira Chaves
Natura Et Artificialis
[51-60] .............................................................................................. Francisco das Chagas Santos do Nascimento
RESENHAS
CUNHA, Maria Jandyra C.; SANTOS, Percília (Orgs.).
Tópicos em Português Língua Estrangeira. Brasília: EdUnB, 2002.
[61-62] ............................................................................................................................... Adriano Rosa Eduardo
5. editorial
MARGINAHLIA:
a propósito de um projeto
de “PENSAR” na periferia...
Se o que Marx anuncia no Capital ainda tem algum valor, ouçam:
Já vimos como o capital produz a mais-valia e como a mais-valia produz um novo capital.
Mas acumulação do capital pressupõe a mais-valia, como esta pressupõe a produção
capitalista, e esta, por sua vez, a concentração nas mãos dos produtores de mercadorias de
massas consideráveis de capital ou força de trabalho. Todo esse movimento parece, assim,
mover-se num círculo vicioso, de onde não podemos sair a não ser pressupondo,
anteriormente a produção capitalista, uma acumulação primitiva que seria não o resultado,
mas o ponto de partida do modo de produção capitalista.1
O Curso de Letras da FAJESU inicia neste primeiro semestre do ano de 2007 uma trajetória
empreendedora na tentativa de lançamento de mais um periódico acadêmico, dentre os vários existentes
neste país: A revista MARGINAHLIA.
A revista MARGINAHLIA nasce com um intuito manifesto de estudar, pesquisar, aprofundar e
provocar os diversos dilemas e problematizações das letras, dentro da nossa faculdade e abrindo um espaço
futuro para publicações de interessados na área.
MARGINAHLIA é a tentativa do pensamento na periferia. É o encontro com o processo excludente
secular de alijamento das massas no bojo da formação educacional do ocidente, que desde a escolástica
medieval colocava dentro e fora dos feudos universitários os indivíduos escolhidos e os excluídos.
MARGINAHLIA é a tentativa do urro da periferia pensante, que não mais entende a revolução do
proletariado, mas crê na revolução das idéias.
MARGINAHLIA é e não é um panfleto. É e será um panfleto, toda vez, que a velha academia ousar
dizer, mesmo que nas filigranas dos seus textos e vertigens burocráticos, ou pela voz de um de seus filhos
conservadores, que na periferia não há quem pense. E não será um panfleto, quando os interessados nas
letras precisem recorrer a mais um instrumento de pesquisa e diálogo.
MARGINAHLIA bebe nas fontes iniciais dos manifestos, mas não tem a pretensão das praças
públicas, pois nasce da compreensão contemporânea do esvaziamento do discurso da esquerda,
derrotado pelas suas instâncias populistas e de aprazimento pelo poder; como também entende o
agigantamento irreversível do conservadorismo e falso puritanismo das direitas, que soerguem-se,
ainda, numa educação de modelo autóctone e coronelista (marca evidente da brasilidade).
MARGINAHLIA não suporta o centro, pois pior que estar em cima do muro é não aparecer nunca na
hora do grande debate e da grande dialética, por isso MARGINAHLIA condena e condenará todos os -
ismos e -ias desavisados e sustentados numa pedagogia caduca, falecida e apodrecida nos velhos
cronicões e livros de linhagem do mundo antigo.
Marx não era marxista, era pensador. O capital não é uma obra de economia, mas do pensamento.
Quando acreditamos que não podemos sair do modelo vicioso, o mesmo que nos marginalizou e disse: “Ao
1
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p. 171.
6. serviço, serviçais”, Marx abre o horizonte de perspectiva na nossa acumulação primitiva. MARGINAHLIA não
será neste sentido a voz da barbárie ensandecida, onde o primitivismo sirva de modelo para a violentação
explícita, mas não criará sua própria etiqueta, a fim de que este refinamento torne-se mais um dos inúmeros
aburguesamentos sectários e centralizadores.
MARGINAHLIA tentará ser a revista do prazer dos estudantes de Letras da FAJESU; tentará ser um
objeto sério e sequioso de leituras e pesquisas; tentará ser o espaço múltiplo da divulgação dos trabalhos
literários, lingüísticos e de ensino-aprendizagem da área das letras.
Não haverá sustos, estranhamentos ou novidades em MARGINAHLIA que não estejam condicionadas
as formulações de seus possíveis artigos, pois a revista não precisa de coquetel ou reunião de notáveis na sua
fundação, já que pode ser lançada na nossa cantina e no nosso auditório, nas nossas salas de aula e nas malas
diretas que divulgarão os nossos trabalhos.
Termino falando da nossa capa. A capa de MARGINAHLIA são os olhos da periferia que estuda. As
tonalidades de azul, verde, amarelo e branco são os reflexos e reflexões de dentro para fora da periferia
intelectual, de uma alegria de pensar muito além da sisudez triste e arrogante de que muitas vezes a academia
se veste. Academia esta que adora entrar com os olhos na periferia para achar seus objetos de estudo, sem
perguntar a opinião de dentro.
CHEGOU MARGINAHLIA!
Tiago Nascimento de Carvalho
7. MARGINAHLIA – Revista de Letras, FAJESU, Brasília-DF, nº 1, jan./jun. 2007 -6-
Essa percepção nos guia para um recuo na
A Crítica da Faculdade do ordem analítica e indica um novo caminho para uma
Juízo, de Immanuel Kant, propedêutica de reavaliação dos conceitos gerais de
e A Obra de Arte estética. Não se trata, aqui, de subordinar a teoria
literária às outras ciências, mas de sugerir que esse
como Fator Semiológico, afastamento ocasionou, ora a perpetuação das leituras
de Jan Mukaróvsky: de determinados grupos como verdadeiros vade
mecuns do óbice literário, quando não apareceram
um diálogo sobre verdadeiras fantasmagorias de toda ordem,
o belo e o caráter construindo ilações das mais descabidas sobre as
obras literárias.
utilitário da obra de arte Partindo desses pressupostos levantados, nos
desafiamos e nos encorajamos para debater e
Tiago Nascimento de Carvalho∗ interpretar velhas questões mal resolvidas no campo
da filosofia da arte e da estética literária sem a
RESUMO: A proposta deste ensaio surge da pretensão de estabelecer um parecer ou um juízo
pretensão de um entendimento prévio absoluto final sobre essa natureza de ordem filosófico-
sobre o conceito de “analítica da faculdade literária. Contudo, tentaremos encaminhar alguns
de juízo estética”, na filosofia de Kant, e
fatores que podem elucidar ou gerar veredas do
sobre o conceito de “obra de arte enquanto
signo”, elaborado por Jan Mukaróvsky, nos pensar crítico, por exemplo, neste ensaio, sobre a
estudos realizados na Escola de Praga, questão do conceito de belo e de sublime em Kant e
como ficou conhecido o Círculo Lingüístico da questão que renasce de um problema criado após o
de Praga, na década de 20 do século XX,
pensamento de Kant, que é o papel da arte e da obra
estabelecendo como reflexão final o
problema da obra de arte diante da de arte tendo ou não um fim utilitário, cuja fonte é o
perspectiva de ter ou não um fim utilitário. texto famoso de Mukaróvsky, sobre a obra de arte
como um signo, lançado no seu grupo do Círculo
PALAVRAS-CHAVE: estética, obra de arte,
Lingüístico de Praga. Ainda, este diálogo pretende
crítica, semiologia, comunicação.
vislumbrar algumas questões, como:
INTRODUÇÃO
• a ruptura com a tradição metafísica. Kant a
Os estudos avançados de literatura, nas últimas inicia?
décadas, cada vez mais, abrem o seu horizonte para • por que Mukaróvsky define a obra de arte
um não enclausuramento da teoria literária na análise enquanto signo?
do texto, no sentido de que se percebeu o risco das • qual o âmbito e a formulação do conceito de
ações teoréticas estarem caindo num vazio e num arte como signo social em que trabalha
ciclo vicioso, em que o próprio texto literário, muitas Mukaróvsky?
das vezes, acaba recusando esta ou aquela leitura, • que relação final há entre Kant e
pelo motivo de uma dialética básica, a incapacidade Mukaróvsky nesse diálogo sobre estética e
de algumas investigações de extrapolarem questões tradição metafísica para o alcance do
de ordem conceitual de estética artística e se reconhecimento do que é a grande obra de
prenderem a manuais de averiguação das velhas arte?
correntes crítico-teóricas das artes.
Lembramos que esta discussão foi objeto de
vários debates nas aulas do professor Flávio R.
Kothe, nos anos de 2001 e 2002, na Universidade
∗
Licenciado em Letras pela Universidade Católica de Brasília de Brasília.
(UCB), Mestre em Teoria Literária pela Universidade de
Brasília (UnB), Professor de Literatura na Faculdade Jesus
Maria José (FAJESU), em Brasília-DF.
8. MARGINAHLIA – Revista de Letras, FAJESU, Brasília-DF, nº 1, jan./jun. 2007 -7-
1ª PARTE – KANT E A CRÍTICA DA FACULDADE DO natureza e da moral, os dois campos no prognós-
JUÍZO tico de uma evolução do gosto (do senso comum à
beleza ideal), chegando até ao entendimento do
I - A tetralogia Kantiana juízo teleológico, ou seja, a junção da moral e da
natureza numa ordem e organização dialética na
A Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel explicação das coisas, da busca do prazer e do
Kant, surge no ano de 1790 e faz parte, se desprazer à busca de um fim, ou melhor, de uma
podemos assim chamar, de uma sua tetralogia de finalidade, que caminhe no eixo das infinitudes de
obras mais importantes. Nelas se incluem as suas respostas e percepções do pensamento e até
Críticas e são colocadas e observadas como a parte mesmo na conceituação do lugar em que Deus é
final de sua filosofia, que são, além da citada posto nessa relação, “inteligência suprema”,
acima: A Crítica da Razão Pura, Fundamentos da arriscando a dizer que, para Kant, Deus é um
Metafísica dos Costumes e A Crítica da Razão princípio necessário na mente do humano e não o
Prática. símbolo único e maior do criacionismo.
O pensador alemão, no prólogo da Crítica da Nesse sentido, Kant, com sua filosofia
Faculdade do Juízo, define e argumenta sobre a metódica e minuciosa, é o primeiro pensador com a
origem desses seus textos elaborados à luz de uma coragem de escapar de uma simples visão
reavaliação das máximas filosóficas deixadas por metafísica do homem e do mundo compreendidos
Descartes: sobre a mediação do criador e da criatura numa
interposição de graus, já que se estabelece uma
A faculdade do conhecimento a partir de
hierarquização para o transcendente, visto como
princípios a priori pode ser chamada razão pura
e a investigação da sua possibilidade e dos seus “salvação humana” nessa tradição. Em suma,
limites em geral, crítica da razão pura [...]
pretende Kant formular e doutrinar as possibi-
(KANT, 1995, p. 11).
lidades do compreender e conceituar as analíticas
Mais que a razão pura, Kant percorre as duas provocadas pela razão e fugir do viés da absolu-
dimensões que na sua filosofia mostram-se como tização e cristalização de verdades ideologicamente
viáveis para o entendimento do conhecimento das carregadas de prioridades humanas locais,
coisas e do ajuizamento que se faz delas, que são a percorrendo, assim, a estrada do universalismo. Se
dimensão do “lógico” e do “transcendente”, de esse elemento já é uma ruptura com a tradição
modo que esses termos não podem estar presos a metafísica, somente uma sistemática avaliativa
sua qualidade conceitual do dicionário, mas a um filosófica pode dizer melhor, mas que Kant des-
discernimento da formulação que o próprio Kant dá trona e dessacraliza todo o objeto de uma esco-
a eles, demonstrando que o lógico e o transcen- lástica medieval que, até o século XVIII, continuava
dente formam a razão pura e são faculdades que se embebendo do rescaldo histórico-político do
agem, pois a mesma realiza esse trabalho ocidente, isto já não gera grandes dúvidas.
conjunto, diferenciando o conceito de razão posto Por fim, Kant trata da Filosofia Prática como
pelo pensamento cartesiano que afastava toda e uma prioridade de método das teorias sobre a
qualquer possibilidade subjetiva. Ainda mais, Kant razão pura e a analítica do juízo, e o problema de
separa a ação da razão pura, definida como juízo, uma ética que, posta como transcendental na
em juízo analítico e juízo sintético, elaborando uma divisão do pensamento em relação à razão pura,
reflexão das medidas a priori e a posteriori aplica-se sobre as possibilidades subjetivas, só
tomadas por ele ao trabalhar o conhecimento. explicadas na razão prática que revela, de acordo
É preciso ainda perceber seu trabalho sobre a com Kant, que todo “princípio da moral reside em
ótica de percepção não do juízo, mas do ajuíza- nossa razão autônoma” (KANT, [s/d], p. 9), ou
mento que se faz das coisas e do conhecimento seja, “ser ético é agir de acordo com uma voz
que delas se elabora, e como este ajuizamento interior que o tempo todo dialoga consigo próprio”
gera uma reflexão sobre as teorias filosóficas da (KOTHE, 2001-2002).
9. MARGINAHLIA – Revista de Letras, FAJESU, Brasília-DF, nº 1, jan./jun. 2007 -8-
O ponto fulcral dessa fase da filosofia de ajuizar as coisas, sempre revelando dois
kantiana, que os próprios kantianos e neo- campos: o das sensações e o campo das
kantianos parecem não ter percebido, pois o finalidades.
filósofo mostra-se o tempo todo linear e doutrinário O que Kant, então, chama de uma analítica
no seu pensamento, é o jogo de paradoxos e da faculdade de juízo estética é a entrada no
conjecturas de uma mente efervescente, mas campo das sensações transformadas em gosto pelo
nunca sintética e resumidora, ou castradora da sujeito. Pela velha máxima popular, de que o
idéia, enquanto volúpia e busca da verdade. Assim, “gosto é individual e não se discute”, o provérbio
pode ser visto, nas suas palavras de conclusão da não parece esse de todo errado, pois o juízo do
analítica da razão prática, que se a estética é o gosto não é um juízo de conhecimento, e sim um
campo de trabalho do sensório no sujeito e a moral juízo sensorial, de acordo com Kant, não signi-
a voz interior desse sujeito que não cala, uma ficando dizer que está abolida a inteligência, pois o
essenciação da moral pode ser assim definida: conhecimento na filosofia kantiana são os princípios
a priori do perceber e pensar, e satisfaria mais
Duas coisas enchem o ânimo de crescente admi-
ainda se esse indivíduo, aos nossos olhos, repre-
ração e respeito, veneração sempre renovada
quanto com mais freqüente e aplicação delas se sentasse o espírito de reflexão colocado pelo
ocupa a reflexão: por sobre mim o céu estre-
próprio Kant, pois, se esses saberes, ora
lado, em mim a lei moral (KANT, [s/d], p. 250).
subjetivos, ora investigativos, não se confrontam
Não podemos entender essa dimensão por numa ordem dialética, não conseguem reivindicar
vezes poética de Kant (correndo o risco dos um juízo raciocinante e universal, metas na busca
filósofos acreditarem nesse termo poético como um de uma verdade sobre o gosto, e ficariam no
reducionismo do gênio) interpretando-o fora da patamar do que agrada e do que desagrada.
necessidade de intelectualização dos seres. Algo é O gosto, então, a partir de agora, percorre o
muito claro numa sua definição de metafísica que caminho do belo, como a instância pura de uma
diz permitir ao homem pensar, mas não conhecer. sensação que agrada e do sublime, como o que é
O grande problema da formação da sabedoria absolutamente grande, nos interpondo que a
humana está nessa dimensão de afastamento do preocupação, aqui, passará a ser a obra de arte.
olhar, que antes estava recluso no dogma e nos Uma analítica do belo e do sublime que nos
princípios castrativos das leis da pequena política e leve até a grande obra de arte é o que acaba
da religião, e agora abre-se para a faculdade do indiretamente sugerindo Kant e que parece
belo e da finalidade, sendo que, neste trabalho, somente se completar de modo muito aprofundado
ficaremos com a primeira. no curso de estética de Hegel algumas décadas
depois. Afinal, Kant não quis fundar uma ciência
II - A Crítica da Faculdade do Juízo do belo, mas o fez na medida em que não investi-
gamos e formulamos teorias sobre o “belo” sem
Essa obra em si difunde-se no desejo do passar por ele, ao observarmos os critérios de
espírito kantiano, de compreender a faculdade atribuição conceitual que se revela em pormenores.
humana de avaliação da natureza e da moral, ou Assim, se quisermos saber, inicialmente, se
melhor, de uma filosofia natural, e de uma filosofia algo é belo, partimos da intuição e da reflexão, não
moral, e a faculdade do conhecimento como de um entendimento conceitual final, logo
reveladora desses dois motes do pensamento, por ajuizamos por conta própria e vamos ao que apraz
meio da razão pura, sua instância primeira, a o nosso sentido e o nosso interesse. Mas, o que é
priori: o juízo enquanto ação, para elucidar o realmente belo? Kant (1995, p. 56) demonstra o
discernimento das coisas. seguinte:
Kant vê mais, ao jogar o foco sobre o
“sujeito”, em que reside o natural e a moral, e
percebe a apetição do mesmo e de sua faculdade
10. MARGINAHLIA – Revista de Letras, FAJESU, Brasília-DF, nº 1, jan./jun. 2007 -9-
O belo é o que o é representado sem conceitos A divisão de uma crítica em doutrina elementar
como objeto de uma complacência universal e em doutrina do método, que precede a ciência,
(interesse universal). Essa explicação do belo não se deixa aplicar à crítica do gosto, porque
pode ser inferida da sua explicação anterior, não há nem pode haver uma ciência do belo e o
como um objeto da complacência independente juízo do gosto ao que é determinado por
de todo interesse. Pois aquilo, a respeito de cuja princípios. Pois em cada arte o científico, que se
complacência alguém é consciente de que ela é refere à verdade na apresentação do seu objeto,
nele próprio independente de todo interesse, é com efeito a condição indispensável da arte
isso ele não pode ajuizar de outro modo, senão bela mas não a própria arte. Portanto há
de que tenha de conter um fundamento da somente uma maneira e não um método de arte
complacência para qualquer um. Pois, visto que bela. O mestre tem que mostrar o que o
não se funda sobre qualquer inclinação do discípulo deve realizar e como deve realizá-lo, e
sujeito (nem sobre qualquer outro interesse as regras universais... Somente pela faculdade
deliberado), mas, visto que o julgante sente-se da imaginação do discípulo para a conformidade
inteiramente livre com respeito à complacência como um conceito dado, pela observada
que ele dedica ao objeto; assim ele não pode insuficiência da expressão para a idéia, que o
descobrir nenhuma condição privada como próprio conceito não alcança por que ela é
fundamento da complacência à qual, unica- estética e pela crítica penetrante pode ser
mente, seu sujeito se afeiçoasse, e por isso tem evitado que os exemplos que lhe são
que considerá-la fundado naquilo que ele apresentados não sejam tornados por ele
também pode pressupor em todo outro; imediatamente como protótipos e como modelos
conseqüentemente, ele tem de crer que possui de imitação porventura submetidos a uma
razão para pretender de qualquer um uma norma ainda superior e a um ajuizamento
complacência semelhante. Ele falará pois, do próprio, e assim seja asfixiado o gênio.
belo como se a beleza fosse uma qualidade do
objeto e o juízo fosse lógico (constituído através
de conceitos do objeto um conhecimento do O que estamos aprendendo é não admitir
mesmo), conquanto ele seja somente estético e
convencionalismos, atrativos, comoções e ameni-
contenha simplesmente uma referência da
representação do objeto ao sujeito, porque ele dades na avaliação do belo, em relação à obra de
contudo possui semelhança com o lógico, pode-
se pressupor a sua validade para qualquer um.
arte; tampouco uma mímese lógica e perturbadora
Mas de conceitos essa universalidade tampouco de sentidos múltiplos e como ápodos da imagina-
pode surgir. Pois conceitos não oferecem
nenhuma passagem ao sentimento de prazer ou ção, que fuja do universal, e vá de encontro a um
desprazer... Conseqüentemente se tem que ajuizamento próprio dado por modelos, ou proto-
atribuir ao juízo de gosto, com a consciência de
separação nele de todo interesse, uma tipos. Muito menos o senso comum, nem o senso
reivindicação de validade para qualquer um, sem imitativo por quantidade, trazido por uma tradição
universalidade fundada sobre objetos, isto é,
uma reivindicação de universalidade subjetiva legal, canônica ou dogmática, correndo o risco de
tem que ser ligada a esse juízo. estarmos caminhando entre a trivialidade imanente
e a iconicidade intelectualista.
Direcionando essa lição conceitual, quase
Kant não libera com isso o papel da
matemática do belo, à obra de arte, a mesma será
dificuldade de percepção pelo homem de uma
maior e mais verdadeira quanto mais universal ela
grande obra de arte e há nisso dois fundamentos
for. Se reduzida a objeto de apreciação, ganha um
essenciais: um que está na comunicação, e outro
tônus de enfraquecimento da sua capacidade do
que é moral. Observemos: (1) essa comunicação
“belo” e transmuta-se gradativamente, ou em
em Kant (1995, p. 138-139) é a força do atamento
documento, ou em fato histórico, ou em instituição,
dos princípios universais que se mostram o tempo
perde-se aí a possivelmente chamada grande obra
todo por não estarem presos a conceitos mais a
de arte. Em Kant, perde-se a sublimação. Não
humanidades:
podemos dizer, então, que a obra de arte tem um
caráter utilitário? Podemos no sentido de perceber [...] aquele que julga com gosto pode imputar a
qualquer outro a conformidade a fins subjetiva,
que sua grande e vigente utilidade é de ser isto é, a sua complacência (interesse) no objeto
e admitir o seu sentimento como universalmente
universal, não pormenorizar e reduzir o humano,
comunicável e na verdade sem mediação dos
mas reerguê-lo. Kant (1995, p. 199-200) continua conceitos.
a tratar do que considerou uma doutrina para
Parece que estamos diante de um quadro
percepção desse belo e para o alcance desse
livre de comunicabilidade na humanidade, nunca
sublime:
visto, pois o que percebe a grande obra de arte
repassa não por um gozo individual, muito menos
11. MARGINAHLIA – Revista de Letras, FAJESU, Brasília-DF, nº 1, jan./jun. 2007 - 10 -
por saber metódico e racional, mas pela percepção de todos por meio dos sentidos; seria,
universalidade do sentimento. Talvez, o filósofo portanto, o significante. O objeto estético, por sua
alemão estava também acreditando no caráter de vez, seria a obra de arte situada na consciência de
uma receptividade universal. (2) Essa moral é o toda a coletividade e não apenas na consciência de
verdadeiro atributo da beleza como força ética: cada indivíduo em particular. Quanto à relação com
a coisa significada, esta pode sofrer modificações,
[...] a sensificação de idéias morais, da qual
também e de uma maior receptividade – que se sendo ora indeterminada, ora determinada.
funda sobre ela – para o sentimento a partir
Na tentativa de deslindar esse esquema,
daquelas idéias deriva aquele prazer que o gosto
declara válido para a humanidade em geral e Mukaróvsky detém-se com mais atenção à questão
não simplesmente para o sentimento privado de
da relação com a coisa significada, visto que, se a
cada um; assim parece evidente que a
verdadeira propedêutica para a fundação do obra de arte substitui uma realidade, é necessário
gosto seja o desenvolvimento de idéias morais e
a cultura do sentimento moral, já que somente perguntar primeiramente qual seria essa realidade
se a sensibilidade concordar com ele pode o a ser substituída. É nesse momento que o teórico
verdadeiro gosto tomar uma forma determinada
e imutável (KANT, 1995, p. 200). introduz a primeira função do signo artístico: a
função autônoma. Já que a obra de arte é um signo
Não é qualquer obra de arte que resiste ao autônomo, a realidade a que ele se refere é uma
tempo nessas condições de sentimentos morais e realidade indeterminada, isto é, o contexto total
universais. dos fenômenos sociais, quais sejam religiosos,
econômicos, filosóficos, políticos etc. Por esse
2ª PARTE – MUKARÓVSKY E A OBRA DE ARTE COMO motivo, a obra de arte seria mais capaz de
FATOR SEMIOLÓGICO representar uma determinada época do que
qualquer outro fenômeno social.
Mukaróvsky, em seus escritos 2 , define a obra
Por esses argumentos, vê-se que Mukaróvsky
de arte como sendo um signo, cujo destino seria
ainda está preso à teoria mimética da arte. A
servir de intermediária entre o seu autor e uma
mímese, ainda que o teórico não a cite, está
certa coletividade, isto é, o público. É a partir desse
subentendida em toda a sua teoria. Ao vislumbrar o
pressuposto que Mukaróvsky, um dos mais
perigo de reduzir a arte à mímese, Mukaróvsky
notáveis integrantes do Círculo Lingüístico de
apressa-se a dizer que a arte não é um reflexo
Praga, irá desenvolver o seu pensamento teórico a
direto e passivo do contexto social, como queriam
respeito da arte.
os teóricos marxistas, no entanto ele não nega que
Pode-se questionar a validade desse pressu-
a obra de arte está, ainda que indiretamente,
posto, principalmente quando se têm em vista as
referida ao contexto social e, em outro momento,
idéias de grandes filósofos, como Kant, Hegel,
afirma que as obras de arte recebem o status de
Nietzsche e Heidegger, que se debruçaram sobre a
Literatura quando se tornam capazes de exprimir o
problemática da arte e vislumbraram com maior
contexto social.
amplitude os problemas referentes a tal questão.
Como se vê, o conceito de signo autônomo
Seria, então, a obra de arte um signo 3 ?
em Mukaróvsky está ainda muito distante de se
Segundo Mukaróvsky, toda obra de arte é um
referir à verdadeira autonomia da obra de arte, isto
signo composto de uma obra-coisa, um objeto
é, de libertar a obra de arte de suas amarras com a
estético e uma relação com a coisa significada. A
realidade e de lhe conferir um papel muito mais
obra-coisa seria não mais do que a obra de arte
grandioso do que ser uma mera cópia do real.
situada no mundo sensível, que é acessível à
Quem dá esse passo em direção à verdadeira
autonomia da obra de arte é Heidegger, ao afirmar
que a obra de arte não copia “o” mundo, mas põe
2
Foram utilizados, para este ensaio, os textos que constam do
de pé “um” mundo (HEIDEGGER, 2000). Contudo,
livro TOLEDO, Dionísio (org.). Círculo Lingüístico de Praga:
estruturalismo e semiologia. antes de Heidegger e ainda no final do século XIX,
3
Pelo termo “signo”, Mukaróvsky designa uma realidade
sensível cuja função é a de evocar uma outra realidade, à qual Nietzsche parece desconfiar de uma autonomia, ou
se refere.
12. MARGINAHLIA – Revista de Letras, FAJESU, Brasília-DF, nº 1, jan./jun. 2007 - 11 -
melhor, de uma originalidade e lugar no tempo e segundo o teórico, não é transitória, mas dura no
espaço do mundo da obra de arte, quando nos seus tempo e não é propriedade de uma obra singular.
fragmentos finais pergunta e não afirma: “É a arte Evidentemente, a obra de arte continua sendo
uma conseqüência da insuficiência do real? Ou uma um signo e seus elementos são todos portadores
expressão da gratidão quanto à felicidade de significado. Em vista disso, Mukaróvsky crê não
usufruída?” (NIETZSCHE, 2002, p. 169). haver mais razão para a velha distinção entre
Mukaróvsky, no entanto, distante do forma e conteúdo e, em vista disso, propõe uma
pensamento heideggeriano, atribui uma outra função nova distinção: material e ato artístico. Porém,
à obra de arte: a comunicativa, mesmo sem ter trata-se, na realidade, de uma mudança apenas
procurado elucidar essa natureza de autonomia, ou tópica, pois se continua presa à tradição metafísica,
não, da obra de arte. A obra de arte seria, também, em que tudo se divide entre corpo e espírito, céu e
um signo comunicativo: ela diz, comunica, expressa terra, significante e significado etc. Não há,
algo não somente em sua totalidade, mas também em portanto, nenhuma inovação. O material conti-
seus elementos constitutivos. Nas artes que possuem nuaria sendo corpo/terra/significante e o ato
um sujeito, é fácil observar essa função comunicativa, artístico continuaria sendo espírito/céu/significado.
pois o sujeito funciona como um eixo central da Sendo um signo mediador entre artista e
significação. Porém, independentemente do sujeito, receptor, a obra de arte, no entanto, não pode,
todo componente da obra de arte possui um valor para o teórico, ser confundida nem com o estado
comunicativo próprio. Mukaróvsky chama de “difuso” anímico do autor, nem com o que suscita no
o poder comunicativo das artes sem sujeito. No receptor. Porém, Mukaróvsky não nega a
entanto, ao longo de sua argumentação, Mukaróvsky existência de uma influência do autor e do receptor
parece ora atribuir a função comunicativa da obra de na obra de arte, idéia que será desenvolvida pela
arte apenas à arte que possui um sujeito, ora atribuir estética da recepção e por correntes afins 4 .
a todas as artes, mesmo àquelas sem sujeito, visto Se há um fator de individualidade na obra de
que o poder comunicativo estaria presente em todos arte, como isso se opera para a Estética Estrutural?
os componentes da obra artística. Para Mukaróvsky, o estado anímico do autor, ao
Ao atribuir uma função comunicativa ao signo ser objetivado na obra de arte, constitui uma
artístico, o teórico reavalia a relação da arte com a unidade significativa, desatrelando-se da identidade
coisa significada, pois a obra de arte passa a se do autor e adquirindo, assim, uma dimensão
referir a uma realidade determinada, atuando, suprapessoal. O mesmo ocorre em se tratando não
portanto, de forma semelhante a um signo de um indivíduo, mas de uma coletividade, tal
puramente comunicativo. A única diferença entre como uma escola literária, uma geração ou um
um signo puramente comunicativo e a obra grupo de receptores.
artística seria que a relação da obra de arte com a Com essas considerações, Mukaróvsky crê ver
coisa significada não possuiria um valor existencial. uma solução para o problema do indivíduo na arte,
Toda obra de arte possuiria, então, uma dupla bem como, ao conceber a obra de arte como um
função semiológica: a autônoma e a comunicativa, signo, libertá-la de sua dependência com relação à
as quais coexistiriam nas artes em que há um personalidade do indivíduo.
sujeito, constituindo uma antinomia dialética. No entanto, para a Estética Estrutural, a obra
Ao discorrer sobre a Estética Estrutural, de arte é um signo também em relação à
Mukaróvsky concentra seus esforços na tentativa sociedade. Isso significa ser inegável a relação
de deslindar a estrutura artística. A obra de arte é, entre arte e sociedade. Mukaróvsky chega a
então, definida como um equilíbrio dinâmico entre afirmar que a própria evolução da arte está
os elementos que a compõem, nos quais existe atrelada ao desenvolvimento social. Embora essa
sempre uma tensão entre os elementos de caráter
conservador e os de caráter inovador. A obra de
arte formaria, desse modo, uma estrutura, que, 4
Conferir os escritos de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e
Hans Ulrich Gumbrecht.
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evolução tenha, segundo o teórico, um movimento O que seria esse perceber “adequa-
e um ritmo próprios, ela é desencadeada por um damente”? Por que uma certa percepção artística
impulso exterior. Como esse impulso exterior irá seria “adequada” e outra não? O que predispõe
operar na evolução da arte depende, porém, das uma certa coletividade a perceber “adequada-
próprias leis da estrutura artística. mente” um certo signo artístico e não outro?
Vê-se que há uma tentativa em Mukaróvsky Mukaróvsky novamente não se detém nessas
de conciliar a noção de desenvolvimento imanente questões.
da arte, cara aos formalistas russos, e a noção de Finalmente, para a Estética Estrutural, a obra
que a evolução da arte é um reflexo da evolução de arte é um signo também em relação à própria
social, cara aos marxistas. Porém, o resultado composição da estrutura artística. Todos os
dessa tentativa de conciliação é bastante insatis- elementos da obra de arte possuem um
fatório, visto que ambas as noções não são capazes determinado significado parcial e se agrupam em
de explicar esse movimento “evolutivo” da arte. unidades superiores, formando um complexo total
Preso à teoria mimética da arte, Mukaróvsky de significados, que é a obra de arte. Mas, o
insiste na idéia de que a obra de arte “expressa as material de trabalho da Estética Estrutural não é
propriedades e o estado desta [a sociedade], mas apenas uma determinada manifestação artística,
não é, em absoluto, a conseqüência imediata da todavia a soma de todas as artes, que constitui
sua situação e da sua organização” (MUKARÓVSKY, uma estrutura de ordem superior, em constante
1978, p. 149). Ele salienta que a relação entre obra movimento e cujas partes estão sempre influen-
e sociedade não é mecânico-casual, mas não reluta ciando umas às outras. Já a Teoria Estrutural da
em dizer que “a sociedade quer [grifo do autor] Literatura ocupar-se-ia, principalmente, do estudo
que a arte a expresse” (MUKARÓVSKY, 1978, 149). da linguagem poética e de sua relação com a
Nessa relação entre arte e sociedade, linguagem comunicativa, da qual se distingue por
Mukaróvsky faz uma distinção entre arte de tem- utilizar os meios lingüísticos para o que Mukaróvsky
dência – na qual prevalece a intenção de influir chama de “autofinalidade estética”.
sobre a sociedade –, arte dirigida – na qual predo- O que é, enfim, importante vislumbrar na
mina a influência da sociedade – e a chamada “arte teoria de Mukaróvsky, principalmente quando
pela arte” – na qual há um distanciamento entre confrontada com o pensamento de Kant, é a
arte e sociedade. questão do caráter utilitário da obra de arte e a sua
Arte e sociedade possuem ainda outro ponto redução a um signo. Mukaróvsky reduz a obra de
em comum: ambas se assemelham por estarem arte a um signo cuja utilidade é servir de meio de
divididas em estratos. As camadas sociais encon- comunicação entre o indivíduo e a sociedade, ou
tram um equivalente na arte, que se distingue, entre uma dada coletividade e outra; enfim,
verticalmente, em superior e inferior e, horizon- destina-lhe uma tarefa que poderia ser desem-
talmente, em distintos grupos de obras que estão penhada por outros meios. Segundo Hegel (1999),
em um mesmo nível. Mukaróvsky, no entanto, não se algo pode ser expresso por um conceito, não há
se detém nessa distinção, isto é, não define o que necessidade de arte, pois o conceito é superior à
ele considera como sendo arte inferior ou arte arte.
superior, nem explicita os critérios que norteiam tal
distinção; ele apenas diz que a uma determinada
CONSIDERAÇÕES FINAIS
coletividade corresponde um certo tipo de arte e
É válido conhecer o pensamento de
não outro, pois os membros dessa coletividade “são
Mukaróvsky, principalmente se comparado com o
mais capazes de perceber adequadamente [grifo
de filósofos como Kant, não só para perceber o que
nosso] um determinado modo de signo artístico
é divergente nas idéias de um e de outro, mas
que os demais membros da sociedade”
também para perceber a atualidade desses
(MUKARÓVSKY, 1978, p. 150).
pensadores. Nenhum solucionou o problema da
finalidade da obra de arte, se é que a arte tem
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mesmo finalidade, porém, essas leituras abrem o
nosso leque de novos questionamentos, como: O
que é a percepção estética? Existe um caráter
utilitário na obra de arte? Existe uma função na
arte? A arte se limita ao conceito de mímese? Este
estudo parece demonstrar que por maior esforço e
capacidade intelectual, ainda estava Mukaróvsky
aprisionado num sistema compassado de olhar
sobre a obra de arte, que, por mais competente
que parecesse, caía no problema de finalidade local
e lingüística e perdia o referencial livre e universal
que merece a análise da obra de arte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEGEL, Georg. F. H. Estética. Rio de Janeiro: Nova
Cultural, 1999.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São
Paulo: Duas Cidades, 2000.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo:
Nova Cultural, 1996.
_____. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
_____. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Brasil
Editora, [s/d].
KOTHE, Flávio René. Anotações das aulas das
disciplinas “Estética Literária” e “Correntes Críticas e
Teóricas da Literatura”, ministradas nos anos de 2001
e 2002.
MUKARÓVSKY, Jan. A obra de arte como fator
semiológico. In: TOLEDO, Dionísio (Org.).Círculo
Lingüístico de Praga: estruturalismo e semiologia.
Porto Alegre: Globo, 1978.
NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos finais. Brasília:
UnB, 2002.
∞
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Metamor foses da acerca da experiência da guerra. Isso a conduz a
uma referência alegórica à guerra como instan-
catástrofe: “imagens do tâneo dos influxos do inferno na história. Esse
inferno” no desfecho de problema, em diversos momentos
romance, explode na cena final, chamada “O
latente no
A m o n ta n h a m á g i c a trovão”. Trata-se da passagem sobre a qual
ensaiamos algumas notas de leitura.
Gilmário Guerreiro da Costa * Recordemos inicialmente o enredo.
No espaço do romance predomina o sanatório
Para Alessandro e Tiago
Berghof, em Davos, na Suíça. O personagem
principal, Hans Castorp, para lá se dirige,
RESUMO: O presente ensaio pretende enfrentando uma longa viagem de trem, “subindo”
analisar a construção figurativa do episódio a montanha, a fim de visitar o primo, Joachim
final do romance A montanha mágica, de Ziemssem, que tentava restabelecer-se de uma
Thomas Mann. Nele há imagens que
grave enfermidade pulmonar. Castorp intentava
sugerem a colocação do inferno no palco da
história, impulso crítico cujo arremate dá-se permanecer apenas três semanas. No entanto, é-
nas diversas metamorfoses da catástrofe lhe também diagnosticada a mesma doença do
da guerra a que a narrativa oferece não primo. Contrariando por completo suas expecta-
somente a denúncia, mas também a inter-
tivas, a estadia nesse hospital prolonga-se por sete
pelação das raízes, não raro inscritas no
seio mesmo da cultura. anos! E duraria ainda mais, não fosse a explosão
da guerra em 1914, que força Castorp a “descer”.
PALAVRAS-CHAVE: Catástrofe, metáfora, A “descida” é narrada na última seção do
desencantamento, inferno, amor.
romance, chamada “O trovão” (Der Donnerschlag).
O título sugere o tom do desencanto que está
Diz a verdade quem sombras diz. prestes a revelar-se. Uma metáfora natural
Paul Celan, Digas também. aplicada à guerra, metáfora que comporta em si
uma terrível antítese: o emblema do poder da
Quem se avizinha do romance A montanha natureza “significa” agora “outra coisa”: o poder
mágica, de Thomas Mann, tem grande dificuldade destruidor da guerra. A guerra destrói os homens,
em disfarçar o impacto e a admiração que a obra a natureza e se insinua mesmo nos recônditos da
amiúde desperta. São muitos os motivos que linguagem. O escritor não reserva à linguagem
explicam o seu lugar de destaque entre as grandes qualquer poder de higienização cultural: ela mesma
narrativas do século XX. está eivada dessa violência, que a força a
Foi publicado em 1924, dez anos após o início expressar-se de modo atravessado, como a desviar
da Primeira Guerra Mundial, datação importante, o olhar da face mesma do “mal”.
pois esse evento servirá de baliza em diversas A narrativa é urdida por diversas oposições,
passagens para o trabalho de reflexão crítica que como a revelar os conflitos e as angústias que a
se imiscui na obra. emergência da guerra disseminou. Notemos uma
A obra resiste a focalizar exclusivamente um delas, entre amor (Eros) e guerra (Thânatos).
ponto. Pretende ser muita coisa: reflexão acerca do Parece haver nisso o intento de sublinhar a mescla
descalabro da cultura humanista, dos mistérios da indissociável de construção e destruição, cultura e
temporalidade, dos desvãos da personalidade barbárie nos interstícios do texto da cultura
humana etc. É também doloroso exercício pensante ocidental.
Se Eros responde pela criação e manutenção
da cultura, é à desagregação que o seu silêncio
*
Licenciado em Filosofia, Mestre em Teoria Literária e Doutor impele. Thomas Mann faz, já antes da Segunda
em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UnB),
Professor de Literatura na Faculdade Jesus Maria José Guerra Mundial, diagnóstico nada alvissareiro da
(FAJESU), em Brasília-DF.
16. MARGINAHLIA – Revista de Letras, FAJESU, Brasília-DF, nº 1, jan./jun. 2007 - 15 -
cultura ocidental: o esparrame de niilismo e A idéia de transcendência é reforçada pelo
barbárie silhueta horizontes de desilusão. As próprio “trovão”, pois vem do alto. O seu campo
“luzes”, entusiasticamente decantadas no passado, metafórico, no entanto, é desolador: aduz às
são substituídas pelas “sombras” que se dissemi- alturas de que caem as bombas e ao barulho que
nam de modo ubíquo. Em tom provocativo, a irradiam em sua queda. O esvaziamento, algo
esperança acalenta o desfecho do romance sob o niilista dessa transcendência, parece espalhar-se
signo do mistério do amor, e não sob os auspícios irremediavelmente, metamorfose da catástrofe.
das luzes da razão. No ritmo da desolação da guerra, a trans-
O mistério é, assim, reabilitado. No prefácio cendência dimana de modo especular a catástrofe
que escreveu ao romance, dirigido aos estudantes que assola a planície. Como signo da Verdade, bem
da Universidade de Princeton, em 1939, o autor ao gosto da tradição ocidental, ela sofre duro abalo
diz: “O próprio homem é um mistério, e do zelo por e se metamorfoseia em Alienação. É que o escritor
esse mistério depende a humanidade” (MANN, decidiu desfazer-se de toda esperança, no intuito
5
1962) . Semelhante mistério tem dupla implicação: responsável de zelar pela legítima esperança,
resiste a que se subsuma o sujeito sob a categoria supondo-se que exista. Além disso, esforça-se por
excessivamente abstrata da “humanidade”. Além retirar desse tormento qualquer acento positivo, ou
disso, impõe limites ao pensar, resposta à arroubo heróico, que findaria por justificar o evento
intolerância que grassava a época (esse prefácio foi triste a que procurava dar testemunho. Semelhante
escrito no ano de início da Segunda Grande cuidado enfeixa-se no uso da ironia como princípio
Guerra). Reconhecer o mistério do homem significa que estrutura a narrativa em diversos momentos. A
assestar a transitoriedade de todas as postulações seguinte passagem é bastante eloqüente a esse
a ele dirigidas. O perigo sempre se avizinha quando respeito:
pretendemos haver concluído o trabalho intermi-
Foi nessa posição que o encontrou o Sr.
nável de interpretação do homem. É o que o
Settembrini. É óbvio que falamos metafórica-
romance de Mann ousava denunciar, no embalo do mente; pois, em realidade, o caráter reservado
do nosso herói não permitia tal atitude teatral.
esvaziamento niilista do mundo. Para que nos
Na fria realidade, o mentor encontrou-o ocupado
desenganemos de soluções ilusórias, semelhante a fazer as malas, porquanto Hans Castorp,
desde o momento em que acordava, se via
esvaziamento atinge de modo inclemente a arrastado por uma torrente remoinhosa de
transcendência. partidas “em falso”, que o trovão abalador
desencadeara no vale (MANN, 1980, p. 797).
O narrador do romance vai desfiando o
esvaziamento da transcendência que lhe estruturou
A ironia é, nesse romance, princípio de
em boa parte. Ele escreve: “Sete anos passou Hans
estruturação a serviço do despertar, movimento
Castorp com a gente ali de cima” (MANN, 1980, p.
anticatártico, mas ainda filantrópico. Princípio de
790). O contraponto entre ascensão e descida
transparência, antítese meta-irônica dos diversos
coloca questões acerca do que pôde aprender o Sr.
momentos difíceis e mesmo obscuros da narrativa.
Castorp. Esse jovem, tantas vezes descrito como
Não apenas Castorp dormia, mas a sociedade
um burguês bastante comum, semelhante a nós
européia como um todo. Espécie de “bela
(MANN, 1980, p. 41-42), não parece tocado de
adormecida”, despertado não pelo beijo úmido do
intensa sabedoria, fecundada por alguma expe-
amor, mas pelo ruído surdo da guerra.
riência inaudita. Parece mesmo estarmos diante de
A transcendência vazia da montanha buscava
um homem para quem o tempo de permanência no
suspender o tempo. No sanatório havia intento de
sanatório pouco significou em termos de
desvalorização temporal, espécie de eternidade
experiência.
inventada para confrontar a sedução da
transitoriedade:
5
der Mensch selbst ist ein Geheimnis, und alle Humanität
beruht auf Ehrfurcht vor dem Geheimnis des Menschen.
[Tradução livre].
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Deixara de usar o relógio de algibeira. Este já guerra, quando a revelação da temporalidade
não trabalhava. [...] Agia assim em prol da
“liberdade”, em homenagem ao “passeio pela caminha a par com uma pesada sensação de
praia”, a esse “sempre” constante e imóvel, ao
inanidade. Nota-se que o narrador não pretende
feitiço hermético para o qual o jovem arrebatado
a essas alturas se mostrara predisposto e que facilitar as coisas para o seu leitor:
fora a aventura fundamental do seu espírito,
aquela em cujo curso se haviam desenrolado
todas as aventuras alquimísticas dessa singela a ensurdecedora detonação da sinistra mistura
matéria (MANN, 1980, p. 793). de tédio e de irritação de há muito acumulados;
um trovão histórico — seja dito com discreta
reverência — que abalou os alicerces da terra, e,
O uso de aspas nas palavras “liberdade” e para nós, o trovão que fez explodir a montanha
mágica e arremessou o nosso dorminhoco
“sempre” questionam o efetivo exercício de uma brutalmente diante das portas (MANN, 1980, p.
vida livre se pretensamente alheia aos desvios da 793).
transitoriedade. Não deixa de causar surpresa a
Sentimentos sopitados e escondidos de
tentativa de “capitulação” do tempo num espaço
vingança e ressentimento revelam-se com força
marcado exatamente pela ação do tempo: a
inaudita. Configurou-se um processo de repressão
doença e a morte. Que signo mais perverso das
coletiva, que irrompe com assustadora capacidade
injunções do devir que a doença, a lavrar no frágil
de destruição. O protagonista, então, será obrigado
corpo humano os emblemas do olhar sobranceiro
a deixar o ambiente rarefeito do Berghof, em que
do tempo?
impera a morte e a doença, e se dirige à maqui-
Estranha metamorfose da catástrofe, a
naria da guerra na planície. O absurdo universal
eternidade então se desfigura, e de suas ruínas
aguarda o beijo úmido do amor para que o feitiço
espreita o “tempo”, sem que disso resulte a mínima
de Thânatos se desfaça. O que se seguirá, no plano
libertação do homem: imergimos na negação pura,
da narrativa, é a substituição do idílico repouso de
insidioso fantasma metafísico.
Castop pelo inferno da guerra, outra face da
Nesse sentido, o nome do romance jogaria
metamorfose da catástrofe.
com os transvios da temporalidade, de seu
Os jornais parecem exatamente mensageiros
esquecimento inicial, à sua revelação tardia,
desse inferno. Espécie de Hermes e Anjo, portador
quando pouco ou nada há para ser feito. O caráter
de notícias da catástrofe. No complexo metafórico
“mágico” da montanha, a princípio, aludiria ao
do romance, eles têm “cheiro de enxofre”:
esquecimento do tempo. Nisso se entende que
Castorp dormia e se omitia: “se omitiu” (MANN,
Durante os dias de expectativa, os dias mais
1980, p. 794). O estrondo do trovão, o “trovão carregados de eletricidade, enquanto os nervos
da Europa se achavam num verdadeiro leito de
histórico”, reparará a “falta” cometida pelo
Procusto, Hans Castorp não foi ter com o Sr.
protagonista e os seus companheiros do Berghof, Settembrini. Os jornais cheios de horrores Che-
gavam agora diretamente da planície ao seu
cuja rotina o narrador seguiu muitas vezes. Era um
compartimento de sacada, empestando com o
cotidiano cheio de quietude, em que pacientes e seu cheiro de enxofre a sala de refeições e
mesmos os quartos dos doentes graves ou
médicos cuidavam haver diluído o tempo no eterno moribundos (MANN, 1980, p. 796).
retorno do trata-mento médico. De chofre, surde o
inesperado do trovão: “Foi quando estrondeou...” A disseminação dos emblemas do Inferno
(MANN, 1980, p. 793). Nesse transtorno narrativo, podem ser captados pelos nossos sentidos,
espécie de “metabolé" 6 , observa-se o tempo sair testemunhas do caos. Entendê-lo, porém, já é uma
de sua toca diante do escândalo histórico. O que demanda inexeqüível...
desconcerta é notar que a alienação inicial do Tal movimento mudará definitivamente a vida
esquecimento do tempo não é substituída pelo de Hans Castorp. Ele se vê não somente desperto,
esclarecimento crítico, mas pela destrutividade da mas desencantado: “Viu-se desencantado”. O
adjetivo “desencantado”, “entzaubert”, enceta um
jogo com o título da obra, A montanha mágica, Der
6
Trata-se do conceito aristotélico que aduz às mudanças
Zauberberg: “desmagificação” de Castorp — a
radicais que transtornam o enredo da tragédia, e precipitam a
emergência da catarse.
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montanha não mais o enfeitiçava... Ele agora pode terra a situação não é melhor. Chamas, barulho,
completar o seu aprendizado do tempo, posto que terra revolta dominam o espaço em derredor: o
7
sob condições dramáticas . narrador refere-se a bombas, granadas e
O narrador recorre à ironia quando traça o morteiros: o “espetáculo” da guerra: “açoitam a
plano divino para o despertar de Castorp. O vasta campina arada, uivando, vomitando chamas,
resultado, no entanto, é outro: o despedaçamento arrojando a terra para todos os lados” (MANN,
de toda e qualquer teodicéia: 1980, p. 799) .
A bomba destrói tudo ao redor. É ocasião
Referimo-nos àqueles momentos em que o para que o narrador teça séria crítica à ciência,
dorminhoco, sem saber o que lhe acontecera, se
soerguia lentamente na relva, antes de sentar-se e produto da cultura, mas agora a serviço da
de esfregar os olhos... Desenvolvamos essa
barbárie na história. Essa contradição é pontuada,
imagem para analisar devidamente o que se
passava no seu espírito. Encolheu-se, levantou-se e e num momento em que lemos uma das passagens
olhou em torno. Viu-se desencantado, redimido,
livre — não pelo seu próprio esforço, como teve de
mais comoventes dessa seção, quando a guerra
confessar a si mesmo, envergonhado, senão esvazia a transcendência, revolve caoticamente a
expulso por forças elementares, exteriores, para as
quais a libertação do nosso herói era um efeito terra, e também destrói amizades, vínculo que
completamente secundário. Mas, embora o seu seria antípoda dessa catástrofe:
pequeno destino se perdesse no destino geral, não
se expressavam, contudo, nesse fato certa bondade
e justiça que o miravam pessoalmente e portanto Caiu [Hans Castorp]. Não, atirou-se ao chão,
eram de origem divina? (MANN, 1980, p. 796). porque um cão dos Infernos chega uivando, um
enorme obus, um asqueroso pão de açúcar,
saído das trevas. Acha-se estendido, compri-
A descrição do Inferno da guerra serve-se de mindo o rosto no barro frio com as pernas
escancaradas e os pés torcidos, colados ao chão.
um esparrame ubíquo do fenômeno do mal. Céu e O produto de uma ciência barbarizada abate-se
terra estão conspurcados. O primeiro, símbolo da como o diabo em pessoa a trinta passos dele,
penetrando obliquamente no solo, onde explode
transcendência e do Absoluto, rasga-se sob as com espantosa violência e joga à altura de uma
tonalidades sombrias do horror terreno: “E assim casa um jorro de terra, fogo, chumbo, ferro e de
humanidade despedaçada; pois nesse lugar
Hans Castorp se pôs de joelhos, erguendo-se o havia dois jovens estendidos, eram amigos que
rosto e as mãos ao céu, que estava sombrio, se haviam atirado um ao lado do outro, no
momento de perigo, e agora estão mesclados,
sulfurino” (MANN, 1980, p. 797). Esse céu escuro, sumidos (MANN, 1980, p. 800-801).
spleenético, alegoriza a transcendência, forçando-a
a vergar sob o pejo do caos e do sofrimento A destruição da amizade: no abraço fraternal,
desmedido. A transcendência vazia, um dos temas em vez de revelar-se a melhor face desses jovens,
preferidos da lírica moderna (FRIEDRICH, 1978), os amigos parecem dolorosamente despedir-se.
encontra o seu arremate nesse mostruário de uma Nessa visão infernal, o mal tem o terrível poder de
cultura em ruínas, em que não mais se concede ao metamorfosear tudo em seu oposto, em movi-
sofrimento qualquer finalidade. Não poderia ser mento de negação total, sem qualquer reenvio
outro o encaminhamento, mor-mente por quem, dialético.
como é o caso de Thomas Mann, pretende assumir Tamanha desolação e sofrimento influem no
compromisso com as vítimas, o sonho abortado, o narrador, movendo-o à solidariedade: “Nós, as
“desconcerto do mundo” do palco da história, e que sombras observadoras, à beira do caminho,
exige a urgência de uma reflexão histórica achamo-nos entre eles” (MANN, 1980, p. 799).
despojada de componentes heróicos. Adiante, investindo mais uma vez na metáfora da
Se dos céus não vêm boas novas, nem anjos, sombra, ele escreve: “Ó vergonha da nossa segu-
nem deuses, apenas a onipotência do niilismo, na rança de sombras! Vamos embora! Não desejamos
narrar isso” (MANN, 1980, p. 801). Diante de
semelhante quadro, o narrador acha azo a que
7
Também seria instigante, noutro espaço, refletir acerca da confesse sua comoção, que lhe obsta a possibi-
possível alusão ao conceito de “desencantamento do mundo”
(Entzauberung der Welt), com o qual Max Weber moldou, um lidade de prosseguir na narração. O sofrimento
pouco antes de Thomas Mann, uma das descrições mais
persuasivas do mundo moderno. seria o limite da linguagem. O filósofo Heidegger
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insistiria nisso adiante, quando refletia acerca da de sentido, e assim exibi-la no que foi efetiva-
angústia: “A angústia nos corta a palavra” mente: experiência ubíqua do absurdo. Por isso
(HEIDEGGER, 1979, p. 40). A linguagem é o não há tragicidade, apenas destruição.
horizonte em que nos movemos. Não preexistimos As metáforas culturais fazem viger ainda mais
a ela, tampouco a ultrapassamos. O fenômeno do a barbárie. Primeiro a metáfora musical: “os
sofrimento, do mal na história, com o agencia- tambores [da guerra] rufam, ribombam num baixo
mento do caos que prolifera, não apenas nos coloca profundo” (MANN, 1980, p. 800). Em seguida, a
na iminência da destruição completa, como tam- metáfora da dança: “O macabro baile ao qual te
bém no limite do dito. [Hans Castorp] arrastaram durará ainda vários
A continuação da existência humana não seria anos malignos” (MANN, 1980, p. 801). Essas
garantia de que o “mundo humano” permaneceria passagens constroem um tipo de metáfora que
em sua riqueza e possibilidades de expressão. subverte a cultura, revelando a barbárie que dela
Descerra-nos mesmo a possibilidade de um temível surde. Ou, de modo ainda mais preciso, ao buscar
paradoxo: o da construção de uma aglomeração o elemento de “semelhança” que estrutura o gesto
“des-humana” do homem na terra. O esboroa- metafórico, no texto esse elemento seria um
mento da cultura, a sua supressão pela barbárie é vínculo “misterioso” entre cultura e barbárie, da
um risco efetivo, quando vergamos a linguagem a incômoda possibilidade de se metamorfosearem
submeter-se à sua própria impossibilidade: ou dis- reciprocamente, que a catástrofe demonstra. Isso
seminando o que ela não alcança, o “mal extremo”, foi bem esclarecido por Benjamin (1994, p. 225).
ou forçando-a a ocultar-se, e o paradoxo é apa- O contraste entre “ar” e “lama”, há pouco
rente, num falar excessivo, característico dos sig- mencionado, coerente com o tom “polêmico” da
nos petrificados, repletos de clichês da nossa histó- relação entre transcendência e imanência, man-
ria atual. Perigosa metamorfose da catástrofe: o tém-se devido a planos intérminos de negação. A
desencantamento da palavra. transcendência esvazia-se, a imanência requesta o
Thomas Mann constrói antíteses de grande sem-sentido. Em tamanho nível de falsificação e
poder dramático, que pode nos estremecer diante inautenticidade, nem mesmo o conflito pode ser
do horror descrito. Devemos nos acautelar, no devidamente encaminhado, pois os seus termos
entanto, contra os riscos de que semelhante traba- carecem de positividade. O ato de escrever e o de
lho narrativo nos posicione como se fôssemos ob- falar se aproximam de um tentame vão de circuns-
servadores de um “espetáculo”, posto que nefando. crição do caos. A desistência de fazê-lo, porém,
A recusa a uma identificação com a heroicidade dos entrega-nos à capitulação diante da retórica do
soldados cuida em contornar esses perigos: “Jazem Inferno. Algo desse problema, presente nos
[os soldados feridos], com as faces na lama, contrastes montados por Thomas Mann, ressurge
imóveis já. Jazem, com as cabeças enterradas no na visada de Eros e a philía (amizade) contra-
barro, as costas despegadas da mochila, e agarram pondo-se ao “espetáculo” brutal da guerra:
o ar com ambas as mãos” (MANN, 1980, p. 800). A
Ah, toda essa juventude, com suas mochilas e
antítese entre “ar” e “lama” revelam a sordidez do baionetas, com as capas e as botas enlameadas!
Sonhando de modo humanístico-estético, poderí-
evento, exposta na expectativa vã dos jovens
amos imaginá-la num quadro diferente. Poderí-
imersos na lama, mas ainda pulsando de um obs- amos ter a seguinte visão: esses jovens mon-
tando e banhando cavalos numa enseada do
curo anseio de transcender semelhante caos. A
mar, caminhando pela praia em companhia da
passagem do inferno para a redenção (“ar”) nada é namorada, achegando os lábios à orelha da
meiga noiva, ou talvez ensinando uns aos ou-
senão a figura de um desejo impotente de auxílio tros, numa amizade feliz, o tiro de arco. Em
num universo de mortos, homens e signos. O nar- lugar disso, jazem ali, com o nariz no barro
bombardeado. Que façam isso com alegria,
rador resiste a dar uma estatura trágica aos solda- ainda que transidos de medo e cheios de sal-
dos feridos, o que equivaleria a exaltar-lhes a dades da mãe, é assunto à parte, que nos or-
gulha e envergonha, mas nunca nos deveria
heroicidade. A intenção do texto é outra: retirar induzir a colocá-los nesta situação (MANN, 1980,
dessa barbárie qualquer acento positivo, esvaziá-la p. 800).
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Deparamos com o contraste daquilo que foi BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:
(história) com o que poderia ter sido (poesia e Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política.
utopia), não segundo a verossimilhança e a Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
necessidade (Aristóteles), mas segundo o sonho e Brasiliense, 1994.
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a esperança . Que seja vão esse afã, não seria
exatamente prova de realismo, mas da nossa FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna:
desistência de alternativas. da metade do século XIX a meados do século XX.
A utopia de Thomas Mann, já nascida Trad. do texto por Marise M. Curioni; trad. das
impotente na tessitura do romance, longe de nos poesias por Dora F. da Silva. São Paulo, Duas
colocar em atitude sobranceira, faz-nos corar de Cidades, 1978.
vergonha. É nesse horizonte que se apresenta o
amor contrapondo-se às trevas do inferno histórico HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica. In:
então presente: Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo
Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Momentos houve em que, cheio de pressentimentos
e absorto nata obra de “regente”, viste brotar da
morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. Herbert
que também da festa universal da morte, da
Caro. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu
desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?
(MANN, 1980, p. 801).
_______. Einführung in den Zauberberg für
studenten der Universität Princenton. In: Der
A montanha mágica não oferece redenção,
Zauberberg. 5. ed. Berlin: G. B. Fischer & Co.
apenas o arfar de uma esperança, no contorno de
Verlags, 1962.
uma pergunta: “O amor voltará?” Não deixa de
inquietar outra questão: esse amor já teve alguma
oportunidade na história? Pode-se duvidar que a
∞
história lhe tenha sido generosa. As metamorfoses
da catástrofe obrigaram o amor a ser espécie de
meta-signo de uma ausência. De qualquer maneira,
a aspiração teima em permanecer, sem com isso
conceder à narrativa o mínimo acento heróico.
Mesmo porque teríamos dificuldades em discernir
os traços heróicos de um homem que atravessa um
palco de mortos e ruínas, descendo a sua
montanha de cristal em direção ao inferno da
história.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza.
São Paulo: Ars Poética, 1992.
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Lembremo-nos da distinção aristotélica entre poesia e
história: enquanto a história diz-nos o que foi, a poesia
reinventa o espaço simulando o que poderia ter sido, não
como resultado de uma imaginação desmedida, mas segundo
a verossimilhança e a necessidade. Conferir: ARISTÓTELES.
Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica,
1992. 1451a.
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O problema da Com isso, outra área inicia-se paralelamente à
literatura, a crítica literária. Esta, por sua vez, tem a
originalidade em função mestra de atestar o valor maior ou menor da
Budapeste, obra. Portanto, agora, para ser consagrado, o autor
necessita acompanhar a máquina comercial do
de Chico Buarque capitalismo e ser admitido como um bom autor pela
crítica. Mas, o que seria o bom autor? Talvez, aquele
Carlos Luciano Silva Coutinho * que preenchesse as novas necessidades do homem
moderno e da arte moderna.
RESUMO: Chico Buarque, no romance Nesse momento, o autor encontra-se em uma
Budapeste, compõe um cenário e um bifurcação: ou ele se diferencia dos outros para ser
protagonista que quebram a noção da facilmente caracterizado por sua singularidade,
originalidade, tão cara às obras de arte da
como é o caso de um Alencar; ou investe em uma
Modernidade. O autor evidencia, dessa
maneira, uma proposta que levanta, no fórmula que tivesse dado certo, com o intuito de
mínimo, uma reflexão acerca do espírito alimentar o capitalismo por meio do público, como
criador na Pós-modernidade. faz um Macedo, segundo exemplificam Coutinho e
Coutinho (1999), em Literatura no Brasil. Nos dois
PALAVRAS-CHAVE: Modernidade, origina-
lidade, superação, Pós-modernidade, casos, os autores seriam reconhecidos e
quebra da originalidade. alimentariam o sistema capitalista da época, no
entanto, na posteridade, o segundo autor seria
Com o Capitalismo moderno, no século XIX, bem menos reconhecido que o primeiro, pois este
as publicações passaram a ter a participação direta não apresentaria nada que o diferenciasse dos
das editoras, que, por conseguinte, asseguraram os outros, nada que mostrasse à crítica sua
direitos do escritor. É importante salientar que, originalidade. Portanto, resta ao autor, para ser
com o surgimento dos direitos autorais, o escritor valorizado pela crítica na posteridade, encaminhar-
passou a ser consagrado pelo público a partir da se pela trilha que leva à busca de uma
venda de seu livro. Tal fato determina a engrena- singularidade ou originalidade. Para isso, é
gem comercial da obra de arte. Saliba (2003, p. necessário que ele busque ser único e singular, a
50), em As utopias românticas, comenta sobre a fim de ser reconhecido por suas características
transformação da obra de arte em “mercadoria”: próprias e exclusivas, definindo, de tal maneira, as
novas necessidades do novo homem. Ser original e
O sistema de patrocínio de publicações e mesmo
único. É nesse âmbito que, na Modernidade, a
o posterior sistema de assinaturas começavam a
ser substituídos, lenta mas seguramente, pelo literatura fundamentará a originalidade como seu
sistema de publicações em termos comerciais
modernos. A própria produção de obras de arte projeto.
passava a ser encarada como mais um dentre os Esse projeto é tão essencial no estudo de
vários tipos especializados de produção, sujeito
às mesmas condições, flutuações e caprichos do literatura moderna que Perrone-Moisés (1998), em
mercado. Um momento exemplar desses ensaios Altas Literaturas, apresentou uma aprofundada
de mudanças são as décadas de 1830-1840,
quando as relações entre a literatura e a pesquisa sobre a literatura canônica acerca de seu
imprensa diária intensificaram-se violentamente, valor do ponto de vista de “escritores-críticos”
sobretudo com a difusão do folhetim. Com o
folhetim, a obra literária passa a ser uma como Eliot, Pound, Haroldo de Campos, entre
“mercadoria” no verdadeiro sentido do termo;
outros. Para os dois últimos, o valor da obra de
passa a ter seu preço fixado, é produzida de
acordo com um certo padrão e é “fornecida” em arte está no poder de “invenção”, de “novidade” e
data previamente combinada.
na capacidade de “perenidade dessa novidade”. O
primeiro, apesar de utilizar a palavra “clássico”,
não remete à palavra o significado temporal. Na
*
visão de Perrone-Moisés (1998, p. 148):
Licenciado em Letras pelo Centro Universitário de Brasília
(UniCEUB), Professor de Literatura na Faculdade Jesus Maria
José (FAJESU) e no Colégio Ideal, em Brasília-DF.