Este documento fornece informações sobre a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e sua equipe de direção. Ele lista o presidente e diretores da escola, incluindo o Diretor Mauro de Lima Gomes, o Vice-diretor de Gestão e Desenvolvimento Institucional José Orbílio de Souza Abreu, e a Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico Marcela Pronko. O documento também menciona o Vice-diretor de Ensino e Informação Marco Antônio Santos.
2. Fundação Oswaldo Cruz
Presidente
Paulo Ernani Gadelha Vieira
Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio
Diretor
Mauro de Lima Gomes
Vice-diretor de Gestão e Desenvolvimento Institucional
José Orbílio de Souza Abreu
Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico
Marcela Pronko
Vice-diretor de Ensino e Informação
Marco Antônio Santos
3. Roseli Salete Caldart
Isabel Brasil Pereira
Paulo Alentejano
Gaudêncio Frigotto
Organizadores
2012
Rio de Janeiro • São Paulo
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Expressão Popular
5. Sumário
Apresentação 3
A Acampamento 21
Agricultura camponesa 26
Agricultura familiar 32
Agriculturas alternativas 40
Agrobiodiversidade 46
Agrocombustíveis 51
Agroecologia 57
Agroecossistemas 65
Agroindústria72
Agronegócio 79
Agrotóxicos 86
Ambiente (meio ambiente) 94
Articulações em defesa da Reforma Agrária 103
Assentamento rural 108
C Campesinato 113
Capital 121
6. Ciranda Infantil 125
Comissão Pastoral da Terra (CPT) 128
Commodities agrícolas 133
Conflitos no campo 141
Conhecimento 149
Cooperação agrícola 157
Crédito fundiário 164
Crédito rural 170
Cultura camponesa 178
D Defesa de direitos 187
Democracia 190
Desapropriação 198
Desenvolvimento sustentável 204
Despejos 210
Direito à educação 215
Direitos humanos 223
Diversidade 229
E Educação básica do campo 237
Educação corporativa 245
Educação de jovens e adultos (EJA) 250
Educação do Campo 257
Educação omnilateral 265
7. Educação politécnica 272
Educação popular 280
Educação profissional 286
Educação rural 293
Emancipação versus cidadania 299
Ensino médio integrado 305
Escola ativa 313
Escola do campo 324
Escola itinerante 331
Escola Única do Trabalho 337
Escola unitária 341
Estado 347
Estrutura fundiária 353
F Formação de educadores do campo 359
Função social da propriedade 366
Fundos públicos 372
G Gestão educacional 381
H Hegemonia 389
Hidronegócio 395
8. I Idosos do campo 403
Indústria cultural e educação 410
Infância do campo 417
Intelectuais coletivos de classe 424
J Judicialização 431
Juventude do campo 437
L Latifúndio 445
Legislação educacional do campo 451
Legitimidade da luta pela terra 458
Licenciatura em Educação do Campo 466
M Mística 473
Modernização da agricultura 477
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil) 481
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 487
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) 492
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) 496
MST e educação 500
9. O Ocupações de terra 509
Orçamento da educação e superávit 513
Organizações da classe dominante no campo 519
P Pedagogia das competências 533
Pedagogia do capital 538
Pedagogia do movimento 546
Pedagogia do Oprimido 553
Pedagogia socialista 561
Política educacional e Educação do Campo 569
Políticas educacionais neoliberais e Educação do Campo 576
Políticas públicas 585
Povos e comunidades tradicionais 594
Povos indígenas 600
Produção associada e autogestão 612
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 618
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(Pronera) 629
Q Questão agrária639
Quilombolas 645
Quilombos 650
10. R Reforma Agrária 657
Renda da terra 667
Repressão aos movimentos sociais 673
Residência Agrária 679
Revolução Verde 685
S Saúde no campo 691
Sementes 697
Sindicalismo rural 704
Sistemas de avaliação e controle 712
Soberania alimentar 714
Sujeitos coletivos de direitos 724
Sustentabilidade 728
T Tempos humanos de formação 733
Terra 740
Território camponês 744
Trabalho como princípio educativo 748
Trabalho no campo 755
Transgênicos 759
11. V Via Campesina 765
Violência social 768
Autores 777
12.
13. Apresentação
O Dicionário da Educação do Campo é uma obra de produção coletiva. Sua
elaboração foi coordenada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, e pelo Mo-
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sua elaboração envolveu
um número significativo de militantes de movimentos sociais e profissionais da
EPSJV e de diferentes universidades brasileiras, dispostos a sistematizar experi-
ências e reflexões sobre a Educação do Campo em suas interfaces com análises
já produzidas acerca das relações sociais, do trabalho, da cultura, das práticas de
educação politécnica e das lutas pelos direitos humanos no Brasil.
Nosso objetivo foi o de construir e socializar uma síntese de compreensão
teórica da Educação do Campo com base na concepção produzida e defendida
pelos movimentos sociais camponeses. Os verbetes selecionados referem-se prio-
ritariamente a conceitos ou categorias que constituem ou permitem entender o
fenômeno da Educação do Campo ou que estão no entorno da discussão de seus
fundamentos filosóficos e pedagógicos. Também incluímos alguns verbetes que
representam palavras-chave, ou que podem servir como ferramentas, do vocabu-
lário de quem atualmente trabalha com a Educação do Campo ou com práticas
sociais correlatas. Alguns verbetes têm referência direta com experiências, sujei-
tos e lutas concretas que constituem a dinâmica educativa do campo hoje. Outros
representam mediações de interpretação dessa dinâmica.
O Dicionário da Educação do Campo visa atingir a um público bem diversificado:
militantes dos movimentos sociais, estudantes do ensino médio à pós-graduação,
educadores das escolas do campo, pesquisadores da área da educação, profissio-
nais da assistência técnica, lideranças sindicais e políticas comprometidas com as
lutas da classe trabalhadora.
Esta primeira edição do Dicionário inclui 113 verbetes e envolveu 107 autores
em sua produção.
A Educação do Campo está sendo entendida nesta obra como um fenômeno
da realidade brasileira atual que somente pode ser compreendido no âmbito con-
traditório da práxis e considerando seu tempo e contexto histórico de origem. A
essência da Educação do Campo não pode ser apreendida senão no seu movimento
real, que implica um conjunto articulado de relações (fundamentalmente con-
tradições) que a constituem como prática/projeto/política de educação e cujo
sujeito é a classe trabalhadora do campo. É esse movimento que pretendemos
mostrar na lógica de constituição do Dicionário e na produção de cada texto
(considerados os limites próprios a uma obra dessa natureza).
A compreensão da Educação do Campo se efetiva no exercício analítico de
identificar os polos do confronto que a institui como prática social e a tomada
14. Dicionário da Educação do Campo
de posição (política, teórica) que constrói sua especificidade e que exige a relação
dialética entre particular e universal, específico e geral. Há contradições específi-
cas que precisam ser enfrentadas, trabalhadas, compreendidas na relação com as
contradições mais gerais da sociedade brasileira e mundial. O projeto educativo
da Educação do Campo toma posição nos confrontos: não se constrói ignoran-
do a polarização ou tentando contorná-la. No confronto entre concepções de
agricultura ou de educação, a Educação do Campo toma posição, e essa posição
a identifica. Porém é a existência do confronto que essencialmente define a Edu-
cação do Campo e torna mais nítida sua configuração como um fenômeno da
realidade atual.
Esse posicionamento distingue/demarca uma posição no debate: a especifi-
cidade se justifica, mas ficar no específico não basta, nem como explicação nem
como atuação, seja na luta política seja no trabalho educativo ou pedagógico. A
Educação do Campo se confronta com a “Educação Rural”, mas não se configura
como uma “Educação Rural Alternativa”: não visa a uma ação em paralelo, mas
sim à disputa de projetos, no terreno vivo das contradições em que essa disputa
ocorre. Uma disputa que é de projeto societário e de projeto educativo.
Para a composição do Dicionário tomamos como eixos organizadores da sele-
ção dos verbetes a tríade de alguma maneira já consolidada por determinada tra-
dição de debate sobre a Educação do Campo: temos afirmado que esse conceito
não pode ser compreendido fora das relações entre campo, educação e política pública.
Porém, decidimos incluir no Dicionário um quarto eixo, o de direitos humanos, pe-
las interfaces importantes de discussão que vislumbramos para seus objetivos.
O desafio é duplo e articulado: apreender o confronto ou a polarização prin-
cipal que constitui cada eixo e apreender as relações entre eles. Cada eixo ou cada
parte podem ser entendidos/discutidos especificamente, mas em si mesmos não
são a Educação do Campo, que, como totalidade, somente se compreende na
interação dialética entre essas dimensões de sua constituição/atuação.
A própria questão da especificidade depende da relação: temos afirmado que a
especificidade da Educação do Campo está no campo (nos processos de trabalho,
na cultura, nas lutas sociais e seus sujeitos concretos) antes que na educação, mas
essa compreensão já supõe uma determinada concepção de educação: a que con-
sidera a materialidade da vida dos sujeitos e as contradições da realidade como
base da construção de um projeto educativo, visando a uma formação que nelas
incida. A realidade do campo constitui-se, pois, na particularidade dada pela vida
real dos sujeitos, ponto de partida e de chegada dos processos educativos. Toda-
via, seu horizonte não se fixa na particularidade, mas busca uma universalidade
histórica socialmente possível.
A compreensão do movimento interno aos eixos e entre eles nos ajuda a res-
ponder, afinal, qual é o problema ou a questão específica da Educação do Campo.
No eixo identificado como campo entendemos que o confronto específico
fundamental é o que se expressa na lógica incluída nos termos “agronegócio” e
“agricultura camponesa”, que manifesta, mas também constitui, em nosso tempo,
a contradição fundamental entre capital e trabalho. E que coloca em tela (essa é
uma novidade de nosso tempo) uma contradição nem sempre percebida nesse
14
15. Apresentação
embate: há um confronto entre modos de fazer agricultura, e a pergunta que os
movimentos sociais situados no polo do trabalho estão colocando à sociedade se
refere ao modo de fazer agricultura que projeta futuro, especialmente consideran-
do a necessidade de produzir alimentos para a reprodução da vida humana, para
a humanidade inteira, para o planeta. Essa é uma questão que não tem como ser
formulada desde o polo do capital (ser agenda do agronegócio) senão como farsa
ou cinismo. Por isso também o capital pode admitir (em tempos de crise) discutir
“segurança alimentar”, mas não pode, sem trair a si mesmo, aceitar o debate acer-
ca da “soberania alimentar” (pautado hoje pela agricultura camponesa).
Integra esse confronto a compreensão de que não é a mesma coisa tratar de
agricultura camponesa e de agricultura familiar: ambos os conceitos se referem
aos trabalhadores, mas há uma contradição a ser explorada em vista do embate de
projetos, com o cuidado de não confundi-la com o confronto principal.
É importante ter presente o movimento desse embate para compreender a
relação com um projeto educativo dos trabalhadores que o assuma: o polo da
agricultura camponesa não tem como ser vitorioso no horizonte da sociedade
do capital. Em uma sociedade do trabalho, porém, o projeto de uma agricultura
de base camponesa certamente terá de ir bem mais longe do que certas posições
assumidas hoje, que a colocam como retorno ao passado, especialmente do ponto
de vista tecnológico, ou no particularismo e isolamento de experiências de grupos
locais. Por sua vez, essas experiências, quando radicais, têm sido combatidas pelo
capital exatamente porque mostram que há alternativas à agricultura industrial
capitalista, e isso desestabiliza sua hegemonia: quanto mais agonizante o sistema
mais desesperadamente precisa fazer com que todos acreditem que não há alter-
nativas fora da sua lógica, em nenhum plano.
Também é necessário ter em foco que a porta de entrada da Educação do
Campo nesse confronto foi a luta pela Reforma Agrária, que trouxe para a sua
constituição originária os movimentos sociais, como protagonistas do enfrenta-
mento de classe, e determinada forma de luta social que carrega junto (nesse eixo e
na relação entre os eixos) a relação contraditória e tensa entre movimentos sociais
(de trabalhadores) e Estado na sociedade brasileira.
É própria desse eixo outra discussão fundamental (justamente para que con-
tradições secundárias não tomem o lugar da contradição principal): estamos com-
preendendo que o conceito de “camponês”, construído desde o confronto prin-
cipal, pode representar o sujeito (coletivo) da Educação do Campo, ainda que no
concreto real os sujeitos trabalhadores do campo sejam diversos e nem todos caibam
no conceito estrito de trabalhadores camponeses. No Dicionário foram incluídos
outros conceitos que nos ajudam a explicitar/trabalhar com a diversidade que
integra a realidade e o debate de concepção em que se move a Educação do Cam-
po, sem comprometer a unidade do polo do trabalho no embate específico entre
projetos de agricultura, que consideramos fundamental na atualidade.
No eixo identificado como educação (concepção de educação) temos no plano
específico o confronto principal com a “educação rural” (também na sua face
atual de “educação corporativa”), mas na base desse confronto está a contra-
dição entre uma pedagogia do trabalho versus uma pedagogia do capital, que se
15
16. Dicionário da Educação do Campo
desdobrará nas questões fundamentais de objetivos formativos, de concepção de
educação, de matriz formativa, de concepção de escola.
Há uma determinada concepção de educação que tem sustentado as lutas da
Educação do Campo e está presente nos diferentes eixos. Seu vínculo originário,
que se constitui pelas determinações do seu nascimento no eixo campo (tomada
de posição pelos movimentos sociais dos trabalhadores Sem Terra, pela agricultu-
ra camponesa...), é com o que tem sido chamado de “Pedagogia do Movimento”,
formulação teórica constituída desde a pedagogia do MST (sua base empírica e
reflexiva imediata), por sua vez herdeira das práticas e reflexões da pedagogia
do oprimido e da pedagogia socialista, e mais amplamente de uma concepção
de educação e de formação humanas de base materialista, histórica e dialética.
Herança que é fundamento, continuidade, recriação desde a sua materialidade
específica e os desafios do seu tempo.
Há uma disputa de projetos educativos e pedagógicos que se radica no con-
fronto de projetos de sociedade e de humanidade, e se especifica nos embates
desses projetos no pensar e fazer a educação dos camponeses. E há também po-
sições e embates que não representam o confronto principal, mas que precisam
ser enfrentados, na compreensão de qual forma educativa efetivamente fortalece os
camponeses para as lutas principais e para a construção de novas relações sociais,
porque lhes humaniza mais radicalmente e porque assume o desafio de formação
de uma sociabilidade de perspectiva socialista. Desdobram-se desse embate dife-
rentes questões: de concepção de conhecimento, da necessária apropriação pelos
trabalhadores dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade,
mas também sua tomada de poder sobre as decisões acerca de quais conheci-
mentos continuarão a ser produzidos, e o modo de produção do conhecimento,
e sobre qual forma escolar pode dar conta de participar de um projeto educativo
com essas finalidades.
No eixo da política pública, os contornos do confronto principal se situam
entre os direitos universais, que somente podem definir-se no espaço público, e
as relações sociais, afirmadas na propriedade privada dos meios e instrumentos
de produção da existência – e no Estado que a garante. Considerando que a rela-
ção entre movimentos sociais e Estado está na constituição da forma de fazer a
luta pela Reforma Agrária no Brasil que está na origem da Educação do Campo,
entendemos que o confronto que a constitui não está em lutar ou não por polí-
ticas públicas. Porque lutar por políticas públicas representa o confronto com a
lógica do mercado, expressão da liberdade para o desenvolvimento do polo do
capital. Mas uma questão que demarca o confronto diz respeito a quem tem o
protagonismo na luta pela construção de políticas públicas e a que interesses elas
dominantemente atenderão. A disputa do fundo público para educação, forma-
ção técnica, saúde, cultura, apoio à agricultura camponesa e ao acesso à moradia,
entre outros, constitui-se em agenda permanente, dado que, cada vez mais, esse
fundo tem sido apropriado para garantia da reprodução do capital e, no campo,
pelo agronegócio.
Também é fundamental considerar nesse embate que quando o polo do traba-
lho (por meio das organizações dos trabalhadores) apresenta demandas coletivas
16
17. Apresentação
ao Estado, explicita a contradição entre direitos coletivos e pressão direta pelos
sujeitos de sua conquista concreta versus direitos em tese “universais” (ou univer-
salizados) que devem ser cobrados/atendidos individualmente.
E há ainda um confronto acerca da concepção e dos objetivos mais amplos
das relações necessárias à conquista ou à construção de políticas públicas: a partir
dos movimentos sociais camponeses originários da Educação do Campo, trata-se
de entender que a luta pela chamada “democratização do Estado” (e nos limites
do que se identifica como “Estado democrático de direito”) é uma das lutas desse
momento histórico e não a luta por meio da qual se chegará a uma transformação
mais radical da sociedade. Por sua vez, isso significa entender que negociações e
conquista de espaços nas diferentes esferas do Estado podem ser um caminho a
seguir em determinadas conjunturas, mas definitivamente não substituem, nem
devem secundarizar, em nenhum momento, a luta de massas como estratégia
insubstituível do confronto principal e de formação dos trabalhadores para a
transformação e construção da nova forma social.
O eixo dos direitos humanos aborda essa tensão e como ela deve ser tratada
com vigilância crítica. Chama nossa atenção sobre como a violação dos direitos
humanos integra a forma de instauração dos projetos do grande capital na pe-
riferia, dos projetos de modernização retardatária aos projetos da modernidade
globalizada. A história sem pretensão de salvar ou condenar a dialética negativa e
positiva que se movimenta na/pela práxis humana segue um tempo agonizante,
de fraturas intransponíveis, de memórias reprimidas, um presente estilhaçado por
guerras e muros, por fome, desinteresse e medo, um presente que não vê o mar
do futuro. A dificuldade da visão/imaginação do mar do futuro não elimina a
realidade de desejá-lo, de senti-lo, reatualizando a promessa de vivê-lo enquanto
humanidade, com necessidade de liberdade. Campo e cidade se indiferenciam
na crescente violação dos direitos humanos, que atinge não apenas os militantes
sociais, mas também os trabalhadores, seus filhos e netos, todos desfigurados pela
criminalização da pobreza e de toda luta social que se coloque no horizonte da
emancipação humana.
Hoje, compreender as dimensões da luta política na sociedade brasileira con-
temporânea é encarar a crueldade dos limites e das potencialidades que a luta
pelos direitos humanos nos revela. No Dicionário, esse eixo tem interface direta
com as contradições específicas indicadas no eixo das políticas públicas, especial-
mente no que se refere à ampliação ou à redução do espaço público em nome
dos interesses do capital, e hoje, notadamente, do capital financeiro. A seleção
de verbetes também busca mostrar a relação entre luta por políticas públicas
de interesse dos trabalhadores e pressão (pelas formas de luta assumidas pelos
movimentos sociais) por alternativas à ordem jurídica vigente. Qual o significado
do debate no plano jurídico sobre “função social da propriedade”, “limite de
propriedade”, “sementes modificadas”, “legitimidade das lutas sociais”? O que
representa uma “escola itinerante” de acampamentos de luta pela terra ser uma
escola pública? Ao mesmo tempo, é preciso trazer à tona os movimentos sociais
como sujeitos produtores de direitos que vão além dos direitos liberais a que se
podem vincular hoje as políticas públicas.
17
18. Dicionário da Educação do Campo
O processo de produção do Dicionário envolveu aproximadamente um ano
de trabalho, após a decisão tomada entre os parceiros sobre sua elaboração. A
experiência anterior da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio de pro-
dução do Dicionário da Educação Profissional em Saúde (2006) foi fundamental para
agilizar decisões metodológicas e de organização coletiva deste trabalho. As de-
cisões principais foram tomadas em oficinas, e a definição de que seguiríamos,
na seleção dos verbetes e seus conteúdos, a lógica dos eixos antes mencionados,
estabeleceu uma dinâmica de trabalho ao mesmo tempo por eixo e entre os eixos,
seja na indicação dos autores e na elaboração das ementas dos verbetes, seja na
interlocução com cada autor e no processo de leitura e discussão coletiva dos
textos produzidos. Foi sem dúvida um processo de formação organizativa de
trabalho cooperado para todos nós.
Houve uma orientação geral aos autores, de modo a garantir conteúdos acor-
des ao debate proposto e certo padrão de formatação dos textos, mas foram
acolhidas as sugestões de conteúdo e as diferenças de estilo de escrita, próprias
do largo espectro de práticas ou de atuação específica do conjunto de autores
envolvido nessa construção. Dada a concepção do Dicionário como obra de re-
ferência, não foi exigido ineditismo dos textos, e alguns verbetes possuem trechos
já publicados por seus autores em outras obras.
O Dicionário, pela seleção e pelo conteúdo dos verbetes, busca materializar
a concepção de produção do conhecimento desde uma perspectiva dialética em
que a parte ou a particularidade somente ganha sentido e compreensão dentro de
uma totalidade histórica. Nessa concepção, os campos e os verbetes resultam do
diálogo com diferentes áreas e diferentes formas de produção do conhecimento.
Buscamos ter, no conjunto da obra, uma coerência básica de abordagem teóri-
ca, respeitando os contraditórios que expressam o movimento real das discussões
e das práticas que compõem hoje o debate da Educação do Campo e para além
dela. Tratamos de questões complexas, sobre as quais não há total consenso ou
posições amadurecidas, mesmo a partir de um determinado campo político. Ten-
tamos não alimentar falsas ou artificiais polêmicas, mas também é nosso objetivo
suscitar debates sobre pontos que têm aparecido como fundamentais no avanço
do projeto educativo e societário assumido.
O Dicionário, embora tenha sido elaborado a partir de eixos, foi organizado
pelos verbetes em ordem alfabética, pelo entendimento de que essa visão interei-
xos é pedagogicamente mais fecunda para o objetivo que temos de firmar uma
concepção de abordagem ou de tratamento teórico e prático da Educação do
Campo.
Agradecemos a disponibilidade, a disciplina e o trabalho solidário do conjun-
to dos autores dessa obra, sem o que ela não teria sido possível nesse tempo e
nem teria a forma que agora apresentamos para a crítica dos leitores. Agradece-
mos igualmente a todos os profissionais/trabalhadores da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio que se envolveram em cada procedimento necessário à
produção e à edição desta obra.
18
19. Apresentação
Por fim, gostaríamos de fazer um agradecimento especial a algumas pessoas:
Clarice Aparecida dos Santos, Mônica Castagna Molina e Roberta Lobo, que par-
ticiparam conosco da equipe de coordenação do Dicionário, respondendo pe-
los eixos de políticas públicas e direitos humanos, respectivamente; João Pedro
Stedile, Neuri Domingos Rossetto e Juvelino Strozake, pela contribuição em di-
ferentes momentos da produção desta obra; e a Cátia Guimarães, pelo trabalho
rigoroso na coordenação do processo de revisão final dos textos.
Caberá a todos nós, autores e leitores, verificar se o conjunto do Dicionário
conseguiu ajudar a pôr alguma ordem nas ideias, evidenciando e contribuindo para a
compreensão das relações que compõem a totalidade complexa de constituição
da Educação do Campo e para a formulação das questões necessárias à continui-
dade dessa elaboração e das lutas práticas que justificam e movem/devem mover
debates como esse.
Os organizadores
19
20.
21. A
A
Acampamento
Bernardo Mançano Fernandes
Acampamento é um espaço de luta ção, manifesta tanto resistência quanto
e resistência. É a materialização de persistência. Em 1962, os sem-terra
uma ação coletiva que torna pública a começaram a organização de acam-
intencionalidade de reivindicar o direi- pamentos no Rio Grande do Sul, por
to à terra para produção e moradia. O meio do Movimento dos Agricultores
acampamento é uma manifestação per- Sem Terra (Master) (Eckert, 1984).
manente para pressionar os governos Esse espaço de luta passou a ser re-
na realização da Reforma Agrária. Par- produzido por centenas de movimen-
te desses espaços de luta e resistência é tos camponeses nas décadas de 1990 e
resultado de ocupações de terra; outra 2000, com diferentes formas de orga-
parte, está se organizando para prepa- nização, mas sempre com o objetivo de
rar a ocupação da terra. A formação do conquistar a terra (Fernandes, 1996 e
acampamento é fruto do trabalho de 2000; Feliciano, 2006).
base, quando famílias organizadas em Estar no acampamento é resultado
movimentos socioterritoriais se ma- de decisões difíceis tomadas com base
nifestam publicamente com a ocupa- nos desejos e interesses de quem quer
ção de um latifúndio. Com esse ato, as transformar a realidade. Todavia, deci-
famílias demonstram sua intenção de dir pelo acampamento é optar pela luta
enfrentar as difíceis condições nos e resistência. É preciso saber lidar com
barracos de lona preta, nas beiras das o medo: ir ou ficar? O medo de não dar
estradas; demonstram também que certo, da violência dos jagunços e mui-
estão determinadas a mudar os rumos tas vezes da polícia. É preciso também
de suas vidas, para a conquista da terra, se preparar para viver em condições
na construção do território camponês. precárias (Feliciano, 2006). Por ser um
Os acampamentos são espaços e espaço de mobilização para pressionar
tempos de transição na luta pela terra. o governo a desapropriar terras, em
São, por conseguinte, realidades em suas experiências, os sem-terra com-
transformação, uma forma de materia- preenderam que acampar sem ocupar
lização da organização dos sem-terra, dificilmente leva à conquista da terra.
trazendo em si os principais elementos A ocupação da terra é um trunfo nas
organizacionais do movimento. Os negociações. Muitos acampamentos fi-
acampamentos são, predominante- caram anos nas beiras das rodovias sem
mente, resultado de ocupações. Assim que os trabalhadores conseguissem ser
sendo, demarcam nos latifúndios e nos assentados. Somente com a ocupação,
territórios do agronegócio os primei- obtiveram êxito na luta. Para impedir o
ros momentos do processo de territo- avanço da luta pela terra por meio das
rialização camponesa. ações de ocupação/acampamento, o
Acampar é uma antiga forma de Governo Fernando Henrique Cardoso
luta camponesa que, associada à ocupa- criou a medida provisória nº 2.109-50,
23
22. Dicionário da Educação do Campo
de 27 de março de 2001, que suspende enfrentamento com jagunços. Podem
por dois anos a desapropriação de áreas estar localizados na beira das estradas,
ocupadas pela primeira vez e por qua- em fundos de vale ou próximo de es-
tro anos as ocupadas por duas ou mais pigões. Os arranjos dos acampamentos
vezes. Essa medida política foi um dos são predominantemente circulares ou
motivos que levaram a mudanças nas lineares. Nesses espaços, existem lu-
formas dos acampamentos. gares onde, muitas vezes, os sem-terra
Embora os acampamentos mante- plantam suas hortas, estabelecem a
nham a mesma essência de serem es- “escola” e “a farmácia”, e também o
paço de luta e resistência, conforme local das assembleias.
a conjuntura política da luta, os sujei- Ao organizar um acampamento, os
tos mudam a forma de organização sem-terra criam diversas comissões ou
do acampamento. Os acampamentos equipes, que dão forma à organização.
como espaços de luta e resistência são Delas participam famílias inteiras ou
lugares que marcam as histórias de vida parte de seus membros. Essas comis-
dos sem-terra, como o cineasta Paulo sões criam as condições básicas para
Rufino conseguiu exprimir de maneira a manutenção das necessidades dos
tão objetiva quanto poética: acampados: saúde, educação, segu-
rança, negociação, trabalho etc. Dessa
Dos campos, das cidades, das forma, os acampamentos, frequente-
frentes dos palácios, os sem- mente, contam com escolas – ou seja,
terra, este povo de beira de qua- barracos de lona nos quais funcionam
se tudo, retiram suas lições de salas de aula, principalmente as quatro
semente e história. Assim, es- primeiras séries do ensino fundamen-
premidos nessa espécie de geo- tal, além de cursos de alfabetização de
grafia perdida que sobra entre adultos – e com uma “farmácia” im-
as estradas, que é por onde pas- provisada, que funciona em um dos
sam os que têm para onde ir, e barracos. Quando acampados dentro
as cercas, que é onde estão os de um latifúndio, plantam em mutirão,
que têm onde estar, os sem-terra para garantirem parte dos alimentos
sabem o que fazer: plantam. E de que necessitam; quando acampados
plantam porque sabem que te- na estrada, plantam no espaço entre a
rão apenas o almoço que pude- rodovia e as cercas das propriedades;
rem colher, como sabem que quando acampados próximos a as-
terão apenas o país que pude- sentamentos, trabalham nos lotes dos
rem conquistar. (Paulo Rufino, assentados como diaristas ou em di-
O canto da terra, 1991) ferentes formas de meação. Também
vendem sua força de trabalho como
À primeira vista, os acampamentos boias-frias para usinas de álcool e açú-
parecem ser ajuntamentos desorgani- car e outras empresas capitalistas ou,
zados de barracos. Todavia, possuem ainda, para pecuaristas.
disposições específicas que decorrem O cotidiano dos acampamentos
da topografia do terreno, das condi- difere pela própria diversidade cultu-
ções de desenvolvimento da resistên- ral e regional, mas todos mantêm as
cia ao despejo e das perspectivas de características fundantes do movimen-
24
23. Acampamento
A
to, como a resistência e o objetivo de e organizando também novas famílias,
especializar a luta. Nos acampamentos que se integram ao acampamento.
do Nordeste ou do Sudeste, é possí- Ao organizarem a ocupação da
vel observar diferenças e semelhan- terra, os Sem Terra promovem uma
ças nos seus cotidianos (Justo, 2009; ação concreta de repercussão imedia-
Loera, 2009; Sigaud, 2009). Além das ta. A ocupação coloca em questão a
diferenças em relação à localização dos propriedade capitalista da terra, quan-
acampamentos, há também diferenças do do processo de criação da proprie-
na sua duração, por causa das ações e dade familiar, pois ao conquistam
reações dos movimentos, governos, la- a terra, os Sem Terra transformam a
tifundiários e capitalistas. grande propriedade capitalista em
Na década de 1980, os acampamen- unidades familiares.
tos recebiam alimentos, roupas e remé- O acampamento é lugar de mobi-
dios, principalmente das comunidades lização constante. Além de espaço de
e de instituições de apoio à luta. Desde luta e resistência, é também espaço
o final dos anos 1980 e o início da dé- interativo e comunicativo. Essas três
cada de 1990, com o crescimento do dimensões do espaço de socialização
número de assentamentos, os assen- política desenvolvem-se no acampa-
tados também passaram a contribuir mento em diferentes situações. No iní-
de diversas formas para a luta. Muitos cio do processo de formação do MST,
cedem caminhões para a realização na década de 1980, em diferentes expe-
das ocupações, tratores para preparar riências de acampamentos, as famílias
a terra e alimentos para a população partiam para a ocupação somente de-
acampada. Esse apoio é mais significa- pois de meses de preparação nos tra-
tivo quando os assentados estão vincu- balhos de base. Desse modo, os Sem
lados a uma cooperativa. Essa é uma Terra visitavam as comunidades, rela-
marca da organicidade do Movimento tavam suas experiências, provocavam o
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra debate e desenvolviam intensamente o
(MST), por exemplo. espaço de socialização política em suas
Na segunda metade da década de dimensões comunicativa e interativa.
1990, em alguns estados, o MST come- Esse procedimento possibilita o esta-
çou uma experiência que denominou belecimento do espaço de luta e resis-
de acampamento permanente ou acam- tência de forma mais organizada, pois
pamento aberto. Esse acampamento é as famílias das comunidades passam a
estabelecido em regiões onde existem conhecer os diferentes tipos de enfren-
muitos latifúndios. É um espaço de luta tamentos da luta. Em seu processo de
e resistência para o qual as famílias de formação, como resultado da própria
diversos municípios se dirigem, a fim demanda da luta, o MST construiu ou-
de participarem da luta organizada pela tras experiências. Assim, nos trabalhos
terra. Desse acampamento permanente, de base, deixou-se de se desenvolver a
os Sem Terra partem para várias ocupa- dimensão interativa, que passou a ter
ções, e podem transferir-se para elas ou, lugar no espaço de luta e resistência.
em caso de despejo, retornar ao acam- E ainda, quando há um acampamento
pamento permanente. Conforme vão permanente ou aberto, as famílias po-
conquistando a terra, vão mobilizando dem iniciar-se na luta, inaugurando o
25
24. Dicionário da Educação do Campo
espaço comunicativo por meio da ex- menos três dos acampamentos históri-
posição de suas realidades nas reuniões cos no processo de formação e territo-
para organizar as ocupações. É o que rialização do MST: o acampamento da
acontece quando os Sem Terra estão Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta
lutando pela conquista de várias fazen- (RS), de 1980 a 1982; o acampamento
das, e novas famílias vão se somando no Seminário dos Padres Capuchinhos,
ao acampamento, enquanto outras vão em Itamaraju (BA), de 1988 a 1989; e
sendo assentadas (Fernandes, 2000). o acampamento União da Vitória, em
No acampamento, os Sem Terra Mirante do Paranapanema, na região
fazem periodicamente análises da con- do Pontal do Paranapanema (SP), de
juntura da luta. Essa leitura política 1992 a 1994 (Fernandes, 1996 e 2000).
pelos movimentos socioterritoriais Garantir a existência do acampamento,
não implica maiores dificuldades, pois por meio da resistência, impedindo a
eles estão em contato permanente com dispersão causada por diferentes for-
suas secretarias, de modo que podem mas de violência, é fundamental para o
fazer análises conjunturais com base sucesso da luta na conquista da terra.
em referenciais políticos amplos, como Os Sem Terra ocupam a terra, pré-
os das negociações em andamento nas dios públicos e espaços políticos diver-
capitais dos estados e em Brasília. As- sos para denunciar os significados da
sim, associam formas de luta local com exploração e da expropriação, lutando
as lutas nas capitais. Ocupam a terra para mudar suas realidades. O acampa-
diversas vezes como forma de pressão mento como espaço de luta e resistên-
para abrir a negociação, fazem marchas cia no processo de espacialização e ter-
até as cidades, ocupam prédios públi- ritorialização da luta pela terra também
cos, fazem manifestações de protesto, promove a espacialidade da luta por
reuniões etc. Pela correspondência en- meio de romarias, caminhadas e mar-
tre esses espaços de luta no campo e na chas. A caminhada é uma necessidade
cidade, sempre há determinação de um para expandir as possibilidades de ne-
sobre o outro. As realidades locais são gociação e gerar novos fatos. Em seus
muito diversas, de modo que tendem a ensinamentos, por meio de suas expe-
predominar nas decisões finais as rea- riências, os Sem Terra tiveram diversas
lidades das famílias que estão fazendo referências históricas. Alguns exem-
a luta. Dessa forma, as linhas políticas plos utilizados na mística do movimen-
de atuação são construídas com base to são a caminhada do povo hebreu
nesses parâmetros. E as instâncias re- rumo à Terra Prometida, na luta contra
presentativas do MST carregam essa a escravidão no Egito; a caminhada de
espacialidade e essa lógica, pois um Gandhi e dos indianos rumo ao mar,
membro da coordenação ou da direção na luta contra o imperialismo inglês; as
nacional participa do processo desde marchas das revoluções mexicana e chi-
o acampamento até as escalas mais nesa e da Coluna Prestes, entre outras.
amplas: regional, estadual e nacional De 2001 a 2010, os acampamentos ga-
(Stedile e Fernandes, 1999). nharam novas características. A medida
Todos os acampamentos têm im- provisória nº 2.109-50, promulgada em
portância histórica nas lutas das famílias 2001, diminuiu o número de ocupa-
Sem Terra. Porém, vale destacar pelo ções, e os Sem Terra, estrategicamente,
26
25. Acampamento
A
passaram a acampar próximo das áreas da família permanecem no acampa-
reivindicadas. Embora, em alguns ca- mento – e, em alguns casos, passou a
sos, recebessem apoio de famílias ser esporádica. Com essas novas ca-
assentadas, a sustentação do acam- racterísticas, os acampamentos, ainda
pamento passou a ser feita principal- que continuem a ser espaços de luta
mente pelas próprias famílias acam- e resistência e que neles se organizem
padas. Outras novas características manifestações e reuniões de negocia-
derivam de fatores como mudanças na ção, já não são mais espaços de perma-
política econômica, com o aumento do nência das famílias acampadas. Porém,
emprego e políticas compensatórias – o acampamento continua sendo essa
do tipo Bolsa Família etc. –, de modo “espécie de geografia perdida” onde
que a participação nos acampamentos os Sem Terra se reúnem para pensar,
deixou de ser de todos os membros da compreender, resistir e lutar por seus
família – apenas um ou dois membros territórios e seu país.
Para saber mais
Brasil. Medida Provisória nº 2.109-50, de 27 de março de 2001. Diário Oficial da
União. Brasília, 28 mar. 2001.
Eckert, C. Movimento dos Agricultores Sem-Terra no Rio Grande do Sul. 1984. Disserta-
ção (Mestrado em Ciências de Desenvolvimento Agrícola) – Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Itaguaí, 1984.
Feliciano, C. A. Movimento camponês rebelde. São Paulo: Contexto, 2006.
Fernandes, B. M. Formação e territorialização do MST no estado de São Paulo. São
Paulo: Hucitec, 1996.
______. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
Justo, M. G. A fresta: ex-moradores de rua como camponeses. In: Fernandes,
B. M.; Medeiros, L. S.; Paulilo, M. I. Lutas camponesas contemporâneas: condições,
dilemas e conquistas – a diversidade de formas de luta no campo. São Paulo:
Editora da Unesp; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento
Rural, 2009. p. 139-158.
Loera, N. C. R. Para além da barraca de lona preta: redes sociais e trocas em
acampamentos e assentamentos do MST. In: Fernandes, B. M.; Medeiros, L. S.;
Paulilo, M. I. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas – a
diversidade de formas de luta no campo. São Paulo: Editora da Unesp; Brasília:
Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 73-94.
Sigaud, L. A engrenagem das ocupações de terra. Fernandes, B. M.; Medeiros, L. S.;
Paulilo, M. I. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas – a
diversidade de formas de luta no campo. São Paulo: Editora da Unesp; Brasília:
Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 53-72.
Stedile, J. P.; Fernandes, B. M. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra
no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1999.
27
26. Dicionário da Educação do Campo
A
AGRICULTURA CAMPONESA
Horacio Martins de Carvalho
Francisco de Assis Costa
Agricultura camponesa é o modo de Os camponeses instauraram, na
fazer agricultura e de viver das famílias formação social brasileira, em si-
que, tendo acesso à terra e aos recur- tuações diversas e singulares, me-
sos naturais que ela suporta, resolvem diante resistências de intensidades
seus problemas reprodutivos por meio variadas, uma forma de acesso li-
da produção rural, desenvolvida de tal vre e autônomo aos recursos da
maneira que não se diferencia o univer- terra, da floresta e das águas, cuja
so dos que decidem sobre a alocação legitimidade é por eles reafirma-
do trabalho dos que se apropriam do da no tempo. Eles investiram na
resultado dessa alocação (Costa, 2000, legitimidade desses mecanismos
p. 116-130). de acesso e apropriação, pela de-
Famílias desse tipo, com essas ca- monstração do valor de modos
racterísticas, nos seus distintos modos de vida decorrentes da forma de
de existência no decorrer da história da existência em vida familiar, vici-
formação social brasileira, teceram um nal e comunitária. A produção
mundo econômico, social, político e estrito senso se encontra, assim,
cultural que se produz, reproduz e afir- articulada aos valores de sociabi-
ma na sua relação com outros agentes lidade e da reprodução da família,
sociais. Estabeleceram uma especifici- do parentesco, da vizinhança e da
dade que lhes é própria, seja em relação construção política de um “nós”
ao modo de produzir e à vida comu- que se reafirma por projetos co-
nitária, seja na forma de convivência muns de existência e coexistência
com a natureza. sociais. O modo de vida, assim es-
As unidades de produção campone- tilizado para valorizar formas de
sas, ao terem como centralidade a repro- apropriação, redistribuição e con-
dução social dos seus trabalhadores di- sumo de bens materiais e sociais,
retos, que são os próprios membros da se apresenta, de fato, como um
família, apresentam uma racionalidade valor de referência, moralidade
distinta daquela das empresas capita- que se contrapõe aos modos de
listas, que se baseiam no assalariamen- exploração e de desqualificação,
to para a obtenção de lucro. Como as que também foram sendo repro-
famílias camponesas reproduzem a sua duzidos no decorrer da existên-
especificidade numa formação social cia da posição camponesa na so-
dominada pelo capitalismo, e dado que ciedade brasileira. (Motta e Zarth,
a economia camponesa supõe os merca- 2008, p. 11-12)
dos, as unidades de produção campone-
sas sofrem influências as mais distintas O modo camponês de fazer agri-
sobre o seu modo de fazer agricultura: cultura não está separado do modo de
28
27. Agricultura Camponesa
A
viver da família, pois é preciso consi- ou parentes, em coletivos mais
derar que os amplos ou com partes do lote ar-
rendados a terceiros;
[...] trabalhadores familiares não • há diversificação de cultivos e
podem ser peremptoriamente criações, alternatividade de uti-
dispensados, porque, em geral, lização dos produtos obtidos,
também são filhos. Eles devem seja para uso direto da família, seja
ser alocados segundo ritmos, para usufr uir de oportunida-
intensidade e fases do processo des nos mercados, e presença de
produtivo. São então sustenta- diversas combinações entre pro-
dos nas situações de não traba- dução, coleta e extrativismo;
lho e integrados segundo proje- • a unidade de produção camponesa
tos possíveis para constituição pode produzir artesanatos e fazer o
e expansão do patrimônio fa- beneficiamento primário de produ-
miliar, para inclusão de novas tos e subprodutos;
gerações, conforme as alternati- • existe garantia de fontes diversas
vas de sucessão ou de negação de rendimentos monetários para a
da posição. Essas alternativas família, desde a venda da produção
são assim interdependentes da até a de remuneração por dias de
avaliação da posição e das viabi- serviços de membros da família;
lidades da reprodução da cate- • a solidariedade comunitária (troca
goria socioeconômica. (Neves, de dias de serviços, festividades, ce-
2005, p. 26) lebrações), as crenças e os valores
religiosos por vezes impregnam as
Essa complexa interação, variável práticas da produção;
nos tempos e nas circunstâncias, apre- • estão presentes elementos da cul-
senta diversas características: tura patriarcal;
• e, enfim, mas não finalmente, exis-
• os saberes e as experiências de tem relações afetivas e simbóli-
produção vivenciados pelas famí- cas com as plantas, os animais, as
lias camponesas são referenciais águas, os sítios da infância, com a
importantes para a reprodução de paisagem... e com os tempos.
novos ciclos produtivos;
• as práticas tradicionais, o intercâm- Na racionalidade das empresas ca-
bio de informações entre vizinhos, pitalistas, a única referência é o lucro
parentes e compadres, o senso co- a ser obtido. E, de maneira geral, o lu-
mum, assim como a incorporação cro é encarado independentemente dos
gradativa e crítica de informações impactos sociais, políticos, ambientais
sobre as inovações tecnológicas e alimentares que ele possa provocar.
que se apresentam nos mercados, No modo capitalista de fazer agricultu-
constituem um amálgama que con- ra, é crescente a concentração das ter-
tribui para as decisões familiares ras como resultado do privilegiamen-
sobre o que fazer; to da produção em escala, que requer
• o uso da terra pode ocorrer de ma- grande extensão contínua de área para
neira direta pela família, em par- a prática do monocultivo e tecnologias
ceria com outras famílias vizinhas com uso intensivo de insumos quími-
29
28. Dicionário da Educação do Campo
cos, particularmente agrotóxicos, que obter o máximo de produção possí-
maximizam a produção por área e, vel por dada quantidade de recurso,
em combinação com a mecanização, sem deteriorar a sua qualidade;
alteram e diversificam as formas de • com força de trabalho nem sem-
exploração do trabalho, ainda que pre- pre abundante e com objetos de
domine a contratação de trabalhadores trabalho relativamente escassos, a
assalariados temporários. Como o ob- tendência é de produção diversi-
jetivo central das escolhas na empresa ficada e intensiva por unidade de
capitalista é a máxima lucratividade área explorada;
possível, a artificialização da agricultu- • como os recursos sociais e os mate-
ra tem sido o caminho entendido como riais disponíveis representam uma
o mais eficiente. unidade orgânica, são apropriados
e controlados por aqueles que estão
Uma das implicações da matriz diretamente envolvidos no proces-
tecnológica e de produção do modo so de trabalho, tendo como refe-
capitalista de fazer agricultura é a de- rência um repertório cultural local
gradação ambiental e das pessoas, além historicamente constituído;
da indiferença perante os interesses • a lógica da unidade de produção
mais gerais da população, como os camponesa é alicerçada na centrali-
de construção da soberania popular e dade do trabalho, por isso os níveis
alimentar. Para resistirem às pressões de intensidade e desenvolvimento
derivadas da racionalidade dominante, da incorporação e inovação tecno-
as famílias que praticam o modo cam- lógicas dependem criticamente da
ponês de fazer agricultura, afirmando quantidade e qualidade do trabalho;
valores que determinam a sua condição • o processo de produção é tipica-
camponesa, tendem a orientar as suas mente fundado numa reprodução
escolhas de acordo com as complexi- relativamente autônoma e histo-
dades que emergem da sua tensa bus- ricamente garantida, e o ciclo de
ca por autonomia relativa no que diz produção é baseado em recursos
respeito ao capital e da sua inserção produzidos e reproduzidos duran-
crescente nos mercados. Nessa pers- te ciclos anteriores (Ploeg, 2008,
pectiva, algumas tendências da práxis p. 60-61).
da agricultura camponesa, além das
características referidas anteriormente, O uso corrente da expressão agri-
podem ser assinaladas: cultura camponesa por amplas parce-
las das próprias famílias camponesas
• é orientada para a produção e para no processo de construção da sua
o crescimento do máximo valor identidade social, pelos movimentos
agregado possível e do emprego e organizações populares no campo,
produtivo; os ambientes econô- por organismos governamentais, pela
micos hostis são enfrentados pela intelectualidade acadêmica e por par-
produção de renda independente, cela dos meios de comunicação de
usando basicamente recursos auto- massa tem sido crescente nas últimas
criados e automanejados; décadas. Isso decorre, por um lado, da
• como conta com recursos limitados aceitação da concepção, no Brasil con-
por unidade de produção, tende a temporâneo, de que a agricultura cam-
30
29. Agricultura Camponesa
A
ponesa é expressão de um modo de A expressão agricultura familiar
se fazer agricultura distinto do modo traz como corolário da sua concepção
de produção capitalista dominante, e, a ideia de que a possibilidade de cresci-
nesse sentido, o campesinato se apre- mento da renda familiar camponesa só
senta na formação social brasileira com poderá ocorrer se houver a integração
uma especificidade, uma lógica que lhe direta ou indireta da agricultura fami-
é própria na maneira de produzir e de liar com as empresas capitalistas, em
viver, uma lógica distinta e contrária particular as agroindústrias.
à dominante. Em 24 de julho de 2006, foi sancio-
Por outra parte, o campesinato se nada pelo presidente da República a lei
confronta ideologicamente, e com as con- nº 11.326, que estabeleceu as Diretrizes
sequências daí resultantes, com duas para a Formulação da Política Nacional
expressões já usuais, que se fizeram da Agricultura Familiar e Empreendi-
hegemônicas no campo, e que são de- mentos Familiares Rurais, oficializando
corrência dos interesses das concepções a expressão agricultura familiar com
das empresas capitalistas: agricultura de concepção distinta daquela da empresa
subsistência e agricultura familiar. capitalista no campo.
A expressão agricultura de subsis- A oficialização da expressão agri-
tência, presente nos discursos dominan- cultura familiar teve como objetivo
tes desde o Brasil colonial, discrimina estabelecer critérios para o enquadra-
os camponeses por serem produtores mento legal dos produtores rurais com
de alimentos – uma tarefa considerada certas características que os classifi-
subalterna, ainda que necessária para a cavam como agricultores familiares.
reprodução social da formação social Isso para obtenção, por parte desses
brasileira –, contrapondo-os ao modo agricultores familiares, de benefícios
dominante de se fazer a agricultura, o governamentais, sendo indiferente o
qual se reproduz desde as sesmarias até fato de esses agricultores estarem em
a empresa capitalista contemporânea, situação de subordinação perante as
mantendo a tendência geral de se espe- empresas capitalistas ou se eram repro-
cializar no monocultivo e na oferta de dutores da matriz de produção e tecno-
produtos para a exportação. lógica dominante.
A partir da denominada Revolução Já a expressão agricultura campo-
Verde na agricultura, iniciada em meados nesa comporta, na sua concepção, a es-
da década de 1950 e revivificada a partir pecificidade camponesa e a construção
dos anos 1980, com a expansão mun- da sua autonomia relativa em relação
dial da concepção de artificialização da aos capitais. Incorpora, portanto, um
agricultura e a ampliação dos contratos diferencial: a perspectiva maior de for-
de produção entre as empresas capitalis- talecimento dos camponeses pela afir-
tas e as famílias camponesas, introduziu- mação de seu modo de produzir e de
se a expressão agricultura familiar, outrora viver, sem com isso negar uma moder-
de uso consuetudinário aqui e acolá, mas nidade que se quer camponesa.
acentuado desde a década de 1990, e con- Nos diversos contextos históricos e
sagrada em lei (Brasil, 2006) como expres- fisiogeográficos em que ela se tem se
são formal, porque utilizada por progra- afirmado e nas ecobiodiversidades nas
mas e políticas públicas governamentais. quais têm praticado os mais distintos
31
30. Dicionário da Educação do Campo
sistemas de produção agropecuária e Os camponeses que não aceitam
florestal e as mais variadas práticas ex- os processos de exploração eco-
trativistas, sempre no âmbito de suas nômica e de dominação política
estratégias de reprodução social, a agri- pelas classes dominantes capita-
cultura camponesa tem mantido como listas construíram, de certa for-
marca indelével da sua presença a ênfa- ma, uma identidade destinada à
se na produção de alimentos, tanto para resistência [...]. Ela dá origem a
a reprodução da família quanto para o formas de resistência coletiva
abastecimento alimentar da sociedade diante de uma opressão que, do
em sentido amplo. contrário, não seria suportável,
No Brasil, a produção de alimentos em geral com base em identida-
para o mercado interno, apesar de ser des que, aparentemente, foram
considerada pelos valores dominantes definidas com clareza pela his-
como o resultado de uma agricultura tória, geografia ou biologia, fa-
subalterna, torna-se cada vez mais uma cilitando assim a “essencializa-
opção estratégica para se alcançar a so- ção” dos limites da resistência
berania alimentar do país. [...]. (Castells, 1999, p. 25)
Mesmo sendo a principal produtora
de alimentos, a agricultura camponesa Segundo Comerford, tem havido
no país enfrentou, e enfrenta, desde formas cotidianas de resistência e,
o seu surgimento no período colonial
até a época atual, os mais distintos ti- [...] nesse cotidiano tenso, os
pos de empecilhos: dificuldades políti- camponeses mobilizam rela-
cas do acesso à terra, várias formas ções de parentesco, de vizi-
de pressão e repressão para a sua nhança, amizade e compadrio,
subalternização às empresas capita- mais do que organizações for-
listas, exploração continuada da mais de representação de inte-
renda familiar por diversas fra- resses ou de mobilização polí-
ções do capital, indução direta e in- tica. Tais formas “informais”
direta para a adoção de um modelo de resistência, seguindo a linha
de produção e tecnológico que lhes de raciocínio de autores como
era e é desfavorável e a desqualifica- Scott, derivam em boa parte de
ção preconceituosa e ideológica dos sua eficácia do fato de não se
camponeses, sempre considerados assumir como conflito aberto
à margem do modo capitalista de e de não se organizar explici-
fazer agricultura.
tamente como tal. (Comerford,
Essas iniciativas de subjugar a agri- 2005, p. 156)
cultura camponesa foram exercidas
outrora por latifundiários e seus pre- Muito além das diferentes maneiras
postos, mas têm sido contemporanea- de como se dá a resistência social da
mente efetivadas pelas empresas e cor- agricultura camponesa perante as ofen-
porações capitalistas com negócios no sivas do capital, o que está em confron-
campo. O processo histórico de subal- to são dois paradigmas profundamente
ternização dos camponeses estimulou distintos de como se faz agricultura: o
diferentes formas de resistência social: camponês e o capitalista.
32
31. Agricultura Camponesa
A
Não são raras as situações em cial brasileira contribuiu para o forta-
que unidades familiares camponesas lecimento dos movimentos e organiza-
e empresas capitalistas cooperam ções sociais populares no campo, que
umas com as outras. Não são raras, facilitam, ainda que com contradições,
também, as situações em que os cam- a passagem de uma identidade de re-
poneses tentam imitar a lógica capi- sistência para uma identidade social de
talista, que lhes é antagônica, e na projeto (Castells, 1999, p. 22-23). Essa
maior parte das vezes inviabilizam-se afirmação da identidade social campo-
economicamente por isso. Portanto, nesa concorre para a construção da sua
como sempre, os camponeses estão autonomia como sujeito social e para a
cercados de armadilhas. sua prática social como classe, seja no
Com a expansão crescente das ino- âmbito das lutas de resistência social
vações tecnológicas a partir dos avan- contra a sua exploração pelas distintas
ços na manipulação genética, foram frações dos capitais, seja no âmbito da-
ampliadas as formas de subalternização quelas em que defende e afirma a sua
da agricultura camponesa ao capital, cultura e o seu modo de fazer agricul-
que agora se dão predominantemente tura e de viver.
pelo intenso e impositivo processo de A tendência da agricultura campo-
artificialização da produção agropecuá- nesa contemporânea de afirmar a sua
ria e florestal, em particular pela oligo- autonomia relativa perante as diversas
polização por empresas transnacionais frações do capital, de se apoiar no prin-
com a oferta de sementes transgênicas cípio da coevolução social e ecológica
e de insumos de origem industrial, e e de enveredar pela agroecologia man-
pelo estímulo das agroindústrias à es- tém a possibilidade da sua reprodução
pecialização da produção camponesa. social, dado que constrói socialmente
Desde então, o modelo tecnológico as bases de outro paradigma para se fa-
concebido pelos grandes conglomerados zer agricultura.
empresariais transnacionais relacionados A tensão econômica, social, política
com as empresas capitalistas no campo, e ideológica gerada no confronto entre
e que conta com o apoio de diversas a lógica camponesa e a capitalista de se
políticas públicas estratégicas, tornou-se fazer agricultura permite sugerir que
o referencial para o que se denominou se está, desde o Brasil colonial, peran-
“modernização da agricultura”. E se rei- te uma altercação mais ampla do que
ficou a produção de mercadorias agríco- somente entre modos de se fazer agri-
las (commodities) para a exportação em de- cultura: são concepções e práticas de
trimento da produção de alimentos para vida familiar, produtiva, social, cultural
a maioria da população. e de relação com a natureza que, não
O crescente processo de identidade obstante coexistirem numa mesma for-
camponesa e, portanto, de consciência mação social, negam-se mutuamente,
da sua especificidade na formação so- são antagônicas entre si.
Para saber mais
Brasil. Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006: estabelece as diretrízes para formu-
lação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares
Rurais. Diário Oficial da União, Brasília, 25 jul. 2006.
33
32. Dicionário da Educação do Campo
Castells, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. (A era da infor-
mação: economia, sociedade e cultura, 2).
Clifford, A. W. et al. (org.). Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássi-
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Comerford, J. C. Cultura e resistência camponesa. In: Motta, M. (org.). Dicionário
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Ploeg, J. D. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilida-
de na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.
A
Agricultura familiar
Delma Pessanha Neves
O termo agricultura familiar corres- dutores (agricultores familiares) a serem
ponde a múltiplas conotações. Apre- alcançados pela categorização oficial
senta-se como categoria analítica, de usuários reais ou potenciais do Pro-
segundo significados construídos no grama Nacional de Fortalecimento da
campo acadêmico; como categoria de Agricultura Familiar (Pronaf) (decreto
designação politicamente diferenciado- nº 1.946, de 28 de junho de 1996).
ra da agricultura patronal e da agricultura Como categoria analítica, a despeito
camponesa; como termo de mobilização de algumas distinções reivindicadas no
política referenciador da construção de campo acadêmico, corresponde à dis-
diferenciadas e institucionalizadas ade- tinta forma de organização da produ-
sões a espaços políticos de expressão ção, isto é, a princípios de gestão das
de interesses legitimados por essa mes- relações de produção e trabalho sus-
ma divisão classificatória do setor agro- tentadas em relações entre membros
pecuário brasileiro (agricultura familiar, da família, em conformidade com a
agricultura patronal, agricultura camponesa); dinâmica da composição social e do
como termo jurídico que define a am- ciclo de vida de unidades conjugais
plitude e os limites da afiliação de pro- ou de unidades de procriação familiar.
34
33. Agricultura Familiar
A
Por essa definição, advogam os autores corresponde a formas de organização
que investem na respectiva construção da produção em que a família é ao
conceitual, é forma de organização da mesmo tempo proprietária dos meios
produção que se perde no tempo e es- de produção e executora das atividades
paço, e/ou forma moderna de inser- produtivas. Essa condição imprime es-
ção mercantil (ver Abramovay, 1992; pecificidades à forma de gestão do
Bergamasco, 1995; Francis, 1994; estabelecimento, porque referencia ra-
Lamarche, 1993, p. 13-33; Wanderley, cionalidades sociais compatíveis com
1999). Engloba a pressuposta agricul- o atendimento de múltiplos objetivos
tura de subsistência – isto é, de orien- socioeconômicos; interfere na criação
tação do uso de fatores de produção de padrões de sociabilidade entre famí-
por referências fundantes da vida fa- lias de produtores; e constrange certos
miliar e marginais aos princípios de modos de inserção no mercado pro-
mercado (ver Chayanov, 1981; Silva e dutor e consumidor (ver Veiga, 1995;
Stolcke, 1981, p. 133-146); a economia Wanderley, 1995).
camponesa – modo de produzir orien-
Como a capacidade e as condições
tado por objetivos e valores construí-
de trabalho são articuladas com base
dos pela vida familiar e grupos de lo-
em relações familiares, a análise concei-
calidade, nesses termos historicamente
tual da agricultura familiar leva em con-
datado porque articulado à presença do
sideração a diferenciação de gênero, os
Estado, da cidade (suas feiras e merca-
ciclos de vida e o sistema de autorida-
dos, sua correspondente divisão social
de familiar em diferentes contextos:
do trabalho) e da sociabilidade comu-
quando a concepção de família integra
nitária (ver Franklin, 1969; Galeski,
a prática de seus membros como partes
1977; Mendras, 1978; Ortiz, 1974;
da unidade de produção, rendimentos
Powell, 1974; Sjoberg, 1967; Wolf, 1970), e consumo, e, em certos domínios da
mas também produtores mercantis vida social, irmana os afiliados enquan-
constituídos em consonância com or- to coletivo; ou, por contraposição ana-
denações da especialização da produ- lítica, quando os familiares se orientam
ção – nesses termos, referenciada aos por valores individualizantes, exigindo
fluxos de oferta e demanda do mer- negociações que abarquem projetos
cado, de padronização da mercadoria individuais e coletivos. Em quaisquer
e de inclusão de tecnologia orientada das situações, os trabalhadores familia-
pela interdependência entre agricultura res não podem (ou não devem) ser pe-
e indústria, fatores que operam na re- remptoriamente dispensados (tal como
ordenação das condições de incorpo- ocorre com o assalariamento da força
ração do trabalho familiar (ver Amin de trabalho), porque geralmente são
e Vergopoulos, 1978; Faure, 1978; também filhos ou agregados, herdei-
Lenin, 1982; Lovisolo, 1989; Neves, ros do patrimônio por direitos formais
1981; Paulilo, 1990; Schneider, 1999; e morais. Em termos gerais, eles são
Wilkinson, 1986). alocados segundo ritmos, intensidades
Para efeitos de construção de uma e fases do processo produtivo compa-
definição geral – isto é, capaz de abs- tíveis com os padrões de definição dos
tratamente referenciar a extensa di- ciclos de vida (meninos, jovens e adul-
versidade de situações históricas e so- tos distintos segundo relações de gêne-
cioeconômicas –, a agricultura familiar ro, sempre situacionais). São eles então
35
34. Dicionário da Educação do Campo
sustentados nas situações de não traba- orgânica, sistemas agroflorestais etc.).
lho e integrados segundo projetos pos- Ademais, os sentidos moralizantes que
síveis para constituição e expansão do se consagraram no termo agricultura
patrimônio familiar, para inclusão de familiar pressupunham a resistência
novas gerações. Essa inserção em boa política à concentração de meios de
parte é definida segundo plausibilida- produção e à deterioração das formas
des de projeções mediadas por interfe- de inserção do trabalho assalariado na
rências mais amplas dos estilos de vida agroindústria. Abriam assim alterna-
socialmente consagrados ou recomen- tivas para a expansão e a reconstitui-
dados, ou conforme as alternativas de ção de agricultores familiares, mediante
sucessão ou negação da posição dos fi- programas de assentamento rural e de
lhos como agricultores. As alternativas transformação de meeiros e parceiros
são assim interdependentes da avalia- em produtores titulares por crédito
ção da posição por quem a ocupa e das fundiário, bem como todo o combate a
viabilidades de reprodução da catego- formas aviltantes de assalariamento, no
ria socioeconômica ou profissional.1 limite criminalmente qualificadas como
Como termo de designação distintiva trabalho escravo, trabalho análogo ao escravo,
de projetos societários, foi construído vi- trabalho em condições degradantes.
sando demarcar defensivamente os in- A associação da forma agricultura fa-
vestimentos destinados a preservar a miliar à disputa de sentidos atribuídos
reprodução social de agricultores par- aos projetos societários, para além da
celares e relativamente especializados, contraposição à agricultura patronal ou
inclusive por práticas de criação de va- à agroindústria, também veio a consoli-
lor agregado aos produtos e de inserção dar uma distinção em relação ao termo
em nichos de mercado. O horizonte do agricultura camponesa. Esse embate por
projeto político prescrevia a criação construção de sentidos pode ser com-
de meios de luta e reafirmação política preendido pela qualificação da Agri-
da democracia e da cidadania da popu- Cultura Camponesa neste dicionário.
lação qualificada, em termos de recen- Como termo de mobilização política, a
seamento, como rural. Aqueles senti- agricultura familiar corresponde a enfei-
dos decorreram então de investimentos xamentos de sentidos ideológicos para
acadêmicos e políticos voltados para a legitimar processos de transferência de
reafirmação da existência da produção recursos públicos, consequentemen-
familiar, em contextos de construção da te diferenciados daqueles que apenas
hegemonia do capitalismo neoliberal. contemplem o restrito sentido da re-
A legitimidade dos sentidos atribuídos produção do capital; ou de recursos
ao termo agricultura familiar pressupu- que circulem na contramão de proces-
nha, em nome daqueles efeitos, certas sos de concentração de meios de pro-
orientações de comportamento (econô- dução. Por isso mesmo, na definição
mico e político) que se contrapusessem do segmento de produtores vincula-
aos efeitos desestruturantes do modelo dos à agricultura familiar, integram-se,
agroindustrial. Demarcavam, então, o como questão fundamental do debate
atrelamento a modelos de desenvolvi- político, as acusações ou defesas do
mento qualificados como sustentáveis caráter social daquelas transferências
(práticas produtivas não predatórias, de recursos na forma de créditos con-
tais como agroecologia, agricultura tratados a juros subsidiados. Tanto que
36
35. Agricultura Familiar
A
de imediato foi possível, no campo Na modalidade das atividades do meio
do debate político, distinguir vários ti- rural e dos modos de apropriação dos
pos de público, aí integrando os assen- recursos naturais, reconhecem-se di-
tados rurais, antes objeto de programas versas posições sociais e situacionais:
especiais de composição financeira do agricultores, silvicultores, aquicultores,
patrimônio produtivo, além de produ- extrativistas e pescadores. A cada uma
tores antes condenados ao pressuposto dessas posições, correspondem restri-
ou ao desejado desaparecimento – ribei- ções distintivas nos termos da referida
rinhos, extrativistas, pescadores artesanais –, legislação. Portanto, a definição geral é
por generalizações homogeneizan- nesse mesmo ato relativizada, abrindo
tes, por vezes significativamente reco- assim alternativas para novas inclusões,
nhecidos como populações tradicionais. reconhecidas mediante reivindicações
Como termo jurídico, a agricultura fa- políticas de representações delegadas de
miliar exprime percalços e conquistas grupos que se veem como agricultores
alcançadas por investimentos de re- familiares e que lutam por se adequar ou
presentantes do campo acadêmico, dos redimensionar os critérios básicos da re-
espaços de delegação de porta-vozes ferida categorização socioeconômica.
que reafirmam a legitimada constru- A conquista de tais definições e res-
ção de interesses específicos desses pectivos direitos é importante para a
agricultores e de alguns órgãos do Es- diminuição de certo insulamento polí-
tado. Pela convergência de intenções e tico e cultural. E para o enfrentamen-
negociações de sentidos transversais, to da atribuída e imposta precariedade
esses representantes vieram a colocar material dos camponeses, dos pequenos
em prática a constituição do projeto produtores, dos arrendatários, dos parcei-
de designação distintiva de agricultores ros, dos colonos, dos meeiros, dos assenta-
açambarcados pelo termo agricultor fa- dos rurais, dos trabalhadores sem-terra –
miliar. Nessa perspectiva, o termo deve designações mais aproximativas da di-
ser entendido pelos critérios que distin- versidade de situações socioeconômi-
guem o produtor por seus respectivos cas assim abarcadas.
direitos, nas condições asseguradas pela Portanto, os sentidos que no con-
legislação específica (decreto nº 1.946, texto estão implicados no termo agri-
de 28 de junho de 1996, lei nº 11.326, cultura familiar acenam para um padrão
de 24 de julho de 2006, especialmente ideal de integração diferenciada de
artigo 3º, e demais instrumentos que uma heterogênea massa de produtores
vão adequando os desdobramentos e trabalhadores rurais. Tal integração
alcançados e incorporados): agricultor se legitima por um sistema de atitudes
familiar é o que pratica atividades no que lhe está associado, denotativo da
meio rural, mas se torna sujeito de di- inserção num projeto de mudança
reitos se detiver, a qualquer título, área da posição política. Por esse engaja-
inferior a quatro módulos fiscais; deve mento, os agricultores que aderem ao
apoiar-se predominantemente em mão processo de mobilização tornam-se
de obra da própria família e na gestão concorrentes na disputa por créditos
imediata das atividades econômicas e serviços sociais e previdenciários; na
do estabelecimento, atividades essas demanda de construção de mercados e
que devem assegurar o maior volume de cadeias de comercialização menos
de rendimentos do grupo doméstico. expropriadoras; na reivindicação de
37
36. Dicionário da Educação do Campo
assistência técnica correspondente aos de concentração fundiária e seus des-
processos de trabalho e produção que dobramentos, ainda objetivados pela
colocam em prática; na reivindicação agroindústria ou pelo agronegócio.
do reconhecimento como protagonis- Pela objetivação do processo, fo-
tas em processos de tomada de deci- ram construídos quadros institucionais
sões políticas que lhes digam respeito para a assistência técnica, especializa-
ou que sobre eles intervenham – o que ções profissionais em plano de forma-
equivale a tentar interferir nos padrões ção graduada e pós-graduada, reco-
de apropriação de recursos públicos nhecimentos de inserções produtivas e
por outros segmentos de produtores de autonomia entre mulheres e jovens
do setor agropecuário brasileiro. Os pertencentes ao segmento em pauta.
sentidos designativos do termo acenam E por fim se consolidou um dinâmico
para desdobramentos e redefinição de mercado editorial temático.
objetivos conquistáveis no processo de
luta pela Reforma Agrária ou pelo aces- A abertura de espaços sociais propi-
so à terra respaldado pelo estatuto da ciadores da elaboração de projetos para
posse, bem como para reivindicações a construção de categoria sociopro-
pelo reconhecimento formal-legal de fissional, em se tratando de processos
formas diferenciadas de apropriação de mudanças politicamente desejadas,
de recursos naturais. exprime o conjunto de respostas a pro-
posições de certos mediadores privi-
Pelos múltiplos significados que con- legiados. As respostas correspondem
templa, o termo agricultura familiar sinali- a formas de reconhecimento público
za ainda para a minimização de conflitos da enorme dívida social para com tais
no campo, por perda de reconhecimento agricultores. Basta então considerar que
de detratores de espíritos mais conserva- eles ainda se apresentam como deman-
dores, dado que por ele se prospecta a dantes de recursos sociais fundamen-
modernidade no campo e se consolida tais, recursos cuja ausência ou negação
a expansão da massa de consumidores – são extravagantes para esse início de
ou, como se costuma laurear, a construção milênio (serviço escolar, serviço médi-
de uma classe média no campo. co, energia elétrica e estradas para me-
Em consequência, o engajamento lhorar a mobilidade espacial e escoar
orientado para a construção de um pro- a produção), mas também recursos
jeto político para agricultores familiares instrumentais para a criação de canais
adquiriu grande importância. Ele cor- de comunicação com outros mundos
respondeu ao deslocamento social de sociais e espaços de diferenciação de
um segmento de trabalhadores e pro- relações de poder. Em síntese, recur-
dutores pobres (nos termos da atribui- sos fundamentais para a incorporação
ção de sentido por abrangência econô- de outras formas de exercício de cida-
mica, política e cultural), secularmente dania, dotadas de meios que reneguem
marginalizados dos privilegiados in- a mutilação cultural e a desqualificação
vestimentos destinados à agricultura – social, tão eficazes se mostraram e se
nesse caso, entenda-se a agroindústria mostram para a condenação dos agri-
exportadora; ou de trabalhadores poli- cultores pelo atraso e para a ficção da
ticamente emergidos pela expropriação resistência à mudança, tergiversando a
inerente à consolidação de processos vítima em seu próprio algoz.
38
37. Agricultura Familiar
A
Assim sendo, o termo agricultura fa- mitantes dos objetivos preconizados
miliar vem se consagrando nos quadros para o trabalho acadêmico. A categoria
institucionais de aplicação do Pronaf, analítica agricultura familiar passa então
política de intervenção que constituiu a incorporar o mesmo efeito desejan-
o respectivo setor produtivo e o conso- te da dupla naturalização do familiar.
lidou em estatuto formal-legal. Respei- E de tal modo que, em termos analíticos,
tando tal campo semântico, os signifi- pode-se perguntar: o que se ganha ao
cados que o termo designa devem ser identificar agricultores como familia-
compreendidos (mesmo que de forma res ou uma forma de produzir como
não consensual e, como toda definição familiar, para além da contraposição
política, provisória ou contextual) pela política ao caráter capitalista de certas
definição jurídica que até aqui o termo al- formas de produzir? Que consequên-
cançou, isto é, conforme os conteúdos cias pode ter a simplificação do plano
atribuídos por definições politicamente dos valores familiares aos valores ine-
construídas, conquistadas por negocia- rentes à objetivação dos princípios da
ções de interesses e conquistas relati- reprodução do capital? O que se deixa
vas, cristalizadas nos textos que vão de considerar no domínio das relações
instituindo o Programa Nacional de familiares quando elas aparecem inte-
Fortalecimento da Agricultura Fami- gradas apenas a processos produtivos?
liar. Na conquista desse reconhecimen- E o que se deixa de considerar na pro-
to acadêmico, político e jurídico, a agri- dução estrito senso quando o vetor de
cultura familiar pode, em termos bem compreensão se reduz ao domínio das
gerais ou abstratos, ser consensual- relações familiares?2
mente assim conceituada: modelo de or- Como procurei demonstrar neste
ganização da produção agropecuária onde texto, os traços constitutivos dos agen-
predominam a interação entre gestão e tra- tes produtivos que foram rubricados
balho, a direção do processo produtivo pelos como agricultores familiares não se en-
proprietários e o trabalho familiar, comple- contram tão somente nas relações em
mentado pelo trabalho assalariado. jogo nos termos agricultura e família,
Entrementes, pela necessária am- mas nos diversos projetos políticos de
biguidade que confere especial eficácia constituição de uma categoria socio-
à definição jurídica, o termo se torna econômica (dotada especialmente de
objeto de tantas outras consagrações direitos sociais e previdenciários), ou
políticas. Uma delas diz respeito à ade- em projetos societários concorrentes.
são de pesquisadores, em diversos do- Levando-se em conta esses emara-
mínios das ciências sociais e agrárias, nhados de sentidos, faz-se necessário
que sistematicamente vêm tentando reconhecer que tanto agricultor familiar –
construir meios de interpretação, al- categoria socioprofissional e agente
guns deles acompanhando a imediata social correspondentes ao distintivo
rasteira das mudanças políticas e das segmento da agricultura familiar – quan-
diversas formas de inserção que vão to agricultura familiar são termos clas-
ganhando expressão pública. Essa ade- sificatórios construídos como produ-
são orientada pelo investimento inter- tos de ação política. São termos cujos
pretativo, nos casos em que a sintonia sentidos designados devem se adequar
não é metodologicamente colocada a dinâmicas que se desdobram nos
em questão, corresponde a efeitos li- campos de luta que elaboram catego-
39
38. Dicionário da Educação do Campo
rizações positivas e negativas. Jamais Diante dos investimentos políti-
podem ser compreendidos como um cos para a construção social da ca-
estado, como substantivos dotados de tegoria socioeconômica (agricultor fa-
essência, pois que eles não têm sentido miliar) ou do exercício do fazer-crer
em si mesmos – salvo quando, no de- uma organização desejada (agricultu-
bate político, essas reificações devam ra familiar versus agricultura patronal,
ser acolhidas para fazer-crer o que se agricultura camponesa), aos cientistas
deseja crível, o que se deseja real, e, sociais cumpre o dever de restituir
por conseguinte, em nome da dissi- o caráter sociológico da categoria:
mulação daquele estatuto que o termo
reconhecer que esses termos evo-
adquire como recurso de mobilização
cam uma designação social e têm
política. Da mesma forma, devem
ser compreendidos como expressão sua eficácia política porque criam
de espaços de luta na constituição de posições e direitos correspondentes.
produtores por diferentes trajetórias, E assim, também reconhecer que
mormente daqueles que, por diversos esses exercícios políticos e acadêmi-
interesses, nem sempre politicamente cos são provisórios, porque sempre
convergentes, querem assim ser so- passíveis de novas interpretações e
cialmente reconhecidos. contra-argumentações.
Notas
1
Sobre o peso dos valores familiares na organização da unidade produtiva, ver Carneiro, 2000.
2
Essas questões têm sido por mim refletidas com maior detalhe em outros textos. Ver
Neves, 1995, 2006 e 2007.
Para saber mais
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A
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