Este artigo descreve como a globalização está reestruturando o trabalho humano em uma escala global através da deslocalização de empresas e trabalho barato. Ele usa o exemplo da produção agrícola de frutos vermelhos no sudoeste de Portugal, onde grandes empresas estrangeiras empregam imigrantes em condições precárias para obter mão de obra barata e sazonal. Embora isso tenha trazido sucesso econômico para alguns, também resultou na degradação das condições de trabalho e na exploração de trabalhadores imigrantes sem proteções leg
1. 46 | PÚBLICO,QUI14JUL2016
MIGUEL MANSO
(Des)globalização
do trabalho
F
lexibilização, trabalho “atípico”,
outsourcing, subcontratação,
empresas em rede, trabalho
temporário, falsos “recibos
verdes”, subemprego? Todas
essas fórmulas parecem
ultrapassadas perante uma
realidade sistémica que está a
reestruturar o trabalho humano
na escala global. É uma nova
lógica onde direitos laborais e sindicatos
são termos banidos do novo léxico do
“empreendedorismo”. É o trabalho-
mercadoria no seu estado mais degradado.
O baixo custo dos salários conjuga-se
hoje com a facilidade de mobilidade e
deslocalização na “sociedade líquida” em
que vivemos. Líquida, mas comandada
por forças muito sólidas e poderosas: 1)
trabalho barato; 2) meios de produção
e habitat adequados; e 3) facilidade de
escoamento dos produtos, são as condições
“ideais” para a rentabilização dos grandes
investimentos. É este o resultado das
grandes “reformas” que a economia
neoliberal tem vindo a promover nas
últimas três décadas.
Um exemplo “português” pode ser
ilustrado com a produção agrícola de
frutos vermelhos no Sudoeste alentejano.
Calcula-se que neste momento existam
cerca de 1500 hectares de estufas só no
concelho de Odemira, e o negócio tem
prosperado tão rapidamente que as
empresas de fruticultura aí instaladas
tencionam multiplicar esta área para o
dobro até ao final da década. Segundo o
vice-presidente da Lusomorango, uma
sociedade anónima que funciona como
organização de produtores, a faturação
passou de cinco milhões de euros em
2005 para 36,8 milhões em 2014. 90 por
centro da exportação de framboesa situa-
se naquele concelho, e, somados os vários
frutos vermelhos produzidos em estufas,
ultrapassou os cem milhões de lucro em
2015. Um dos membros do grupo chama-
se Maravilha Farms, firma constituída em
2007 com sede em São Teotónio, e que
pertence à Reiter Afilliated Companies,
multinacional americana, da Califórnia —
a maior produtora do universo Driscoll’s,
também acionista da Lusomorango. Um dos
seus representantes reconhece as condições
paradisíacas que encontrou na região:
“o clima ameno, entre Sines e Lagos, e a
abundância de água de grande qualidade”
(veja-se artigo no PÚBLICO, 03/06/2015).
Para lá do inegável impacto na economia
portuguesa, no que toca ao emprego a
maioria dos postos de trabalho criados
tem vindo a ser ocupada por imigrantes.
Mas não são exatamente imigrantes no
sentido tradicional, porque não procuram
fixar-se, antes integram os circuitos globais
da força de trabalho barata e sazonal.
Embora os números sejam difíceis de
conferir (até porque a cobertura legal,
quer de trabalhadores quer das empresas
fornecedoras é muito duvidosa), sabe-
se que no ano de 2013, a população
estrangeira no concelho de Odemira
já correspondia a 12,8 por cento dos
residentes. Entre 2008 e 2013 o número de
imigrantes aumentou exponencialmente,
sendo os “asiáticos” e “outros países” a
grande maioria.
Entre eles temos os
búlgaros (34,7%),
tailandeses (13,2%) e
alemães (12,3%) que
já eram a maioria
dos registados em
2013. Além disso,
o atendimento
oferecido pelo
Centro Local de
Apoio à Integração
de Imigrantes
(CLAII) revelou
entre junho de
2015 e fevereiro
de 2016 uma
maioria de visitas
de nepaleses (com
98 atendimentos),
indianos (98) e
tailandeses (38), o que deixa antever aquilo
que pode constatar-se a olho nu por quem
circule pelas povoações do concelho. A
população residente em São Teotónio
multiplicou quatro a cinco vezes nos
últimos anos.
Esta realidade proporciona-nos paisagens
sociais sui generis, até com alguns traços
exóticos, como nos relatava há uns meses
uma reportagem do jornal Expresso: “O
que fazem camponeses da Tailândia, na
estrada para a Zambujeira do Mar? O que
faz um sikh, com o seu turbante e uma
cana de pesca, próximo do Carvalhal? Por
quem esperam os nepaleses sentados em
posição de flor de lótus, ao pôr do sol,
junto ao Brejão? Para onde vão os cidadãos
Ondepára
avelha
bandeiradaOIT
—“Otrabalho
nãoéuma
mercadoria”?...
Francisco Assis interrompe a sua crónica,
para férias, regressando em Setembro
bengalis que caminham cobertos de pó
próximo da Azenha do Mar? Não estão de
passagem. Não são forasteiros. Não são
turistas.” (jornal Expresso, 5/12/2015). O
impacto local desta pluralidade de origens,
culturas, vestuários e comportamentos
adquire as mais variadas matizes, desde
as mais coloridas às mais sombrias. Num
hipermercado em São Teotónio as filas para
pagamento espelham este “cosmopolitismo
negativo”, provocando nas operadoras
de caixa, sobretudo se for uma sexta-
feira ao fim da tarde, gestos de evidente
enfado quando, à pergunta “então quantos
estrangeiros já atendeu hoje?” respondem,
revirando os olhos — “ai, nem me fale!...”.
Evidentemente que a contabilidade
destas superfícies comerciais reflete um
crescimento ao ritmo do aumento dos
hectares de terreno plastificado, que
cresce nos terrenos que se estendem
entre a Zambujeira do Mar e São Teotónio,
abeirando-se já da linha limite do planalto
até ao vale de Odeceixe. No Verão, são
autênticos fornos, tendo ao lado alguns
contentores cheios de beliches, realidade
a que até as unidades de Turismo Rural da
região começam a adaptar-se.
O fenómeno é recheado de efeitos
contrastantes. Interfere com tudo o que
tem sido apontado como o projeto de
desenvolvimento turístico do Sudoeste
e Costa Vicentina. Existe um Plano
Municipal de Integração dos Imigrantes,
coordenado pela Câmara de Odemira, que
visa conhecer e acompanhar a inserção
dos imigrantes, mas o caráter sazonal da
atividade e a rapidez com que as empresas
fornecedoras operam, associados à própria
condição ilegal e de grande precariedade
desta força de trabalho, impedem a sua
integração de forma harmoniosa. Como
atestam as recentes ações inspetivas da
Autoridade para as Condições de Trabalho
(ACT), multiplicam-se as situações ilegais,
como a falta de registos dos tempos de
trabalho, empresas fictícias e agências
de trabalho temporário sem o respetivo
alvará. Mas a dimensão do problema, a
sua extensão e o movimento financeiro
DebateTrabalhoedireitos
ElísioEstanque
que o suporta tornam as iniciativas de
regulação uma gota de água impercetível
num oceano tempestuoso. Os múltiplos
interesses (pequenos e grandes) ajudam a
esconder o lado obscuro, desde o tráfico ao
preconceito.
No trabalho, na habitação ou na rua, os
comentários que se ouvem entre as gentes
locais são ilustrativos: “vivem amontoados
em cubículos”; “os indianos exploram-se
uns aos outros”; “aluga-se a casa a um,
semanas depois ele subaluga e cobra rendas
a uma data deles, mesmo a familiares”;
“fizeram beliches em toda a casa, são à
volta de dez em cada quarto”; “um grupo
deles foram ao berbigão e levaram tudo
o que havia”; “se for preciso mandam o
‘controleiro’ buscá-los às 5h da manhã
para trabalhar”; “um grupo rodeou uma
miúda e quase a atacavam”; “o meu irmão
alugou-lhes a casa, pouco depois não havia
móveis, não havia nada”; “à noite já se
sente o cheiro das pulverizações aqui na
praia”; “com os produtos químicos, os
frutos do mar, bivalves e a água, está tudo
contaminado”; “depois dos cem mil euros
que recebeu, quer lá saber do turismo
ambiental!...”.
O reverso do sucesso económico — para
os grandes investidores e para alguns
agentes locais que beneficiam com isso
— é a degradação total das condições de
trabalho como um novo modelo produtivo.
Ao contrário do proletariado do século
XIX e primeira metade do século XX, os
assalariados “(des)globalizados” do século
XXI não possuem identidade coletiva nem
capacidade organizativa. Dificilmente
este “precariado” pode constituir uma
classe. Aliás, a sua condição é mais do
que precária; é uma espécie de lúmpen
proletariado do século XXI. Forja-se no
plano internacional, mas desconhece o
significado do termo “internacionalismo”.
Perdida a solidariedade operária contra o
capitalismo, cresce duzentos anos depois
esta “subclasse” sem fronteiras, feita de
“subcidadãos” saídos dos despojos da
globalização. É isto a “desglobalização” do
trabalho. Sejam as mulheres bolivianas em
São Paulo, os chineses semi escravizados
em Barcelona, os indianos na Inglaterra, os
sudaneses em França ou os paquistaneses,
tailandeses e nepaleses em Portugal, estes
são os novos contingentes que alimentam
as grandes cadeias produtivas da economia
global. Com a globalização “localizaram-
se”, vivendo “exilados” e acantonados em
espaços insalubres e degradantes. Onde
pára a velha bandeira da OIT — “O trabalho
não é uma mercadoria”?...
Faculdade de Economia e Centro de
Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra