1. TICs e EDUCAÇÃO
Pedro Demo (2008)
Reconstruo aqui sumariamente alguns cenários da relação entre
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e educação. Ainda que
o fosso entre alfabetizações arquitetadas fora da escola (em geral no
âmbito do computador e internet) e a alfabetização tradicional na escola
esteja se exacerbando (Coiro et alii, 2008), persiste a expectativa de que
este fosso possa ser superado à medida que as TICs sejam inseridas em
processos educacionais e formativos. Esta inserção é, em geral, vista
como simples instrumentação, mas, sendo novas tecnologias
alfabetização igualmente (Lawless/Schrader, 2008. Merchant, 2008), sua
relevância toma outro sentido, compondo as assim ditas habilidades do
século XXI. Com os avanços da web 2.0 e congêneres, os ambientes
virtuais de aprendizagem se enriqueceram notavelmente através de
programas que facultam autoria (em especial blogs e wikis) (Mika,
2007. Solomon/Schrum, 2007. Stauffer, 2008. Vossen/Hagemann, 2007),
aproximando-se de um dos desideratos mais marcantes de processos
educacionais: construção de autonomia/autoria (Maturana, 2001. Freire,
1997).
O desafio está mais do lado educacional do que tecnológico, porque
a pedagogia continua empacada em propostas tradicionais
instrucionistas, sem falar que resiste a tornar-se tecnologicamente correta
(Evans, 2001. Stoll, 1999). Há problemas também na esfera tecnológica,
como tentação do plágio e pirataria, excesso de informação que já
desinforma, usos dúbios/agressivos/destrutivos da internet
(pornografia, bullying, dependência, mau uso do tempo, consumismo,
privatização, etc.) (Trolley et alii, 2006. Lessig, 2004), mas, brandida
abusivamente pelo mercado liberal, a tecnologia não cessa de inovar-se
frenética e mercantilmente, enquanto a pedagogia continua “dando aula”.
I. O QUE A EDUCAÇÃO ESPERA DAS TICs
Deixando de lado qualquer panacéia, educação pode esperar
inúmeras contribuições importantes por parte das TICs, à medida que
apresenta precisamente este desafio: aprimorar processos de formação e
aprendizagem. Tal expectativa não é mecânica ou automática, porque,
como toda dinâmica social e natural, também tecnológica, é ambígua:
pode servir para múltiplos fins, igualmente contraditórios/deletérios. Por
processos formativos entendemos ambientes nos quais se construam
potencialidades de autonomia/autoria, conjugando qualidade formal e
2. política: na qualidade formal está em jogo a habilidade de lidar com
informação e conhecimento, saber pesquisar e elaborar, ser capaz de
postura científica e análise metódica; na qualidade política está em jogo a
cidadania que sabe pensar, autora, autônoma. Por processos
educacionais entendemos ambientes autopoiéticos, reconstrutivos,
interpretativos de aprendizagem, marcados pela condição de sujeito
envolvido por parte do aprendiz. A mente humana, em sua dinâmica auto-
referente e autopoiética, não reproduz, transmite, copia conhecimento,
mas o desconstrói e reconstrói, interminavelmente. Não se pode, a rigor,
instruir um ser vivo, porque o que nele entra, entra por dentro, de modo
maiêutico, reconstruído. Não temos da realidade externa um xérox na
mente, mas uma imagem construída, muito embora a realidade externa
não dependa de ser pensada para existir. Todo processo de
aprendizagem requer a condição de sujeito participativo, envolvido,
motivado, na posição ativa de desconstrução e reconstrução de
conhecimento e informação, jamais passiva, consumista, submissa. A
escola continua instrucionista (Demo, 2004), disciplinar, tradicional,
voltada para o século passado. Em nosso meio, o aproveitamento escolar
é mínimo e está em queda constante (desde pelo menos 1995), indicando
que a proposta pedagógica atual é inócua. Até mesmo por conta de
tamanho fracasso, visualiza-se nas TICs alguma esperança, alguma
alternativa, ainda que confusamente ou como consolo.
Um primeiro gesto receptivo da educação foram os laboratórios de
informática nas escolas e os centros de informática nas secretarias. Não
prosperaram, porque se mantiveram como abordagens externas,
eventuais, intermitentes, voluntárias. Alguns professores se interessaram,
mas jamais informática foi alfabetização ou plataforma intrínseca de
aprendizagem, nem no professor, nem no aluno. Esta condição
assemelha-se àquela da “extensão” na universidade. Não sendo
curricular, sempre ficou de lado, ao lado, à mercê da boa vontade de
alguns, como se cidadania fosse “opcional”. A rigor, nunca fez parte da
aprendizagem estudantil e da vida do professor. Ocorre o mesmo com os
programas, em geral açodados e repletos de segundas intenções, de
equipar escolas com computador. Como este não se encaixa nos
processos de formação e aprendizagem, permanece externo, estranho.
Uma parte dos computadores é usada em outros objetivos, quase sempre
gerenciais; outra parte, sequer é aberta; outra ainda se danifica ou não
funciona, ficando por isso mesmo; ademais, não havendo manutenção e
atualização adequada, os equipamentos vão se tornando obsoletos.
Assim, as TICs continuam sendo algo externo e estranho ao ambiente
escolar da aprendizagem e formação.
Hoje a questão tecnológica aparece com presença crescente e
marcante na “educação à distância”, muito embora continue muito mal
afamada, porque, em vez de reinventar a pedagogia, tende a confirmar o
instrucionismo. Na prática, porém, as avaliações sugerem que alunos “à
distância” se desempenham melhor que os ditos “presenciais”
(Palloff/Pratt, 2005). Não consola muito isso, porque, se o desempenho à
distância, sempre colocado sob tamanhas suspeitas, é melhor que o
outro, o que dizer dos cursos presenciais! De todos os modos, este tipo
de oferta universitária veio para ficar e progride de vento em popa.
3. As TICs, entretanto, embora tendam a ser usadas para enfeitar aula e
outras bijuterias instrucionistas, também trouxeram novidades importantes
como a própria superação do conceito de distância, tendo em vista que,
quem estuda, está obviamente presente. A presença física não pode ser
absolutizada, como exigem professores instrucionistas que usam a aula
presencial para disciplinar alunos, já que a presença virtual está se
vulgarizando, tornando-se cada dia mais inoportuno fazer distinções
estanques entre mundos físicos e virtuais. Os jovens não entendem que,
ao navegarem na internet em busca de informação ou para realizar
alguma pesquisa, estejam “ausentes”... Ausente está o adulto que
imagina ser internet algo ausente!
O desafio será, pois, introduzir em plataformas virtuais dinâmicas
autênticas de aprendizagem e formação, algo que depende, acima de
tudo, da qualidade docente. As TICs não colocam em risco o professor, a
não ser o instrucionista. Ao contrário, exigem tanto mais a presença
maiêutica, razão pela qual a discussão tem valorizado muito noções
pedagógicas socráticas (maiêutica, coach) e freireanas
(autonomia/autoria) (Warlick, 2007. Sunstein, 2006). Ao final, a melhor
tecnologia na escola é o professor, insubstituível, pois. De fato, a muitos
educadores incomoda a pretensão por vezes lançada em ambientes
tecnológicos de varrer a didática docente e com ela a própria escola,
como se as novas tecnologias resolvessem tudo sozinhas. A escola
mantém, de todos os modos, um trunfo fundamental: toda proposta de
inclusão digital é tanto mais efetiva e duradoura quanto mais for realizada
na escola, em especial através da alfabetização. E isto implica incluir,
antes de mais nada, o professor. Toda proposta que investe na introdução
das TICs na escola só pode dar certo passando pelas mãos dos
professores. O que transforma tecnologia em aprendizagem, não é a
máquina, o programa eletrônico, o software, mas o professor, em especial
em sua condição socrática.
Na verdade, se na assim dita “educação à distância” houvesse
aprendizagem adequada, não perderíamos tempo em questioná-la.
Ocorre que, numa parte, este desafio permanece quase sempre apenas
nas mãos dos peritos em tecnologia, que propõem o que bem entendem,
por exemplo, autodidatismo que viria a dispensar professor e escola
(Maeroff, 2003), coincidência entre informação e conhecimento,
obliterando a dinâmica desconstrutiva/reconstrutiva do conhecimento
inovador em nome da mera informação digitalizada (Breck, 2006),
cosméticos virtuais instrucionistas que apenas enfeitam a aula e a prova
(Palloff/Pratt, 2003. Gillespie et alii, 2007). De outra parte, porém, este
avanço por vezes açodado dos expertos em tecnologia é amplamente
favorecido pela ausência/resistência dos educadores, que, de modo geral,
apenas falam mal ou falam restritivamente das novas tecnologias ainda
desconhecidas/temidas. É recorrente o mau uso dessas tecnologias, seja
em seus extremos de aproveitamento para plágios de toda ordem,
inclusive de teses de pós-graduação, seja como plataforma aberta ao
instrucionismo que a tudo copia/imita/reproduz.
Mas, como o abuso não tolhe o uso, os educadores esperam,
ironicamente, muito das TICs neste horizonte. A expectativa mais
profunda é da aprendizagem permanente (everytime, eveywhere): iria
4. tornando-se direito de todos poder aprender em qualquer lugar e tempo,
mesclando presença física e virtual, com predominância desta. De fato,
quem estuda está presente, tornando-se ridículo exigir sempre, a
qualquer preço, presença física. Estudar, pesquisar, elaborar são
atividades que expressam potencialidades profundas de aprendizagem e
que podem ser feitas em qualquer lugar e tempo, sob orientação. Ao
mesmo tempo, orientação exige presença física, mas pode igualmente ser
feita com presença virtual ou algo parecido. Esta perspectiva muda
radicalmente o entendimento tradicional dos tempos fixos de
aprendizagem, como a escolarização obrigatória do ensino fundamental.
Para darmos conta da vida e do mercado, temos de continuar aprendendo
a vida toda. Os diplomas não encerram nada, a não ser um tempo
previsto de tirocínio acadêmico, tendo em vista que todos caducam com o
tempo. Os processos formativos tornam-se mais plásticos, seguindo nisto
o ambiente virtual que não admite formatos definitivos. À medida que nos
libertamos da ordem do discurso (Foucault, 2000), por ser estrita, fixa,
disciplinar (da esquerda para a direita, de cima para baixo, letra por letra,
palavra por palavra, página por página), e nos habituamos à dinâmica
plástica da imagem (Kress, 2005), por não ter esta centro, hierarquia,
ordem determinada, vamos assumindo modos mais flexíveis de
aprendizagem, não mais submetidos à transmissão obsessiva e
instrucionista de conteúdos.
Nem tudo são flores, é claro. A internet sofre pressão violenta de
privatização, porque na sociedade eurocêntrica, liberdade é confundida
com liberalismo de mercado (Fabos, 2008), o que tornaria movimentos
como o do software livre, dos hackers na internet, e outros proposta lírica.
A internet está repleta de marketing, advertising, consumismo, para não
falar em outras baixarias desta netocracia (Bard/Söderqvist, 2002). No
entanto, uma coisa é reconhecer isso crítica e autocriticamente. Outra
coisa é imaginar viver sem internet. Esta opção não existe mais, assim
como seria impossível viver sem a escrita, por mais que seja usada para
objetivos torpes. Neste sentido, é expectativa ansiosa dos educadores
que se possa conjugar bem internet e pesquisa, vendo na internet e em
todos os cenários interativos virtuais potencialidades infinitas de
aprendizagem e formação. Hoje predomina de longe a reprodução, não
porque fosse sina, mas porque se encaixa perfeitamente no
instrucionismo vigente. As plataformas virtuais são encaradas, quase
sempre, como táticas de facilitação, já que no google - para dar apenas
este exemplo - pode-se encontrar resposta a qualquer pergunta, por mais
que esta seja idiota e aquela também. Mas isto não elide, entre outras
coisas, a wikipedia, que representa uma das maravilhas da aprendizagem
virtual (Tapscott/Williams, 2007). Pode ser que as idéias de Benkler
(2006) sobre a riqueza das redes e o surgimento de um modo não
capitalista de produção (produção voluntária colaborativa na wikipedia,
por exemplo), sejam wishful thinking ou uma “infotopia” (Sunstein, 2006).
Ainda assim, emergem potencialidades formativas e educacionais
poderosas.
Para educadores, a expectativa básica é que as TICs aprimorem
modos de estudar, pesquisar, elaborar, elevando consideravelmente as
estratégias de construção de oportunidades e autoria. Por isso mesmo,
5. faz pouco sentido simplesmente transportar o ambiente instrucionista
vigente em educação para os mundos virtuais e vice-versa, porque, neste
açodamento, aproveitamos de ambos que têm de pior. As oportunidades
educacionais e formativas precisam ser acuradamente arquitetadas em
consórcio entre expertos em tecnologia e em educação, numa empreitada
recíproca. Ambos os lados precisam aprender juntos.
II. O QUE AS TICs PODERIAM OFERECER
Tomando em conta o torvelinho de inovações no campo das novas
tecnologias - bastaria perguntar que cara vão ter em dez anos o celular ou
o computador? - não se pode afiançar nada de mais consistente, também
porque tudo se desmancha rapidamente. O que faço aqui é um exercício
preliminar de aprendiz de feiticeiro, na boa intenção de rabiscar alguns
rumos possíveis. Há que reconhecer que os primeiros tempos das
plataformas virtuais foram marcados pela passividade, mesmo que
sempre se tivesse falado de interatividade (Silva, 2001; 2003. Demo,
2002). A interatividade prevista, porém, era completamente formatada,
como em qualquer hipertexto: por vezes chamado de “complexo” e “não
linear”, na prática, é uma montagem tipicamente seqüencial, linear,
algorítmica. Os internautas navegam rotas determinadas, na posição de
receptores, aplicadores. Com o advento da web 2.0 e da web semântica
(Mika, 2007. Taniar/Rahayu, 2006), o cenário mudou substancialmente,
por mais que persistam promessas problemáticas. Entre estas está a
pretensão “semântica”, de teor autopoiético e interpretativo, dinâmica que
o computador não pode resolver, por conta de sua tessitura digital. O
computador é ente sintático, gramatical, codificado, não semântico, ainda
que a base digital permita criatividades semânticas de toda ordem, como
são os textos que daí podem emergir. Bastaria lembrar que textos tão
apreciados por sua criatividade como muitos da wikipedia são fabricados
com base digital. A web semântica gostaria de enfrentar o desafio das
buscas mais inteligentes, capazes de discernir ambigüidades da
informação humana, propondo motores mais abrangentes em suas
padronizações, como são, por exemplo, os da Amazon.com que
conseguem acompanhar e padronizar as preferências de compra de seus
clientes, de certa maneira “lendo” o cliente. Mesmo assim, procede-se por
padronização, não por saltos não lineares.
Nosso cérebro também possui este lado padronizador, amplamente
aproveitado no método científico de cariz lógico-experimental.
Ressaltamos nas dinâmicas o que nelas se repete, para levantarmos leis,
regularidades, recorrências. Dominamos melhor o que sabemos ordenar.
Embora isto seja propriedade do método (ou da “ditadura” do método,
como diria Morin) (Morin, 1996; 2002), não da realidade, a proposta
formalizante da ciência teve e tem extraordinário êxito, comprovado nas
tecnologias: são todas lineares, mas, por isso mesmo, muito efetivas e
confiáveis. Ninguém voaria num avião não linear, semântico,
6. autopoiético... No entanto, nosso cérebro possui também o outro lado,
tipicamente autopoiético, manifestado de maneira brilhante nos processos
de aprendizagem e formação. Nossas mentes são hábeis na invenção de
símbolos e duplos sentidos, na interpretação de silêncios e ausências, no
deslindamento de reticências, nos meneios e olhares furtivos, nas
entrelinhas (Deacon, 1998. Hofstadter, 2001). Neste panorama, o que as
TICs poderiam oferecer a processos de aprendizagem e formação, não
são pontes propriamente semânticas e autopoiéticas, mas apoios
substanciais de manejo da informação digitalizada. Cada vez mais,
encontramos na internet de tudo, quase tudo, também trivialidades e
besteiras, ao lado de preciosidades igualmente. A estruturação digital,
concretamente tão rígida e exata, faculta que a mente humana alce vôos
incomensuráveis, produzindo toda forma de criatividade, o que permite
encontrar nela bases de promoção da autoria.
Ultimamente, esta foi talvez a contribuição mais surpreendente.
Passada a época do consumo passivo, a internet oferece programas que
facultam autoria, no sentido de que, para usá-los, supõe-se texto próprio.
Assim ocorre nos blogs, nos quais a interatividade se dá em cima da troca
de textos, por mais que tais textos possam ser mesquinhos. Ao mesmo
tempo, os blogs perfazem uma plataforma de acesso transparente,
permitindo ainda comentar os textos, de tal modo que se poderia falar em
promoção decorrente de comportamentos mais bem argumentados.
Como é sempre possível contra-argumentar, o dono do blog precisa, para
seu próprio bem, argumentar de maneira aceitável (Sunstein, 2006), o
que o levaria a preferir a autoridade do argumento ao argumento de
autoridade. Tudo pode banalizar-se, porque os participantes podem
descambar em agressões ou elogios inúteis, mas isto não desmerece a
propriedade interessante deste tipo de plataforma virtual. Ocorre algo
similar nas wikis, ao permitirem a feitura de textos coletivos, sempre
abertos, do que surgiu, entre outros produtos, a wikipedia, hoje
considerada uma das maravilhas da internet. Como toda produção
coletiva, detém problemas e confrontos, mas a própria tessitura flexível e
aberta da plataforma fomenta modos inteligentes de dar conta disso. Sem
dúvida, grande parte dos textos é de qualidade inequívoca, dignos de
qualquer enciclopédia, com a vantagem da atualização online.
A produção colaborativa de textos trouxe à baila o questionamento
da autoria tradicional, fincada esta no copyright ou na propriedade privada
(patentes, por exemplo) (Weinberger, 2007. Lessig, 2004).
Reconhecendo-se que todo texto é um “remix” (feito de outros textos), do
mesmo modo que nós mesmos na natureza somos um remix, não temos
propriamente idéias originais. Não somos propriamente originais, a não
ser na subjetividade e individualidade. De resto, somos apenas elo de
uma cadeia que nos precede e sucede. Esta percepção dá suporte à
abertura dos textos tipo wiki, bem como a outras pretensões de softwares
livres, cuja última versão permanece sempre aberta a inovações (não há,
pois, última versão). Ao contrário do copyright, oferece-se o copyleft,
termo usado para salvaguardar a abertura de tais textos e softwares, no
sentido de que, podendo-se usar à vontade, todo uso deve permanecer
aberto a outros usos. Não se deveria apropriar-se deles. Esta discussão
está certamente inacabada ou é inacabável, pelo menos no contexto
7. neoliberal, mas mostra que as plataformas digitais, ainda que rígidas em
sua estruturação, permitem criatividades infinitas e surpreendentes.
Processos formativos e educativos teriam muito a ganhar com tais
ofertas tecnológicas voltadas para a autoria. Esta pode começar muito
cedo, por exemplo, em crianças que produzem textos próprios e os
discutem online, alfabetizando-se de modo antecipado e alternativo. A
internet tem esta vantagem enorme: apesar de toda artimanha liberal de
privatização, persiste em seu um ambiente solto, no qual cada um navega
como quer. Não é bem assim, porque navega-se como os sites
demarcam, mas, como se trata de ambientes virtuais naturalmente mais
flexíveis, o internauta tem a sensação de liberdade. Isto tem sido
determinante da ojeriza crescente que as crianças têm frente à escola:
enquanto nesta precisam fazer o que o professor manda, sobretudo
engolir o que ele propõe, na internet tudo é discutível, tudo se pode
refazer, anda-se à vontade sem tutor, pode-se também copiar tudo, bem
como pode-se pesquisar habilmente. Neste sentido as TICs têm muito a
oferecer, não para acabar com a escola, mas para insuflar ventos de
mudança que ela resiste em assumir. Em primeiro lugar, as TICs
oferecem novas alfabetizações ou multi-alfabetizações, muito além da
alfabetização escolar tradicional (Cope/Kalantzis, 2000. Kist, 2005.
Knobel/Lankshear, 2007). Em segundo lugar, propõem modos mais
situados de aprendizagem, recorrendo a montagens virtuais, em geral em
3D, como ocorre nos jogos eletrônicos (Gee, 2004). Em terceiro lugar,
aparecem motivações muito mais candentes, em particular nas crianças
(que são “nativas”, enquanto os adultos são “imigrantes”) (Prensky, 2001;
2006). Enquanto isso, os ambientes pedagógicos tradicionais continuam
sendo a imagem da chatice e instrucionismo.
Para muitos autores, uma das ofertas mais soberbas das TICs são
os jogos eletrônicos, talvez com alguma euforia excessiva. Nem todos
entram nesta faixa. Segundo Gee (2007), há que selecionar “bons” jogos
eletrônicos, nos quais as oportunidades de aprendizagem situada e
significativa são otimizadas (Gee, 2008). Vários são os lances de
aprendizagem profunda em tais jogos: i) o jogador precisa construir seu
avatar, o que pode ser feito com grande criatividade; ii) regras do jogo
podem ser mudadas, a gosto do jogador, aumentando o senso por
autoria; iii) ambientes virtuais podem ser mudados e inventados; iv) os
desafios são levados ao extremo, ainda que sempre existam apoios do
tipo “scaffolding”, com base na teoria do desenvolvimento proximal de
Vygotsky; v) a motivação chega a ser excessiva, provocando
dependência; vi) surge necessidade de pesquisar temas e discutir online
tais temas e o próprio jogo, de onde surgem grupos de afinidade que
praticam aprendizagem colaborativa; vii) a situação de jogo inclui, como
regra, a habilidade de enfrentar problemas, saber problematizar com
perícia, buscar soluções e superar etapas. Embora esta perspectiva
possa ser rósea, parece claro que em cenários de bons jogos podem
ocorrer modos incríveis de aprendizagem profunda. Observando a chatice
da escola, torna-se enorme a tentação de pretender transformar
aprendizagem em “jogo”, o que seria afoito, para dizer o mínimo. Não é
assim que tudo na vida se possa fazer de modo divertido, lúdico, como
passatempo. As teorias da motivação e emoção não dizem isso. Dizem
8. que, para aprender bem, é mister estar envolvido, do que não segue
automaticamente que seja algo prazeroso. Os próprios bons jogos
incluem esta perspectiva de maneira convincente: o prazer que se retira
do jogo provém do desafio, por vezes extremado, quase desesperante,
não de facilitações, sobretudo não da alegria do bobo alegre. Assim
mesmo, seria sempre interessante que a escola soubesse aprender algo
dos cenários dos jogos, pelo menos no sentido do envolvimento profundo.
Destaca-se neste contexto a questão da interatividade: no mundo
virtual os jovens interagem freneticamente, ao contrário do ambiente
escolar marcado pela disciplina. Cita-se com freqüência a visão de
Schrage (2001. Lankshear/Knobel, 2007): visualizar as tecnologias de
computação e comunicações da internet apenas como estratégias de
informação, é míope. O valor da internet e web não está em bits e bytes,
ou em banda larga. O impacto realmente transformador está
nos relacionamentos entre pessoas e organizações. Trata-se de uma
revolução de relacionamento. Por isso mesmo, os relacionamentos
virtuais vão, aos poucos, equiparando-se aos físicos, ainda que um lado
não substitua o outro. Assim como cabe uma sociologia das relações
sociais, cabe das relações virtuais (Mika, 2007). Ambientes online
oferecem grandes oportunidades de aprendizagem e formação, não só
porque é possível comunicar-se em tempo real, mas principalmente
porque se estabelecem novos horizontes, tanto mais envolventes, de
relacionamento. Referência importante é a plataforma wiki: todos podem
participar, abertamente, desde que se aceite a regra da reciprocidade - o
que cada um faz pode ser refeito pelo outro e vice-versa. Daí surge um
texto que pode, surpreendentemente, ser patrimônio comum. Para
educadores este tipo de ambiente merece toda atenção por seu valor
pedagógico.
Sumariando preliminarmente tais idéias, podemos aventar que as
TICs poderiam oferecer aos educadores horizontes tais como:
a) novos modos de alfabetizar, bem mais envolventes, situados,
atualizados, capazes de abrir para as crianças as habilidades do século
XXI;
b) novas formas de autoria individual e coletiva, mais flexíveis,
transparentes, participativas e, nem por isso, banais; ao contrário;
c) impulsos pertinentes em favor da autoridade do argumento, contra
o argumento de autoridade, já que, na internet, não vinga qualquer
autoridade; para merecer a atenção é fundamental apresentar algo com
algum mérito;
d) promoção de esferas públicas, ao estilo de Habermas, nas quais
se pode desenvolver um tipo mais cosmopolita de cidadania, interativo e
questionador, sem tutores e donos da verdade;
e) novas oportunidades de pesquisa, em especial na internet, desde
que se consiga transformar este mundo infinito de informação em material
de pesquisa, não de cópia;
f) maneiras diferenciadas de tratar o aluno, não como alguém que
dispensa o professor, mas como alguém que pode construir a autonomia
e autoria com apoio tecnológico e orientação maiêutica;
g) modos mais situados de aprender, tipicamente reconstrutivos e
autopoiéticos, além de muito envolventes;
9. h) perfil diferenciado do professor, não mais como instrutor, mas
como “coach” socrático.
ARREMATANDO
Talvez o argumento mais pertinente no sentido de combinar melhor
TICs e educação seja o da inclusão digital. Muitas vezes, entendemos por
inclusão digital programas que apenas apresentam as TICs à população,
em geral através de cursos mínimos, sem condições de garantir
aprendizagem adequada. A inclusão digital mais promissora é aquela feita
em ambientes educacionais corretos, como poderia ser a escola, em
especial a alfabetização. Acresce a isso que as próprias TICs são
alfabetização no sentido pleno do termo. As TICs não apenas facilitam
acessos e interatividades. Elas são expressões próprias dessas
habilidades. Daí a importância extrema de envolver as TICs em
ambientes educacionais, não apenas para que estes se tornem
tecnologicamente corretos, mas também para que as plataformas
tecnológicas signifiquem novas oportunidades de aprender e formar-se.
TICs são hoje parte do direito de todos de aprender bem e
permanentemente.
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