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Fausto e Religiões: questões para uma atitude transdisciplinar em Ciências da Religião.

Gilbraz Aragão1




Resumo: Tanto Goethe quanto Eliade, referência teórica clássica da nossa área de
Ciências da Religião, com a sua teoria sobre o "sagrado", participaram do mesmo
Círculo de Eranos, onde se desenvolveu uma hermenêutica simbólica do sentido. Fausto
é um personagem sobre o qual apenas supõe-se que tenha existido. Contudo, tornou-se
história ao ter se tornado inspiração para a ficção – a maior delas, justamente a de
Goethe. O Fausto de Goethe transmite uma sensação de claustrofobia, como no quarto
baixo e apertado do protagonista ou na sua aldeia, aprisionada entre as colinas – o que,
em certa medida, se contrapõe às ambições cósmicas do personagem de abarcar todo o
conhecimento. Essa condição paradoxal do ser humano, solitário e frágil, mas
almejando a totalidade – oximoro divino, inacessível sem Mefisto –, remete a uma
possível influência na concepção de Eliade sobre o sagrado, mistério de “coincidentia
oppositorum”, que se vislumbra entre e além da sua relação com o profano – opostos
unidos por um Ente Supremo, transcendente, porém assimilável através dos símbolos.
Que consequências a compreensão dessas conexões traz para o estudante de Ciências da
Religião? Como a literatura pode inspirar a ciência?! A resposta a tais perguntas é o
objetivo desta reflexão.

Palavras-chave: Ciências da Religião, Transdisciplinaridade e Religião, Literatura e
Teologia.




                                                          “No que diz respeito a essa ciência,

                                                      é muito difícil evitar o caminho errado;

                                                              ela contém tanto veneno oculto,

                                             que praticamente não se distingue do remédio”

                                                        (Fausto, de Goethe, sobre a teologia).

1
 Doutor em teologia, trabalha na Universidade Católica de Pernambuco, onde coordena o Mestrado em
Ciências da Religião. E-mail: gilbraz@unicap.br
O campo de conhecimento das Ciências da Religião é mais do que interdisciplinar e
recebe colaborações teóricas (e estudantes) das áreas de História e de Humanidades, das
disciplinas de Sociologia, Antropologia e Psicologia, bem como de Filosofia,
Linguística e Teologia – exigindo, contudo, que tais aportes metodológicos sejam
redimensionados epistemologicamente com base na comparação empírica dos fatos e na
busca hermenêutica de significados, através de uma lógica dialogal (as Ciências da
Religião se articulam em torno da cultura epistemológica das controvérsias). De modo
que pesquisadores daquelas diversas áreas são bem-vindos às Ciências da Religião e
podem produzir trabalhos com enfoques desde as suas graduações, bastando que se
coloquem questões atingíveis fenomenologicamente e trabalháveis hermeneuticamente.

O conceito de Ciências da Religião, cunhado por Max Müller (1823-1900) e
desenvolvido por Mircea Eliade (1907-1986), deu origem a uma área acadêmica que
busca esclarecer a experiência humana do sagrado. Sobre a base da história geral das
religiões ergue-se o estudo comparativo das religiões, que aborda as religiões e seus
fenômenos com questionamentos sistemáticos. Ele forma categorias genéricas e se
esforça para apreender o mundo dos fenômenos religiosos de tal modo que
transpareçam linhas fundamentais, sobretudo fazendo uso da fenomenologia. Enquanto
a história das religiões constitui a base das Ciências da Religião, a pesquisa sistemática
das religiões deve mostrar semelhanças e diferenças de fenômenos análogos (sobre o
sagrado) em diversas religiões e apresentar a hermenêutica dos “textos” sacros em seus
contextos.

As relações entre religião e suas condições contextuais são então aclaradas por distintas
disciplinas. Assim, por exemplo, a sociologia da religião ocupa-se das relações
recíprocas entre religião e sociedade, incluindo também a dimensão política. A
psicologia da religião dedica-se a processos religiosos que devem ser compreendidos a
partir da peculiaridade do elemento psíquico. A geografia das religiões investiga as
relações entre religião e espaço, sendo que este se entende não apenas em sentido físico,
mas também cultural. Assim também, a filosofia participa do campo epistemológico das
Ciências da Religião desde que não reduza teoricamente o religioso a mero
epifenômeno e busque sistematizar os fatos religiosos com maiores preocupações de
objetividade; e a teologia, desde que se redefina metodologicamente como uma
interpretação das tradições de fé e não se limite a expor uma doutrina religiosa.
Faz-se necessário, portanto, uma ressignificação da teologia enquanto ciência que
desenvolve a interpretação de mitos, ritos e símbolos de tradições de fé – o que implica
tanto a caracterização dos conceitos teológicos como símbolos, quanto a redescoberta de
conteúdos racionais em narrativas míticas. No caso do cristianismo, majoritário entre
nós, isso implica em uma nova hermenêutica dos símbolos da tradição cristã, pelo
realismo que se impõe a quem participa em um campo transdisciplinarmente aberto à
história comparada das religiões e à crítica psicossocial do fenômeno religioso. Desse
modo, com as questões certas e os procedimentos adequados, podemos construir juntos
a sinfonia polifônica do esclarecimento possível sobre as experiências religiosas.

Mas, na prática, a teoria é mais complicada. Por exemplo, perguntamos no blog 2 do
nosso Mestrado qual destas questões é própria das Ciências da Religião (e não da
Teologia, Filosofia ou História): A Bíblia tem razão? Os espíritos incorporam de
verdade? Qual o sentido deste fato religioso? Deus existe mesmo? Esta é uma
experiência religiosa verdadeira? Que estruturas de produção explicam tal
religiosidade? Então, cinquenta e cinco por cento das pessoas que participaram da
enquete votaram acertadamente na pergunta “Qual o sentido deste fato religioso”.
Questões como “A Bíblia tem razão” ou “Esta é uma experiência religiosa verdadeira”
são mais restritamente teológicas. “Deus existe mesmo” é um problema filosófico. “Que
estruturas de produção explicam tal religiosidade” e “Os espíritos incorporam de
verdade” correspondem a certas linhas de pesquisa da sociologia e da psicologia,
historicamente datadas. Quer dizer, praticamente a metade do pessoal que circula na
área é que está de acordo sobre o objetivo mesmo dos estudos da religião, e a
problemática se complica quando tentamos acertar balizas metodológicas para as nossas
pesquisas. Nem sempre é fácil fecharmos o consenso sobre o campo epistemológico
apropriado das Ciências da Religião 3 e, por isso, vamos recorrer a uma analogia literária
provocativa.

A experiência do sagrado, seja em que religião for, condensa-se em uma literatura
humana. Para o nosso Ariano Suassuna, por exemplo, o mundo é um “pasto incendiado”
e a função da arte e, mais especificamente, da literatura, é “salvar do incêndio e deixar
alguma coisa de permanente e belo, que escapasse das chamas e das cinzas”. A

2
 Disponível em http://crunicap.blogspot.com, acesso em 08/10/12.
3
 Para uma exploração sobre os novos métodos em ciências da religião, ver o meu artigo disponível em
http://crunicap.blogspot.com.br/2011/10/novos-metodos-em-ciencias-da-religiao.html, acesso em
08/10/12.
literatura, de fato, tem a missão de aprofundar, no que tem de mais profundo, o mistério
do humano. Brota, como arrebatamento do imo das pessoas, naquilo que têm de mais
irredutível, em seu mistério envolto por silêncio e solidão, antes de abrir-se aos outros
com a mediação da linguagem. É a vida que toma consciência de si mesma, quando
atinge a plenitude de expressão, valendo-se de conceitos, imagens, símbolos.

Qual seria nosso conhecimento do que é o humano, se não fosse Adélia Prado e
Guimarães Rosa, Patativa do Assaré e Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e
Ariano Suassuna? Esses grandes nomes da literatura captam uma palavra diferente e
criativa, que causa diferença em nossas vidas. Por trás das suas palavras aparece uma
humanidade tão humana, que acaba transparecendo o divino. Se a gente fosse ousado
para tentar uma edição revista e inculturada dos nossos livros sagrados, teria de incluir
muitas passagens inspiradas desses mestres e profetas que, mesmo sem “pertencer a
Israel”, ajudam na compreensão do fato religioso e até na fé das pessoas. Afinal, quando
a bíblia foi sendo escrita, por exemplo, muita coisa foi como literatura e não
imediatamente sagrada, e outros textos inspirados também recorrem a estilos e fatos
profanos para nos trazer um toque do divino.

Até pouco tempo atrás a literatura ocupou nos estudos da religião, na reflexão sobre o
sagrado e o divino, apenas um lugar suspeitoso. Mas os cientistas da religião atuais vão
à literatura como a uma fonte insubstituível: às vezes a literatura veicula ao mesmo
tempo uma mensagem religiosa, que se tornou vida na vida do autor. Mas há também
um tipo de literatura que, embora não sendo explicitamente religiosa, chega a tal
conhecimento do ser humano e de seus problemas e esperanças, que constitui uma fonte
fecunda de questões e que estimula a reflexão sobre o sagrado. O drama Fausto, do
alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), é uma dessas fontes, e dela
queremos aqui tomar lições4, tanto porque esboça o drama da ciência moderna que se
pergunta o que dizer, agora, da religião, quanto pela influência que certamente exerceu
sobre Mircea Eliade, um dos fundadores da nossa área de conhecimento – com o seu
conceito de sagrado e a sua meta-história, idealista ou romântica, das religiões5.


4
  Tomo emprestados os comentários do professor Georg OTTE em Teoria cinzenta e vida verde (Magis,
nº 46, set. 2004, 13-28), e aproveito suas críticas à busca de Fausto pelo conhecimento, para provocar
nos estudantes de ciências da religião, a partir de uma aula inaugural do seu curso, a ampliação nas
expectativas do que e de como conhecer nesse campo.
5
  Para uma reflexão bibliográfica sobre a história das religiões, ver meu artigo disponível em
http://crunicap.blogspot.com.br/2011/02/historia-das-religioes.html, acesso em 08/10/12.
A primeira impressão é sempre duradoura. E tenho a honra e a responsabilidade de
começar, na Universidade Católica de Pernambuco, as aulas do nosso Mestrado em
Ciências da Religião – ou seria melhor ciência das religiões?! As diferenças estão na
compreensão do nosso método: existe uma ciência da religião com método
transdisciplinar próprio ou apenas aplicações dos métodos das ciências humanas e
sociais ao tema da religiosidade?! Esconder-se-ia em todas as religiões uma essência,
ainda que fenomenológica, da religião, ou devemos nos contentar com a apreensão da
diversidade de tradições locais dos fatos religiosos?

O meu curso quer, então, justamente refletir sobre as interfaces metodológicas e as
perspectivas epistemológicas da pesquisa sapiente dos fatos religiosos. Singular na
epistemologia e plural nos métodos e objetos – esta é a minha perspectiva. E assim a
tarefa se torna bem difícil na iniciação de cada novo grupo de estudantes, porque devo
iniciá-los em um campo de estudos profundamente transdisciplinar 6, muito
recentemente desenvolvido entre nós no Brasil e ainda não completamente esboçado
pelo mundo afora, mas que não tem o mesmo ponto de vista e processamento sobre o
fenômeno das religiões a que nos habituamos em nossas formações de filósofos e
teólogos, antropólogos, psicólogos e sociólogos...

Acresce a isso a minha convicção crescente de que qualquer ciência que não tiver sabor,
que não for mesmo sapiência, não deve ser buscada nem ensinada. Então, para me
apoiar nessa missão hercúlea, resolvi me socorrer nesse livro que há uns anos me
acompanha: o Fausto7. Uma tragédia que inaugura a cultura moderna e em torno da qual
eu gostaria de dissertar agora, convidando também outros estudiosos da religião quase
para um “pacto com o diabo” como o feito por Fausto, ou ao menos para um
distanciamento/esclarecimento de deus e da fé – para que consigam fazer ciência em
nossos programas de estudos da religião. Convidando-os para uma volta à natureza da
realidade e a uma mudança nos seus métodos de estudos, como fez Fausto, não apenas
para ampliar sua ciência, mas para reaprender a viver. E espero que tenham mais sorte
(viver é estender fio sobre um abismo!) ou, ao menos, sejam mais sábios e íntegros do
que o personagem de Goethe.


6
  Para um aprofundamento da metodologia transdisciplinar de pesquisa e a sua aplicação aos estudos da
religião, ver ARAGÃO, Gilbraz S. Do transdisciplinar ao transreligioso. In: TEPEDINO, Ana M. ROCHA,
Alessandro R. (Org.). A teia do conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 133-148.
7
  Sirvo-me de GOETHE, Johann. Fausto. São Paulo: Martin Claret, 2002.
A tragédia alemã surgiu como adaptação da lenda do homem que acumulou os saberes
do seu mundo religioso, mas se desiludiu com o conhecimento do tempo medieval, fez
um pacto com o demônio para ter amor e poder, em troca de sua alma, tornando-se
vítima desse enredo afetivo do qual sai como criminoso. Fausto é o protótipo do homem
moderno, no seu esforço obsessivo para controlar a natureza e a história, ainda que
relutante com a ciência e desconfiado dos seus limites.

Essa obra (que tem sido livro de cabeceira, nessa altura da minha carreira de magistério,
pelos motivos óbvios que passo a apresentar) principia de fato com uma imprecação
contra o saber de então:

“FAUSTO:

Estudei com ardor tanta Filosofia,

Direito e Medicina,

E infelizmente até muita Teologia,

A tudo investiguei com esforço e disciplina,

E assim me encontro eu, qual pobre tolo, agora,

Tão sábio e tão instruído quanto fora outrora!

Primeiro fui Assistente e em seguido Doutor,

Dez anos a ensinar, autêntico impostor

A subir e a descer por todos os lados

Estudantes à volta em mim sempre grudados

E chego ao fim de tudo ignorante em tudo”

A tragédia de Fausto começa nesse desgosto com a vida de intelectual, pois percebe que
se tornaram antiquadas a Filosofia, o Direito, a Medicina e a Teologia, disciplinas
clássicas da universidade medieval e as carreiras da maioria dos alunos e professores
dos nossos programas de Ciências da Religião. O sentimento de Fausto é de que esses
conhecimentos não trouxeram felicidade à sua vida e de que a verdadeira existência
estaria ocorrendo, talvez, nos mercados e nas praças, nos êxtases amorosos e místicos,
que ele desconhecia. Decide se entregar então a experiências esotéricas e vai acabar
encontrando-se com o diabo.

Fausto quer voltar à natureza das coisas, para além dos seus livros e esquemas, assim
como começam a fazê-lo muitos teólogos e filósofos e outros mais, que têm se dedicado
mais e mais ao estudo transdisciplinar das religiões, fenomenologicamente. O campo
epistemológico das "Ciências da Religião", com efeito, forma-se pela busca dos
fenômenos, das experiências, como se apresentam em sua "natureza"!

Pode-se situar a obra de Goethe em pleno Iluminismo, era cultural que promoveu a
emancipação do ser humano pela razão, razão da qual a burguesia se apropriou depois
para reprimir as tradições não produtivistas do ser humano. Fausto quer trocar seus
livros pela vivência da natureza e os estudos da religião, hoje, como querendo
emancipar-se do contexto e dos constrangimentos das igrejas, também se organizam
para voltar aos fenômenos, porque muitos discursos filosóficos e teológicos e até
mesmo ditos científicos, pela psicossociologia, tornaram-se por demais teóricos e
autocentrados. Tanto quanto na tragédia, contudo, temos de nos livrar, igualmente, das
superstições religiosas e da razão sacralizada.

Fausto vai buscar a magia para mudar sua aproximação da realidade. Será que a
epistemologia científica dos estudos da religião não deveria se tornar mais alquímica,
mais engajada não apenas em explicar os fenômenos, mas em salvar os fenômenos?! As
palavras lhe parecem mortas e os livros são cadáveres entre os esqueletos que usa para
os seus estudos. Por isso ele busca novas palavras, mágicas, na tentativa de interagir e
intervir na natureza. Ao Fausto não basta a contemplação do macrocosmo: ele tenta
invocar os espíritos da terra para se exaltar, mas não tem habilidade e é atrapalhado pela
intervenção do assistente, Wagner, que procura mais jogos de palavras para
impressionar academicamente – e uma coisa que deveríamos perguntar bem direitinho
nas entrevistas dos calouros de Ciências da Religião era: quais as suas intenções, quais
os seus desejos secretos, ao buscarem fazer ciência?! Wagner, na falta de poder político,
procura o poder da erudição, ainda que vazia e dissimulada.

“FAUSTO:

Aquilo que não sentes, não deves pleitear,

É preciso que o queiras tendo a alma em fogo;
Com inspiração sincera o peito a te inflamar

Os corações dominas da assistência logo.

Experimentas pois! O grande tolo clama

Por fazer um ragu para o banquete, e gralha

E sopra para o alto uma franzina chama

Da cinza, no montão, que logo então se espalha!

Adoração das crianças e dos pobres símios,

A quem pode agradar uma tal comezaina?

A prender corações e corações exímios

Só com forças secretas que o teu peito amaina”.

A angústia de Fausto é com o fato das ciências terem se afastado do “coração” e da
vida. Os descomedimentos censurados por ele, e bem conhecidos em nossas
universidades, o saber requentado e a submissão dos estudantes, resultam da separação
entre saber e sabedoria. O teatro acadêmico, o saber do passado afastado da lida com a
existência, isola Fausto na solidão do seu quarto.

Então, qual é o saber que os estudantes da religião carregam das suas tradições
familiares e religiosas? Qual é o saber que teimam em carregar das suas formações
“científicas”? Como eu gostaria de mostrar – é o que eu digo aos meus estudantes – que
vocês e eu não sabemos muita coisa sobre o fenômeno religioso de verdade... Como eu
gostaria que vocês entrassem em crise, como Fausto, e começassem uma nova era de
sabedoria em suas vidas... Só se interessa mesmo por culinária quem se descobre com
fome: vocês estão com sede do sagrado? É preciso o sofrimento do desaprender, para se
atingir o conhecimento de uma realidade maior do que sonhavam nossas vãs teologias e
filosofias, sociologias e histórias...

Se o saber não é usado a partir e em função de uma necessidade do nosso “momento”,
ele se torna uma “carga pesada”. Os livros e sites, tanto quanto os campos de pesquisa,
são uma fonte do saber, desde que nós tenhamos sede. Fausto não vive o presente e não
reconhece bem as suas ausências e carências, daí o seu vazio, que se assemelha ao do
ignorante que, no outro lado do espectro, sobrevive no presente. E os cientistas da
religião, estão satisfeitos com a vida que levam, com o saber que trazem? Se não
estiverem dispostos a sacrificar a sua “ciência”, é melhor nem começarem os estudos...

Fausto, tomado pela falta de sentido do seu saber, é arrastado para o suicídio, sendo
salvo graças aos sinos que anunciam a Páscoa, as celebrações da ressurreição cristã e da
primavera europeia – que não lhe tocam a fé, mas criam uma relação entre presente e
passado, suas memórias de infância e o “momento”. Os cientistas da religião bem
poderiam tomar Fausto como “padroeiro” e tratarem de aguçar os sentidos para ouvir
sinos e atabaques, mas não logo com os ouvidos da fé – pois se esta é a última palavra
na vida, a penúltima ao menos deve ser da razão. E é para atingirem uma razão mais
universal que vêm a uma universidade, não é?

“FAUSTO:

Vozes vindas do céu, poderosas e amenas,

Que desejais de mim, que sou pó deste mundo?

Vibrai noutro lugar, buscai almas serenas,

Vossa mensagem sinto; em fé não sou profundo,

Da fé filho dileto é o Milagre, apenas,

Às esferas longínquas ascender não ouso

De lá baixam hosanas brandas, maviosas.

Revivo da puerícia as horas radiosas,

Esse canto da vida em mim refaz o gozo.

Do céu divino beijo, outrora, recebia

No dia de Sabbat, silente meditava;

Dos sinos o clangor a alma me inundava

E a prece nos meus lábios, férvida, surgia.

Um anseio sublime, ardente, indefinido,
Por prados e floresta em sonhos me arrastava

E mal contendo o pranto ardente e dolorido

Em mim um novo mundo então desabrochava.

Esse canto relembra os bons divertimentos

Da juventude em festa, albor da primavera;

Escravo do lembrar, com pueris sentimentos

Entanco antes de dar o passo que espera.

Vibrai, oh! Doce coro, angelical entono!

A lágrima rebenta; o mundo não abandono!”

Fausto voltou a ter concretude, relações humanas, vivendo, ainda que por pouco, o
momento, e, através da “lembrança”, resgatando um passado concreto. As ciências das
religiões devem levar igualmente ao resgate dos fatos para uma história comparada, da
fé dos outros e das nossas próprias experiências de crença. É o verde da natureza e o
desejo das pessoas se encontrarem na páscoa que inspiram esperança a Fausto... Quando
pesquisarem o fato religioso, por favor, perguntem-se então os estudantes das religiões:
este passeio por terreiros e igrejas está aumentando a minha alegria humana? Essa
expressão religiosa está provocando mais humanidade nessa gente?!

A saída de Fausto, contudo, é muito episódica e de volta ao seu “quarto de estudos”, ele
é acompanhado por um cão que começa a rosnar. Assoma-lhe a convicção de que a
natureza, enquanto lugar do presente puro, ou do momento eterno, é consolo passageiro.
O cão preto se revela como o próprio diabo, Mefisto, e o famoso pacto que Fausto fecha
com ele é uma tentativa de viver, mais, o “momento”. A tragédia de Fausto é não saber
conviver com o tempo, saindo da descoberta de nunca ter vivido no presente com as
suas teorias, para a tentativa de sentir o momento e despertar os sentidos, a qualquer
custo.

E vocês, estudantes das religiões, o que pretendem fazer com os seus dados de pesquisa:
tentar processá-los com as folhas cinzentas das suas velhas teorias? Que metodologia
vocês pretendem re-aprender para compreender a religião e viver melhor? E como vocês
estão dispostos a aprender? Como se “o” professor/pesquisador tivesse “a” teoria
absoluta e imutável? O que vocês sentem quando olham para coisas verdes, heim?!

O “mundo inteligível” sempre precede o “mundo sensível” e os fenômenos empíricos,
em termos ideais, vem questionar ou “falsificar” as teorias. Lidar com teoria, ao
contrário do que ainda se pensa nas academias, não é garantia de objetividade. Todo
cientista possui limites e falhas de observação e reflexão, sendo a sedução pela teoria o
maior problema do conhecimento. Um bom profissional de ciência não apenas aplica
conceitos, mas revê conceitos, na discussão transdisciplinar com os colegas. Se
retomarmos a história do pensamento epistemológico 8, incluindo Popper, Kuhn,
Feyerabend e Lakatos, veremos que as contradições precisam ser incorporadas não
como disfunções da realidade ou do discurso e sim como manifestações do seu modo
próprio de se desenvolverem e que o conhecimento se funda mesmo em comunidades
de diálogo intersubjetivo e de práticas que têm como horizonte o desabrochamento das
potencialidades da vida humana em comunidade.

Principalmente quem tem formação filosófico-teológica precisa atentar para uma
sedução “platônica” que nos persegue: a sedução pela ideia pura e pela pureza da ideia.
E a melhor maneira de assegurar a pureza da ideia é ficar longe dos dados empíricos e
sensíveis que podem “sujá-la”. Um pesquisador da religião deve se equilibrar entre o
realismo crítico e o respeito ao mistério que escapa à observação, deve se exercitar na
apreciação dialética (e sempre aberta) dos argumentos, como forma de mitigação da
nossa miséria cognitiva (que, no caso dos “ocidentais”, e mormente dos acadêmicos
modernos, manifesta-se sobretudo como uma falta de “tato religioso”).

“Identificar um fenômeno religioso novo não implica visitarmos a definição pura de
religião mas vermos em que medida ele se enquadra nos eventos empíricos que fazem
parte da família de fenômenos historicamente identificáveis como religiosos. É claro
que há aqui uma crítica ao invisível como havia no ateísmo metodológico, mas o foco
não é negar a crença revelando-a como epifenômeno de uma carência cognitiva, mas
simplesmente evitar metodologicamente o confronto com o platonismo que alimenta




8
 Ver a esse respeito: CASALI, Alípio. El pensamiento complejo: el marco epistemológico. In CASALI,
Alípio; LIMA, Licínio; NUNEZ, Carlos; SAUL, Ana. Propuestas de Paulo Freire para una renovación
educativa. Tlaquepaque/Pátzcuaro (México)/Panamá (Panamá): Iteso/Crefal/Ceaal, 2005, p. 51-71).
necessariamente toda a discussão religiosa/anti-religiosa, e que inviabiliza o
conhecimento metodologicamente controlável” 9.

Fausto não apenas garantia a “limpeza” de suas ideias isolando-se do mundo, mas ainda
entendia que esse isolamento lhe dava uma superioridade que o aproximava da esfera
divina. Fausto era um eremita profano que, como os antigos monges, afastava-se “deste
mundo” para ficar mais perto do certo e do divino. Descobriu-se incapaz de lidar com os
espíritos, além de afastado da vida e da própria natureza de tudo. Foi Mefisto que
lembrou, então, a distância entre o conhecimento e a vida:

“MEFISTO:

Cinzenta, caro amigo, é toda teoria,

Verdejante e dourada é a árvore da Vida!”

“FAUSTO:

Entendes muito bem. Não é divertimento!

Lanço-me ao turbilhão, onde há dor e prazer.

Ódio misto de amor, agradável tormento.

Minha alma se curou da ânsia de saber,

Nem deve se fechar às desgraças futuras!

E o que é distribuído aos que habitam no mundo,

Devo agora gozar nas entranhas impuras.

Alcanço com minha alma o mais Alto e Profundo,

Acumulo prazeres, dores, desventuras,

E nesse turbilhão arrojo então meu ser

De vez, a naufragar, e como ele morrer”.



9
 PONDÉ, Luiz. Em busca de uma cultura epistemológica. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). As ciências da
religião no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2001, pg. 62.
Fausto fez um pacto com Mefisto para sentir, e de preferência prazer: a finalidade era a
sedução da bela Margarete. A experiência sensual e sexual, todavia, foi alcançada com
um preço alto: a mãe de Margarete morre da poção sonífera que Mefisto lhe preparou;
Fausto mata o irmão de Margarete durante uma luta porque Mefisto faz sua mão ficar
paralisada; Margarete mata seu filho recém-nascido para escapar da vergonha social e
acaba enlouquecida. Fausto não soube conviver com o momento, com o fenômeno, e
acabou levando em sua interpretação diabólica um saber viver das pessoas que tinha
mais valia do que a sua filosofia sem vida. Fausto passou do desequilíbrio da erudição
para o desequilíbrio da sensualidade, trocando o saber do passado pelo viver do
presente. Não aprendeu a conhecer direito, nem a viver melhor.

As ciências da religião, não se enganem, são uma sedução meio diabólica para nos
tornar mais sensuais e naturais 10, mais atentos aos fé-noumenos do que ao "noumeno"
(existe mesmo essa coisa-em-si, para além da coisa-em-relação?!), para nos soltarmos
das amarras das nossas teorias e ciências “divinas” e nos perdermos em passeios
primaveris pelos centros e terreiros, pelos pagodes e assembleias do nosso povo, para
olharmos as suas tradições de fé com um tanto de empatia e uma certa desconfiança.
Vocês estão dispostos a pagar esse preço? Vocês já imaginaram quem é que vão
encontrar em suas “casas” quando voltarem desse passeio racional inebriado pela paixão
carnavalesca do povo, pelos santos festivos da nossa gente?

Cuidado: toda religião tem um outro lado, opositor... Todo estudioso das religiões deve
re-conhecer um lado sombrio do fato religioso, notadamente quando se busca poder
(magia) não com os outros, mas à custa de outro e/ou contra um outro (transformado em
"bode expiatório"). Religião é para terapeutizar as nossas loucuras humanas, mas sói
acontecer dos nomes dos deuses servirem como travestimento precisamente pra psicose
e perversão mais vil. Inclusive essa não é uma versão restrita aos grupos religiosos
marginalizados e a casos pessoais, manifestando-se mesmo em grandes religiões – que
abençoam solenemente armas e dinheiros, instrumentos de uma "magia" social mais
complexa, mas não menos possessiva e predatória. Também é preciso considerar a
associação entre o sagrado, objeto de toda experiência religiosa, e o prazer erótico, que

10
  Vale a pena, para aprofundar a compreensão do “duplo” nos símbolos religiosos, ver o livro
WASSERSTROM, Steven. A religião além da religião. São Paulo: Triom, 2003. Nele se explora a maneira
como três conferencistas, colegas de Goethe – e de Jung – no Círculo de Eranos, Scholem, Eliade e
Corbin, ultrapassaram abordagens tradicionais ao estudar religião, tirando a ênfase da lei, do ritual e da
história social e exaltando o papel do mito e do misticismo.
é a primeira pulsão da nossa vida – e, nesses casos sombrios, manifesta-se numa
lascívia mórbida e perversa, potencializada e liberada pelo sentimento de poder que um
ritual qualquer proporciona.

Então, estão preparados para encontrarem, seja em que religião for, nada mais do que
experiências bem profanas e (des)humanas, ou para se defrontarem com um sagrado que
não é bem o que se espera? E vocês já pensaram, enfim, nas tragédias que podem
provocar nas “aldeias” de fé do povo? “Quem castiga nem é Deus, é os avessos”, já
dizia Guimarães Rosa. Portanto, cuidado com o pacto que vocês farão com Mesfisto no
estudo científico das religiões – porque com certeza terão de fazê-lo. Desejo que, de
todo modo, isso sirva para o maior fausto da vida e a maior “glória de Deus” – que,
segundo dizem, serve-se até das tramas do “coisa-ruim”.

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Fausto e as origens das Ciências da Religião

  • 1. Fausto e Religiões: questões para uma atitude transdisciplinar em Ciências da Religião. Gilbraz Aragão1 Resumo: Tanto Goethe quanto Eliade, referência teórica clássica da nossa área de Ciências da Religião, com a sua teoria sobre o "sagrado", participaram do mesmo Círculo de Eranos, onde se desenvolveu uma hermenêutica simbólica do sentido. Fausto é um personagem sobre o qual apenas supõe-se que tenha existido. Contudo, tornou-se história ao ter se tornado inspiração para a ficção – a maior delas, justamente a de Goethe. O Fausto de Goethe transmite uma sensação de claustrofobia, como no quarto baixo e apertado do protagonista ou na sua aldeia, aprisionada entre as colinas – o que, em certa medida, se contrapõe às ambições cósmicas do personagem de abarcar todo o conhecimento. Essa condição paradoxal do ser humano, solitário e frágil, mas almejando a totalidade – oximoro divino, inacessível sem Mefisto –, remete a uma possível influência na concepção de Eliade sobre o sagrado, mistério de “coincidentia oppositorum”, que se vislumbra entre e além da sua relação com o profano – opostos unidos por um Ente Supremo, transcendente, porém assimilável através dos símbolos. Que consequências a compreensão dessas conexões traz para o estudante de Ciências da Religião? Como a literatura pode inspirar a ciência?! A resposta a tais perguntas é o objetivo desta reflexão. Palavras-chave: Ciências da Religião, Transdisciplinaridade e Religião, Literatura e Teologia. “No que diz respeito a essa ciência, é muito difícil evitar o caminho errado; ela contém tanto veneno oculto, que praticamente não se distingue do remédio” (Fausto, de Goethe, sobre a teologia). 1 Doutor em teologia, trabalha na Universidade Católica de Pernambuco, onde coordena o Mestrado em Ciências da Religião. E-mail: gilbraz@unicap.br
  • 2. O campo de conhecimento das Ciências da Religião é mais do que interdisciplinar e recebe colaborações teóricas (e estudantes) das áreas de História e de Humanidades, das disciplinas de Sociologia, Antropologia e Psicologia, bem como de Filosofia, Linguística e Teologia – exigindo, contudo, que tais aportes metodológicos sejam redimensionados epistemologicamente com base na comparação empírica dos fatos e na busca hermenêutica de significados, através de uma lógica dialogal (as Ciências da Religião se articulam em torno da cultura epistemológica das controvérsias). De modo que pesquisadores daquelas diversas áreas são bem-vindos às Ciências da Religião e podem produzir trabalhos com enfoques desde as suas graduações, bastando que se coloquem questões atingíveis fenomenologicamente e trabalháveis hermeneuticamente. O conceito de Ciências da Religião, cunhado por Max Müller (1823-1900) e desenvolvido por Mircea Eliade (1907-1986), deu origem a uma área acadêmica que busca esclarecer a experiência humana do sagrado. Sobre a base da história geral das religiões ergue-se o estudo comparativo das religiões, que aborda as religiões e seus fenômenos com questionamentos sistemáticos. Ele forma categorias genéricas e se esforça para apreender o mundo dos fenômenos religiosos de tal modo que transpareçam linhas fundamentais, sobretudo fazendo uso da fenomenologia. Enquanto a história das religiões constitui a base das Ciências da Religião, a pesquisa sistemática das religiões deve mostrar semelhanças e diferenças de fenômenos análogos (sobre o sagrado) em diversas religiões e apresentar a hermenêutica dos “textos” sacros em seus contextos. As relações entre religião e suas condições contextuais são então aclaradas por distintas disciplinas. Assim, por exemplo, a sociologia da religião ocupa-se das relações recíprocas entre religião e sociedade, incluindo também a dimensão política. A psicologia da religião dedica-se a processos religiosos que devem ser compreendidos a partir da peculiaridade do elemento psíquico. A geografia das religiões investiga as relações entre religião e espaço, sendo que este se entende não apenas em sentido físico, mas também cultural. Assim também, a filosofia participa do campo epistemológico das Ciências da Religião desde que não reduza teoricamente o religioso a mero epifenômeno e busque sistematizar os fatos religiosos com maiores preocupações de objetividade; e a teologia, desde que se redefina metodologicamente como uma interpretação das tradições de fé e não se limite a expor uma doutrina religiosa.
  • 3. Faz-se necessário, portanto, uma ressignificação da teologia enquanto ciência que desenvolve a interpretação de mitos, ritos e símbolos de tradições de fé – o que implica tanto a caracterização dos conceitos teológicos como símbolos, quanto a redescoberta de conteúdos racionais em narrativas míticas. No caso do cristianismo, majoritário entre nós, isso implica em uma nova hermenêutica dos símbolos da tradição cristã, pelo realismo que se impõe a quem participa em um campo transdisciplinarmente aberto à história comparada das religiões e à crítica psicossocial do fenômeno religioso. Desse modo, com as questões certas e os procedimentos adequados, podemos construir juntos a sinfonia polifônica do esclarecimento possível sobre as experiências religiosas. Mas, na prática, a teoria é mais complicada. Por exemplo, perguntamos no blog 2 do nosso Mestrado qual destas questões é própria das Ciências da Religião (e não da Teologia, Filosofia ou História): A Bíblia tem razão? Os espíritos incorporam de verdade? Qual o sentido deste fato religioso? Deus existe mesmo? Esta é uma experiência religiosa verdadeira? Que estruturas de produção explicam tal religiosidade? Então, cinquenta e cinco por cento das pessoas que participaram da enquete votaram acertadamente na pergunta “Qual o sentido deste fato religioso”. Questões como “A Bíblia tem razão” ou “Esta é uma experiência religiosa verdadeira” são mais restritamente teológicas. “Deus existe mesmo” é um problema filosófico. “Que estruturas de produção explicam tal religiosidade” e “Os espíritos incorporam de verdade” correspondem a certas linhas de pesquisa da sociologia e da psicologia, historicamente datadas. Quer dizer, praticamente a metade do pessoal que circula na área é que está de acordo sobre o objetivo mesmo dos estudos da religião, e a problemática se complica quando tentamos acertar balizas metodológicas para as nossas pesquisas. Nem sempre é fácil fecharmos o consenso sobre o campo epistemológico apropriado das Ciências da Religião 3 e, por isso, vamos recorrer a uma analogia literária provocativa. A experiência do sagrado, seja em que religião for, condensa-se em uma literatura humana. Para o nosso Ariano Suassuna, por exemplo, o mundo é um “pasto incendiado” e a função da arte e, mais especificamente, da literatura, é “salvar do incêndio e deixar alguma coisa de permanente e belo, que escapasse das chamas e das cinzas”. A 2 Disponível em http://crunicap.blogspot.com, acesso em 08/10/12. 3 Para uma exploração sobre os novos métodos em ciências da religião, ver o meu artigo disponível em http://crunicap.blogspot.com.br/2011/10/novos-metodos-em-ciencias-da-religiao.html, acesso em 08/10/12.
  • 4. literatura, de fato, tem a missão de aprofundar, no que tem de mais profundo, o mistério do humano. Brota, como arrebatamento do imo das pessoas, naquilo que têm de mais irredutível, em seu mistério envolto por silêncio e solidão, antes de abrir-se aos outros com a mediação da linguagem. É a vida que toma consciência de si mesma, quando atinge a plenitude de expressão, valendo-se de conceitos, imagens, símbolos. Qual seria nosso conhecimento do que é o humano, se não fosse Adélia Prado e Guimarães Rosa, Patativa do Assaré e Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna? Esses grandes nomes da literatura captam uma palavra diferente e criativa, que causa diferença em nossas vidas. Por trás das suas palavras aparece uma humanidade tão humana, que acaba transparecendo o divino. Se a gente fosse ousado para tentar uma edição revista e inculturada dos nossos livros sagrados, teria de incluir muitas passagens inspiradas desses mestres e profetas que, mesmo sem “pertencer a Israel”, ajudam na compreensão do fato religioso e até na fé das pessoas. Afinal, quando a bíblia foi sendo escrita, por exemplo, muita coisa foi como literatura e não imediatamente sagrada, e outros textos inspirados também recorrem a estilos e fatos profanos para nos trazer um toque do divino. Até pouco tempo atrás a literatura ocupou nos estudos da religião, na reflexão sobre o sagrado e o divino, apenas um lugar suspeitoso. Mas os cientistas da religião atuais vão à literatura como a uma fonte insubstituível: às vezes a literatura veicula ao mesmo tempo uma mensagem religiosa, que se tornou vida na vida do autor. Mas há também um tipo de literatura que, embora não sendo explicitamente religiosa, chega a tal conhecimento do ser humano e de seus problemas e esperanças, que constitui uma fonte fecunda de questões e que estimula a reflexão sobre o sagrado. O drama Fausto, do alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), é uma dessas fontes, e dela queremos aqui tomar lições4, tanto porque esboça o drama da ciência moderna que se pergunta o que dizer, agora, da religião, quanto pela influência que certamente exerceu sobre Mircea Eliade, um dos fundadores da nossa área de conhecimento – com o seu conceito de sagrado e a sua meta-história, idealista ou romântica, das religiões5. 4 Tomo emprestados os comentários do professor Georg OTTE em Teoria cinzenta e vida verde (Magis, nº 46, set. 2004, 13-28), e aproveito suas críticas à busca de Fausto pelo conhecimento, para provocar nos estudantes de ciências da religião, a partir de uma aula inaugural do seu curso, a ampliação nas expectativas do que e de como conhecer nesse campo. 5 Para uma reflexão bibliográfica sobre a história das religiões, ver meu artigo disponível em http://crunicap.blogspot.com.br/2011/02/historia-das-religioes.html, acesso em 08/10/12.
  • 5. A primeira impressão é sempre duradoura. E tenho a honra e a responsabilidade de começar, na Universidade Católica de Pernambuco, as aulas do nosso Mestrado em Ciências da Religião – ou seria melhor ciência das religiões?! As diferenças estão na compreensão do nosso método: existe uma ciência da religião com método transdisciplinar próprio ou apenas aplicações dos métodos das ciências humanas e sociais ao tema da religiosidade?! Esconder-se-ia em todas as religiões uma essência, ainda que fenomenológica, da religião, ou devemos nos contentar com a apreensão da diversidade de tradições locais dos fatos religiosos? O meu curso quer, então, justamente refletir sobre as interfaces metodológicas e as perspectivas epistemológicas da pesquisa sapiente dos fatos religiosos. Singular na epistemologia e plural nos métodos e objetos – esta é a minha perspectiva. E assim a tarefa se torna bem difícil na iniciação de cada novo grupo de estudantes, porque devo iniciá-los em um campo de estudos profundamente transdisciplinar 6, muito recentemente desenvolvido entre nós no Brasil e ainda não completamente esboçado pelo mundo afora, mas que não tem o mesmo ponto de vista e processamento sobre o fenômeno das religiões a que nos habituamos em nossas formações de filósofos e teólogos, antropólogos, psicólogos e sociólogos... Acresce a isso a minha convicção crescente de que qualquer ciência que não tiver sabor, que não for mesmo sapiência, não deve ser buscada nem ensinada. Então, para me apoiar nessa missão hercúlea, resolvi me socorrer nesse livro que há uns anos me acompanha: o Fausto7. Uma tragédia que inaugura a cultura moderna e em torno da qual eu gostaria de dissertar agora, convidando também outros estudiosos da religião quase para um “pacto com o diabo” como o feito por Fausto, ou ao menos para um distanciamento/esclarecimento de deus e da fé – para que consigam fazer ciência em nossos programas de estudos da religião. Convidando-os para uma volta à natureza da realidade e a uma mudança nos seus métodos de estudos, como fez Fausto, não apenas para ampliar sua ciência, mas para reaprender a viver. E espero que tenham mais sorte (viver é estender fio sobre um abismo!) ou, ao menos, sejam mais sábios e íntegros do que o personagem de Goethe. 6 Para um aprofundamento da metodologia transdisciplinar de pesquisa e a sua aplicação aos estudos da religião, ver ARAGÃO, Gilbraz S. Do transdisciplinar ao transreligioso. In: TEPEDINO, Ana M. ROCHA, Alessandro R. (Org.). A teia do conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 133-148. 7 Sirvo-me de GOETHE, Johann. Fausto. São Paulo: Martin Claret, 2002.
  • 6. A tragédia alemã surgiu como adaptação da lenda do homem que acumulou os saberes do seu mundo religioso, mas se desiludiu com o conhecimento do tempo medieval, fez um pacto com o demônio para ter amor e poder, em troca de sua alma, tornando-se vítima desse enredo afetivo do qual sai como criminoso. Fausto é o protótipo do homem moderno, no seu esforço obsessivo para controlar a natureza e a história, ainda que relutante com a ciência e desconfiado dos seus limites. Essa obra (que tem sido livro de cabeceira, nessa altura da minha carreira de magistério, pelos motivos óbvios que passo a apresentar) principia de fato com uma imprecação contra o saber de então: “FAUSTO: Estudei com ardor tanta Filosofia, Direito e Medicina, E infelizmente até muita Teologia, A tudo investiguei com esforço e disciplina, E assim me encontro eu, qual pobre tolo, agora, Tão sábio e tão instruído quanto fora outrora! Primeiro fui Assistente e em seguido Doutor, Dez anos a ensinar, autêntico impostor A subir e a descer por todos os lados Estudantes à volta em mim sempre grudados E chego ao fim de tudo ignorante em tudo” A tragédia de Fausto começa nesse desgosto com a vida de intelectual, pois percebe que se tornaram antiquadas a Filosofia, o Direito, a Medicina e a Teologia, disciplinas clássicas da universidade medieval e as carreiras da maioria dos alunos e professores dos nossos programas de Ciências da Religião. O sentimento de Fausto é de que esses conhecimentos não trouxeram felicidade à sua vida e de que a verdadeira existência estaria ocorrendo, talvez, nos mercados e nas praças, nos êxtases amorosos e místicos,
  • 7. que ele desconhecia. Decide se entregar então a experiências esotéricas e vai acabar encontrando-se com o diabo. Fausto quer voltar à natureza das coisas, para além dos seus livros e esquemas, assim como começam a fazê-lo muitos teólogos e filósofos e outros mais, que têm se dedicado mais e mais ao estudo transdisciplinar das religiões, fenomenologicamente. O campo epistemológico das "Ciências da Religião", com efeito, forma-se pela busca dos fenômenos, das experiências, como se apresentam em sua "natureza"! Pode-se situar a obra de Goethe em pleno Iluminismo, era cultural que promoveu a emancipação do ser humano pela razão, razão da qual a burguesia se apropriou depois para reprimir as tradições não produtivistas do ser humano. Fausto quer trocar seus livros pela vivência da natureza e os estudos da religião, hoje, como querendo emancipar-se do contexto e dos constrangimentos das igrejas, também se organizam para voltar aos fenômenos, porque muitos discursos filosóficos e teológicos e até mesmo ditos científicos, pela psicossociologia, tornaram-se por demais teóricos e autocentrados. Tanto quanto na tragédia, contudo, temos de nos livrar, igualmente, das superstições religiosas e da razão sacralizada. Fausto vai buscar a magia para mudar sua aproximação da realidade. Será que a epistemologia científica dos estudos da religião não deveria se tornar mais alquímica, mais engajada não apenas em explicar os fenômenos, mas em salvar os fenômenos?! As palavras lhe parecem mortas e os livros são cadáveres entre os esqueletos que usa para os seus estudos. Por isso ele busca novas palavras, mágicas, na tentativa de interagir e intervir na natureza. Ao Fausto não basta a contemplação do macrocosmo: ele tenta invocar os espíritos da terra para se exaltar, mas não tem habilidade e é atrapalhado pela intervenção do assistente, Wagner, que procura mais jogos de palavras para impressionar academicamente – e uma coisa que deveríamos perguntar bem direitinho nas entrevistas dos calouros de Ciências da Religião era: quais as suas intenções, quais os seus desejos secretos, ao buscarem fazer ciência?! Wagner, na falta de poder político, procura o poder da erudição, ainda que vazia e dissimulada. “FAUSTO: Aquilo que não sentes, não deves pleitear, É preciso que o queiras tendo a alma em fogo;
  • 8. Com inspiração sincera o peito a te inflamar Os corações dominas da assistência logo. Experimentas pois! O grande tolo clama Por fazer um ragu para o banquete, e gralha E sopra para o alto uma franzina chama Da cinza, no montão, que logo então se espalha! Adoração das crianças e dos pobres símios, A quem pode agradar uma tal comezaina? A prender corações e corações exímios Só com forças secretas que o teu peito amaina”. A angústia de Fausto é com o fato das ciências terem se afastado do “coração” e da vida. Os descomedimentos censurados por ele, e bem conhecidos em nossas universidades, o saber requentado e a submissão dos estudantes, resultam da separação entre saber e sabedoria. O teatro acadêmico, o saber do passado afastado da lida com a existência, isola Fausto na solidão do seu quarto. Então, qual é o saber que os estudantes da religião carregam das suas tradições familiares e religiosas? Qual é o saber que teimam em carregar das suas formações “científicas”? Como eu gostaria de mostrar – é o que eu digo aos meus estudantes – que vocês e eu não sabemos muita coisa sobre o fenômeno religioso de verdade... Como eu gostaria que vocês entrassem em crise, como Fausto, e começassem uma nova era de sabedoria em suas vidas... Só se interessa mesmo por culinária quem se descobre com fome: vocês estão com sede do sagrado? É preciso o sofrimento do desaprender, para se atingir o conhecimento de uma realidade maior do que sonhavam nossas vãs teologias e filosofias, sociologias e histórias... Se o saber não é usado a partir e em função de uma necessidade do nosso “momento”, ele se torna uma “carga pesada”. Os livros e sites, tanto quanto os campos de pesquisa, são uma fonte do saber, desde que nós tenhamos sede. Fausto não vive o presente e não reconhece bem as suas ausências e carências, daí o seu vazio, que se assemelha ao do
  • 9. ignorante que, no outro lado do espectro, sobrevive no presente. E os cientistas da religião, estão satisfeitos com a vida que levam, com o saber que trazem? Se não estiverem dispostos a sacrificar a sua “ciência”, é melhor nem começarem os estudos... Fausto, tomado pela falta de sentido do seu saber, é arrastado para o suicídio, sendo salvo graças aos sinos que anunciam a Páscoa, as celebrações da ressurreição cristã e da primavera europeia – que não lhe tocam a fé, mas criam uma relação entre presente e passado, suas memórias de infância e o “momento”. Os cientistas da religião bem poderiam tomar Fausto como “padroeiro” e tratarem de aguçar os sentidos para ouvir sinos e atabaques, mas não logo com os ouvidos da fé – pois se esta é a última palavra na vida, a penúltima ao menos deve ser da razão. E é para atingirem uma razão mais universal que vêm a uma universidade, não é? “FAUSTO: Vozes vindas do céu, poderosas e amenas, Que desejais de mim, que sou pó deste mundo? Vibrai noutro lugar, buscai almas serenas, Vossa mensagem sinto; em fé não sou profundo, Da fé filho dileto é o Milagre, apenas, Às esferas longínquas ascender não ouso De lá baixam hosanas brandas, maviosas. Revivo da puerícia as horas radiosas, Esse canto da vida em mim refaz o gozo. Do céu divino beijo, outrora, recebia No dia de Sabbat, silente meditava; Dos sinos o clangor a alma me inundava E a prece nos meus lábios, férvida, surgia. Um anseio sublime, ardente, indefinido,
  • 10. Por prados e floresta em sonhos me arrastava E mal contendo o pranto ardente e dolorido Em mim um novo mundo então desabrochava. Esse canto relembra os bons divertimentos Da juventude em festa, albor da primavera; Escravo do lembrar, com pueris sentimentos Entanco antes de dar o passo que espera. Vibrai, oh! Doce coro, angelical entono! A lágrima rebenta; o mundo não abandono!” Fausto voltou a ter concretude, relações humanas, vivendo, ainda que por pouco, o momento, e, através da “lembrança”, resgatando um passado concreto. As ciências das religiões devem levar igualmente ao resgate dos fatos para uma história comparada, da fé dos outros e das nossas próprias experiências de crença. É o verde da natureza e o desejo das pessoas se encontrarem na páscoa que inspiram esperança a Fausto... Quando pesquisarem o fato religioso, por favor, perguntem-se então os estudantes das religiões: este passeio por terreiros e igrejas está aumentando a minha alegria humana? Essa expressão religiosa está provocando mais humanidade nessa gente?! A saída de Fausto, contudo, é muito episódica e de volta ao seu “quarto de estudos”, ele é acompanhado por um cão que começa a rosnar. Assoma-lhe a convicção de que a natureza, enquanto lugar do presente puro, ou do momento eterno, é consolo passageiro. O cão preto se revela como o próprio diabo, Mefisto, e o famoso pacto que Fausto fecha com ele é uma tentativa de viver, mais, o “momento”. A tragédia de Fausto é não saber conviver com o tempo, saindo da descoberta de nunca ter vivido no presente com as suas teorias, para a tentativa de sentir o momento e despertar os sentidos, a qualquer custo. E vocês, estudantes das religiões, o que pretendem fazer com os seus dados de pesquisa: tentar processá-los com as folhas cinzentas das suas velhas teorias? Que metodologia vocês pretendem re-aprender para compreender a religião e viver melhor? E como vocês
  • 11. estão dispostos a aprender? Como se “o” professor/pesquisador tivesse “a” teoria absoluta e imutável? O que vocês sentem quando olham para coisas verdes, heim?! O “mundo inteligível” sempre precede o “mundo sensível” e os fenômenos empíricos, em termos ideais, vem questionar ou “falsificar” as teorias. Lidar com teoria, ao contrário do que ainda se pensa nas academias, não é garantia de objetividade. Todo cientista possui limites e falhas de observação e reflexão, sendo a sedução pela teoria o maior problema do conhecimento. Um bom profissional de ciência não apenas aplica conceitos, mas revê conceitos, na discussão transdisciplinar com os colegas. Se retomarmos a história do pensamento epistemológico 8, incluindo Popper, Kuhn, Feyerabend e Lakatos, veremos que as contradições precisam ser incorporadas não como disfunções da realidade ou do discurso e sim como manifestações do seu modo próprio de se desenvolverem e que o conhecimento se funda mesmo em comunidades de diálogo intersubjetivo e de práticas que têm como horizonte o desabrochamento das potencialidades da vida humana em comunidade. Principalmente quem tem formação filosófico-teológica precisa atentar para uma sedução “platônica” que nos persegue: a sedução pela ideia pura e pela pureza da ideia. E a melhor maneira de assegurar a pureza da ideia é ficar longe dos dados empíricos e sensíveis que podem “sujá-la”. Um pesquisador da religião deve se equilibrar entre o realismo crítico e o respeito ao mistério que escapa à observação, deve se exercitar na apreciação dialética (e sempre aberta) dos argumentos, como forma de mitigação da nossa miséria cognitiva (que, no caso dos “ocidentais”, e mormente dos acadêmicos modernos, manifesta-se sobretudo como uma falta de “tato religioso”). “Identificar um fenômeno religioso novo não implica visitarmos a definição pura de religião mas vermos em que medida ele se enquadra nos eventos empíricos que fazem parte da família de fenômenos historicamente identificáveis como religiosos. É claro que há aqui uma crítica ao invisível como havia no ateísmo metodológico, mas o foco não é negar a crença revelando-a como epifenômeno de uma carência cognitiva, mas simplesmente evitar metodologicamente o confronto com o platonismo que alimenta 8 Ver a esse respeito: CASALI, Alípio. El pensamiento complejo: el marco epistemológico. In CASALI, Alípio; LIMA, Licínio; NUNEZ, Carlos; SAUL, Ana. Propuestas de Paulo Freire para una renovación educativa. Tlaquepaque/Pátzcuaro (México)/Panamá (Panamá): Iteso/Crefal/Ceaal, 2005, p. 51-71).
  • 12. necessariamente toda a discussão religiosa/anti-religiosa, e que inviabiliza o conhecimento metodologicamente controlável” 9. Fausto não apenas garantia a “limpeza” de suas ideias isolando-se do mundo, mas ainda entendia que esse isolamento lhe dava uma superioridade que o aproximava da esfera divina. Fausto era um eremita profano que, como os antigos monges, afastava-se “deste mundo” para ficar mais perto do certo e do divino. Descobriu-se incapaz de lidar com os espíritos, além de afastado da vida e da própria natureza de tudo. Foi Mefisto que lembrou, então, a distância entre o conhecimento e a vida: “MEFISTO: Cinzenta, caro amigo, é toda teoria, Verdejante e dourada é a árvore da Vida!” “FAUSTO: Entendes muito bem. Não é divertimento! Lanço-me ao turbilhão, onde há dor e prazer. Ódio misto de amor, agradável tormento. Minha alma se curou da ânsia de saber, Nem deve se fechar às desgraças futuras! E o que é distribuído aos que habitam no mundo, Devo agora gozar nas entranhas impuras. Alcanço com minha alma o mais Alto e Profundo, Acumulo prazeres, dores, desventuras, E nesse turbilhão arrojo então meu ser De vez, a naufragar, e como ele morrer”. 9 PONDÉ, Luiz. Em busca de uma cultura epistemológica. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). As ciências da religião no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2001, pg. 62.
  • 13. Fausto fez um pacto com Mefisto para sentir, e de preferência prazer: a finalidade era a sedução da bela Margarete. A experiência sensual e sexual, todavia, foi alcançada com um preço alto: a mãe de Margarete morre da poção sonífera que Mefisto lhe preparou; Fausto mata o irmão de Margarete durante uma luta porque Mefisto faz sua mão ficar paralisada; Margarete mata seu filho recém-nascido para escapar da vergonha social e acaba enlouquecida. Fausto não soube conviver com o momento, com o fenômeno, e acabou levando em sua interpretação diabólica um saber viver das pessoas que tinha mais valia do que a sua filosofia sem vida. Fausto passou do desequilíbrio da erudição para o desequilíbrio da sensualidade, trocando o saber do passado pelo viver do presente. Não aprendeu a conhecer direito, nem a viver melhor. As ciências da religião, não se enganem, são uma sedução meio diabólica para nos tornar mais sensuais e naturais 10, mais atentos aos fé-noumenos do que ao "noumeno" (existe mesmo essa coisa-em-si, para além da coisa-em-relação?!), para nos soltarmos das amarras das nossas teorias e ciências “divinas” e nos perdermos em passeios primaveris pelos centros e terreiros, pelos pagodes e assembleias do nosso povo, para olharmos as suas tradições de fé com um tanto de empatia e uma certa desconfiança. Vocês estão dispostos a pagar esse preço? Vocês já imaginaram quem é que vão encontrar em suas “casas” quando voltarem desse passeio racional inebriado pela paixão carnavalesca do povo, pelos santos festivos da nossa gente? Cuidado: toda religião tem um outro lado, opositor... Todo estudioso das religiões deve re-conhecer um lado sombrio do fato religioso, notadamente quando se busca poder (magia) não com os outros, mas à custa de outro e/ou contra um outro (transformado em "bode expiatório"). Religião é para terapeutizar as nossas loucuras humanas, mas sói acontecer dos nomes dos deuses servirem como travestimento precisamente pra psicose e perversão mais vil. Inclusive essa não é uma versão restrita aos grupos religiosos marginalizados e a casos pessoais, manifestando-se mesmo em grandes religiões – que abençoam solenemente armas e dinheiros, instrumentos de uma "magia" social mais complexa, mas não menos possessiva e predatória. Também é preciso considerar a associação entre o sagrado, objeto de toda experiência religiosa, e o prazer erótico, que 10 Vale a pena, para aprofundar a compreensão do “duplo” nos símbolos religiosos, ver o livro WASSERSTROM, Steven. A religião além da religião. São Paulo: Triom, 2003. Nele se explora a maneira como três conferencistas, colegas de Goethe – e de Jung – no Círculo de Eranos, Scholem, Eliade e Corbin, ultrapassaram abordagens tradicionais ao estudar religião, tirando a ênfase da lei, do ritual e da história social e exaltando o papel do mito e do misticismo.
  • 14. é a primeira pulsão da nossa vida – e, nesses casos sombrios, manifesta-se numa lascívia mórbida e perversa, potencializada e liberada pelo sentimento de poder que um ritual qualquer proporciona. Então, estão preparados para encontrarem, seja em que religião for, nada mais do que experiências bem profanas e (des)humanas, ou para se defrontarem com um sagrado que não é bem o que se espera? E vocês já pensaram, enfim, nas tragédias que podem provocar nas “aldeias” de fé do povo? “Quem castiga nem é Deus, é os avessos”, já dizia Guimarães Rosa. Portanto, cuidado com o pacto que vocês farão com Mesfisto no estudo científico das religiões – porque com certeza terão de fazê-lo. Desejo que, de todo modo, isso sirva para o maior fausto da vida e a maior “glória de Deus” – que, segundo dizem, serve-se até das tramas do “coisa-ruim”.