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- Capítulo 6 -


                  AS SANTAS MISSÕES


        Mês de janeiro. A comunidade católica se
rejubilava com a notícia. Na missa do domingo o vigário
anunciara para muito breve a realização das santas
missões na cidade. O evento teria a presença de nada
mais nada menos que aquele santo missionário que
encantava a todos os verdadeiramente fiéis das plagas
quentes do nordeste.
       Aline chegou em casa toda jubilosa contando a
todos, a notícia. Já estava se imaginando, às três e meia
da madrugada, seguindo aceleradamente o santo
homem pelas ruas do burgo, exibindo com orgulho sua
fita amarela de membro da cruzada eucarística, o livro
do hinário católico na mão, ladeada pelas santas
zeladoras, pelas filhas de Maria e outros beatos, ao som
tarquetraqueante da velha matraca.
       A menina cantava no coro, ajudava nos
batizados, enfeitava os altares da igreja e sempre fazia
parte de todos os eventos da igreja. Certa estava ela.
Com aquela participação constante e permanente,
conseguiria ganhar muitas indulgências e, previdente
como a formiga da fábula, estava fazendo seu pé-de-
meia espiritual para, muito futuramente, assegurar uma
boa “cobertura” em alguma nuvem ampla, com vista
para o mar no andar de cima.
       Afinal chegou o grande dia. A população
católica deslocou-se em procissão até a entrada da
cidade para esperar os missionários. Jovens e senhoras
vestidas sobriamente, sem pintura nenhuma nos rostos
com ramos verdes nas mãos. Membros do apostolado da
oração, da pia união das filhas de Maria e da cruzada
eucarística, enfileiradas solenemente. O sol causticante
fazia com que o pó de arroz das faces angelicais das
jovens puras e das santas beatas se misturasse ao suor
que se lhes escorria rosto abaixo. A espera era longa, mas
a fé superava tudo. De repente o jeep da prefeitura
apareceu e um emissário anunciou que o carro da
comitiva já estava passando pelo engenho Jaguarana.
Um murmúrio meio frenético e quase chegando à beira
do histerismo percorreu a multidão. Havia velhinhas que
beijavam a mão direita e a elevavam para o céu. Outras
se benziam repetidamente. E algumas já puxavam um
lencinho branco de dentro do porta-seio para enxugar o
copioso que estava por vir.
      - Silêncio, meus irmãos, gritava o padre. Silêncio!
Vamos organizar a fila.
       Lá do fundo, dona Zefinha trajando seu
domingueiro azul marinho, com a larga fita de tafetá
vermelho caindo cobre o colo começou a entoar o hino
de santo Amaro.
         - Quem mandou a senhora começar os cânticos,
irritou-se o cura. Não é o hino de santo Amaro, é o hino
das missões. Vinde, pais, e vinde, mães, vinde todos às
missões,...”
       - Mãe, ô mãe, eu quero mijar.
      - Deixa disso, Raminho, é hora de rezar com o
padre e não de ir à casinha, respondeu uma das
acompanhantes da procissão.
- Mas, mãe, eu tô já me mijando, continuou o
garoto.
       - Tá bom, vá ali atrás daquelas bananeiras,
prosseguiu a mãe.
       Afinal o momento de glória. O carro               dos
missionários apareceu e começou a ovação.
        - Viva os missionários! Viva! Viva as santas missões!
Viva o Papa! Viva! E a multidão emocionada mais uma
vez: vivaaaa! E na esquina de uma barraca na entrada
do sítio de seu Eudóxio, um velhote que havia tomado
uma meiota, confundido talvez o evento, gritou:
        - Viva Dr. Zé Lopes! E as velhinhas que corriam no
final da fila, sem nem saber direito que santo era aquele,
responderam empolgadas: Viva! O reverendo ainda
encarou meio rancoroso o velhote, mas não havia tempo
para ralhações.
         O carro passou em direção à igreja e o povo
acompanhando em ritmo acelerado, esqueceu-se das
filas, dos hinos, e só se pensava em ver o santo homem
de perto, tocar nele ainda que por um segundo e beijar-
lhe a mão. Entretanto não foi fácil. A prefeitura havia
organizado um cordão de isolamento e os missionários
puderam entrar para a casa paroquial sem serem
importunados.
      Na casa paroquial um rápido lanche e um
descaso.
        Meia hora depois os frades adentravam o altar-
mor e davam início à cerimônia. Cânticos, orações, e o
turíbio fumegante nas mãos do chefe dos coroinhas
espirrando fagulhas pra todos os lados.
Na pauta das pregações, a presença do pecado
mortal, do demônio, da concupiscência, dos maus
pensamentos e todos aqueles itens que se não cumpridos
fervorosamente levam o católico para as profundezas da
fogueira eterna.
        Os conceitos do frade eram sintetizados de forma
taxativa, sem atenuantes e meios termos. Era ser ou não
ser, os mornos não entravam no reio dos céus. Vejamos
alguns deles:
        Namoro – “Só na frente dos pais, com uma pessoa
solteira. Deve ser breve, com casamento à vista”.
        Beijo – “Um beijo dado no rosto da namorada,
como um beijo dado numa parenta, não tem nada
demais. Entretanto, um beijo na boca, um beijo de língua,
isso não, é pecado”.
      Divórcio – “O matrimônio só é quebrado por morte
da esposa ou do esposo. Quem deixa o casamento para
casar com outro no civil, estará no inferno de cabeça
para baixo”.
      Dança – “A dança é um elemento de perdição.
Quando um homem e uma mulher se juntam para
dançar, não pode sair nada de bom disso tudo. Então
sobrevém   os    maus   pensamentos,   os   desejos
pecaminosos, o pecado”.
       Saia curta – “Não usem saia curta. A saia curta
não presta. É uma rede de que se serve o demônio para
pegar os homens. O demônio está enganchado na saia
curta das mulheres. Muitos homens perdem a cabeça por
causa dessas modas exageradas”.
      Concubinato – “Uma pessoa que vive com outra
sem casar, estará no inferno de cabeça para baixo”.
Demônio – “O demônio existe, estão ouvindo? Ele
existe. Numa cidade do sertão, entrei numa casa
abandonada e ele me jogou sete pedras”.
        Inferno – “No inferno só há sofrimento. Lá, o calor é
bilhões de vezes pior que no Nordeste. As labaredas
sobem e queimam sem parar o corpo dos adúlteros, das
prostitutas, dos efeminados, dos criminosos. Lá, é o lugar
onde vive o demônio”.
        Depois de uma pregação com esses conceitos as
filas do confessionário eram quilométricas. Todos queriam
lavar suas almas e receber o perdão do santo homem. A
jovem Aline preferiu se confessar com um frade mais
jovem que, segundo ela, escutava melhor.
       Na praça o comentário era a pregação dos
padres. Crentes, duvidosos ou céticos, cada fiel
externava sua opinião. Uma coisa era certa, o inferno
amedrontava muita gente.
       Aline e Ana mal conseguiram dormir pensando na
procissão da madrugada. E às 3 horas em ponto as duas,
acompanhadas por Neném e Mery, tomaram café e
subiram para a matriz sob um frio de gelar a alma. Cada
uma delas usando um daqueles chales triangulares que
eram enfiados pela cabeça no estilo “poncho”. Às três e
meia em ponto, o frade que já estava posicionado há
bastante tempo começou a caminhar cantando o hino
das missões e tocando a matraca. E os fieis atrás dos
santos missionários, respondendo os hinos:
       Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos;
       vinde, todos à Missão.
       São dias de misericórdia,
       são dias de consolação.

       Ó Jesus, que amais as almas,
pelo vosso Coração,
       dai que todos com proveito
       freqüentemos a Missão.

       É favor de vossa graça,
       de nossa alma a salvação.
       Ó Jesus misericordioso,
       concedei-nos o perdão!

       Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos;
       vinde, todos à Missão.
       Vinde, agora, pois é tempo
       de cuidar da salvação!


       As missões foram um sucesso. Foram realizados
muitos batizados, confissões e casamentos. Dezenas de
casais que viviam “amigados” ou “amancebados” como
diziam os missionários, reconciliaram-se coma igreja pelo
casamento. Na época casais amigados não eram bem-
vindos nos missas e outras celebrações da igreja, inclusive
não podiam ser padrinhos nos batizados. Afinal viviam em
pecado. Aline e algumas amigas colecionavam santinhos
e medalhinhas e ficavam, a todo instante, furando a fila
para pedir a algum missionário que abençoasse as
estampas e as medalhas. Haja fé!
       A população católica da pequena cidade,
sempre muito fervorosa, participava ativamente das
atividades da igreja. Os padres e os missionários sempre
eram esperados na estação do trem e, ao termino do
evento religioso, levados de volta por uma multidão de
fiéis.
        Nos meados da década de quarenta, a
professora Lourdes Barbosa adquiriu uma imagem de São
Tarcísio e organizou uma chegada festiva da imagem do
santo, transportado de Recife até Amaraji. A comitiva,
responsável pela imagem chegou de trem e dezenas de
pessoas se deslocaram até a estação para receber o
mártir. Dá pra imaginar o empurra, empurra. A
plataforma da estação era pequena e o número de fiéis
que queriam ver a imagem de perto e tocá-la era
imenso.
       Os pais de Aline e Ana, João Luís e Maria Dapaz,
levaram as duas pequenas para assistir a solenidade.
Cada uma das meninas acompanhadas de suas
bazinhas. Mas nada foi como esperado. Naquele
aglomerado, Ana Maria levou um empurrão que
provocou uma queda e machucou-se. Os pais ficaram
bravos, as duas babás foram repreendidas pelo descuido
e a família retirou-se da festa retornando ao solar.
       Outra chegada festiva de santo ocorreu em 1950
na inauguração da Capela de Santo Amaro construída
pelo prefeito, Dr. Jorge Coelho. A imagem de Santo
Amaro foi trazida da cidade de Sirinhaém onde ele havia
trabalhado como médico e fora nomeado prefeito em
1947. Desta vez o santo veio de carro e a população
esperou a comitiva na entrada da cidade.
        Ocorreu outro fato muito interessante no finalzinho
do século XIX na estação do trem. Minha avó Trifônia
Coelho (Iaiá) estava presente e me relatou este fato que
foi confirmado por várias pessoas da época dela.
       Havia chegado à cidade um missionário para
celebrar um evento de alguns dias na matriz de São José.
Era um frade simples, humilde, e considerado santo por
muitos. Trajava um hábito bastante surrado e sandálias já
descoloridas pelo uso. Celebrou missas, batizou, oficiou
casamentos e, depois de uma semana, voltou para o
convento em Recife.
Como de tradição muitos fieis pertencentes às
diversas associações formaram um cortejo para levá-lo
até a estação onde ele viajaria de trem.
        Durante todo o trajeto ele se manteve em silêncio.
Enquanto aguardava o trem, ficou passeando pela
plataforma e lendo seu breviário. Os fiéis, achando
estranho aquela atitude do frade, começaram a
cochichar entre si. Foi quando uma senhora do
apostolado aproximou-se e perguntou sutilmente o que
estava acontecendo. Ele parou de andar de um lado
para outro, guardou o livro na bolsa que estava no
banco da plataforma e, de braços cruzados, batendo
delicadamente no chão com a ponta do pé direito e
com um olhar vago para o horizonte, comentou: esta vila
não sabe valorizar um servo do Senhor, não está em
sintonia com as coisas da Santa Igreja. “Este lugar não vai
pra frente nunca”.
       Ninguém nunca soube o que realmente ocorreu
pra constranger o frade durante sua permanência em
Amaraji, mas as palavras dele ficaram na mente de
muitos por gerações.
       Não foi praga, pois homens santos que pregam a
palavra de Deus não se utilizam disso para com seus
desafetos. Seria o frade um sensitivo, teria ele o dom da
premonição?
        O fato é que o município de Amaraji, naquela
época um dos mais promissores do estado, possuía:
sessenta e um engenhos, vários deles banguês os quais,
mesmo em fase de decadência, produziam açúcar,
melaço e cachaça; as usinas União e Indústria, Cabeça
de Negro, Bosque, Bamburral, Aripibu, e, na década de
1920, Liberato Marques; a vila de Primavera e em 0000 a
vila de Cortês com a usina Pedroza. Além disso, políticos
fortes como Dr. Mário Domingues da Silva, deputado e
senador do congresso pernambucano; Dr. Davino dos
Santos Pontual, também deputado e senador e o
comendador José Pereira de Araújo que presidiu o
senado do Estado nos anos de 1916-18. Isso sem contar o
usineiro e advogado Carlos de Lima Cavalcanti, natural
de Amaraji, que foi interventor federal no Estado.
       Nas décadas de 1920-30, a cidade de Amaraji
figurava como o 14º produtor de cana entre os 84
municípios de Pernambuco e entrava nas estatísticas
estaduais de produção de banana, mandioca, algodão
e coco. No município havia duas máquinas
descaroçadeiras de algodão e cerca de 250 casas de
farinha distribuídas pelos engenhos.
        O que aconteceu, afinal? Parece até uma “lenda
urbana”. Conforme já escrevi uma vez, foram-se as
usinas, os engenhos e as casas de farinha, mas ficaram as
matas verdejantes, o rio a correr e “tutta la bona gente”
de lá da província.
       A análise final dos fatos fica a critério de cada um.
- Capítulo 5 -


              A BORBOLETA VAI À ESCOLA


         Nos meados do século passado, na pequena
cidade de Amaraji, havia apenas duas escolas do ensino
primário: o Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, pertencente
à Secretaria de Educação do Estado e o Instituto Cônego
Aníbal Santos, escola particular, dirigido pela professora
Lourdes Barbosa. Os jovens da elite e parentes da
Professora Lourdes iniciavam seus estudos naquele
Instituto e as demais crianças, na escola do Estado. O
ensino supletivo também fora introduzido no final dos
anos 40. Funcionava à noite e era destinado
prioritariamente a jovens e adultos que não tinham tido
oportunidade de ter sido alfabetizado na infância.
       O D. Luiz de Brito marcou a vida de todos aqueles
que passaram por suas salas. O prédio, de dois
pavimentos, fora adaptado da antiga cadeia pública do
município no final da década de 1940 e recebeu o nome
do primeiro arcebispo a visitar a cidade. Suas carteiras,
fabricadas    de    sucupira, eram      ortopedicamente
desconfortáveis; um estudante que fosse mais gordinho,
nela se acomodava com bastante dificuldade. Mas já
era uma grande conquista para o setor educacional. Na
parte de trás do prédio, onde se localiza o Fórum
Municipal, havia uma campina verde que era usada
como campo de futebol.
      Dona Maria Nely Gomes de Sá, a primeira diretora
do grupo, etariamente idosa, de idéias pré-jurássicas,
formação acadêmica paleoliticamente dinossáurica e
métodos pedagógicos bem pessoais, devendo ter
nascido em mil novecentos e bauzes bauzes, época em
que o arco-íris era preto e branco.
       Segundo a tradição histórica das más línguas, ela
era prima distante do Noé da arca e teria sido uma
parenta sua muito remota que, após o dilúvio, teria
soltado a pombinha, lá do alto do monte Ararat. Conta-
se também que uma de suas tias em grau muito afastado
e há alguns séculos atrás, fora auxiliar de copeira da
Santa Ceia; a encarregada de lavar as taças.
       Baixinha, gorda, descenturada, voz estridente e
gasguita, trajando sempre saia justa de tecido escuro e
blusa clara sobre corpetes pontiagudos, com dois eternos
bendengós, na época, chamados de “cachorro-quente”
ornando-lhe o penteado. Usava óculos de grau muito
forte numa armação estilo olho de gato. Sua arma
pedagógica mais presente e sempre às mãos, pronta
para ser utilizada, não era a obra de Arnaldo Niskier e sim
uma sombrinha. Pela quantidade de sombrinhas
danificadas nas costas dos alunos “levados da breca”,
acreditava-se que ela as comprava em grosso.
       Seu rigor administrativo extrapolava toda a noção
moderna de recursos humanos. O tratamento dado às
outras mestras era bem glacial e o relacionamento com
as duas funcionárias que auxiliavam na administração,
dona Maria do Carmo e Maria da Paz, mãe de Aline e
Ana, não ficava atrás.
        Só quem estava a salvo de suas sombrinhadas era
Rosinha sua filha. Dona Nely e seu esposo eram, na
época, os únicos que possuíam um veículo na cidade e
desfilavam no automóvel de marca ford pelas ruas da
cidade aos domingos.
A cada dois meses, geralmente num domingo à tarde,
ela visitava seu Ernesto Coelho e dona Iaiá, meus avós,
para tomar um cafezinho, fazer uma oração de
agradecimento e acender uma velinha para a minúscula
imagem de santo Antônio que dona Iaiá havia herdado
de seus avós e que, segundo muitos devotos, concedia
graças àqueles que lhe invocassem. Sendo santo Antônio
o padroeiro dos casamentos, imaginava-se que ela ia
agradecer ao canonizado algo muito especial. Afinal
muitas dezenas de semestres separavam ela de seu
esposo, o servidor municipal José de Assunção.
        As outras mestras da época: Rita de Souza,
Bernadete Silva, Nieta Tabosa, Das Dores Teixeira, Isaura e
Carmita, Mara Vasconcelos e Salete Coelho, formadas
por último, ensinavam no engenho Garra e na antiga
escola rural da cidade. Todas eram um doce de pessoa.
Também Abiacy e Neide Lins, formadas bem jovens
iniciaram-se no magistério no final dos anos 50. O regime
era de ordem, disciplina e assiduidade. Os instrumentos
de tortura: palmatória, caroço de milho e longas horas de
pé ou ajoelhado versus parede na diretoria e a famosa “
sombrinha ” de Dona Nely, que mais se assemelhava ao
coelhinho da Mônica.
       Os livros didáticos: “Vamos Estudar” e “Lili, Lalau e
o Lobo.” Na quinta série, a bíblia: “Admissão ao Ginásio.”
As aulas transcorriam dentro de uma programação
contínua e sempre se tinha algo que fazer. Decorava-se
a tabuada, os pontos de geografia e história, e faziam-se
descrições, tendo como tema figuras e paisagens de um
álbum ilustrado gigante que era colocado sobre um
cavalete na frente dos alunos. Não se tinha outra
alternativa: estudava-se e aprendia-se. Com mil perdões
das “meninas da gre”, a coisa funcionava. Mesmo
pronunciando Vasingtón, quem decorou e aprendeu que
Washington é uma capital, nunca esqueceu.
Outra atividade interessante eram as aulas de trabalhos
manuais. Desenhos, quadros de vidro pintados de preto e
com complementos de papel laminado de um tipo de
chocolate em forma de peixinho em várias cores. Havia
ainda uns quadros de madeira compensada nos quais se
desenhava algum tipo de paisagem e trabalhava o
quadro com uma massa de alvaiade, óleo de linhaça e
pó secante, formando as figuras em alto relevo. Uma vez
seco, pintava-se o trabalho de belas cores. Havia ainda
trabalhos feitos em azulejo branco. Colocava-se o azulejo
sobre a chama de uma vela acesa e quando estava
todo tisnado, desenhava-se alguma figura, retirando o
excesso e tisna preta e deixando o verniz copal escorrer
sobre a silhueta desenhada.
        Os colegas de sala: Aline e Ana Costa Gomes,
Alzerina Silva, Amara (Lala), Amara e Edite Araújo, Amara
Pereira, Antonieta, Aspásio, Francisca e Margarida Carlos,
Carlos Alberto, Carlos Eduardo e Cláudio Leonardo
Vasconcelos, Conceição Silva, Eleusis e Dirceu
Vasconcelos, Enedina (Neném) de seu Delmiro, Heleno
Amaro e Zuleide, Amara Hulda e Vicente Ramos, Ivonete,
Joaquim (Quincas) Fabrício, Luís (Lula) Benigno, Márcio e
Márcia Bandeira de Melo, Maria Celeste, Maria de seu
Saul, Neide, Roberto Barbosa, Rômulo Ferraz, Santo e
João Martins, Sônia e Airton Brito, Sônia e Giselda Santos,
Terezinha, Vilma Brito, Wilton.
       As classes eram multisseriadas. O uniforme era
obrigatório para todos: dos mais carentes, passando
pelos emergentes até os de famílias mais afortunadas.
Para as meninas, saia azul de pregas, blusa branca com
a logomarca da escola no bolso; para os meninos, calça
no joelho, camisa branca com as mesmas letras. Sapatos
pretos e meias brancas para todos.
Não dá para esquecer o final de horário escolar
do Grupo. Dona Maria do Carmo tocava a campainha e
a professora anunciava que a aula estava terminada.
Livros arrumados, alunos de pé, formando fila única em
cada sala de aula.
        Na porta de entrada da escola Dona Nely de
mãos para trás, uma delas segurando seu inseparável
bibelô, a sombrinha, dizia:
      - Pode sair a terceira série! ”
      E os alunos deixavam a sala em fila indiana,
marchando em formas de “cobrinha” pelo hall e
cantando o hino Ardor do Infante de Castro Alves:
      Onde vais tu, esbelto infante
      Com teu fuzil lesto a marchar
      Cadência certa, o peito arfante
      Onde vais tu a pelejar?
      Pra longe eu vou, a Pátria ordena
      Sigo contente o meu tambor,
      Cheio de ardor! Cheio de ardor!
      Pois quando a Pátria nos acena
      Vive-se só da própria dor.

      É no combate que o infante é forte
      vence o perigo despreza a morte.

       Outras classes iam acompanhando a primeira que
havia iniciado a marcha e, quando o hall estava quase
cheio ela batia duas palmas fortes e dizia:
       - Podem sair! Devagar! Quem correr, eu chamo
de volta.
        A essa altura, a diretora postada no portão de
saída, já estava segurando a sombrinha em estado de
alerta. Não era permitido sequer pular de dois em dois
degraus da longa escada do grupo. De repente, ouve-se
um grito estridente de Dona Nely:
       - Amaro Cavalcante, volte já aqui! Ele apenas
acelerara o passo lá próximo do último degrau. E lá vem
o menino cabisbaixo, cenho franzido, e ainda foi
alcançado de raspão pela sobrinha da diretora ao
caminhar para a diretoria.
       - Ai, dona Nely, doeu!
       - Cale a boca, seu moleque insubordinado e
atrevido, puxe para diretoria e fique de joelhos virado
para a parede. Deve ter saído da diretoria lá pelas duas
horas da tarde.
       A gente esperava com ansiedade as datas
comemorativas do ano escolar: carnaval, semana santa,
São João, Semana da Pátria, dia da árvore, a visita da
inspetora escolar, dona Hilda Brandão e, em dezembro, a
entrega dos resultados das provas finais.
        O dia da pátria era comemorado com muita
alegria e participação da comunidade. Ensaiavam-se
durante muitos dias os passos da marcha, a divisão dos
pelotões, etc. Seu Luís Soldado era o instrutor. A banda
era composta de um surdo, um tarol e uma caixa e uma
corneta que tocava os comandos. Os meninos
disputavam uma vaga na banda, mas quem escolhia era
o instrutor. Os ensaios se realizavam no campo de futebol.
       Aline, muita sabida, mas bastante pequena ainda
ficava num pé e noutro pra saber onde ia ser o seu lugar
no desfile. A bandeira ela não podia carregar. Imagine
um pé de vento mais forte: bandeira e porta-bandeira
iam voar pelos céus da província. Aliás, carregar a
bandeira do Brasil era mesmo que disputar um concurso
de miss. Todos queriam usar luvas brancas pra carregar o
lábaro nacional. Geralmente o escolhido era algum
“peixinho” da diretora ou de alguma professora. Tinha de
ser um aluno alto, garboso e saber marchar, claro. Fazer
o esquerda, direita, esquerda, direita, no ritmo certo.
Havia também uma estudante mais baixa que, de luvas,
marchava à direita do porta-bandeira segurando
delicadamente a ponta da bandeira.
        O desfile saia da frente do grupo e dirigia-se até o
prédio da prefeitura para a solenidade especial de
hasteamento da bandeira, discursos e uma demorada
hora de arte. A borboleta que já havia passado o mês
mexendo com os pauzinhos, conseguiu abrir o desfile,
marchando na frente da bandeira com luvas brancas e
uma faixa auriverde. Sem contar que foi uma das
oradoras na prefeitura e, de quebra, ainda declamou
uma poesia. E, claro, com todos aqueles aplausos, a filha
de J.L. e dona Dapaz, desceu as escadas do Paço
Municipal e dirigiu-se ao seu lugar no desfile com aquele
“oco patriótico”. E o desfile continuou pelas ruas e praças
da cidade até retornar ao ponto de saída. Depois da
solenidade, o lanche patrocinado pela escola e pela
prefeitura municipal. Naquele momento, todo mundo
amava Dom Pedro II, o rio Ipiranga e o brado
retumbante.
       A comemoração do dia da árvore era outra
solenidade muito esperada. Naquela data, professores e
alunos dirigiam-se ao campo de aviação, o campo de
pouso da cidade, para o plantio de árvores. O ambiente
era verde e bucólico; de um lado a mata das Três Bacias,
do outro, as matas da ladeira de Riachão, e, por trás, as
matas de Sete Ranchos e engenhos circunvizinhos.
Cânticos, declamações, discursos e, na volta, aquela
gostosa salada de frutas. Esta música de Arnaldo Barreto
era cantada, tradicionalmente, enquanto as árvores
eram plantadas:
      Cavemos a terra, plantemos nossa árvore,
      Que amiga e bondosa ela aqui nos será!
      Um dia, ao voltarmos pedindo-lhe abrigo,
      ou flores, ou frutos, ou sombras dará!

      O céu generoso nos regue esta planta;
      o Sol de dezembro lhe dê seu calor;
      a terra, que é boa, lhe firme as raízes
      e tenham as folhas frescuras e verdor!

      Plantemos nossa árvore, que a árvore amiga
      seus ramos frondosos aqui abrirá,
      Um dia, ao voltarmos, em busca de flores,
      com as flores, bons frutos e sombra dará

      O céu generoso nos regue esta planta;
      o Sol de dezembro lhe dê seu calor;
      a terra, que é boa, lhe firme as raízes
      e tenham as folhas frescuras e verdor!


       As alunas mais velhas apresentaram sketches,
poesias e cânticos. Professoras também participavam
ativamente. No final da solenidade, a diretora franqueou
a palavra, com a tradicional pergunta: alguém quer fazer
uso da palavra ou apresentar alguma atividade? Não é
preciso dizer que alguém lá de trás, com os cabelos
desalinhados pelo vento forte, o rosto avermelhado com
o calor do sol respondeu quase gritando:
       - Claro que eu quero, dona Nely. Preparei uma
poesia que está na ponta da língua.
- Pronto, lá vai aquela baixinha metida de novo,
reclamou uma menina no meio da turma.
       - Deixa de ser invejosa, Severina, pior é você que
não sabe apresentar nada. Só pensa em encher a
barriga com salada.
       - E apoi, mulé, tô me acabando de fome. Eu nem
tomei café direito pensando na salada de fruta. As tripas
estão quase brigando no meu bucho.
      - Mas você é muito ignorante mesmo, nossa,
como é que pensa em se formar, casar ter filhos e educá-
los?
        - E quem disse que estou pensando em nada
disso, eu vou é fugir com trapezista do circo. Já tá tudo
acertado. E ai de você se contar a mãe, dou-lhe uma
pisa de lascar.
        E Isabel saiu de perto da colega horrorizada com
tanta ignorância e irresponsabilidade.
       A essa altura, Aline já estava posicionada no
pequeno palco improvisado. Dona Nely, já perdendo a
paciência, mandava os alunos calar a boca, os
professores se abanavam com os cadernos, o calor era
escaldante.
       - Pode começar a declamação, Aline, comandou
a diretora que suava às bicas e enxugava o rosto e o
pescoço gorducho com um minúsculo lencinho de linho:
      - Senhores professores, prezados alunos, a poesia
que vou apresentar é da autoria de Raul Aroeira Serrano.
E começou:
A Árvore
       "Criança, a árvore merece
       A nossa estima sincera
       Dá frutos doces no outono
       E flores na primavera.

       Nunca maltrates uma árvore
       A quem tudo nós devemos
       Desde a madeira da porta
       Ao lápis com que escrevemos.

       Na sombra da árvore amiga
       Pensa bem no teu destino
       Pois dela foi feito
       O teu berço pequenino."


       Terminada a apresentação, muitos aplausos,
palmas e alguns apitos e assovios de alguns alunos. Dona
Nely, olhando inquisidoramente para os responsáveis
pelos apitos e assovios, quase que histérica, gritou:
       - Se não acabarem com a baderna e a falta de
educação, eu acabo com a salada e o lanche e ainda
deixo vocês até às três horas na diretoria.
        Santo remédio. Um silêncio sepulcral reinou
durante todo o trajeto, desde o campo, até a escola.
Formou-se a fila da merenda e foi distribuída uma salada
de frutas, biscoitos e bastante ponche de laranja.
       Havia sempre algum estudante meio abusado
que tentava furar a fila ou, simplesmente, se servir mais de
uma vez. Dona Nely, porém, estava de plantão
permanente distribuindo cascudos, puxões de orelhas e
“muxicões” nos mais alvoroçados. Nada lhe escapava.
Lá pelas duas da tarde, os alunos começaram a deixar a
escola. A diretora estava tão absorta em manter a
disciplina no interior do prédio que nem notou a correria
e bagunça de alguns alunos pela escada de saída do
grupo.
        Amaraji, na época, apesar de ser uma minúscula
cidade da zona da mata sul possuía um campo de pouso
para aviões de muito pequeno porte. Era o único da
região. Uma curiosidade a respeito do campo de pouso.
Ele foi construído no início da década de 1950 na gestão
do prefeito Dr. Jorge Coelho da Silveira. No dia da festa
da inauguração, toda a população da cidade dirigiu-se
para o local do evento para ver a descida de um avião
monomotor, na época, chamado de “teco-teco”.
Algumas autoridades da cidade foram convidadas pelo
piloto para um pequeno voo. Dona Toinha Coelho,
esposa do secretário da prefeitura, cheia de euforia,
candidatou-se para um pequeno tour sobre a cidade.
Quando tentou subir na aeronave, pra sua grande
decepção, não conseguiu passar pela porta e quase
que fica presa. Ela era meio “fortinha”. Frustrada, desistiu
e a multidão que presenciou a cena não pode conter o
riso que não foi nem um pouco discreto.
        Aline e suas colegas, pra lá e pra cá, loucas por
um convite pra subir aeronave, mas é claro que aquilo
não era nenhuma canoa ou jaú de parque de diversões.
Só pra os adultos que fossem autoridades. Paciência,
Aline, um dia você cresce, perdão, fica com mais idade
e vai poder fazer tudo isso, voar à vontade.
- Capítulo 4 -


   SÓ DANÇO SE EU FOR MESTRA, EXIGIU ABORBOLETA


        A primeira infância da pequenina Aline, bem
baixinha, cintura roliça, bochechinhas acentuadas e já
usando seus óculos miudinhos no estilo olho de gato, foi
passada no solar da Rua 15 de Novembro, sob os olhares
atentos e cuidadosos da dileta mamãe, da secretaria
Mery, substituta de Ivanise, e dos bons vizinhos: seu
Corocochô, do “hotel estrela única” da esquina; seu
Luizinho, alfaiate, e dona Terezinha; dona Maria do
Carmo; seu Eurico, Corina e Corinto; dona Elvira Fontes e
Maria Andrade (Neném, a guardiã da família); seu
Avelino da padaria; seu Mário Telegrafista, dona Áurea e
Aurinha; seu Zé Goiana e dona Laura; seu Manoel Firmino
chefe do clã dos Amaros e Amaras Silveira; os fervorosos
crentes da Igreja Batista; dona Olindina, Permínia e
Claudionor; dona Toinha e as tias Zezé e Santinha, e
Alaíde Brito da vendinha da esquina.
        O dia a dia na província era mais ou menos
corriqueiro. Pela manhã, as aulas no Grupo Escolar Dom
Luiz de Brito, à tarde, os deveres escolares de casa, cujas
dúvidas eram tiradas com as mestras Bernadete e Rita,
hóspedes do hotel.
         À tardezinha, auxiliadas por Mery, elas se
aprontavam, penteando os cabelos cortados à moda
capelinha, que eram presos por diademas de galalite ou
ligeiras largas, vestidinhos de organdi bordados de crivo
ou ponto de cruz, com faixa de tafetá na cintura e
sapatinhos de pulseira, impecavelmente polidos por seu
João Engraxate.
       Depois de prontas, as duas sentavam-se na
calçada, saboreando os deliciosos pãezinhos da padaria
de seu Alcides, recheados de manteiga e açúcar,
gentilmente preparados pela bondosa Mery. Assim, as
duas manas esperavam o retorno da mamãe, que
passava o dia trabalhando no Grupo Escolar.
       À noite, em frente ao solar, as manas Aline e Ana
e as amigas Denise, Lourdes Alves, Elêusis, Cleide da
Borboleta, Maria Ângela e outras coleguinhas, brincavam
de roda, de pega, de academia, de manja, barra-
bandeira, boca de forno ou de esconder.
      De longe se escutavam os sons das cantorias:
      “Pai Francisco entrou na roda...” ou
      “Samba Lelê, tá doente, tá com a cabeça
lascada.. .” ou
      “Apareceu a Margarida, olê, olê, olâ...”, ou ainda
      “Boca de forno! Forno! Tirando o bolo! Bolo!...”
        Quando não corriam na rua, simplesmente
sentavam-se na calçada, brincando de anel, contando
estórias ou arrepiando-se de medo, ao falar sobre a
“Comadre Florzinha”, o “Pantel” da mata ou o último
capítulo do Mistério do Além.
        Às vezes, comentavam sobre algum estranho que
havia aparecido na rua de mochila nas costas e mal
encarado. Será que não era o “papa-figo” mandado
pelos Amorim da capital para pegar criancinhas e
arrancar-lhes o fígado, paliativo para aquela doença
horrível que fazia suas orelhas crescerem?
Em dias de chuva, reuniam-se em torno de dona
Quinquina, mãe de Maria Andrade, para ouvirem,
atentas, as estórias de Trancoso, narradas pela bondosa
velhinha.
      De vez em quando, em torno das oito horas,
escutava-se a voz de dona Elvira que gritava:
      - Denise, está na hora da novela, venha prá casa!
        Ninguém perdia o horário de “O Direito de
Nascer” e todas suspiravam com Albertinho Limonta e
Isabel Cristina, seus amores e desventuras.
      Em outras ocasiões, era Maria Andrade que
aparecia perguntando:
      - Oh, Aline e Ana, vocês já fizeram o dever de
casa? E a poesia da hora de arte, Aline? Já decorou
toda?
        Quando Aline chegava atrasadas à brincadeira,
significava que estava escutando o Repórter Esso. Mesmo
sem entender tudo ainda, adorava uma notícia.
        Uma ocasião ela atrasou-se uma meia hora. As
outras coleguinhas que já se sentavam na calçada e
iniciavam a brincadeira do anel, estranharam a ausência
da baixinha. De repente lá vem a menina respirando
com dificuldade, erguendo os ombros, com os olhos
marejando. As amigas ficaram preocupadas e Denise
aproximando-se perguntou curiosa:
       - Que é isso, Aline, você está com puxado? Ave
Maria, será que isso pega?
      Aline, enraivecida, respondeu irritada:
     - Deixe de ser lesa! Que puxado, que nada? Estou
com uma crise de asma alérgica.
As outras colegas havia se aproximado e
cercavam, receosas, a pequena enferma. Denise
continuou insistente:
      - É não, isso é puxado. Eu vi o menino de Bau
Amaro lá em Estivas, impando desse mesmo jeito, e era
puxado.
       E a menina foi se irritando mais ainda.
       - Vamos perguntar a mamãe?
        Nesse momento, Maria Andrade ia passando.
Aline, cada vez mais brava, gritou:
       - Oh, Neném, isso que eu tenho não é uma asma
alérgica?
     E Maria Andrade, sem dar muita atenção,
abanando a saia, respondeu:
      - Sei lá, Aline, é uma dessas coisas mesmo. Mas
você devia era estar dentro de casa agasalhada por
causa da frieza. Entre logo, vamos.
       - Oh, Dapaz ...
       Aline vestiu um agasalho e teimosa como ela só,
ainda voltou para a prosa. O assunto da noite foi a briga
do padre.
       O vigário da paróquia de origem holandesa fora
avisado de que dona Serafina, uma viúva muito devota e
membro do apostolado da oração, estava se ultimando.
Decidiu, então, fazer uma visita à enferma para confessá-
la e dar a santa extrema unção. Seus familiares eram
evangélicos. Na porta da residência da enferma foi
barrado pelos parentes da moribunda que não queriam
sua presença. O reverendo muito bravo e muito
revoltado e com a rudez flamenga à flor da pele, não
teve a menor dúvida; saiu empurrando todo mundo que
estava em sua frente, chegou até o quarto da
agonizante e, mui calmamente, fez sua orações. As
meninas comentavam com orgulho a atitude do padre.
       De repente, duas das meninas do grupo
começaram a cochichar e rir o que chamou a atenção
do restante do grupo.
     - Que cochicho é esse? Grande              falta de
educação, reclamou Aline.
         - Você não pode saber, Aline, é muito criança
ainda.
        - Essa não, apartou Ana Maria tomando as dores.
O que? Aline não tem nada de criança, ele é muito
inteligente e sabida.
       - Depois de muita adulação ficaram sabendo que
uma das garotas mais velhas do cochichado havia “sido
moça” recentemente. Foi uma festa, todo mundo queria
saber os mínimos detalhes do acontecimento. Mas nem
todas concordaram com aquele tipo de conversa.
       - Ave Maria, isso é conversa de moça direita,
minha gente. Já pensou se a chefe da cruzada sabe que
vocês estão falando disso? Não quero nem pensar...
       Muitas vezes a brincadeira se estendia até depois
das nove, quando as pequenas infantes começavam a
retornar a seus lares, pois às 22 horas em ponto, Corinto,
encarregado do motor que fornecia energia elétrica
para a cidade, dava o sinal, fazendo as lâmpadas
piscarem três vezes e, em seguida, as luzes eram
desligadas.
      Vinte e duas e trinta, luzes apagadas, grilos e
sapos se orquestrando, a província se entregava aos
braços de Morfeu. Durante a noite, o máximo que podia
acontecer, era alguma moçoila noiva ou comprometida,
ser roubada pelo pretendente, evitando, com essa fuga,
as despesas do casamento.
        E nessa tranqüilidade paradisíaca, o ano
transcorria e chegava o mês de dezembro com seus
festejos natalinos e folclóricos. O pastoril religioso era um
deles. Era um acontecimento que movimentava toda a
comunidade provinciana. Papais e mamães torciam
para que suas filhas pequenas fossem escolhidas para
fazer parte do evento organizado por algumas jovens e
senhoras da comunidade católica. Afinal, tudo tinha de
sair perfeito para as pessoas que participavam e torciam
pelo “encarnado” ou “azul”, comprassem muitos lacinhos
de fita de sua cor preferida para ajudar a vencer o
cordão escolhido, no qual, normalmente dançava uma
de suas filhas. A renda era destinada as obras paroquiais.
         Usando vestidos confeccionados de papel
crepon, saias rodadas, muita areia prateada ornando as
orlas dos babados franzidos e fitas da cor do partido que
enfeitavam a indumentária. Os pandeiros, enfeitados de
fitas das duas cores, ajudavam a marcar o ritmo da
dança. Era uma trabalheira a sua confecção. As
senhoras Belisa Rolin, Sônia Dantas, Salete Coelho e
Dasdores, entre outras, eram as encarregadas do evento
folclórico.
       Rômulo Barbosa, sempre no comando da
animação, fazia a platéia ir ao delírio aos gritos de: azul,
azul, azul, ou encarnado, encarnado, ou o taxativo já
ganhou. Era um verdadeiro leilão de venda de lacinhos,
para a alegria geral das pastorinhas.
      A pequena Aline já chegando aos oito anos foi
convidada para fazer parte do tradicional festejo. Pela
sua estatura “mignon”, e para que se cumprisse a
previsão de seu João Severo no dia de seu nascimento,
ela deveria ficar balançando as asinhas em volta das
pastoras, no papel da borboleta.
        No dia da reunião para escolha das pastoras e do
personagem de cada uma no evento, o papel da
borboleta ficou para ela, claro. Pelo seu tipo, sua altura,
ia ser a borboleta mais qualificada dos últimos tempos.
       Mas, de personalidade forte que tinha, já desde
criança, a menina embirrou, emperrou fez ver que só se
apresentaria se lhe dessem o papel da “mestra”.
Nenhuma das promotoras do pastoril conseguia
convencê-la do contrário. A reunião parou e ninguém
sabia o que fazer.
       Dasdores Teixeira, com muita calma e delicadeza,
tentou convencer a pequena pastorinha:
        - Olhe, Aline, você vai ficar uma gracinha de
borboleta. A saia franzidinha, as asinhas douradas e as
sapatilhas também. Já pensou, Dapaz vai lhe achar linda.
Ainda vamos colocar uma coroa de pedrinhas em sua
cabeça. Vai ficar parecendo uma rainha, não é
meninas?
       E as outras pastorinhas responderam em coro:
       - É, dona Dasdores.
       A essa altura ela já tinha se levantado, ido para
frente do grupo com passadas largas, firmes e
determinadas e com uma das mãos na cintura e o dedo
da outra mão apontando para as senhoras, bateu o pé e
falou em tom decidido e definitivo:
- De jeito nenhum, se eu não for a mestra, não
danço, pronto! Podem arranjar outra borboleta que eu
estou indo embora.
       E a baixinha deu dois sopapinhos na cabeça,
ajeitou o franzido da saia e encarou as organizadoras
uma a uma. Em seguida, deu meia volta, apanhou seu
chale minúsculo e caminhou em direção à saída do
salão paroquial.
       Dona Sônia Dantas tentou argumentar, mas
quando sentiu o olhar de desafio da quase borboleta,
calou-se e comentou baixinho:
        - É melhor não insistir, Dasdores, deixa ela ser a
mestra e Denise fica sendo a borboleta. E agora, quem
vai avisar a ela?
       E Dasdores saiu apressada alcançando a menina
que já estava passando ao lado do bilhar de seu Aristeu.
      - Oh, Aline, um momento, por favor, exclamou
Dasdores.
       Ela virou-se e já se sentiu vencedora.
      - Escute, Aline, o pessoal resolveu que você vai ser
a borboleta. Vamos voltar para o salão e agradeça a
dona Sônia, pois foi ela quem decidiu.
        O que? Eu mesma não. Ela queria que a mestra
fosse a filha de dona Minervina. Só porque ela é maior do
que eu e já tem busto, é? Grande coisa, eu sou pequena,
mas canto muito melhor do que ela.
          E assim ela voltou para o salão e terminou de
assistir a reunião.
       Na volta para casa, uma das colegas falou, tu é
peia, não é, Aline? Consegue tudo que quer...
Pois é, e você acha que ia ficar balançando
asinhas pra lá e pra cá, eu mesma não. Está pensando
que eu sou zig-zag, é? Ora, pinóia!
       E nos primeiros dias de dezembro, depois de
muitos ensaios, o pastoril começou a se apresentar no
palanque construído em frente ao salão paroquial.
       E lá se foi Aline triunfante, puxando o cordão
encarnado. O seu fã clube era imenso. Vinha até
torcedores da vizinha Caracituba. Seu padrinho João Ito
e o jovem Luiz Jacinto. Maria Andrade, a mamãe Dapaz
e Mery eram do mesmo modo, torcedoras exaltadas, sem
contar dona Bernadete Silva, sua professora. Denise
Fontes foi por muito tempo, a detentora das asinhas da
borboleta. E quando a apresentação começava e
chegava a vez da mestra, a voz da menina ecoava pela
praça:
      Boa noite meu senhores todos,
      Boa noite senhoras também,
      Somos pastoras, pastorinhas belas
      Que alegremente vamos a Belém.
      Somos pastoras, pastorinhas belas
      Que alegremente vamos a Belém.

      Sou a mestra do cordão encarnado,
      O meu cordão eu sei dominar,
      Eu peço palmas, peço bis e flores
      Aos partidários peço proteção.
      Eu peço palmas, peço bis e flores
      Aos partidários, peço proteção.

      - Mas a mestra canta demais, comentava Maria
Joaquina. É verdade, a filha de dona Dapaz canta que
nem um passarinho, comentou Durrei.
E a festa prosseguia noite afora até o final da
apresentação, com muitos gritos e palmas dos partidários
do cordão azul e do cordão encarnado.
        Depois, a troca de roupa, os parabéns e a alegria
dos familiares e amigos e a “mestra” mal cabia em si de
contente. Estava bestinha, não tirava o sorriso da boca e,
de vez em quando, davas umas piscadinhas mais
agitadas.
        O vigário apareceu e dona Belisa passou para ele
a renda da noite. Tinham conseguido vender muitos
lacinhos.
        Dasdores havia preparado um lanche e lá se
foram os participantes do show tomar guaraná Fratelli
Vita com sanduíches de pão com carne enlatada e
bolinhos de bacia.
        Era uma alegria só. Cada uma que de se exibisse
mais. E a mestra já se imaginava, no próximo ano, indo se
apresentar na usina Nossa Senhora do Carmo e em
Bonfim.
- Capítulo 3 -


     A PRIMEIRA INFÂNCIA E SEU “DÉBUT” CATÓLICO


       Os primeiros anos da infância da mini “ninha”
foram dentro da normalidade. Ela havia perdido o pai, J.
L., quando tinha dois anos de idade. A mamãe Dapaz foi
uma grande guerreira e batalhou muito para criar e
educar as duas manas. Trabalhou no comércio e depois
foi contratada pela Secretaria de Educação para prestar
serviços no Grupo Dom Luiz de Brito.
       As festinhas de aniversário ficavam restritas aos
primos e amiguinhos mais próximos da família, sem muita
badalação. Mesmo depois de um dia de trabalho na loja
de tecidos e miudezas “A Borboleta”, Dapaz ainda
encontrava tempo para ensinar as primeiras letras às
duas meninas. Aline, aos quatro anos de idade, já havia
aprendido a ler as primeiras palavras e, mais tarde,
quando se matriculou no Grupo Escolar para estudar a
primeira série primária com a professora Maria Bernadete
da Silva, já estava alfabetizada. Ela idolatrava a mestra.
Ainda hoje, ela lembra a fragrância do perfume usado
por ela. Olha a profecia de sinhá Fronina se realizando.
        Dona Bernadete era de Caruaru. Uma jovem de
pele clara, olhos esverdeados, cabelos encaracolados,
extremamente paciente e dedicada aos alunos. Ela era
hóspede de Hotel de Seu Corocochô, que ficava
localizado no local onde, hoje, existe o supermercado da
Praça Pereira de Araújo. Lembro da professora, pois eu
estudava na mesma turma.
Naquela época, o sonho de muitas famílias
católicas era ter um padre ou uma freira na família.
Aqueles que não conseguiam tal “benção”, ficavam
conformados com a “dádiva dos céus”, se uma de suas
filhas pequenas pudessem participar da coroação de
Nossa Senhora no último dia do mês maio.
         Aos oito anos de idade, como filha de toda boa
família cristã, a ainda pequenina Aline, foi convidada
pelo vigário para coroar Nossa Senhora, naquele
inesquecível dia 31 de maio. Ela era detentora das
características exigidas pela tradição da igreja e possuía
o perfil perfeito para colocar a coroa sobre a cabeça da
Virgem. Cor branca, cabelos claros, e voz maviosa. Na
época, ninguém deu muita atenção ao fato, mas nunca
uma menina de cor “morena” ou afro-descendente
legítima, foi escolhida para coroar a santa. Preconceito?
Não, apenas “tradição” da igreja. Os anjos do céu
tinham a pele branca desde a criação.
         E assim, a borboletinha foi escolhida para
participar daquele evento tão disputado pelas meninas
de sua idade. Seria o seu “début” católico na sociedade
infantil da Igreja.
       O ato litúrgico exigia toda uma preparação. Ela
foi auxiliada por Santinha Silveira, responsável pela
Cruzada Eucarística e com o assessoramento da
professora Belisa Rolin, Sabina Andrade, do Apostolado
da Oração, da professora Dasdores Teixeira e de Maria
Joaquina.
       Os noiteiros, famílias encarregadas da decoração
da igreja e da organização geral da festa do
encerramento do mês de maio, eram: seu Raul e dona
Lourdes do engenho Riachão do Sul; seu Bequinho do
engenho Sete Ranchos e a família de seu Luiz Dubeux da
Usina Bonfim. Já à tarde, a pequena coroante e demais
colegas de solenidade, após participar do ensaio final
com o coro, ajudavam na decoração do altar,
fabricando buchas de papoula para a incrustação de
cravos e céssias em forma de meias guirlandas que eram
colocadas em todos os recantos da matriz. Os castiçais
eram polidos e longos brandões de espermacete neles
colocados. Feita a limpeza final da igreja, espalhavam-se
folhas de canela e eucalipto pelo chão para que o
ambiente ficasse naturalmente aromatizado.
       Durante o ensaio,
       A solenidade religiosa era preparada com
bastante antecedência, desde o ensaio dos cânticos até
o da coroação propriamente dita. No coro da igreja, os
hinos, cantados em latim, estavam sob o comando da
organista Ivone Oliveira que era coadjuvada pelas
cantoras Teresinha, Dos Anjos, Agenilda e Quiterinha,
entre outras. Na ocasião, encontrava-se na cidade um
missionário alemão, responsável pela celebração da
solenidade, enquanto o cura local, Padre José,
acompanhava os cânticos com o violino.
       O altar de nossa senhora fartamente decorado de
branco e azul, reunia um verdadeiro séquito de acólitos,
solenemente paramentados de vermelho, com seus
roquetes impecavelmente brancos, além de uma dúzia
de anjinhos espalhados por toda parte. Integrava a corte
de celeste: Ana Maria, irmã da coroante, Denise Fontes,
Cleide da Borboleta, Eleuses Vasconcelos, Neném de seu
Belmiro, entre outras. E após a ladainha, o magnificat e a
coroação propriamente dita.
      A pequena “anjinha” trajando uma túnica longa
de laquê branco, ornada de galões dourados; portando
um par de asas brancas nas costas e uma coroa de flores
claras na cabeça, um pouco de carmim nas bochechas
e uma leve sombra de batom nos lábios era elevada
delicadamente por um dos fiéis e colocada no suporte
que ficava ao lado da santa. A mamãe, do lado de
baixo do suporte, olhava ansiosa e repetidamente para
cima, receosa de que a garotinha pudesse escorregar.
Silêncio sepulcral no adro da matriz. O missionário
teutônico elevava a voz de barítono e dizia:
      - Caríssimos irmaos, agôra vamos iniciarr a
coroaçon de Nôssa Senhôra.
        Do alto do coro, a organista dedilhava uns
acordes da melodia na velha sarafina e o público,
atento, dirigia os olhares para o altar da virgem. O coro
iniciava a solenidade, cantando a primeira estrofe da
conhecida música. Aí, então, a pequena cantora com
voz um pouco tímida, mas bastante firme cantava a
segunda:
       “Virgem recebe esta coroa,
       Que te oferece o nosso amor,
       Seja do céu, ó mãe tão boa,
       Pra todo nós feliz penhor”.

       O coro apresentava a segunda estrofe e a
garotinha prosseguia com a última parte, desta vez, já
bastante desenvolta e dona da situação:
       “Aceitai esta coroa,
       Virgem santa mãe querida,
       Para que seja a rainha.
       O penhor de eterna vida.”

      Ao tempo em que entoava os versos do hino, sua
mão direita ia aos poucos erguendo a coroa de Nossa
Senhora até a mesma ser depositada sobre a cabeça da
santa. Naquele momento, o vigário bradava vivas à
santa, a São José, à igreja, ao papa, etc.
       A essa altura, a coroante já havia concluído sua
missão, e estava sendo conduzida para baixo do suporte,
quando se ouviu um grito:
      - Cuidado com o “barandão”! Vai queimar a asa
do anjo! Era a voz aflita e estridente de Maria Joaquina,
uma beata, membro da Pia União das Filhas de Maria,
       Mas nada de mais grave aconteceu. A asinha da
coroante foi levemente chamuscada pela chama de um
brandão, no momento em que seu José Fiel trazia a
menina para baixo. Todos respiraram aliviados,
principalmente a mamãe que ainda olhou apreensiva
para a asinha atingida pela chama.
      - Cadê meus óculos? Não estou enxergando
nada. Questionou a menina.
       - Está aqui, Aline, apressou-se a mãe.
       E a coroante, já refeita do susto, colocou os óculos
de armação estilo olho de gato e foi cercada por todo
um    pelotão    de    coleguinhas aladas,        que    se
acotovelaram, hilariantes, barulhentas e quase histéricas
em torno da pequena “star”, elogiando sua atuação.
Muitas delas já fazendo planos para ser a sucessora da
coroante no próximo ano. Frei Johann Werner, o
celebrante, olhava de lado para os anjos e meio
impaciente repetia:
        - Silência, meninos, a coroaçon ainda non acabar,
silência!
        Naquele instante, o vigário parou o solo de violino
e do alto do coro bateu palmas três vezes com força e
sibilou aquele conhecido:
- “Pixiiiiiiit”. Funcionou: anjos, arcanjos e querubins
se reorganizaram em seus lugares e mais uma vez a corte
celeste estava em ordem.
       O frade terminou a solenidade, abençoando os
presentes e ajudantes, acólitos e anjos posicionaram-se
em fila dupla para retornar à sacristia. Começa
novamente a barulheira de anjos e ajudantes. Mais uma
vez o Padre José entra em cena, determinando que as
batinas e roquetes fossem guardados nos armários, as
asas e túnicas dos anjos nas caixas. Em seguida,
agradeceu a colaboração de todos e desejou que no
próximo ano a solenidade tivesse o mesmo brilho.
       Coroar a santa era como “concurso de miss”. Só
acontecia uma vez na vida de uma criança e a mãe
estava sempre por perto com medo que garotinha
despencasse do suporte ou alguma vela pudesse
incendiar suas asinhas.
       Coroar a santa era como “concurso de miss”. Só
acontecia uma vez na vida de uma criança e a mãe e os
parentes e uma verdadeira equipe de assessores
estavam sempre por perto com medo que garotinha
despencasse do suporte ou alguma vela pudesse
incendiar suas asinhas.
        Foram muitas as garotinhas da cidade que
participaram daquele evento tão significativo. Algumas
duas ou três vezes, como é o caso de Alice Batista e Rita
Moraes.     Em     cada    nova    coroação      ocorriam
particularidades interessantes com as participantes.
        Alice Batista participou três vezes. Na última
coroação, logo pela manhã, seu Baixa, compadre de
Zezito, passou em sua casa e comentou:
- Mas cumpade Zito, tem um tatu do tamanho de
um bacurinho lá na mata das Três Bacias. E nos vai
desintocá-lo hoje. Se prepare que a turma vai sair de
nove da noite.
      - Não vou poder ir, compadre Baixa. Hoje é 31 de
maio e minha menina vai coroar Nossa Senhora.
         - Oxente, cumpade, e a santa num já tá tem uma
coroa?
       - Compadre, pelo visto você não entende muito
de igreja, não! A caçada fica pra outra oportunidade.
        - De quarque forma, eu lhe trago uma banda do
tatu, cumpade. Inté.
        E a noite de Alice, mais uma vez foi de alegria e
sucesso, com a presença de toda a família: tio Beca, tio
Nivaldo, sem contar os primos que vieram de Recife. Tudo
indica que foi ela quem primeiro ficou sobre os livros da
igreja que eram colocados no suporte para aumentar a
altura da coroante. Três vezes, quase que fica vitalícia.
       Teresa Mota, com seu riso muito alegre e o
penteado de longos cachos negros, também foi anjo
coroante. No ano em que ela participou, toda a família
estava presente. Seu Mota avisou logo cedo aos clientes
do Bar dos Motoristas:
          - Hoje o bar só funciona até às seis da noite. Vou
assistir a coroação de Nossa Senhora.
       A família Moraes foi campeã de participantes. Rita
e Bel Moraes, esta segurava o livro e Rita cantava e
coroava. Certa ocasião, de última hora, Salete recebeu
um recado para preparar Rita, pois a menina escolhida
estava com medo de subir no suporte. Ela já tinha um
traje de anjo preparado no armário. E rapidamente as
duas subiram a rua em direção da igreja. Por sinal, Rita
Moraes, além de coroar a santa muitas vezes, era anjo de
todas as procissões e daminha de honra de muitos
casamentos.
        A primeira vez que Rita participou a emoção da
família foi muito grande. O evento caiu num sábado dia
de feira. Valdo liberou os funcionários da padaria para
irem a igreja assistir a coroação. Deixou apenas um
cuidando de uma fornada de pão. Zezinho encostou a
porta do estabelecimento e foi dar um “olhadinha” lá da
porta da igreja. Demorou e quando voltou o pão tinha
queimado. Tudo bem, o patrão relevou o prejuízo em
nome de Nossa Senhora. É claro que com tantas pessoas
da família participando do evento, ele não poderia
fechar a padaria cada vez; a população ficaria sem pão
sem contar com o lado financeiro.
        Verônica e Valéria Moraes seguiram a tradição.
Danielle e Leila Moraes também participaram do evento.
Dona Elvira, radiante, ao lado de Denise e Dedé e dos
outros irmãos.
        Mas a festa de último dia de maio não parava por
aí. No final da solenidade a apresentação do show
pirotécnico: girândolas barulhentas, fogos de lágrimas,
etc., todo aquele espetáculo, comandado por seu João
Bracinho. O auge do espetáculo era a soltura dos
famosos balões de Seu Né Coelho. A subida daqueles
artefatos coloridos e iluminados fazia a alegria da
garotada.
       Ainda na calçada, alguns políticos locais se
acercavam de seu Luiz Dubeux, um dos donos da usina
Bom Fim, tentando puxar conversa e solicitando dele que
o trenzinho de passageiros passasse a trafegar
diariamente, em vez de apenas três vezes por semana.
Dona Lourdes Araújo, responsável pelas flores da
decoração da igreja, cercada por meia dúzia de
senhoras que se desmanchavam em elogios e pediam
mudinhas de rosas e outras variedades para seus jardins.
Seu Bequinho, com aspirações políticas para o futuro,
cumprimentava a todos, esbanjando simpatia.
       O padre José e o Frei Werner passam pelos meio
da multidão em direção à casa paroquial. Seu Né
Coelho, o fabricante de balões, anuncia a subida do
último da noite. Um enorme balão de papel de seda
multicolorido. Precisa da ajuda de várias pessoas para
segurá-lo e atear fogo na bucha. O balão subiu e a
multidão acompanhou com os olhos até o seu
desaparecimento no firmamento.
        Naquela época, soltar balões não era ilegal nem
politicamente incorreto. A cidade era cercada de matas
verdes e úmidas. O inverno, muito rigoroso e, no mês de
maio, as chuvas eram intensas. Quando os balões
entravam em combustão e caiam, suas chamas eram
apagadas pela umidade do solo ou simplesmente eram
molhados pela neblina permanente do inverno.
       São os bons tempos que não voltam mais; hoje, só
na foto e na “telinha da TV”. Quem, entretanto, viveu
aqueles momentos, conserva na memória para sempre.
- Capítulo 2 -


               O BATIZADO DA BORBOLETA


        Naqueles velhos tempos, a religião católica que
pretendia ser a única, era levada muito a sério. Ou se era
católico ou crente e, estes, nunca eram bem aceitos
entre os membros da santa madre igreja. A segregação e
discriminação eram explícitas e tinha a aprovação geral
de todos. Havia até uns mais radicais que apelidavam os
não seguidores do Vaticano de “bodes”. E é claro que na
hora das compras básicas o bom católico não ia buscar
o pão da tarde na padaria do irmão Joab ou comprar
rendas e bicos na lojinha da irmã Midiã.
       E foi nesse ambiente de Irlanda do Norte sem
arsenal bélico que, novinha ainda, a pequenina mini
Aline foi levada à Pia Batismal, por seus zelosos pais,
guardiães da fé cristã.
        Na época do batizado, a família havia mudado
de residência e estava habitando uma ampla casa, estilo
solar, na Rua 13 de Maio.
         Quebrando uma tradição da época, os pais de
Aline não tiraram o nome da criança da folhinha de
nomes de santos. Seu nome tem a seguinte origem.
Maria, por que a menina havia nascido laçada e, caso
não lhe fosse dado aquele nome, ela poderia vir a morrer
queimada. Quanto à Aline, originou-se de um desejo da
mamãe, quando estava grávida da pequena. Dapaz
sentiu desejos de comer goiabas e juntamente com J. L.
dirigiu-se à casa de seu Né Coelho e dona Toinha, onde
frutificavam as melhores goiabas da região. Na
realidade, não era época da fruta e todos, olhando
ansiosos para os galhos mais altos da goiabeira,
começaram a procurar uma frutinha por pequena que
fosse. De repente, papai João Luiz exclamou eufórico e
entusiasmado:
       - “Ali, Né”, tem uma goiaba madura!
      Foi daquela exclamação que a mamãe Dapaz,
além de obter a fruto do seu desejo de gestante,
conseguiu uma boa inspiração para colocar o segundo
nome do futuro rebento: Aline. Este fato desconhecido
de muitos, foi fruto de longa pesquisa da estudiosa de
genealogia e heráldica, Leda Maria.
       Os padrinhos da garotinha, escolhidos entre
amigos próximos, moravam no vizinho distrito de
Caracituba, futura cidade de Primavera de Santo
Antônio. Seu José Rocha e dona Nina, juntamente com o
jovem Luiz Jacinto e outros convidados, vieram de “carro
de linha”, gentilmente cedido por seu Frederico Dubeux.
Padre Clodoaldo oficiou a liturgia, colocando os sais e os
santos óleos e vertendo a água benta sobre as louras
madeixas da garotinha, que se esganava de tanto gritar,
sem contar que, dona Nina sua madrinha, quase que
deixa a pequena se afogar na pia batismal, não fosse o
rápido auxílio de Cila Rodrigues que ajudou a segurá-la. A
neo batizanda tinha seis meses de idade e já pesava
doze quilos e meio. Todos os presentes elogiavam o timão
branco, decorado de renda francesa e lacinhos cor-de-
rosa, obra-prima de dona Elvira Fontes, a mais famosa
modista da cidade.
      Era dia de festa no solar de J. L. e Dapaz. Um
grande almoço, com aquele cardápio regional:
buchada, cabidela, peru assado, fritada, bolo de milho,
pé-de-moleque, manuê, grude de goma, ponches de
limão e laranja, os “pirulitos” de dona Toinha e as
“chupetas de açúcar” de seu Heleno para a criançada.
        Na cozinha, aquele exército de comadres e
afilhadas: dona Severina Cavalcanti, Maria Calixto,
Santa, Zefinha e outras, ajudando a mexer o pirão,
decorar os pratos, encher a buchada e carregar os
copinhos de bebidas fortes para os homens, e as
garrafinhas de gasosa e guaraná para as damas e os
pimpolhos. Afinal, à época, o uso de bebidas fortes não
havia se tornado moda ainda entre as damas e estas, só
ingeriam bebidas leves, tipo ponches e refrigerantes
como Fratteli Vita e Gasosa.
        Maria Andrade e dona Quinquina cortavam os
doces de batata e as goiabadas em lata, verdadeiras
delícias da culinária de seu Laurindo Doceiro.
       Na sala o papai J. L. recepcionava os convidados
do sexo masculino, oferecendo bebidas quentes; doses
de vinho Quinado Imperial e conhaque Palhinha e
Castelo, além de cerveja Pielsen esfriada. Os canapés
eram torresmo, bode assado, e sarapatél. Para os
fumantes, caixas de cigarilhas, cigarros Petisco, Caruso,
Bom Marché, Cara Preta e charutos Suerdick Bahia. Havia
até uns maços de Gesira e Pour la Noblesse, importados
raros da época. Presentes o prefeito da cidade, Dr. Plínio
Araújo e a esposa, seu José de Assunção e dona Nely
Gomes de Sá, seu Erasmo e dona Levina, seu Alcides
Rodrigues e Saló, além de alguns amigos da prefeitura,
comerciantes, senhores de engenhos e, naturalmente, os
primos e parentes do engenho e de Recife.
       Em meio à festança, enquanto os convivas se
deleitavam bebendo e dançando a polca, a porta se
abriu e adentrou o recinto, bastante irritada, “Sinhá
Sinfronina”, uma antiga lavadeira da família, que tinha
fama de ser catimbozeira e fazer uns despachos.
       - Dando uma festa e nem mim convidam, né? Inté
eu que ajudei a engomar os lençó de linhe do enxová da
criança!, berrou a velha. Qui ingratidão. Cadê a minina?
Cadê cumade Santa. To a pui de dá um bale nela.
       - Sente-se, Sinhá Fronina, convidou dona Elvira.
Aceita um pedacinho de peru assado ou uma fatia de
bolo?
       - Inhora não, já cumi meu prato de pirão de ovo,
respondeu ela, fumaçando de raiva. Só vim dá uma
ispiada e rezar a minima pru meu Padim Ciço e Mãe
Dasdore portregê a bruguela. Adonde ela tá?
         - Venha comigo, Sinhá Fronina, convidou dona
Elvira. E as duas se dirigiram para o quarto onde estava o
berço da neném.
        - Oxente, mai qui tanta caxa é essa dento do
beço?
       “São as lembrancinhas que ela recebeu, Sinhá
Fronina!
       - Mai num pode não, essa tuia de brebote vai
terminá sofocando a minina”. E a velha foi logo retirando
as caixas e os presentes e jogando tudo na cama ao
lado. Agora sim, nói pode vê ela. Meu Padim Ciço, cuma
ele gorda. Benza Deus!”
       A benzedeira concentrou-se e olhou a recém-
nascida demoradamente. Então puxou um galhinho de
arruda preso pelo turbante junto da orelha e começou a
aspergir a garotinha, enquanto rezava sua prece. Depois
persignou-se e exclamou solenemente:
- Ela vai sê muito intiligente, vai estudá e se formá,
vai sê muito populá, vai vencê na vida, vai viajar muito
por esse mundo de meu Deus, vai inté se casar, mai num
vai passá de um metro e meio de artura. Mai aiguente os
povo vai impelidá-la de Baxinha e Nina Bolinha.” Tem mai
ainda, ela vai sê muito braba; quando ela apontar o
dedo fura bolo, der três piscadinha cum as pestana e um
piqueno supapo no peito, corram de perto, que vai sobrá
pra arguém. É o castigo pru tere se isquecido de mim.
      E a velha Fronina retirou-se como um pé-de-vento,
deixando os convidados pasmos.
       Será que os augúrios da velha iriam se tornar
realidade? Os convidados entre assustados e pasmos
não paravam de cochichar entre si, mas o papai J. L.
logo pediu que o sanfoneiro tocasse um baião e a festa
voltou à animação inicial.
       Já quase uma hora da tarde, os homens iam se
animando com os repetidos tragos e com grandes
baforadas de charuto e cigarros. As senhoras,
acomodadas na sala, conversavam discretamente
enquanto enxugavam o suor do colo e do pescoço com
toalhinhas de feltro. As crianças, já “adocicadas” de
tanto pirulito e chupeta de açúcar, corriam enquanto
esbarravam nos mais velhos e promoviam a aquela
baguncinha organizada.
       Num recanto da sala, sentado numa poltrona, o
padre Clodoaldo de batina preta com dezenas de
botões que iam do colarinho até o abanhado, barrete
preto na cabeça, enxugava o rosto com um lenço e se
abanava com o breviário. De vez em quando dava uma
olhada no relógio de algibeira. Salomé de seu Alcides
notou aflição do reverendo e correu esbaforida para a
cozinha:
- Dapaz, minha santa, já está passando muito da
hora do padre Clodoaldo comer. Ele tem gastrite e
terminar passando mal se não forrar logo o estômago.
       Maria Andrade logo tomou a frente e começou a
preparar um prato para o vigário. Colocou numa
bandeja e levou até a mesa da sala. O reverendo foi
convidado para sentar e recebeu o prato sorrindo, já
estava passando o lenço na testa e na iminência de ter
uma oria. Maria Andrade, apressada, gritou para dona
Zefinha:
       - Prepara uma sangria para o padre.
       E dona Zefinha, espantada, respondeu:
      - Mas dona Maria, o sangue todo foi colocado na
cabidela.
       - Santa ignorância, Zefinha, sangria é um ponche
de vinho com água e açúcar. Não bote gelo, o padre
tem problemas de garganta.
        Afinal, toda a comunidade religiosa tinha um
histórico completo da saúde do pároco. Padre
Clodoaldo começou a se servir e, quando, preparava o
copo para tomar o primeiro gole de sangria, passa um
menino correndo e bate no braço do reverendo. A
toalha de linho da mesa ficou lilás. Dapaz apareceu na
sala e lamentou o estado se sua toalha de linho
engomada. O padre, pálido, quase perdeu o apetite,
ficou sem ação. Mais uma vez Maria Andrade contornou
a situação.
       - Não se preocupe, padre, aqui está outra sangria.
Vou ficar por aqui pra domar estes meninos.
- Ô minha gente, esses filhos de vocês não tem
estilo não, é? Ficam todas de beleza aí na sala enquanto
os meninos parecem que estão correndo no prado.
        O padre almoçou, fez uma rápida leitura no
breviário e começou a se despediu dos convidados e dos
anfitriões. Ao sair ainda benzeu os que estavam por perto.
        Quase catorze horas, estava na hora de servir o
almoço. Mas como iria caber tanta gente à mesa? Foi
quando apareceu dona Frederica Faneca, esposa do
prefeito, e apresentou a solução.
      - Por    que   vocês    não   fazem   um     almoço
americano?
      Os nativos entreolharam-se e ficaram            sem
entender nada. De novo Maria Andrade em cena.
       - Que história é essa de almoço americano, dona
Frederica?
      - Muito simples, colocam-se os pratos e talheres na
mesa, em seguida, vão trazendo os pratos das iguarias e
cada um se serve e vai comer em algum lugar da casa
que não seja na mesa.
      - Que idéia       maravilhosa,    dona     Frederica,
exclamou Dapaz.
       Os pratos, talheres, guardanapos e as iguarias do
almoço foram colocados na mesa da sala de jantar
sobre a toalha de linho branco engomada e com uma
enorme mancha de sangria. Os convidados famintos
como estavam, nem perceberam.
      - O Clodomiro, cadê as grades de coca-cola?
Perguntou dona Lita.
- É verdade, estão na mala do carro, Alguém me
ajude aqui, por favor!
        E os convidados que já se preparavam pra fazer
os pratos, pararam e ficaram admirados com as
garrafinhas de coca.
      - Eu vou tomar uma coca em lugar da gasosa,
fala dona Minervina, enquanto enchia o copo,
espantada com a espuma.
     - Ave Maria, fica fervendo no copo e na boca.
Queima e arde.
      - Dona Minervina, fala seu Clodomiro, é pra tomar
gelada. Quente, ninguém agüenta. Quando nada, bote
uma pedra de gelo no copo.
        - E a coca-cola roubou a cena do almoço. Afinal
ela só tinha chegado ao Brasil há dois anos e, na
província, pouca gente tinha experimentado o novo
refrigerante.
      E assim foi servido o primeiro almoço no “estilo
americano” em Amaraji.
       - De repente, um grito estridente e um choro de
criança. Dapaz e outras mães correram para o quarto e,
espantadas, viram a mini “nina” muito vermelha, se
debatendo no berço, engasgada e quase sufocada com
uma chupeta de açúcar.
       - Quem foi que fez uma barbaridade dessas?
Perguntou a mamãe. Deve ser cria de alguma daquelas
indolentes que estão na sala e não se levantam para
nada.
Difícil descobrir, afinal tinha criança demais na
festa. Ela trocou o timão da menina e foi falar com J. L.
sobre o ocorrido.
         - Tá bom de tanta festa e de dança, João Luiz,
esses meninos já bagunçaram demais e a casa está um
lixo, além do que a bebida já acabou. Tá na hora de
todo mundo voltar pra suas casas.
       João Luiz pediu que o sanfoneiro parasse que a
festa já ia acabar. Aos poucos os convidados iam
agradecendo e se retirando.
       Lá pelas quatro da tarde não restava mais
ninguém, a não ser os familiares e as comadres que
começavam a fazer a faxina. Dapaz, bastante cansada,
repetia:
        - Outra festa dessas aqui em casa, nunca mais.
Teve gente que pareciam não ter se alimentado há um
mês. Parece que vieram tirar a barriga da miséria mesmo.
O filho de dona Regina estava lavando as mãos na jarra.
Tem jeito? E a sobrinha de dona Davina, usou metade do
meu vidro de Madeira do Oriente. Quem era aquele de
bigode que fumava e cuspia lá no canto da sala? João
Luiz convidou cada um...
       E os comentários foram se amenizando, enquanto
a faxina estava quase concluída.
       O tempo passou e muitos esqueceram aquela
cena insólita e curiosa da velha Fronina, histérica,
saracoteando pela sala, mas algumas pessoas ainda se
perguntavam: será que algo daquilo iria acontecer?
- Capítulo 1 -


         JINGLE BELLS, NASCEU A “MINI” NINHA...


       Era uma vez, numa cidadezinha da mata sul,
torrão bendito, cercada de montanhas, poesia, matas
verdejantes e rio a correr, um casal muito feliz que trouxe
ao mundo uma “mini” garotinha, fim de rama, caçulinha,
cheia de graça e encantamento.
       A menininha veio ao mundo na residência de seus
genitores, situada à Rua Prefeito Rocha Pontual, juntinho
do cartório de seu Samuel Coelho.
       Seu papai era comerciante do ramo da
panificação e assessor do prefeito da província, e a
mamãe, de prendas domésticas.
       Como rezava a tradição da época, ela foi
“pegada” por Mãe Dedé, a parteira mais famosa da
região e nasceu tão miudinha, tão bolotudinha, tão
rechonchudinha, que cabia na palma da mão. Era, no
todo, de aparência muito saudável, com madeixas
galegas e tez rosada. Parecia uma calunga de louça.
       Os felizardos pais, João Luiz e Maria da Paz, deram
à nenenzinha, o nome de Maria Aline. Era o dia 27 de
outubro de mil novecentos e bauzes, exatamente dois
anos após a chegada da coca-cola no Brasil.
        Como acontece em todo lugarejo do interior, a
notícia espalhou-se com rapidez e, pelo fato do casal ter
muitos amigos, logo começou a aparecer pessoas para
ver a mais nova moradora da casa.
As primeiras visitas recebidas foram: Maria
Andrade, Quinquina e Dona Elvira; seu Alcides, Saló, Cila,
já mocinha, e Concinha, bem novinha. Do vizinho distrito
de Caracituba: seu João Rocha e dona Nina, futuros
padrinhos da recém-nascida. Do engenho Amora: seu
João Vieira, dona Mariinha e as pequenas, Socorro,
Josete e Anália. Da capital: os tios Clodomiro e Lita, e a
prima Maria Alice ainda de braço.
       Cada visitante que aparecia (os homens
evidentemente) eram agraciados pelo pai da garotinha,
com um cálice de excelente cachimbada de mel de
uruçu com cachaça de cabeça preparada na hora,
charutos Suerdick Bahia ou cigarros Asa, dependendo do
gosto de cada um.
        Um fato inusitado é que a menina era tão
pequenina, tão curtinha, que todos os presentes ficaram
curiosos a respeito do futuro da garotinha. O que ela iria
ser quando crescesse? E, em meio ao cochichado geral
das visitas, uma voz fanhosa e estridente gritou lá de trás:
“Ela vai ser borboleta de pastoril!” A exclamação havia
sido proferida por seu João Severo, o dono do
enchimento, que estava entrando para ver a neném e
escutara parte da conversa dos presentes. “Oxente, seu
João Severo, ela vai ser é uma fleira, uma madre
superiora, isso sim, se Deus quiser,” afirmou a jovem e boa
Aurinha, futura moradora da Vila São Vicente, que havia
chegado correndo para ver o novo rebento.
       Os presentes recebidos: lençóis e camisinhas de
pagão, mamadeiras, toucas e consolos coloridos,
sapatinhos de crochet, chiquitos, maracás e uma figa de
ouro. Maria Andrade levou uma boneca de pano
graúda, confeccionada por Amara da Boneca e um
vidro de alfazema da loja de seu Alcides. Levou também
um capão gordo, para a canja do resguardo da mamãe.
Aline e a maninha Ana Maria, primogênita do
casal, encheram de alegria a vida dos pais e de todos os
vizinhos de rua.
      Maria Andrade, amiga e guardiã da família,
ajudava a mamãe Dapaz na criação da “mini” Ninha e
Dona Maria Calixto, foi a sua ama-de-leite.
       Quando a gordinha começou a ficar mais
pesada, mamãe Dapaz contratou a ama Ivanise para
cuidar das duas manas. Como ela teria de dormir no
solar, Dapaz encomendou uma cama-de-lona a seu
Amaro Feitosa e, na feira, comprou um baú amarelo
ornado de gregas, daqueles fabricados lá para as
bandas do agreste, para as fardas da ama.
      A menininha crescia (perdão), se tornava a cada
dia, mais saudável e rechonchuda, cabeleira farta com
madeixas louras e as bochechas rosadas.
         A essa altura ela já se alimentava do leite gordo e
nutritivo da vacaria de seu Samuel, que, todas as manhãs
era distribuído por meio de uma carrocinha, puxada por
um robusto carneiro.
        A cidadezinha era muito pequena e quase nada
de novo acontecia. As notícias eram trazidas por
algumas      pessoas,   geralmente      comerciantes     e
autoridades municipais, que viajavam semanalmente
para a capital e, no retorno, compravam algum jornal ou
revista que era repassado para amigos. Havia poucos
rádios na cidade, mas duas pessoas possuíam aparelhos
de rádio possantes da marca RCA Victor, seu João Luiz e
seu Victor Alves. Muitas noites, o casal João Luiz e Maria
Dapaz convidava a jovem Elza Dorotéia e algumas
amigas para ouvirem a programação do rádio que era
composta de serestas e transmissão de apresentações de
programas de calouros ou de outros artistas que vinham
do sul do país, sem esquecer naturalmente o Repórter
Esso, responsável pelo noticiário do que estava
ocorrendo no Brasil e no mundo.
      Nestes saraus radiofônicos, escutavam-se novelas,
programas de auditório e músicas de sucesso da época.
Um dos programas inesquecíveis foi quando se
apresentou “Dilu Melo”, famosa artista de São Paulo, que
veio daquele estado apresentar-se na PRA-8, Rádio
Clube de Pernambuco. E deleitou a todos os ouvintes,
cantando:
        “Fiz a cama na varanda,
       Esqueci o cobertor
       Deu o vento na roseira
       Me cobriu todo de flor.”

        Nas noites de verão, cadeiras eram colocadas nas
calçadas, onde amigos e vizinhos se reuniam para a
tradicional prosa. Naquelas ocasiões, os homens falavam
sobre a administração do prefeito, as notícias nacionais e
internacionais escutadas no Repórter Esso e, as senhoras,
discutiam as atividades da paróquia, os sermões do
padre Teodoro, as últimas peças bordadas ou alguma
receita culinária nova recortada do Diário de
Pernambuco.
         Nossa história se passa no final da primeira
metade do século passado. Não é um tempo tão
distante, mas a realidade das pequenas cidades do
interior era bem diversa. Na zona urbana uma população
pequena, poucas casas e um comércio diminuto.
       Na zona rural, grande engenhos com seus
casarões e muitos moradores. Estas propriedades
assemelhavam-se a pequenos feudos da idade média. O
senhor de engenho era o patrão, o conselheiro, o juiz que
decidia sobre todas as questões e acontecimentos da
propriedade.
        Tempos amenos, bucólicos e românticos A
inexistente poluição ambiental e mental fazia com que o
meio se conservasse puro e paradisíaco; puras e arejadas
eram também as mentes e o pensar da época.

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  • 1. - Capítulo 6 - AS SANTAS MISSÕES Mês de janeiro. A comunidade católica se rejubilava com a notícia. Na missa do domingo o vigário anunciara para muito breve a realização das santas missões na cidade. O evento teria a presença de nada mais nada menos que aquele santo missionário que encantava a todos os verdadeiramente fiéis das plagas quentes do nordeste. Aline chegou em casa toda jubilosa contando a todos, a notícia. Já estava se imaginando, às três e meia da madrugada, seguindo aceleradamente o santo homem pelas ruas do burgo, exibindo com orgulho sua fita amarela de membro da cruzada eucarística, o livro do hinário católico na mão, ladeada pelas santas zeladoras, pelas filhas de Maria e outros beatos, ao som tarquetraqueante da velha matraca. A menina cantava no coro, ajudava nos batizados, enfeitava os altares da igreja e sempre fazia parte de todos os eventos da igreja. Certa estava ela. Com aquela participação constante e permanente, conseguiria ganhar muitas indulgências e, previdente como a formiga da fábula, estava fazendo seu pé-de- meia espiritual para, muito futuramente, assegurar uma boa “cobertura” em alguma nuvem ampla, com vista para o mar no andar de cima. Afinal chegou o grande dia. A população católica deslocou-se em procissão até a entrada da
  • 2. cidade para esperar os missionários. Jovens e senhoras vestidas sobriamente, sem pintura nenhuma nos rostos com ramos verdes nas mãos. Membros do apostolado da oração, da pia união das filhas de Maria e da cruzada eucarística, enfileiradas solenemente. O sol causticante fazia com que o pó de arroz das faces angelicais das jovens puras e das santas beatas se misturasse ao suor que se lhes escorria rosto abaixo. A espera era longa, mas a fé superava tudo. De repente o jeep da prefeitura apareceu e um emissário anunciou que o carro da comitiva já estava passando pelo engenho Jaguarana. Um murmúrio meio frenético e quase chegando à beira do histerismo percorreu a multidão. Havia velhinhas que beijavam a mão direita e a elevavam para o céu. Outras se benziam repetidamente. E algumas já puxavam um lencinho branco de dentro do porta-seio para enxugar o copioso que estava por vir. - Silêncio, meus irmãos, gritava o padre. Silêncio! Vamos organizar a fila. Lá do fundo, dona Zefinha trajando seu domingueiro azul marinho, com a larga fita de tafetá vermelho caindo cobre o colo começou a entoar o hino de santo Amaro. - Quem mandou a senhora começar os cânticos, irritou-se o cura. Não é o hino de santo Amaro, é o hino das missões. Vinde, pais, e vinde, mães, vinde todos às missões,...” - Mãe, ô mãe, eu quero mijar. - Deixa disso, Raminho, é hora de rezar com o padre e não de ir à casinha, respondeu uma das acompanhantes da procissão.
  • 3. - Mas, mãe, eu tô já me mijando, continuou o garoto. - Tá bom, vá ali atrás daquelas bananeiras, prosseguiu a mãe. Afinal o momento de glória. O carro dos missionários apareceu e começou a ovação. - Viva os missionários! Viva! Viva as santas missões! Viva o Papa! Viva! E a multidão emocionada mais uma vez: vivaaaa! E na esquina de uma barraca na entrada do sítio de seu Eudóxio, um velhote que havia tomado uma meiota, confundido talvez o evento, gritou: - Viva Dr. Zé Lopes! E as velhinhas que corriam no final da fila, sem nem saber direito que santo era aquele, responderam empolgadas: Viva! O reverendo ainda encarou meio rancoroso o velhote, mas não havia tempo para ralhações. O carro passou em direção à igreja e o povo acompanhando em ritmo acelerado, esqueceu-se das filas, dos hinos, e só se pensava em ver o santo homem de perto, tocar nele ainda que por um segundo e beijar- lhe a mão. Entretanto não foi fácil. A prefeitura havia organizado um cordão de isolamento e os missionários puderam entrar para a casa paroquial sem serem importunados. Na casa paroquial um rápido lanche e um descaso. Meia hora depois os frades adentravam o altar- mor e davam início à cerimônia. Cânticos, orações, e o turíbio fumegante nas mãos do chefe dos coroinhas espirrando fagulhas pra todos os lados.
  • 4. Na pauta das pregações, a presença do pecado mortal, do demônio, da concupiscência, dos maus pensamentos e todos aqueles itens que se não cumpridos fervorosamente levam o católico para as profundezas da fogueira eterna. Os conceitos do frade eram sintetizados de forma taxativa, sem atenuantes e meios termos. Era ser ou não ser, os mornos não entravam no reio dos céus. Vejamos alguns deles: Namoro – “Só na frente dos pais, com uma pessoa solteira. Deve ser breve, com casamento à vista”. Beijo – “Um beijo dado no rosto da namorada, como um beijo dado numa parenta, não tem nada demais. Entretanto, um beijo na boca, um beijo de língua, isso não, é pecado”. Divórcio – “O matrimônio só é quebrado por morte da esposa ou do esposo. Quem deixa o casamento para casar com outro no civil, estará no inferno de cabeça para baixo”. Dança – “A dança é um elemento de perdição. Quando um homem e uma mulher se juntam para dançar, não pode sair nada de bom disso tudo. Então sobrevém os maus pensamentos, os desejos pecaminosos, o pecado”. Saia curta – “Não usem saia curta. A saia curta não presta. É uma rede de que se serve o demônio para pegar os homens. O demônio está enganchado na saia curta das mulheres. Muitos homens perdem a cabeça por causa dessas modas exageradas”. Concubinato – “Uma pessoa que vive com outra sem casar, estará no inferno de cabeça para baixo”.
  • 5. Demônio – “O demônio existe, estão ouvindo? Ele existe. Numa cidade do sertão, entrei numa casa abandonada e ele me jogou sete pedras”. Inferno – “No inferno só há sofrimento. Lá, o calor é bilhões de vezes pior que no Nordeste. As labaredas sobem e queimam sem parar o corpo dos adúlteros, das prostitutas, dos efeminados, dos criminosos. Lá, é o lugar onde vive o demônio”. Depois de uma pregação com esses conceitos as filas do confessionário eram quilométricas. Todos queriam lavar suas almas e receber o perdão do santo homem. A jovem Aline preferiu se confessar com um frade mais jovem que, segundo ela, escutava melhor. Na praça o comentário era a pregação dos padres. Crentes, duvidosos ou céticos, cada fiel externava sua opinião. Uma coisa era certa, o inferno amedrontava muita gente. Aline e Ana mal conseguiram dormir pensando na procissão da madrugada. E às 3 horas em ponto as duas, acompanhadas por Neném e Mery, tomaram café e subiram para a matriz sob um frio de gelar a alma. Cada uma delas usando um daqueles chales triangulares que eram enfiados pela cabeça no estilo “poncho”. Às três e meia em ponto, o frade que já estava posicionado há bastante tempo começou a caminhar cantando o hino das missões e tocando a matraca. E os fieis atrás dos santos missionários, respondendo os hinos: Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos; vinde, todos à Missão. São dias de misericórdia, são dias de consolação. Ó Jesus, que amais as almas,
  • 6. pelo vosso Coração, dai que todos com proveito freqüentemos a Missão. É favor de vossa graça, de nossa alma a salvação. Ó Jesus misericordioso, concedei-nos o perdão! Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos; vinde, todos à Missão. Vinde, agora, pois é tempo de cuidar da salvação! As missões foram um sucesso. Foram realizados muitos batizados, confissões e casamentos. Dezenas de casais que viviam “amigados” ou “amancebados” como diziam os missionários, reconciliaram-se coma igreja pelo casamento. Na época casais amigados não eram bem- vindos nos missas e outras celebrações da igreja, inclusive não podiam ser padrinhos nos batizados. Afinal viviam em pecado. Aline e algumas amigas colecionavam santinhos e medalhinhas e ficavam, a todo instante, furando a fila para pedir a algum missionário que abençoasse as estampas e as medalhas. Haja fé! A população católica da pequena cidade, sempre muito fervorosa, participava ativamente das atividades da igreja. Os padres e os missionários sempre eram esperados na estação do trem e, ao termino do evento religioso, levados de volta por uma multidão de fiéis. Nos meados da década de quarenta, a professora Lourdes Barbosa adquiriu uma imagem de São Tarcísio e organizou uma chegada festiva da imagem do
  • 7. santo, transportado de Recife até Amaraji. A comitiva, responsável pela imagem chegou de trem e dezenas de pessoas se deslocaram até a estação para receber o mártir. Dá pra imaginar o empurra, empurra. A plataforma da estação era pequena e o número de fiéis que queriam ver a imagem de perto e tocá-la era imenso. Os pais de Aline e Ana, João Luís e Maria Dapaz, levaram as duas pequenas para assistir a solenidade. Cada uma das meninas acompanhadas de suas bazinhas. Mas nada foi como esperado. Naquele aglomerado, Ana Maria levou um empurrão que provocou uma queda e machucou-se. Os pais ficaram bravos, as duas babás foram repreendidas pelo descuido e a família retirou-se da festa retornando ao solar. Outra chegada festiva de santo ocorreu em 1950 na inauguração da Capela de Santo Amaro construída pelo prefeito, Dr. Jorge Coelho. A imagem de Santo Amaro foi trazida da cidade de Sirinhaém onde ele havia trabalhado como médico e fora nomeado prefeito em 1947. Desta vez o santo veio de carro e a população esperou a comitiva na entrada da cidade. Ocorreu outro fato muito interessante no finalzinho do século XIX na estação do trem. Minha avó Trifônia Coelho (Iaiá) estava presente e me relatou este fato que foi confirmado por várias pessoas da época dela. Havia chegado à cidade um missionário para celebrar um evento de alguns dias na matriz de São José. Era um frade simples, humilde, e considerado santo por muitos. Trajava um hábito bastante surrado e sandálias já descoloridas pelo uso. Celebrou missas, batizou, oficiou casamentos e, depois de uma semana, voltou para o convento em Recife.
  • 8. Como de tradição muitos fieis pertencentes às diversas associações formaram um cortejo para levá-lo até a estação onde ele viajaria de trem. Durante todo o trajeto ele se manteve em silêncio. Enquanto aguardava o trem, ficou passeando pela plataforma e lendo seu breviário. Os fiéis, achando estranho aquela atitude do frade, começaram a cochichar entre si. Foi quando uma senhora do apostolado aproximou-se e perguntou sutilmente o que estava acontecendo. Ele parou de andar de um lado para outro, guardou o livro na bolsa que estava no banco da plataforma e, de braços cruzados, batendo delicadamente no chão com a ponta do pé direito e com um olhar vago para o horizonte, comentou: esta vila não sabe valorizar um servo do Senhor, não está em sintonia com as coisas da Santa Igreja. “Este lugar não vai pra frente nunca”. Ninguém nunca soube o que realmente ocorreu pra constranger o frade durante sua permanência em Amaraji, mas as palavras dele ficaram na mente de muitos por gerações. Não foi praga, pois homens santos que pregam a palavra de Deus não se utilizam disso para com seus desafetos. Seria o frade um sensitivo, teria ele o dom da premonição? O fato é que o município de Amaraji, naquela época um dos mais promissores do estado, possuía: sessenta e um engenhos, vários deles banguês os quais, mesmo em fase de decadência, produziam açúcar, melaço e cachaça; as usinas União e Indústria, Cabeça de Negro, Bosque, Bamburral, Aripibu, e, na década de 1920, Liberato Marques; a vila de Primavera e em 0000 a vila de Cortês com a usina Pedroza. Além disso, políticos
  • 9. fortes como Dr. Mário Domingues da Silva, deputado e senador do congresso pernambucano; Dr. Davino dos Santos Pontual, também deputado e senador e o comendador José Pereira de Araújo que presidiu o senado do Estado nos anos de 1916-18. Isso sem contar o usineiro e advogado Carlos de Lima Cavalcanti, natural de Amaraji, que foi interventor federal no Estado. Nas décadas de 1920-30, a cidade de Amaraji figurava como o 14º produtor de cana entre os 84 municípios de Pernambuco e entrava nas estatísticas estaduais de produção de banana, mandioca, algodão e coco. No município havia duas máquinas descaroçadeiras de algodão e cerca de 250 casas de farinha distribuídas pelos engenhos. O que aconteceu, afinal? Parece até uma “lenda urbana”. Conforme já escrevi uma vez, foram-se as usinas, os engenhos e as casas de farinha, mas ficaram as matas verdejantes, o rio a correr e “tutta la bona gente” de lá da província. A análise final dos fatos fica a critério de cada um.
  • 10. - Capítulo 5 - A BORBOLETA VAI À ESCOLA Nos meados do século passado, na pequena cidade de Amaraji, havia apenas duas escolas do ensino primário: o Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, pertencente à Secretaria de Educação do Estado e o Instituto Cônego Aníbal Santos, escola particular, dirigido pela professora Lourdes Barbosa. Os jovens da elite e parentes da Professora Lourdes iniciavam seus estudos naquele Instituto e as demais crianças, na escola do Estado. O ensino supletivo também fora introduzido no final dos anos 40. Funcionava à noite e era destinado prioritariamente a jovens e adultos que não tinham tido oportunidade de ter sido alfabetizado na infância. O D. Luiz de Brito marcou a vida de todos aqueles que passaram por suas salas. O prédio, de dois pavimentos, fora adaptado da antiga cadeia pública do município no final da década de 1940 e recebeu o nome do primeiro arcebispo a visitar a cidade. Suas carteiras, fabricadas de sucupira, eram ortopedicamente desconfortáveis; um estudante que fosse mais gordinho, nela se acomodava com bastante dificuldade. Mas já era uma grande conquista para o setor educacional. Na parte de trás do prédio, onde se localiza o Fórum Municipal, havia uma campina verde que era usada como campo de futebol. Dona Maria Nely Gomes de Sá, a primeira diretora do grupo, etariamente idosa, de idéias pré-jurássicas, formação acadêmica paleoliticamente dinossáurica e
  • 11. métodos pedagógicos bem pessoais, devendo ter nascido em mil novecentos e bauzes bauzes, época em que o arco-íris era preto e branco. Segundo a tradição histórica das más línguas, ela era prima distante do Noé da arca e teria sido uma parenta sua muito remota que, após o dilúvio, teria soltado a pombinha, lá do alto do monte Ararat. Conta- se também que uma de suas tias em grau muito afastado e há alguns séculos atrás, fora auxiliar de copeira da Santa Ceia; a encarregada de lavar as taças. Baixinha, gorda, descenturada, voz estridente e gasguita, trajando sempre saia justa de tecido escuro e blusa clara sobre corpetes pontiagudos, com dois eternos bendengós, na época, chamados de “cachorro-quente” ornando-lhe o penteado. Usava óculos de grau muito forte numa armação estilo olho de gato. Sua arma pedagógica mais presente e sempre às mãos, pronta para ser utilizada, não era a obra de Arnaldo Niskier e sim uma sombrinha. Pela quantidade de sombrinhas danificadas nas costas dos alunos “levados da breca”, acreditava-se que ela as comprava em grosso. Seu rigor administrativo extrapolava toda a noção moderna de recursos humanos. O tratamento dado às outras mestras era bem glacial e o relacionamento com as duas funcionárias que auxiliavam na administração, dona Maria do Carmo e Maria da Paz, mãe de Aline e Ana, não ficava atrás. Só quem estava a salvo de suas sombrinhadas era Rosinha sua filha. Dona Nely e seu esposo eram, na época, os únicos que possuíam um veículo na cidade e desfilavam no automóvel de marca ford pelas ruas da cidade aos domingos.
  • 12. A cada dois meses, geralmente num domingo à tarde, ela visitava seu Ernesto Coelho e dona Iaiá, meus avós, para tomar um cafezinho, fazer uma oração de agradecimento e acender uma velinha para a minúscula imagem de santo Antônio que dona Iaiá havia herdado de seus avós e que, segundo muitos devotos, concedia graças àqueles que lhe invocassem. Sendo santo Antônio o padroeiro dos casamentos, imaginava-se que ela ia agradecer ao canonizado algo muito especial. Afinal muitas dezenas de semestres separavam ela de seu esposo, o servidor municipal José de Assunção. As outras mestras da época: Rita de Souza, Bernadete Silva, Nieta Tabosa, Das Dores Teixeira, Isaura e Carmita, Mara Vasconcelos e Salete Coelho, formadas por último, ensinavam no engenho Garra e na antiga escola rural da cidade. Todas eram um doce de pessoa. Também Abiacy e Neide Lins, formadas bem jovens iniciaram-se no magistério no final dos anos 50. O regime era de ordem, disciplina e assiduidade. Os instrumentos de tortura: palmatória, caroço de milho e longas horas de pé ou ajoelhado versus parede na diretoria e a famosa “ sombrinha ” de Dona Nely, que mais se assemelhava ao coelhinho da Mônica. Os livros didáticos: “Vamos Estudar” e “Lili, Lalau e o Lobo.” Na quinta série, a bíblia: “Admissão ao Ginásio.” As aulas transcorriam dentro de uma programação contínua e sempre se tinha algo que fazer. Decorava-se a tabuada, os pontos de geografia e história, e faziam-se descrições, tendo como tema figuras e paisagens de um álbum ilustrado gigante que era colocado sobre um cavalete na frente dos alunos. Não se tinha outra alternativa: estudava-se e aprendia-se. Com mil perdões das “meninas da gre”, a coisa funcionava. Mesmo pronunciando Vasingtón, quem decorou e aprendeu que Washington é uma capital, nunca esqueceu.
  • 13. Outra atividade interessante eram as aulas de trabalhos manuais. Desenhos, quadros de vidro pintados de preto e com complementos de papel laminado de um tipo de chocolate em forma de peixinho em várias cores. Havia ainda uns quadros de madeira compensada nos quais se desenhava algum tipo de paisagem e trabalhava o quadro com uma massa de alvaiade, óleo de linhaça e pó secante, formando as figuras em alto relevo. Uma vez seco, pintava-se o trabalho de belas cores. Havia ainda trabalhos feitos em azulejo branco. Colocava-se o azulejo sobre a chama de uma vela acesa e quando estava todo tisnado, desenhava-se alguma figura, retirando o excesso e tisna preta e deixando o verniz copal escorrer sobre a silhueta desenhada. Os colegas de sala: Aline e Ana Costa Gomes, Alzerina Silva, Amara (Lala), Amara e Edite Araújo, Amara Pereira, Antonieta, Aspásio, Francisca e Margarida Carlos, Carlos Alberto, Carlos Eduardo e Cláudio Leonardo Vasconcelos, Conceição Silva, Eleusis e Dirceu Vasconcelos, Enedina (Neném) de seu Delmiro, Heleno Amaro e Zuleide, Amara Hulda e Vicente Ramos, Ivonete, Joaquim (Quincas) Fabrício, Luís (Lula) Benigno, Márcio e Márcia Bandeira de Melo, Maria Celeste, Maria de seu Saul, Neide, Roberto Barbosa, Rômulo Ferraz, Santo e João Martins, Sônia e Airton Brito, Sônia e Giselda Santos, Terezinha, Vilma Brito, Wilton. As classes eram multisseriadas. O uniforme era obrigatório para todos: dos mais carentes, passando pelos emergentes até os de famílias mais afortunadas. Para as meninas, saia azul de pregas, blusa branca com a logomarca da escola no bolso; para os meninos, calça no joelho, camisa branca com as mesmas letras. Sapatos pretos e meias brancas para todos.
  • 14. Não dá para esquecer o final de horário escolar do Grupo. Dona Maria do Carmo tocava a campainha e a professora anunciava que a aula estava terminada. Livros arrumados, alunos de pé, formando fila única em cada sala de aula. Na porta de entrada da escola Dona Nely de mãos para trás, uma delas segurando seu inseparável bibelô, a sombrinha, dizia: - Pode sair a terceira série! ” E os alunos deixavam a sala em fila indiana, marchando em formas de “cobrinha” pelo hall e cantando o hino Ardor do Infante de Castro Alves: Onde vais tu, esbelto infante Com teu fuzil lesto a marchar Cadência certa, o peito arfante Onde vais tu a pelejar? Pra longe eu vou, a Pátria ordena Sigo contente o meu tambor, Cheio de ardor! Cheio de ardor! Pois quando a Pátria nos acena Vive-se só da própria dor. É no combate que o infante é forte vence o perigo despreza a morte. Outras classes iam acompanhando a primeira que havia iniciado a marcha e, quando o hall estava quase cheio ela batia duas palmas fortes e dizia: - Podem sair! Devagar! Quem correr, eu chamo de volta. A essa altura, a diretora postada no portão de saída, já estava segurando a sombrinha em estado de
  • 15. alerta. Não era permitido sequer pular de dois em dois degraus da longa escada do grupo. De repente, ouve-se um grito estridente de Dona Nely: - Amaro Cavalcante, volte já aqui! Ele apenas acelerara o passo lá próximo do último degrau. E lá vem o menino cabisbaixo, cenho franzido, e ainda foi alcançado de raspão pela sobrinha da diretora ao caminhar para a diretoria. - Ai, dona Nely, doeu! - Cale a boca, seu moleque insubordinado e atrevido, puxe para diretoria e fique de joelhos virado para a parede. Deve ter saído da diretoria lá pelas duas horas da tarde. A gente esperava com ansiedade as datas comemorativas do ano escolar: carnaval, semana santa, São João, Semana da Pátria, dia da árvore, a visita da inspetora escolar, dona Hilda Brandão e, em dezembro, a entrega dos resultados das provas finais. O dia da pátria era comemorado com muita alegria e participação da comunidade. Ensaiavam-se durante muitos dias os passos da marcha, a divisão dos pelotões, etc. Seu Luís Soldado era o instrutor. A banda era composta de um surdo, um tarol e uma caixa e uma corneta que tocava os comandos. Os meninos disputavam uma vaga na banda, mas quem escolhia era o instrutor. Os ensaios se realizavam no campo de futebol. Aline, muita sabida, mas bastante pequena ainda ficava num pé e noutro pra saber onde ia ser o seu lugar no desfile. A bandeira ela não podia carregar. Imagine um pé de vento mais forte: bandeira e porta-bandeira iam voar pelos céus da província. Aliás, carregar a bandeira do Brasil era mesmo que disputar um concurso
  • 16. de miss. Todos queriam usar luvas brancas pra carregar o lábaro nacional. Geralmente o escolhido era algum “peixinho” da diretora ou de alguma professora. Tinha de ser um aluno alto, garboso e saber marchar, claro. Fazer o esquerda, direita, esquerda, direita, no ritmo certo. Havia também uma estudante mais baixa que, de luvas, marchava à direita do porta-bandeira segurando delicadamente a ponta da bandeira. O desfile saia da frente do grupo e dirigia-se até o prédio da prefeitura para a solenidade especial de hasteamento da bandeira, discursos e uma demorada hora de arte. A borboleta que já havia passado o mês mexendo com os pauzinhos, conseguiu abrir o desfile, marchando na frente da bandeira com luvas brancas e uma faixa auriverde. Sem contar que foi uma das oradoras na prefeitura e, de quebra, ainda declamou uma poesia. E, claro, com todos aqueles aplausos, a filha de J.L. e dona Dapaz, desceu as escadas do Paço Municipal e dirigiu-se ao seu lugar no desfile com aquele “oco patriótico”. E o desfile continuou pelas ruas e praças da cidade até retornar ao ponto de saída. Depois da solenidade, o lanche patrocinado pela escola e pela prefeitura municipal. Naquele momento, todo mundo amava Dom Pedro II, o rio Ipiranga e o brado retumbante. A comemoração do dia da árvore era outra solenidade muito esperada. Naquela data, professores e alunos dirigiam-se ao campo de aviação, o campo de pouso da cidade, para o plantio de árvores. O ambiente era verde e bucólico; de um lado a mata das Três Bacias, do outro, as matas da ladeira de Riachão, e, por trás, as matas de Sete Ranchos e engenhos circunvizinhos. Cânticos, declamações, discursos e, na volta, aquela gostosa salada de frutas. Esta música de Arnaldo Barreto
  • 17. era cantada, tradicionalmente, enquanto as árvores eram plantadas: Cavemos a terra, plantemos nossa árvore, Que amiga e bondosa ela aqui nos será! Um dia, ao voltarmos pedindo-lhe abrigo, ou flores, ou frutos, ou sombras dará! O céu generoso nos regue esta planta; o Sol de dezembro lhe dê seu calor; a terra, que é boa, lhe firme as raízes e tenham as folhas frescuras e verdor! Plantemos nossa árvore, que a árvore amiga seus ramos frondosos aqui abrirá, Um dia, ao voltarmos, em busca de flores, com as flores, bons frutos e sombra dará O céu generoso nos regue esta planta; o Sol de dezembro lhe dê seu calor; a terra, que é boa, lhe firme as raízes e tenham as folhas frescuras e verdor! As alunas mais velhas apresentaram sketches, poesias e cânticos. Professoras também participavam ativamente. No final da solenidade, a diretora franqueou a palavra, com a tradicional pergunta: alguém quer fazer uso da palavra ou apresentar alguma atividade? Não é preciso dizer que alguém lá de trás, com os cabelos desalinhados pelo vento forte, o rosto avermelhado com o calor do sol respondeu quase gritando: - Claro que eu quero, dona Nely. Preparei uma poesia que está na ponta da língua.
  • 18. - Pronto, lá vai aquela baixinha metida de novo, reclamou uma menina no meio da turma. - Deixa de ser invejosa, Severina, pior é você que não sabe apresentar nada. Só pensa em encher a barriga com salada. - E apoi, mulé, tô me acabando de fome. Eu nem tomei café direito pensando na salada de fruta. As tripas estão quase brigando no meu bucho. - Mas você é muito ignorante mesmo, nossa, como é que pensa em se formar, casar ter filhos e educá- los? - E quem disse que estou pensando em nada disso, eu vou é fugir com trapezista do circo. Já tá tudo acertado. E ai de você se contar a mãe, dou-lhe uma pisa de lascar. E Isabel saiu de perto da colega horrorizada com tanta ignorância e irresponsabilidade. A essa altura, Aline já estava posicionada no pequeno palco improvisado. Dona Nely, já perdendo a paciência, mandava os alunos calar a boca, os professores se abanavam com os cadernos, o calor era escaldante. - Pode começar a declamação, Aline, comandou a diretora que suava às bicas e enxugava o rosto e o pescoço gorducho com um minúsculo lencinho de linho: - Senhores professores, prezados alunos, a poesia que vou apresentar é da autoria de Raul Aroeira Serrano. E começou:
  • 19. A Árvore "Criança, a árvore merece A nossa estima sincera Dá frutos doces no outono E flores na primavera. Nunca maltrates uma árvore A quem tudo nós devemos Desde a madeira da porta Ao lápis com que escrevemos. Na sombra da árvore amiga Pensa bem no teu destino Pois dela foi feito O teu berço pequenino." Terminada a apresentação, muitos aplausos, palmas e alguns apitos e assovios de alguns alunos. Dona Nely, olhando inquisidoramente para os responsáveis pelos apitos e assovios, quase que histérica, gritou: - Se não acabarem com a baderna e a falta de educação, eu acabo com a salada e o lanche e ainda deixo vocês até às três horas na diretoria. Santo remédio. Um silêncio sepulcral reinou durante todo o trajeto, desde o campo, até a escola. Formou-se a fila da merenda e foi distribuída uma salada de frutas, biscoitos e bastante ponche de laranja. Havia sempre algum estudante meio abusado que tentava furar a fila ou, simplesmente, se servir mais de uma vez. Dona Nely, porém, estava de plantão permanente distribuindo cascudos, puxões de orelhas e
  • 20. “muxicões” nos mais alvoroçados. Nada lhe escapava. Lá pelas duas da tarde, os alunos começaram a deixar a escola. A diretora estava tão absorta em manter a disciplina no interior do prédio que nem notou a correria e bagunça de alguns alunos pela escada de saída do grupo. Amaraji, na época, apesar de ser uma minúscula cidade da zona da mata sul possuía um campo de pouso para aviões de muito pequeno porte. Era o único da região. Uma curiosidade a respeito do campo de pouso. Ele foi construído no início da década de 1950 na gestão do prefeito Dr. Jorge Coelho da Silveira. No dia da festa da inauguração, toda a população da cidade dirigiu-se para o local do evento para ver a descida de um avião monomotor, na época, chamado de “teco-teco”. Algumas autoridades da cidade foram convidadas pelo piloto para um pequeno voo. Dona Toinha Coelho, esposa do secretário da prefeitura, cheia de euforia, candidatou-se para um pequeno tour sobre a cidade. Quando tentou subir na aeronave, pra sua grande decepção, não conseguiu passar pela porta e quase que fica presa. Ela era meio “fortinha”. Frustrada, desistiu e a multidão que presenciou a cena não pode conter o riso que não foi nem um pouco discreto. Aline e suas colegas, pra lá e pra cá, loucas por um convite pra subir aeronave, mas é claro que aquilo não era nenhuma canoa ou jaú de parque de diversões. Só pra os adultos que fossem autoridades. Paciência, Aline, um dia você cresce, perdão, fica com mais idade e vai poder fazer tudo isso, voar à vontade.
  • 21. - Capítulo 4 - SÓ DANÇO SE EU FOR MESTRA, EXIGIU ABORBOLETA A primeira infância da pequenina Aline, bem baixinha, cintura roliça, bochechinhas acentuadas e já usando seus óculos miudinhos no estilo olho de gato, foi passada no solar da Rua 15 de Novembro, sob os olhares atentos e cuidadosos da dileta mamãe, da secretaria Mery, substituta de Ivanise, e dos bons vizinhos: seu Corocochô, do “hotel estrela única” da esquina; seu Luizinho, alfaiate, e dona Terezinha; dona Maria do Carmo; seu Eurico, Corina e Corinto; dona Elvira Fontes e Maria Andrade (Neném, a guardiã da família); seu Avelino da padaria; seu Mário Telegrafista, dona Áurea e Aurinha; seu Zé Goiana e dona Laura; seu Manoel Firmino chefe do clã dos Amaros e Amaras Silveira; os fervorosos crentes da Igreja Batista; dona Olindina, Permínia e Claudionor; dona Toinha e as tias Zezé e Santinha, e Alaíde Brito da vendinha da esquina. O dia a dia na província era mais ou menos corriqueiro. Pela manhã, as aulas no Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, à tarde, os deveres escolares de casa, cujas dúvidas eram tiradas com as mestras Bernadete e Rita, hóspedes do hotel. À tardezinha, auxiliadas por Mery, elas se aprontavam, penteando os cabelos cortados à moda capelinha, que eram presos por diademas de galalite ou ligeiras largas, vestidinhos de organdi bordados de crivo ou ponto de cruz, com faixa de tafetá na cintura e
  • 22. sapatinhos de pulseira, impecavelmente polidos por seu João Engraxate. Depois de prontas, as duas sentavam-se na calçada, saboreando os deliciosos pãezinhos da padaria de seu Alcides, recheados de manteiga e açúcar, gentilmente preparados pela bondosa Mery. Assim, as duas manas esperavam o retorno da mamãe, que passava o dia trabalhando no Grupo Escolar. À noite, em frente ao solar, as manas Aline e Ana e as amigas Denise, Lourdes Alves, Elêusis, Cleide da Borboleta, Maria Ângela e outras coleguinhas, brincavam de roda, de pega, de academia, de manja, barra- bandeira, boca de forno ou de esconder. De longe se escutavam os sons das cantorias: “Pai Francisco entrou na roda...” ou “Samba Lelê, tá doente, tá com a cabeça lascada.. .” ou “Apareceu a Margarida, olê, olê, olâ...”, ou ainda “Boca de forno! Forno! Tirando o bolo! Bolo!...” Quando não corriam na rua, simplesmente sentavam-se na calçada, brincando de anel, contando estórias ou arrepiando-se de medo, ao falar sobre a “Comadre Florzinha”, o “Pantel” da mata ou o último capítulo do Mistério do Além. Às vezes, comentavam sobre algum estranho que havia aparecido na rua de mochila nas costas e mal encarado. Será que não era o “papa-figo” mandado pelos Amorim da capital para pegar criancinhas e arrancar-lhes o fígado, paliativo para aquela doença horrível que fazia suas orelhas crescerem?
  • 23. Em dias de chuva, reuniam-se em torno de dona Quinquina, mãe de Maria Andrade, para ouvirem, atentas, as estórias de Trancoso, narradas pela bondosa velhinha. De vez em quando, em torno das oito horas, escutava-se a voz de dona Elvira que gritava: - Denise, está na hora da novela, venha prá casa! Ninguém perdia o horário de “O Direito de Nascer” e todas suspiravam com Albertinho Limonta e Isabel Cristina, seus amores e desventuras. Em outras ocasiões, era Maria Andrade que aparecia perguntando: - Oh, Aline e Ana, vocês já fizeram o dever de casa? E a poesia da hora de arte, Aline? Já decorou toda? Quando Aline chegava atrasadas à brincadeira, significava que estava escutando o Repórter Esso. Mesmo sem entender tudo ainda, adorava uma notícia. Uma ocasião ela atrasou-se uma meia hora. As outras coleguinhas que já se sentavam na calçada e iniciavam a brincadeira do anel, estranharam a ausência da baixinha. De repente lá vem a menina respirando com dificuldade, erguendo os ombros, com os olhos marejando. As amigas ficaram preocupadas e Denise aproximando-se perguntou curiosa: - Que é isso, Aline, você está com puxado? Ave Maria, será que isso pega? Aline, enraivecida, respondeu irritada: - Deixe de ser lesa! Que puxado, que nada? Estou com uma crise de asma alérgica.
  • 24. As outras colegas havia se aproximado e cercavam, receosas, a pequena enferma. Denise continuou insistente: - É não, isso é puxado. Eu vi o menino de Bau Amaro lá em Estivas, impando desse mesmo jeito, e era puxado. E a menina foi se irritando mais ainda. - Vamos perguntar a mamãe? Nesse momento, Maria Andrade ia passando. Aline, cada vez mais brava, gritou: - Oh, Neném, isso que eu tenho não é uma asma alérgica? E Maria Andrade, sem dar muita atenção, abanando a saia, respondeu: - Sei lá, Aline, é uma dessas coisas mesmo. Mas você devia era estar dentro de casa agasalhada por causa da frieza. Entre logo, vamos. - Oh, Dapaz ... Aline vestiu um agasalho e teimosa como ela só, ainda voltou para a prosa. O assunto da noite foi a briga do padre. O vigário da paróquia de origem holandesa fora avisado de que dona Serafina, uma viúva muito devota e membro do apostolado da oração, estava se ultimando. Decidiu, então, fazer uma visita à enferma para confessá- la e dar a santa extrema unção. Seus familiares eram evangélicos. Na porta da residência da enferma foi barrado pelos parentes da moribunda que não queriam sua presença. O reverendo muito bravo e muito revoltado e com a rudez flamenga à flor da pele, não
  • 25. teve a menor dúvida; saiu empurrando todo mundo que estava em sua frente, chegou até o quarto da agonizante e, mui calmamente, fez sua orações. As meninas comentavam com orgulho a atitude do padre. De repente, duas das meninas do grupo começaram a cochichar e rir o que chamou a atenção do restante do grupo. - Que cochicho é esse? Grande falta de educação, reclamou Aline. - Você não pode saber, Aline, é muito criança ainda. - Essa não, apartou Ana Maria tomando as dores. O que? Aline não tem nada de criança, ele é muito inteligente e sabida. - Depois de muita adulação ficaram sabendo que uma das garotas mais velhas do cochichado havia “sido moça” recentemente. Foi uma festa, todo mundo queria saber os mínimos detalhes do acontecimento. Mas nem todas concordaram com aquele tipo de conversa. - Ave Maria, isso é conversa de moça direita, minha gente. Já pensou se a chefe da cruzada sabe que vocês estão falando disso? Não quero nem pensar... Muitas vezes a brincadeira se estendia até depois das nove, quando as pequenas infantes começavam a retornar a seus lares, pois às 22 horas em ponto, Corinto, encarregado do motor que fornecia energia elétrica para a cidade, dava o sinal, fazendo as lâmpadas piscarem três vezes e, em seguida, as luzes eram desligadas. Vinte e duas e trinta, luzes apagadas, grilos e sapos se orquestrando, a província se entregava aos
  • 26. braços de Morfeu. Durante a noite, o máximo que podia acontecer, era alguma moçoila noiva ou comprometida, ser roubada pelo pretendente, evitando, com essa fuga, as despesas do casamento. E nessa tranqüilidade paradisíaca, o ano transcorria e chegava o mês de dezembro com seus festejos natalinos e folclóricos. O pastoril religioso era um deles. Era um acontecimento que movimentava toda a comunidade provinciana. Papais e mamães torciam para que suas filhas pequenas fossem escolhidas para fazer parte do evento organizado por algumas jovens e senhoras da comunidade católica. Afinal, tudo tinha de sair perfeito para as pessoas que participavam e torciam pelo “encarnado” ou “azul”, comprassem muitos lacinhos de fita de sua cor preferida para ajudar a vencer o cordão escolhido, no qual, normalmente dançava uma de suas filhas. A renda era destinada as obras paroquiais. Usando vestidos confeccionados de papel crepon, saias rodadas, muita areia prateada ornando as orlas dos babados franzidos e fitas da cor do partido que enfeitavam a indumentária. Os pandeiros, enfeitados de fitas das duas cores, ajudavam a marcar o ritmo da dança. Era uma trabalheira a sua confecção. As senhoras Belisa Rolin, Sônia Dantas, Salete Coelho e Dasdores, entre outras, eram as encarregadas do evento folclórico. Rômulo Barbosa, sempre no comando da animação, fazia a platéia ir ao delírio aos gritos de: azul, azul, azul, ou encarnado, encarnado, ou o taxativo já ganhou. Era um verdadeiro leilão de venda de lacinhos, para a alegria geral das pastorinhas. A pequena Aline já chegando aos oito anos foi convidada para fazer parte do tradicional festejo. Pela
  • 27. sua estatura “mignon”, e para que se cumprisse a previsão de seu João Severo no dia de seu nascimento, ela deveria ficar balançando as asinhas em volta das pastoras, no papel da borboleta. No dia da reunião para escolha das pastoras e do personagem de cada uma no evento, o papel da borboleta ficou para ela, claro. Pelo seu tipo, sua altura, ia ser a borboleta mais qualificada dos últimos tempos. Mas, de personalidade forte que tinha, já desde criança, a menina embirrou, emperrou fez ver que só se apresentaria se lhe dessem o papel da “mestra”. Nenhuma das promotoras do pastoril conseguia convencê-la do contrário. A reunião parou e ninguém sabia o que fazer. Dasdores Teixeira, com muita calma e delicadeza, tentou convencer a pequena pastorinha: - Olhe, Aline, você vai ficar uma gracinha de borboleta. A saia franzidinha, as asinhas douradas e as sapatilhas também. Já pensou, Dapaz vai lhe achar linda. Ainda vamos colocar uma coroa de pedrinhas em sua cabeça. Vai ficar parecendo uma rainha, não é meninas? E as outras pastorinhas responderam em coro: - É, dona Dasdores. A essa altura ela já tinha se levantado, ido para frente do grupo com passadas largas, firmes e determinadas e com uma das mãos na cintura e o dedo da outra mão apontando para as senhoras, bateu o pé e falou em tom decidido e definitivo:
  • 28. - De jeito nenhum, se eu não for a mestra, não danço, pronto! Podem arranjar outra borboleta que eu estou indo embora. E a baixinha deu dois sopapinhos na cabeça, ajeitou o franzido da saia e encarou as organizadoras uma a uma. Em seguida, deu meia volta, apanhou seu chale minúsculo e caminhou em direção à saída do salão paroquial. Dona Sônia Dantas tentou argumentar, mas quando sentiu o olhar de desafio da quase borboleta, calou-se e comentou baixinho: - É melhor não insistir, Dasdores, deixa ela ser a mestra e Denise fica sendo a borboleta. E agora, quem vai avisar a ela? E Dasdores saiu apressada alcançando a menina que já estava passando ao lado do bilhar de seu Aristeu. - Oh, Aline, um momento, por favor, exclamou Dasdores. Ela virou-se e já se sentiu vencedora. - Escute, Aline, o pessoal resolveu que você vai ser a borboleta. Vamos voltar para o salão e agradeça a dona Sônia, pois foi ela quem decidiu. O que? Eu mesma não. Ela queria que a mestra fosse a filha de dona Minervina. Só porque ela é maior do que eu e já tem busto, é? Grande coisa, eu sou pequena, mas canto muito melhor do que ela. E assim ela voltou para o salão e terminou de assistir a reunião. Na volta para casa, uma das colegas falou, tu é peia, não é, Aline? Consegue tudo que quer...
  • 29. Pois é, e você acha que ia ficar balançando asinhas pra lá e pra cá, eu mesma não. Está pensando que eu sou zig-zag, é? Ora, pinóia! E nos primeiros dias de dezembro, depois de muitos ensaios, o pastoril começou a se apresentar no palanque construído em frente ao salão paroquial. E lá se foi Aline triunfante, puxando o cordão encarnado. O seu fã clube era imenso. Vinha até torcedores da vizinha Caracituba. Seu padrinho João Ito e o jovem Luiz Jacinto. Maria Andrade, a mamãe Dapaz e Mery eram do mesmo modo, torcedoras exaltadas, sem contar dona Bernadete Silva, sua professora. Denise Fontes foi por muito tempo, a detentora das asinhas da borboleta. E quando a apresentação começava e chegava a vez da mestra, a voz da menina ecoava pela praça: Boa noite meu senhores todos, Boa noite senhoras também, Somos pastoras, pastorinhas belas Que alegremente vamos a Belém. Somos pastoras, pastorinhas belas Que alegremente vamos a Belém. Sou a mestra do cordão encarnado, O meu cordão eu sei dominar, Eu peço palmas, peço bis e flores Aos partidários peço proteção. Eu peço palmas, peço bis e flores Aos partidários, peço proteção. - Mas a mestra canta demais, comentava Maria Joaquina. É verdade, a filha de dona Dapaz canta que nem um passarinho, comentou Durrei.
  • 30. E a festa prosseguia noite afora até o final da apresentação, com muitos gritos e palmas dos partidários do cordão azul e do cordão encarnado. Depois, a troca de roupa, os parabéns e a alegria dos familiares e amigos e a “mestra” mal cabia em si de contente. Estava bestinha, não tirava o sorriso da boca e, de vez em quando, davas umas piscadinhas mais agitadas. O vigário apareceu e dona Belisa passou para ele a renda da noite. Tinham conseguido vender muitos lacinhos. Dasdores havia preparado um lanche e lá se foram os participantes do show tomar guaraná Fratelli Vita com sanduíches de pão com carne enlatada e bolinhos de bacia. Era uma alegria só. Cada uma que de se exibisse mais. E a mestra já se imaginava, no próximo ano, indo se apresentar na usina Nossa Senhora do Carmo e em Bonfim.
  • 31. - Capítulo 3 - A PRIMEIRA INFÂNCIA E SEU “DÉBUT” CATÓLICO Os primeiros anos da infância da mini “ninha” foram dentro da normalidade. Ela havia perdido o pai, J. L., quando tinha dois anos de idade. A mamãe Dapaz foi uma grande guerreira e batalhou muito para criar e educar as duas manas. Trabalhou no comércio e depois foi contratada pela Secretaria de Educação para prestar serviços no Grupo Dom Luiz de Brito. As festinhas de aniversário ficavam restritas aos primos e amiguinhos mais próximos da família, sem muita badalação. Mesmo depois de um dia de trabalho na loja de tecidos e miudezas “A Borboleta”, Dapaz ainda encontrava tempo para ensinar as primeiras letras às duas meninas. Aline, aos quatro anos de idade, já havia aprendido a ler as primeiras palavras e, mais tarde, quando se matriculou no Grupo Escolar para estudar a primeira série primária com a professora Maria Bernadete da Silva, já estava alfabetizada. Ela idolatrava a mestra. Ainda hoje, ela lembra a fragrância do perfume usado por ela. Olha a profecia de sinhá Fronina se realizando. Dona Bernadete era de Caruaru. Uma jovem de pele clara, olhos esverdeados, cabelos encaracolados, extremamente paciente e dedicada aos alunos. Ela era hóspede de Hotel de Seu Corocochô, que ficava localizado no local onde, hoje, existe o supermercado da Praça Pereira de Araújo. Lembro da professora, pois eu estudava na mesma turma.
  • 32. Naquela época, o sonho de muitas famílias católicas era ter um padre ou uma freira na família. Aqueles que não conseguiam tal “benção”, ficavam conformados com a “dádiva dos céus”, se uma de suas filhas pequenas pudessem participar da coroação de Nossa Senhora no último dia do mês maio. Aos oito anos de idade, como filha de toda boa família cristã, a ainda pequenina Aline, foi convidada pelo vigário para coroar Nossa Senhora, naquele inesquecível dia 31 de maio. Ela era detentora das características exigidas pela tradição da igreja e possuía o perfil perfeito para colocar a coroa sobre a cabeça da Virgem. Cor branca, cabelos claros, e voz maviosa. Na época, ninguém deu muita atenção ao fato, mas nunca uma menina de cor “morena” ou afro-descendente legítima, foi escolhida para coroar a santa. Preconceito? Não, apenas “tradição” da igreja. Os anjos do céu tinham a pele branca desde a criação. E assim, a borboletinha foi escolhida para participar daquele evento tão disputado pelas meninas de sua idade. Seria o seu “début” católico na sociedade infantil da Igreja. O ato litúrgico exigia toda uma preparação. Ela foi auxiliada por Santinha Silveira, responsável pela Cruzada Eucarística e com o assessoramento da professora Belisa Rolin, Sabina Andrade, do Apostolado da Oração, da professora Dasdores Teixeira e de Maria Joaquina. Os noiteiros, famílias encarregadas da decoração da igreja e da organização geral da festa do encerramento do mês de maio, eram: seu Raul e dona Lourdes do engenho Riachão do Sul; seu Bequinho do engenho Sete Ranchos e a família de seu Luiz Dubeux da
  • 33. Usina Bonfim. Já à tarde, a pequena coroante e demais colegas de solenidade, após participar do ensaio final com o coro, ajudavam na decoração do altar, fabricando buchas de papoula para a incrustação de cravos e céssias em forma de meias guirlandas que eram colocadas em todos os recantos da matriz. Os castiçais eram polidos e longos brandões de espermacete neles colocados. Feita a limpeza final da igreja, espalhavam-se folhas de canela e eucalipto pelo chão para que o ambiente ficasse naturalmente aromatizado. Durante o ensaio, A solenidade religiosa era preparada com bastante antecedência, desde o ensaio dos cânticos até o da coroação propriamente dita. No coro da igreja, os hinos, cantados em latim, estavam sob o comando da organista Ivone Oliveira que era coadjuvada pelas cantoras Teresinha, Dos Anjos, Agenilda e Quiterinha, entre outras. Na ocasião, encontrava-se na cidade um missionário alemão, responsável pela celebração da solenidade, enquanto o cura local, Padre José, acompanhava os cânticos com o violino. O altar de nossa senhora fartamente decorado de branco e azul, reunia um verdadeiro séquito de acólitos, solenemente paramentados de vermelho, com seus roquetes impecavelmente brancos, além de uma dúzia de anjinhos espalhados por toda parte. Integrava a corte de celeste: Ana Maria, irmã da coroante, Denise Fontes, Cleide da Borboleta, Eleuses Vasconcelos, Neném de seu Belmiro, entre outras. E após a ladainha, o magnificat e a coroação propriamente dita. A pequena “anjinha” trajando uma túnica longa de laquê branco, ornada de galões dourados; portando um par de asas brancas nas costas e uma coroa de flores
  • 34. claras na cabeça, um pouco de carmim nas bochechas e uma leve sombra de batom nos lábios era elevada delicadamente por um dos fiéis e colocada no suporte que ficava ao lado da santa. A mamãe, do lado de baixo do suporte, olhava ansiosa e repetidamente para cima, receosa de que a garotinha pudesse escorregar. Silêncio sepulcral no adro da matriz. O missionário teutônico elevava a voz de barítono e dizia: - Caríssimos irmaos, agôra vamos iniciarr a coroaçon de Nôssa Senhôra. Do alto do coro, a organista dedilhava uns acordes da melodia na velha sarafina e o público, atento, dirigia os olhares para o altar da virgem. O coro iniciava a solenidade, cantando a primeira estrofe da conhecida música. Aí, então, a pequena cantora com voz um pouco tímida, mas bastante firme cantava a segunda: “Virgem recebe esta coroa, Que te oferece o nosso amor, Seja do céu, ó mãe tão boa, Pra todo nós feliz penhor”. O coro apresentava a segunda estrofe e a garotinha prosseguia com a última parte, desta vez, já bastante desenvolta e dona da situação: “Aceitai esta coroa, Virgem santa mãe querida, Para que seja a rainha. O penhor de eterna vida.” Ao tempo em que entoava os versos do hino, sua mão direita ia aos poucos erguendo a coroa de Nossa Senhora até a mesma ser depositada sobre a cabeça da
  • 35. santa. Naquele momento, o vigário bradava vivas à santa, a São José, à igreja, ao papa, etc. A essa altura, a coroante já havia concluído sua missão, e estava sendo conduzida para baixo do suporte, quando se ouviu um grito: - Cuidado com o “barandão”! Vai queimar a asa do anjo! Era a voz aflita e estridente de Maria Joaquina, uma beata, membro da Pia União das Filhas de Maria, Mas nada de mais grave aconteceu. A asinha da coroante foi levemente chamuscada pela chama de um brandão, no momento em que seu José Fiel trazia a menina para baixo. Todos respiraram aliviados, principalmente a mamãe que ainda olhou apreensiva para a asinha atingida pela chama. - Cadê meus óculos? Não estou enxergando nada. Questionou a menina. - Está aqui, Aline, apressou-se a mãe. E a coroante, já refeita do susto, colocou os óculos de armação estilo olho de gato e foi cercada por todo um pelotão de coleguinhas aladas, que se acotovelaram, hilariantes, barulhentas e quase histéricas em torno da pequena “star”, elogiando sua atuação. Muitas delas já fazendo planos para ser a sucessora da coroante no próximo ano. Frei Johann Werner, o celebrante, olhava de lado para os anjos e meio impaciente repetia: - Silência, meninos, a coroaçon ainda non acabar, silência! Naquele instante, o vigário parou o solo de violino e do alto do coro bateu palmas três vezes com força e sibilou aquele conhecido:
  • 36. - “Pixiiiiiiit”. Funcionou: anjos, arcanjos e querubins se reorganizaram em seus lugares e mais uma vez a corte celeste estava em ordem. O frade terminou a solenidade, abençoando os presentes e ajudantes, acólitos e anjos posicionaram-se em fila dupla para retornar à sacristia. Começa novamente a barulheira de anjos e ajudantes. Mais uma vez o Padre José entra em cena, determinando que as batinas e roquetes fossem guardados nos armários, as asas e túnicas dos anjos nas caixas. Em seguida, agradeceu a colaboração de todos e desejou que no próximo ano a solenidade tivesse o mesmo brilho. Coroar a santa era como “concurso de miss”. Só acontecia uma vez na vida de uma criança e a mãe estava sempre por perto com medo que garotinha despencasse do suporte ou alguma vela pudesse incendiar suas asinhas. Coroar a santa era como “concurso de miss”. Só acontecia uma vez na vida de uma criança e a mãe e os parentes e uma verdadeira equipe de assessores estavam sempre por perto com medo que garotinha despencasse do suporte ou alguma vela pudesse incendiar suas asinhas. Foram muitas as garotinhas da cidade que participaram daquele evento tão significativo. Algumas duas ou três vezes, como é o caso de Alice Batista e Rita Moraes. Em cada nova coroação ocorriam particularidades interessantes com as participantes. Alice Batista participou três vezes. Na última coroação, logo pela manhã, seu Baixa, compadre de Zezito, passou em sua casa e comentou:
  • 37. - Mas cumpade Zito, tem um tatu do tamanho de um bacurinho lá na mata das Três Bacias. E nos vai desintocá-lo hoje. Se prepare que a turma vai sair de nove da noite. - Não vou poder ir, compadre Baixa. Hoje é 31 de maio e minha menina vai coroar Nossa Senhora. - Oxente, cumpade, e a santa num já tá tem uma coroa? - Compadre, pelo visto você não entende muito de igreja, não! A caçada fica pra outra oportunidade. - De quarque forma, eu lhe trago uma banda do tatu, cumpade. Inté. E a noite de Alice, mais uma vez foi de alegria e sucesso, com a presença de toda a família: tio Beca, tio Nivaldo, sem contar os primos que vieram de Recife. Tudo indica que foi ela quem primeiro ficou sobre os livros da igreja que eram colocados no suporte para aumentar a altura da coroante. Três vezes, quase que fica vitalícia. Teresa Mota, com seu riso muito alegre e o penteado de longos cachos negros, também foi anjo coroante. No ano em que ela participou, toda a família estava presente. Seu Mota avisou logo cedo aos clientes do Bar dos Motoristas: - Hoje o bar só funciona até às seis da noite. Vou assistir a coroação de Nossa Senhora. A família Moraes foi campeã de participantes. Rita e Bel Moraes, esta segurava o livro e Rita cantava e coroava. Certa ocasião, de última hora, Salete recebeu um recado para preparar Rita, pois a menina escolhida estava com medo de subir no suporte. Ela já tinha um traje de anjo preparado no armário. E rapidamente as
  • 38. duas subiram a rua em direção da igreja. Por sinal, Rita Moraes, além de coroar a santa muitas vezes, era anjo de todas as procissões e daminha de honra de muitos casamentos. A primeira vez que Rita participou a emoção da família foi muito grande. O evento caiu num sábado dia de feira. Valdo liberou os funcionários da padaria para irem a igreja assistir a coroação. Deixou apenas um cuidando de uma fornada de pão. Zezinho encostou a porta do estabelecimento e foi dar um “olhadinha” lá da porta da igreja. Demorou e quando voltou o pão tinha queimado. Tudo bem, o patrão relevou o prejuízo em nome de Nossa Senhora. É claro que com tantas pessoas da família participando do evento, ele não poderia fechar a padaria cada vez; a população ficaria sem pão sem contar com o lado financeiro. Verônica e Valéria Moraes seguiram a tradição. Danielle e Leila Moraes também participaram do evento. Dona Elvira, radiante, ao lado de Denise e Dedé e dos outros irmãos. Mas a festa de último dia de maio não parava por aí. No final da solenidade a apresentação do show pirotécnico: girândolas barulhentas, fogos de lágrimas, etc., todo aquele espetáculo, comandado por seu João Bracinho. O auge do espetáculo era a soltura dos famosos balões de Seu Né Coelho. A subida daqueles artefatos coloridos e iluminados fazia a alegria da garotada. Ainda na calçada, alguns políticos locais se acercavam de seu Luiz Dubeux, um dos donos da usina Bom Fim, tentando puxar conversa e solicitando dele que o trenzinho de passageiros passasse a trafegar diariamente, em vez de apenas três vezes por semana.
  • 39. Dona Lourdes Araújo, responsável pelas flores da decoração da igreja, cercada por meia dúzia de senhoras que se desmanchavam em elogios e pediam mudinhas de rosas e outras variedades para seus jardins. Seu Bequinho, com aspirações políticas para o futuro, cumprimentava a todos, esbanjando simpatia. O padre José e o Frei Werner passam pelos meio da multidão em direção à casa paroquial. Seu Né Coelho, o fabricante de balões, anuncia a subida do último da noite. Um enorme balão de papel de seda multicolorido. Precisa da ajuda de várias pessoas para segurá-lo e atear fogo na bucha. O balão subiu e a multidão acompanhou com os olhos até o seu desaparecimento no firmamento. Naquela época, soltar balões não era ilegal nem politicamente incorreto. A cidade era cercada de matas verdes e úmidas. O inverno, muito rigoroso e, no mês de maio, as chuvas eram intensas. Quando os balões entravam em combustão e caiam, suas chamas eram apagadas pela umidade do solo ou simplesmente eram molhados pela neblina permanente do inverno. São os bons tempos que não voltam mais; hoje, só na foto e na “telinha da TV”. Quem, entretanto, viveu aqueles momentos, conserva na memória para sempre.
  • 40. - Capítulo 2 - O BATIZADO DA BORBOLETA Naqueles velhos tempos, a religião católica que pretendia ser a única, era levada muito a sério. Ou se era católico ou crente e, estes, nunca eram bem aceitos entre os membros da santa madre igreja. A segregação e discriminação eram explícitas e tinha a aprovação geral de todos. Havia até uns mais radicais que apelidavam os não seguidores do Vaticano de “bodes”. E é claro que na hora das compras básicas o bom católico não ia buscar o pão da tarde na padaria do irmão Joab ou comprar rendas e bicos na lojinha da irmã Midiã. E foi nesse ambiente de Irlanda do Norte sem arsenal bélico que, novinha ainda, a pequenina mini Aline foi levada à Pia Batismal, por seus zelosos pais, guardiães da fé cristã. Na época do batizado, a família havia mudado de residência e estava habitando uma ampla casa, estilo solar, na Rua 13 de Maio. Quebrando uma tradição da época, os pais de Aline não tiraram o nome da criança da folhinha de nomes de santos. Seu nome tem a seguinte origem. Maria, por que a menina havia nascido laçada e, caso não lhe fosse dado aquele nome, ela poderia vir a morrer queimada. Quanto à Aline, originou-se de um desejo da mamãe, quando estava grávida da pequena. Dapaz sentiu desejos de comer goiabas e juntamente com J. L. dirigiu-se à casa de seu Né Coelho e dona Toinha, onde
  • 41. frutificavam as melhores goiabas da região. Na realidade, não era época da fruta e todos, olhando ansiosos para os galhos mais altos da goiabeira, começaram a procurar uma frutinha por pequena que fosse. De repente, papai João Luiz exclamou eufórico e entusiasmado: - “Ali, Né”, tem uma goiaba madura! Foi daquela exclamação que a mamãe Dapaz, além de obter a fruto do seu desejo de gestante, conseguiu uma boa inspiração para colocar o segundo nome do futuro rebento: Aline. Este fato desconhecido de muitos, foi fruto de longa pesquisa da estudiosa de genealogia e heráldica, Leda Maria. Os padrinhos da garotinha, escolhidos entre amigos próximos, moravam no vizinho distrito de Caracituba, futura cidade de Primavera de Santo Antônio. Seu José Rocha e dona Nina, juntamente com o jovem Luiz Jacinto e outros convidados, vieram de “carro de linha”, gentilmente cedido por seu Frederico Dubeux. Padre Clodoaldo oficiou a liturgia, colocando os sais e os santos óleos e vertendo a água benta sobre as louras madeixas da garotinha, que se esganava de tanto gritar, sem contar que, dona Nina sua madrinha, quase que deixa a pequena se afogar na pia batismal, não fosse o rápido auxílio de Cila Rodrigues que ajudou a segurá-la. A neo batizanda tinha seis meses de idade e já pesava doze quilos e meio. Todos os presentes elogiavam o timão branco, decorado de renda francesa e lacinhos cor-de- rosa, obra-prima de dona Elvira Fontes, a mais famosa modista da cidade. Era dia de festa no solar de J. L. e Dapaz. Um grande almoço, com aquele cardápio regional: buchada, cabidela, peru assado, fritada, bolo de milho,
  • 42. pé-de-moleque, manuê, grude de goma, ponches de limão e laranja, os “pirulitos” de dona Toinha e as “chupetas de açúcar” de seu Heleno para a criançada. Na cozinha, aquele exército de comadres e afilhadas: dona Severina Cavalcanti, Maria Calixto, Santa, Zefinha e outras, ajudando a mexer o pirão, decorar os pratos, encher a buchada e carregar os copinhos de bebidas fortes para os homens, e as garrafinhas de gasosa e guaraná para as damas e os pimpolhos. Afinal, à época, o uso de bebidas fortes não havia se tornado moda ainda entre as damas e estas, só ingeriam bebidas leves, tipo ponches e refrigerantes como Fratteli Vita e Gasosa. Maria Andrade e dona Quinquina cortavam os doces de batata e as goiabadas em lata, verdadeiras delícias da culinária de seu Laurindo Doceiro. Na sala o papai J. L. recepcionava os convidados do sexo masculino, oferecendo bebidas quentes; doses de vinho Quinado Imperial e conhaque Palhinha e Castelo, além de cerveja Pielsen esfriada. Os canapés eram torresmo, bode assado, e sarapatél. Para os fumantes, caixas de cigarilhas, cigarros Petisco, Caruso, Bom Marché, Cara Preta e charutos Suerdick Bahia. Havia até uns maços de Gesira e Pour la Noblesse, importados raros da época. Presentes o prefeito da cidade, Dr. Plínio Araújo e a esposa, seu José de Assunção e dona Nely Gomes de Sá, seu Erasmo e dona Levina, seu Alcides Rodrigues e Saló, além de alguns amigos da prefeitura, comerciantes, senhores de engenhos e, naturalmente, os primos e parentes do engenho e de Recife. Em meio à festança, enquanto os convivas se deleitavam bebendo e dançando a polca, a porta se abriu e adentrou o recinto, bastante irritada, “Sinhá
  • 43. Sinfronina”, uma antiga lavadeira da família, que tinha fama de ser catimbozeira e fazer uns despachos. - Dando uma festa e nem mim convidam, né? Inté eu que ajudei a engomar os lençó de linhe do enxová da criança!, berrou a velha. Qui ingratidão. Cadê a minina? Cadê cumade Santa. To a pui de dá um bale nela. - Sente-se, Sinhá Fronina, convidou dona Elvira. Aceita um pedacinho de peru assado ou uma fatia de bolo? - Inhora não, já cumi meu prato de pirão de ovo, respondeu ela, fumaçando de raiva. Só vim dá uma ispiada e rezar a minima pru meu Padim Ciço e Mãe Dasdore portregê a bruguela. Adonde ela tá? - Venha comigo, Sinhá Fronina, convidou dona Elvira. E as duas se dirigiram para o quarto onde estava o berço da neném. - Oxente, mai qui tanta caxa é essa dento do beço? “São as lembrancinhas que ela recebeu, Sinhá Fronina! - Mai num pode não, essa tuia de brebote vai terminá sofocando a minina”. E a velha foi logo retirando as caixas e os presentes e jogando tudo na cama ao lado. Agora sim, nói pode vê ela. Meu Padim Ciço, cuma ele gorda. Benza Deus!” A benzedeira concentrou-se e olhou a recém- nascida demoradamente. Então puxou um galhinho de arruda preso pelo turbante junto da orelha e começou a aspergir a garotinha, enquanto rezava sua prece. Depois persignou-se e exclamou solenemente:
  • 44. - Ela vai sê muito intiligente, vai estudá e se formá, vai sê muito populá, vai vencê na vida, vai viajar muito por esse mundo de meu Deus, vai inté se casar, mai num vai passá de um metro e meio de artura. Mai aiguente os povo vai impelidá-la de Baxinha e Nina Bolinha.” Tem mai ainda, ela vai sê muito braba; quando ela apontar o dedo fura bolo, der três piscadinha cum as pestana e um piqueno supapo no peito, corram de perto, que vai sobrá pra arguém. É o castigo pru tere se isquecido de mim. E a velha Fronina retirou-se como um pé-de-vento, deixando os convidados pasmos. Será que os augúrios da velha iriam se tornar realidade? Os convidados entre assustados e pasmos não paravam de cochichar entre si, mas o papai J. L. logo pediu que o sanfoneiro tocasse um baião e a festa voltou à animação inicial. Já quase uma hora da tarde, os homens iam se animando com os repetidos tragos e com grandes baforadas de charuto e cigarros. As senhoras, acomodadas na sala, conversavam discretamente enquanto enxugavam o suor do colo e do pescoço com toalhinhas de feltro. As crianças, já “adocicadas” de tanto pirulito e chupeta de açúcar, corriam enquanto esbarravam nos mais velhos e promoviam a aquela baguncinha organizada. Num recanto da sala, sentado numa poltrona, o padre Clodoaldo de batina preta com dezenas de botões que iam do colarinho até o abanhado, barrete preto na cabeça, enxugava o rosto com um lenço e se abanava com o breviário. De vez em quando dava uma olhada no relógio de algibeira. Salomé de seu Alcides notou aflição do reverendo e correu esbaforida para a cozinha:
  • 45. - Dapaz, minha santa, já está passando muito da hora do padre Clodoaldo comer. Ele tem gastrite e terminar passando mal se não forrar logo o estômago. Maria Andrade logo tomou a frente e começou a preparar um prato para o vigário. Colocou numa bandeja e levou até a mesa da sala. O reverendo foi convidado para sentar e recebeu o prato sorrindo, já estava passando o lenço na testa e na iminência de ter uma oria. Maria Andrade, apressada, gritou para dona Zefinha: - Prepara uma sangria para o padre. E dona Zefinha, espantada, respondeu: - Mas dona Maria, o sangue todo foi colocado na cabidela. - Santa ignorância, Zefinha, sangria é um ponche de vinho com água e açúcar. Não bote gelo, o padre tem problemas de garganta. Afinal, toda a comunidade religiosa tinha um histórico completo da saúde do pároco. Padre Clodoaldo começou a se servir e, quando, preparava o copo para tomar o primeiro gole de sangria, passa um menino correndo e bate no braço do reverendo. A toalha de linho da mesa ficou lilás. Dapaz apareceu na sala e lamentou o estado se sua toalha de linho engomada. O padre, pálido, quase perdeu o apetite, ficou sem ação. Mais uma vez Maria Andrade contornou a situação. - Não se preocupe, padre, aqui está outra sangria. Vou ficar por aqui pra domar estes meninos.
  • 46. - Ô minha gente, esses filhos de vocês não tem estilo não, é? Ficam todas de beleza aí na sala enquanto os meninos parecem que estão correndo no prado. O padre almoçou, fez uma rápida leitura no breviário e começou a se despediu dos convidados e dos anfitriões. Ao sair ainda benzeu os que estavam por perto. Quase catorze horas, estava na hora de servir o almoço. Mas como iria caber tanta gente à mesa? Foi quando apareceu dona Frederica Faneca, esposa do prefeito, e apresentou a solução. - Por que vocês não fazem um almoço americano? Os nativos entreolharam-se e ficaram sem entender nada. De novo Maria Andrade em cena. - Que história é essa de almoço americano, dona Frederica? - Muito simples, colocam-se os pratos e talheres na mesa, em seguida, vão trazendo os pratos das iguarias e cada um se serve e vai comer em algum lugar da casa que não seja na mesa. - Que idéia maravilhosa, dona Frederica, exclamou Dapaz. Os pratos, talheres, guardanapos e as iguarias do almoço foram colocados na mesa da sala de jantar sobre a toalha de linho branco engomada e com uma enorme mancha de sangria. Os convidados famintos como estavam, nem perceberam. - O Clodomiro, cadê as grades de coca-cola? Perguntou dona Lita.
  • 47. - É verdade, estão na mala do carro, Alguém me ajude aqui, por favor! E os convidados que já se preparavam pra fazer os pratos, pararam e ficaram admirados com as garrafinhas de coca. - Eu vou tomar uma coca em lugar da gasosa, fala dona Minervina, enquanto enchia o copo, espantada com a espuma. - Ave Maria, fica fervendo no copo e na boca. Queima e arde. - Dona Minervina, fala seu Clodomiro, é pra tomar gelada. Quente, ninguém agüenta. Quando nada, bote uma pedra de gelo no copo. - E a coca-cola roubou a cena do almoço. Afinal ela só tinha chegado ao Brasil há dois anos e, na província, pouca gente tinha experimentado o novo refrigerante. E assim foi servido o primeiro almoço no “estilo americano” em Amaraji. - De repente, um grito estridente e um choro de criança. Dapaz e outras mães correram para o quarto e, espantadas, viram a mini “nina” muito vermelha, se debatendo no berço, engasgada e quase sufocada com uma chupeta de açúcar. - Quem foi que fez uma barbaridade dessas? Perguntou a mamãe. Deve ser cria de alguma daquelas indolentes que estão na sala e não se levantam para nada.
  • 48. Difícil descobrir, afinal tinha criança demais na festa. Ela trocou o timão da menina e foi falar com J. L. sobre o ocorrido. - Tá bom de tanta festa e de dança, João Luiz, esses meninos já bagunçaram demais e a casa está um lixo, além do que a bebida já acabou. Tá na hora de todo mundo voltar pra suas casas. João Luiz pediu que o sanfoneiro parasse que a festa já ia acabar. Aos poucos os convidados iam agradecendo e se retirando. Lá pelas quatro da tarde não restava mais ninguém, a não ser os familiares e as comadres que começavam a fazer a faxina. Dapaz, bastante cansada, repetia: - Outra festa dessas aqui em casa, nunca mais. Teve gente que pareciam não ter se alimentado há um mês. Parece que vieram tirar a barriga da miséria mesmo. O filho de dona Regina estava lavando as mãos na jarra. Tem jeito? E a sobrinha de dona Davina, usou metade do meu vidro de Madeira do Oriente. Quem era aquele de bigode que fumava e cuspia lá no canto da sala? João Luiz convidou cada um... E os comentários foram se amenizando, enquanto a faxina estava quase concluída. O tempo passou e muitos esqueceram aquela cena insólita e curiosa da velha Fronina, histérica, saracoteando pela sala, mas algumas pessoas ainda se perguntavam: será que algo daquilo iria acontecer?
  • 49. - Capítulo 1 - JINGLE BELLS, NASCEU A “MINI” NINHA... Era uma vez, numa cidadezinha da mata sul, torrão bendito, cercada de montanhas, poesia, matas verdejantes e rio a correr, um casal muito feliz que trouxe ao mundo uma “mini” garotinha, fim de rama, caçulinha, cheia de graça e encantamento. A menininha veio ao mundo na residência de seus genitores, situada à Rua Prefeito Rocha Pontual, juntinho do cartório de seu Samuel Coelho. Seu papai era comerciante do ramo da panificação e assessor do prefeito da província, e a mamãe, de prendas domésticas. Como rezava a tradição da época, ela foi “pegada” por Mãe Dedé, a parteira mais famosa da região e nasceu tão miudinha, tão bolotudinha, tão rechonchudinha, que cabia na palma da mão. Era, no todo, de aparência muito saudável, com madeixas galegas e tez rosada. Parecia uma calunga de louça. Os felizardos pais, João Luiz e Maria da Paz, deram à nenenzinha, o nome de Maria Aline. Era o dia 27 de outubro de mil novecentos e bauzes, exatamente dois anos após a chegada da coca-cola no Brasil. Como acontece em todo lugarejo do interior, a notícia espalhou-se com rapidez e, pelo fato do casal ter muitos amigos, logo começou a aparecer pessoas para ver a mais nova moradora da casa.
  • 50. As primeiras visitas recebidas foram: Maria Andrade, Quinquina e Dona Elvira; seu Alcides, Saló, Cila, já mocinha, e Concinha, bem novinha. Do vizinho distrito de Caracituba: seu João Rocha e dona Nina, futuros padrinhos da recém-nascida. Do engenho Amora: seu João Vieira, dona Mariinha e as pequenas, Socorro, Josete e Anália. Da capital: os tios Clodomiro e Lita, e a prima Maria Alice ainda de braço. Cada visitante que aparecia (os homens evidentemente) eram agraciados pelo pai da garotinha, com um cálice de excelente cachimbada de mel de uruçu com cachaça de cabeça preparada na hora, charutos Suerdick Bahia ou cigarros Asa, dependendo do gosto de cada um. Um fato inusitado é que a menina era tão pequenina, tão curtinha, que todos os presentes ficaram curiosos a respeito do futuro da garotinha. O que ela iria ser quando crescesse? E, em meio ao cochichado geral das visitas, uma voz fanhosa e estridente gritou lá de trás: “Ela vai ser borboleta de pastoril!” A exclamação havia sido proferida por seu João Severo, o dono do enchimento, que estava entrando para ver a neném e escutara parte da conversa dos presentes. “Oxente, seu João Severo, ela vai ser é uma fleira, uma madre superiora, isso sim, se Deus quiser,” afirmou a jovem e boa Aurinha, futura moradora da Vila São Vicente, que havia chegado correndo para ver o novo rebento. Os presentes recebidos: lençóis e camisinhas de pagão, mamadeiras, toucas e consolos coloridos, sapatinhos de crochet, chiquitos, maracás e uma figa de ouro. Maria Andrade levou uma boneca de pano graúda, confeccionada por Amara da Boneca e um vidro de alfazema da loja de seu Alcides. Levou também um capão gordo, para a canja do resguardo da mamãe.
  • 51. Aline e a maninha Ana Maria, primogênita do casal, encheram de alegria a vida dos pais e de todos os vizinhos de rua. Maria Andrade, amiga e guardiã da família, ajudava a mamãe Dapaz na criação da “mini” Ninha e Dona Maria Calixto, foi a sua ama-de-leite. Quando a gordinha começou a ficar mais pesada, mamãe Dapaz contratou a ama Ivanise para cuidar das duas manas. Como ela teria de dormir no solar, Dapaz encomendou uma cama-de-lona a seu Amaro Feitosa e, na feira, comprou um baú amarelo ornado de gregas, daqueles fabricados lá para as bandas do agreste, para as fardas da ama. A menininha crescia (perdão), se tornava a cada dia, mais saudável e rechonchuda, cabeleira farta com madeixas louras e as bochechas rosadas. A essa altura ela já se alimentava do leite gordo e nutritivo da vacaria de seu Samuel, que, todas as manhãs era distribuído por meio de uma carrocinha, puxada por um robusto carneiro. A cidadezinha era muito pequena e quase nada de novo acontecia. As notícias eram trazidas por algumas pessoas, geralmente comerciantes e autoridades municipais, que viajavam semanalmente para a capital e, no retorno, compravam algum jornal ou revista que era repassado para amigos. Havia poucos rádios na cidade, mas duas pessoas possuíam aparelhos de rádio possantes da marca RCA Victor, seu João Luiz e seu Victor Alves. Muitas noites, o casal João Luiz e Maria Dapaz convidava a jovem Elza Dorotéia e algumas amigas para ouvirem a programação do rádio que era composta de serestas e transmissão de apresentações de programas de calouros ou de outros artistas que vinham
  • 52. do sul do país, sem esquecer naturalmente o Repórter Esso, responsável pelo noticiário do que estava ocorrendo no Brasil e no mundo. Nestes saraus radiofônicos, escutavam-se novelas, programas de auditório e músicas de sucesso da época. Um dos programas inesquecíveis foi quando se apresentou “Dilu Melo”, famosa artista de São Paulo, que veio daquele estado apresentar-se na PRA-8, Rádio Clube de Pernambuco. E deleitou a todos os ouvintes, cantando: “Fiz a cama na varanda, Esqueci o cobertor Deu o vento na roseira Me cobriu todo de flor.” Nas noites de verão, cadeiras eram colocadas nas calçadas, onde amigos e vizinhos se reuniam para a tradicional prosa. Naquelas ocasiões, os homens falavam sobre a administração do prefeito, as notícias nacionais e internacionais escutadas no Repórter Esso e, as senhoras, discutiam as atividades da paróquia, os sermões do padre Teodoro, as últimas peças bordadas ou alguma receita culinária nova recortada do Diário de Pernambuco. Nossa história se passa no final da primeira metade do século passado. Não é um tempo tão distante, mas a realidade das pequenas cidades do interior era bem diversa. Na zona urbana uma população pequena, poucas casas e um comércio diminuto. Na zona rural, grande engenhos com seus casarões e muitos moradores. Estas propriedades assemelhavam-se a pequenos feudos da idade média. O senhor de engenho era o patrão, o conselheiro, o juiz que
  • 53. decidia sobre todas as questões e acontecimentos da propriedade. Tempos amenos, bucólicos e românticos A inexistente poluição ambiental e mental fazia com que o meio se conservasse puro e paradisíaco; puras e arejadas eram também as mentes e o pensar da época.