Em entrevista à revista Superinteressante, o Dr. Stephen Stefani, oncologista especialista em economia da saúde, do Instituto do Câncer do Hospital Mãe de Deus, fala dos gastos com o tratamento para se combater o câncer.
Congresso brasileiro auditoria quimioterapia oral_2013_pdf
Precisamos falar sobre dinheiro - Superinteressante
1. TR A T A MENTOS O PR E ÇO DA VIDA
Asua saúde, ou de a alguém que você
ama, tem preço? Ok, a resposta óbvia
é não, mas vamos reformular a per-
gunta: vale a pena vender a sua única
casa para dar um mês de sobrevida a
um parente com câncer? Ese fossem
seis meses? Um ano? As perguntas
não são à toa. No caso de um pacien-
te com câncer de pele, o gasto men-
sal com o mais novo tratamento po-
de éhegar a 6 dígitos e superar os R$
300 mil - e, se ele der sorte, essa con-
ta será paga por muitos meses: é que a
boa notícia é que a sobrevida dos pa-
cientes com câncer é cada vez maior.
Amá é que os custos para desen -
volver novos medicamentos contra
o câncer são altíssimos. Ea cada no-
va droga, os benefícios crescem, mas
bem pouco. Parte da explicação está
na lógica natural do processo. Anti -
gamente, a evolução era maior e mais
rápida porque saímos do zero na lu-
ta contra o câncer. Agora, tentamos
aprimorar os tratamentos.
PRECISAMOS
FALAR SOBRE
DINHEIRO
por MARCELA DONINI
-Para desenvolver
um só remédio,
a indústria
farmacêutica
gasta perto de
US$ 1bilhão.
Esó tem cinco
anos para
recuperar o
valor, antes que
a patente seja
quebrada.
indústria farmacêutica, são as pe-
quenas éhances de dar certo. De 10
mil moléculas testadas, com sor-
te, apenas uma pode ter potencial
para tratamento. Depois de pron-
to, mais um problema: a patente.
No Brasil, depois de 20 anos, um
medicamento vira de domínio pú-
blico' ou seja, qualquer laborató-
rio pode replicar. O prazo come-
ça a contar assim que o laboratório
que desenvolveu o remédio regis-
tra a patente, o que costuma acon-
tecer alguns anos antes do lança-
mento comercial. Vão aí uns 15
anos em pesquisa, desenvolvi-
mento e testes. Ou seja: os labo-
ratórios têm cinco anos para recu-
perar aquele US$l bilhão em pes-
quisa, o que catapulta o preço do
medicamento para as alturas.
Muitos desses novos medica-
mentos são de terapia-alvo, ou se-
ja, são moléculas que atacam ape-
nas as cancerigenas, em vez de to-
Em1987, os Estados Unidos gastaram US$ 24 bilhões
nos cuidados com o câncer. Entre 2001 e 2005, o número
dobrou para US$ 48,1bilhões por ano. No Brasil, de 2008
para 2011, os gastos cresceram 51%, e ultrapassaram os
R$ 2,2 bilhões; em 2013, o valor subiu para R$ 2,6 bilhões.
Hoje, há estimativas de que, para desenvolver um úni-
co medicamento contra o câncer, sejam gastos em tor-
no de US$ 1bilhão. O que encarece a conta, segundo a
das as células do paciente - as saudáveis inclusive - como
os remédios tradicionais. Uma evolução, claro, mas ocân-
cer é um sistema tão complexo que bloquear uma célula
tumoral não impede que outras voltem a se reproduzir se-
manas ou meses depois. Atendência é desenvolver dro-
gas que bloqueiem diferentes vias moleculares simulta-
neamente ou usar vários remédios em combinação, o que
levará a tratamentos cada vez mais caros.
36 I CÂNCER I SUPERINTERESSANTE 20 1S
QUANTO VALE UM ANO AMAIS DE VIDA?
Perguntei lá no começo da reportagem se a saúde tem pre-
ço. Pois tem. Para a OMS, braço da ONU para a saúde, vale
até três vezes o PIB per capita por ano de vida oferecido ao
paciente. Para dar um exemplo: se fosse no Brasil, a cada
2. ano de vida que um paciente ganha com determinado tra-
tamento' o teto de gasto deveria ser de R$ 33 mil, o equi-
valente a três vezes o PIB per capita do Brasil. Nos Estados
Unidos, o valor é fixado pelo governo: US$ 50 mil para ca-
da ano a mais de vida. Assim, um tratamento é considera-
do custo-efetivo, ou seja, só valeria a pena ser feito finan-
ceiramente' se, do início ao fim, custasse este valor. Mas a
realidade é que ele sempre extrapola - e ninguém vai dei-
xar o paciente morrer, não é mesmo?
oBOLSO EOCÂNCER
Cerca de 7S% da população brasileira depende exclusi-
vamente do SUS; os outros 2S% são usuários de planos
de saúde. Os dois grupos gastam a mesma coisa. Os cus-
tos públicos do Brasil com saúde representam 5% do PIB;
somando os gastos suplementares (particular e planos),
éhegamos a 9% - não precisa ser matemático para ver que
a conta não feéha. Os dados se referem à saúde em geral,
mas podem ser transpostos para o cenário do câncer. Na
prática, isso significa que, enquanto os 2S% têm acesso a
tratamentos mais caros e, portanto, quase sempre mais
eficazes, os outros 75% têm que disputar entre eles os va-
10res determinados pelo governo para cada tipo e fase de
câncer - e por isso, estatisticamente, morrem mais.
Há duas formas de o governo oferecer medicamen-
tos para o tratamento de câncer. O jeito tradicional é via
Apac - a sigla para Autorização de Procedimentos Ambu-
1atoriais de Alta Complexidade. O formato garante o re-
embolso de clínicas e hospitais com os gastos - embutidos
aí também equipe médica e estrutura, além dos medica-
mentos. Isso em tese, já que há medicamentos na lista do
SUS que, em 2013, custavam mais do que a previ-
são da Apac, como o erlotinibe e o gefitinibe, indi-
cados para casos de câncer no pulmão. Os valores
reais éhegam a R$ 2,9 mil e R$ 2,3 mil respeétiva-
mente, enquanto a Apac é de R$I,1 mil.
Questionado pelo Instituto Oncoguia, o Mi-
nistério da Saúde teria respondido que apenas 5%
dos pacientes com câncer no pulmão são elegíveis
para esses medicamentos e que os outros gasta-
riam R$IS0 com quimioterapia paliativa, sugerin-
do que o que sobra de uns pode completar a con-
ta de outros. Porém, segundo os médicos, na prá-
tica' nem sempre a conta feéha. Equem fica com
os pés de fora desse cobertor curto é o paciente. O
que acaba ocorrendo é que o hospital banca ou li-
mita o tratamento. "Depois que o paciente está ali
na sua frente, você não nega o melhor atendimento
possível. O que muitos hospitais fazem é não acei-
tar mais casos novos", diz o oncologista e auditor
em oncologista Leandro Brust.
A mais recente estratégia é a compra cen-
tralizada' como no caso do trastuzumabe e do
OCASO
TRASTUZUMABE
Um dos medicamentos mais
procurados no SUS, para pacientes
com câncer de mama HER 2
positivo, passou aser distribuído
pelo governo em 2012,com a
expectativa de beneficiar 20%
das mulheres com câncer de mama
em estágio inicial eavançado.
De 2005 a2012, morreram 5.696
pacientes com câncerde mama
HER 2positivo atendidas pelo SUS.
Hoje ogoverno compra edistribui
para os hospitais. Esse custo não
entra na conta da Apac,ovalor
fechado reembolsado pelo governo
por cada paciente atendido pelo
SUS.Oproblema aqui éque nem
todas paCientes com câncer de
mama recebem otrastuzumabe.
Os casos de metástase não são
contemplados,apesar de estudos
comprovarem que aadição do
medicamento àquimioterapia
dá até 17 meses de sobrevida às
pacientes, além dos 20 meses
estimados para quem se trata
apenas com aterapia tradicional.
U8$124 biforam gastos nos EUA
US$2,6 biforam gastos no Brasil
SUPERINTERESSANTE 2015 I CÂNCER I 37
3.
4. imatinibe, para o câncer de mama. Como com-
pra em grande escala, o Ministério da Saúde tem
mais poder de barganhar preços. Um bom negó-
cio para os prestadores que pagariam mais ca-
ro caso tivessem de adquirir eles próprios, mas
com a desvantagem de ter de arcar com custos
adicionais, como equipe médica, estrutura hos-
pitalar etc. Asaída para oferecer um tratamen-
to melhor para pacientes do SUS acaba sendo as
pesquisas clínicas (leia mais na página 42).
POR QUE NÃO HÁ MAIS GEN~RICOS?
Copiar um medicamento biológico como os
usados nas terapias-alvo é tão complexo como
reproduzir o éhampanhe francês na garagem de
casa. Adificuldade de fazer cópia não é pela fal-
ta da informação da molécula, que se torna pú-
blica após a quebra de patente. Oproblema é re-
produzir o cenário adequado, como questões de
armazenamento e deslocamento, que os labora-
tórios não são obrigados a informar.
O médico sanitarista Gonzalo Vecina Ne-
to, professor da Faculdade de Saúde Pública da
USp, fundador e primeiro diretor-presidente da
Anvisa, cita ainda outro motivo para um certo
boicote aos genéricos oncológicos. Enovamen-
te voltamos à questão da grana. Acompanhe: os
médicos reclamam que as consultas via convê-
nio estão muito baratas e os hospitais, que as
diárias estão defasadas. Nesse cenário, clínicas
negociariam com os laboratórios preços mais
baixos do que os contratados com os convênios
e parte dessa diferença iria para o bolso de al-
guns médicos - o que obviamente é ilegal, mas
confirmado como prática por muitos especia-
listas. No caso de recomendar genéri-
cos' essa margem seria menor. "Isso é
-
TRATAMENTOS O PREÇO DA VIDA
valores das mensalidades e do mau atendimen-
to -, e entre pacientes e médicos, que atendem
rapidinho para ganhar em volume o que per-
dem no valor da consulta. Uma guerra de todos
contra todos, como sugerem os médicos Drau-
zio Varella e Mauricio Ceséhin no livro A Saúde
dos Planos de Saúde (Paralela, 2014).
OCUSTO DA NÃO PREVENÇÃO
Eliminar o fumo, o abuso de álcool, o sedenta-
rismo e a má alimentação poderiam represen-
tar a economia de 73%gastos globais com casos
de câncer relacionados a fatores externos. Con-
siderando que cerca de 12% das folhas de pa-
gamentos são destinados a custos com planos
de saúde, muitas empresas já estão alertas. Uma
campanha de prevenção direcionada ao públi-
co certo, pode ser bem-sucedida para a saúde
do paciente e as finanças da empresa. De acor-
do com Rodolfo Milani, da consultoria em saúde
Aon, para cada R$ 1investido em prevenção há
retorno de R$ 2a R$ 3 ao longo de 12 a 24 meses.
A economia vem do quanto se deixa de gastar
em exames, por exemplo, e do quanto se per-
deria com a ausência de um funcionário doente.
No caso do câncer, é preciso ter em mente que
existem duas frentes para se planejar economia
de gastos: a prevenção, por meio de campanhas
uma vida saudável e a detecção precoce dos tu-
mores, o que aumenta as éhances de cura.A ve-
lha máxima ainda vale: prevenir é mais barato
do que remediar.•
impróprio, uma vez que o médico não
deve e não pode inferir lucros condi-
cionados por sua prescrição", afirma
o oncologista Stephen Stefani, espe-
cialista em economia da saúde. Ve-
cina Neto explica que a migração de
margem começou em 1994, com o
Plano Real. "A indústria, que vive do
que produz, teve seus preços alinha-
dos, a saúde não. Eem vez de ganhar
por produzir serviços, passou a ga-
nhar vendendo coisas", diz. "É pre-
ciso aumentar o valor da consulta."
Eaí entramos na briga entre pIa-
nos de saúde e médicos, planos de
saúde e pacientes - que reclamam dos
Copiar um medicamento
como os usados nas terapias-
alvo é tão difícil como clonar
um éhampanhe francês.
Mesmo com a quebra de
patente, reproduzir logística
e armazenamento dos
grandes laboratórios é difícil.
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