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MOEMA FALCI LOURES
espaço ginalIMARastros de uma escritura em projeto
TESE DE DOUTORADO_PROURB_UFRJ
  I	
  
MOEMA FALCI LOURES
	
  
	
  
Espaço	
  IMAginal:	
  rastros	
  de	
  uma	
  escritura	
  em	
  projeto	
  
	
  
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Urbanismo como requisito parcial à
obtenção do grau de Doutor em Urbanismo.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Letras e Artes
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Prourb)
Orientadora:
Professora Doutora Rosângela Lunardelli Cavallazzi
Rio de Janeiro, 2011
Moema	
  Falci	
  Loures	
  
  II	
  
	
  
	
  
	
  
Espaço	
  IMAginal:	
  rastros	
  de	
  uma	
  escritura	
  em	
  projeto	
  
	
  
	
  
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Prourb),
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor em
Urbanismo.
Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2011
  III	
  
  IV	
  
Agradecimentos
Aos meus pais, Flávia e Renato, pelo apoio incondicional.
Aos meus irmãos, Gisela e Renato
Ao Fábio, pelo carinho e amor.
À amiga Claudinha, pelas trocas e sincera amizade.
Aos companheiros de tese em Paris, Wanda, Mônica, Alberto e Adriana.
Ao professor Jean Attali, que me recebeu na École Nationale Supérieure d'Architecture –
Paris Malaquais, no âmbito do Doutorado Sanduíche, abrindo novos horizontes e
descobertas.
Ao Pascal Rousse, que muito me ensinou sobre Eisenstein, montagem, arte e cinema.
Aos professores do Prourb, em especial às professoras Lúcia Costa e Denise Pinheiro
Machado.
Ao querido professor Carlos Murad e seus ensinamentos rumo a um universo sensível.
Ao corpo técnico do Prourb, em especial à Keila, sempre disposta a ajudar.
Ao apoio do CNPq, que financiou os anos de estudo no Brasil. À Capes, que financiou
meus estudos em Paris.
À querida professora Rosângela Cavallazzi, orientadora e amiga, pelo incentivo,
confiança e afeto.
  V	
  
Resumo
Espaço IMAginal: rastros de uma escritura em projeto
Vislumbramos um raciocínio que privilegia a intensidade – o acontecimento. O projeto no
espaço urbano não como ruptura ou como continuidade, mas como transbordamento;
não como construção de formas, mas como construção de forças. O projeto que suscita
tensão, não inclusão direta. A tese considera o processo repetição-montagem como
base de processos criativos, como meio de explorar e de avançar no plano experimental
do projeto e potencializar a sensação. Nossa busca constante está na abertura do
projeto de arquitetura e urbanismo ao gesto criador por meio de um “estouro de
realidade”. Estamos interessados nas potencialidades do processo de criação, que
tendem a gerar novas realidades, expansões imaginais. Suscitamos que o grande
desafio que temos como arquitetos urbanistas é a capacidade de deixar o projeto aberto
à experimentação. O que importa não é o projeto em si, mas para onde ele nos leva.
Buscamos, assim, rastros de uma escritura em projeto, nuances de um pensar
urbano no espaço IMAginal.
Palavras-chave: projeto – urbanismo – arquitetura – imaginal – montagem – repetição.
  VI	
  
Abstract
IMAginal space: traces of writing in design
We envision an argument that favors intensity - the event itself. Design in the urban
space not as a rupture or continuity but as an overflow; not as building forms but as
building strength. The design that raises tension, not direct inclusion. The thesis
considers the repetition-assembly process as the basis of creative processes, as a
means to explore and improve experimental design and to enhance feeling. Our constant
search lies in the possibility of opening urban design to a creative gesture through a
"burst of reality". We are interested in the potential of a creative process that tends to
generate new realities, imaginal expansions. We point out that the greatest challenge we
have as Architects and Urbanists is the ability to leave design open to experimentation.
What matters is not design itself, but where it leads us. Thus we seek traces of writing in
design, nuances of an urban thinking in the IMAginal space.
Keywords: design – urbanism – architecture – imaginal – assembly – repetition.
	
  
  VII	
  
Résumé
Espace Imaginal: une écriture en projet
Nous envisageons un argument qui favorise l'intensité - l'événement. Le projet est perçu,
dans l’espace urbain, non comme rupture ou une continuité, mais bien comme une sorte
de “débordement”. L’objet du projet n’est pas la construction de formes, mais la
construction de forces. Le projet soulève des tensions, mais pas de participation directe.
La thèse considère le processus répétition-montage comme base du processus de
création ; comme un moyen d'explorer et d’avancer dans le plan expérimental du projet
et de potentialiser la sensation. Notre constant moteur de recherche réside dans
l’ouverture à la création, du projet urbain et d’architecture, par un “éclatement de la
réalité”. Nous sommes intéressés par les potentialités du processus de création, qui
tendent à la genèse de nouvelles réalités, d’expansions "imaginales" . Le grand défi des
architectes urbanistes résiderait alors dans leur capacité à laisser le projet ouvert à
l’expérimentation. Ce qui importe n'est pas le projet lui-même, mais bien où il nous
mène. La thèse propose alors les traces d’une écriture en projet, véritables nuances
d’une pensée urbaine dans l’espace imaginal.
Mots-clés: projet – urbanisme – architecture – imaginal – montage – répétition.
  VIII	
  
Fichas
PARTE I
: : Manchas ------------------------------------------------------------------------------------------ 01 - 13
: : Experimentação múltipla e intensidade-acontecimento ------------------------------- 01 - 09
: : Entre o conceitual e experimental, previsível e imprevisível ------------------------ 01 - 09
: : Teorias modernas ------------------------------------------------------------------------------ 01 - 08
PARTE II
: : Projeto, repetição e devir ---------------------------------------------------------------------- 01 - 11
: : Força do movimento: sensação do tempo ------------------------------------------------ 01 - 08
: : A montagem como potencial criador ------------------------------------------------------ 01 - 16
: : Prazer e intrusão: possibilidades projetuais em Tschumi ----------------------------- 01 -12
PARTE III
: : Rastros IMAginais: o que fica e o que vai ------------------------------------------------ 01 - 06
: : Bastidores do diálogo com os autores ---------------------------------------------------- 01 - 12
PARTE I
: : Manchas ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 01 - 13
: : Experimentação múltipla e intensidade-acontecimento ------------------------------------------------------------------------------- 01 - 09
: : Entre o conceitual e experimental, previsível e imprevisível ------------------------------------------------------------------------ 01 - 09
: : Teorias modernas ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 01 - 08
 
	
  
1	
  
: : Manchas
Quando começamos a ler um texto, queremos logo de início saber o tema. Afinal, do
que se trata? E quando a intenção não é o conteúdo em si, e sim o processo de
construção? Como falar em projeto como gesto criador sem pensar na própria tese
como um processo-projeto, um vir-a-ser? Como ter Gilles Deleuze como marco-teórico e
não continuar reproduzindo aquilo que ele critica através do método? Por que ao lermos
Clarice Lispector não encontramos o tema de sua narrativa? Por que Francis Bacon joga
a tinta na tela antes de começar a pintar? Como interromper a narração e impedir a
ilustração? Por que insistimos todos os dias em querer nomear as coisas, como se o ato
de nomear fosse reflexo do entendimento de certo tema ou objeto? Por que criamos
palavras que fingem entender as coisas?
O que é construir uma tese de doutorado no fim da primeira década do século XXI? Por
que continuamos reproduzindo a modernidade através do método? O que fazer com
tudo que nos dizem sobre o que é uma tese? Que história estamos construindo através
de nossas teses? O que é ser consistente em um mundo editado, quando a única
certeza é a própria incerteza? E então, onde repousa as dimensões criativas do projeto
dentro do campo do urbanismo?
O que existe além da tese? O que podemos desvendar no espaço “entre” a tese, o
projeto e a cidade? Como representar a imagem-tese? Por que poucos falam dentro dos
campos da arquitetura e do urbanismo sobre o processo criativo do projeto no urbano?
É nas bordas de uma brecha da
escuta que um outro provável
se descobre11
.
 
	
  
2	
  
Será que realmente se trata de uma ciência social aplicada? A partir de quando
começamos a pensar no conhecimento como algo aplicado? Da matemática à física?
De acordo com Aristóteles, a ânsia pelo conhecimento é o instinto humano, por isto não
é aplicado ou tem alguma finalidade?
Vivo em um espiral de intensas perguntas, e atrás delas há brechas de desconfortos.
Como evitar nosso encadeamento em processos metodológicos que daqui a alguns
anos podem não fazer o menor sentido ou que já não o fazem? Temos a autonomia das
folhas em branco, escolhemos os nossos temas, nossos marcos teóricos, nossas
referências bibliografias, mas por que pouco criamos metodologicamente e acabamos
nos amarrando em âncoras que nós mesmos pouco acreditamos (ou que fazemos um
grande esforço em acreditar)?
Manchas em torno do método
Ao escutar a palavra metodologia, via de regra a associamos a uma proposta fechada,
rígida. Traçamos objetivos, metas e justificativas. Escrevemos o trabalho, uma
introdução, desenvolvimento e, então, uma conclusão. Também buscamos conceitos,
utilizado-os segundo um ou outro autor, fazemos comparações.
Temos medo de errar e de não sermos fiéis aos autores ou/e aos nossos critérios
preestabelecidos. Escrevemos na 1ª pessoa do plural. Eu escrevo na 1a
pessoa do
Eu procuro jamais arquiteturar
meu discurso a partir de uma ideia
central, mas ao contrário procuro
criar ramos através de
ramificações sucessivas (...)12
.
 
	
  
3	
  
plural.
Nesse limiar epistemológico uma questão perpassa o método, paradigmas do mundo
moderno: hierarquias, categorias, limites, dicotomias, aplicações. Paradigmas que não
reconhecem os princípios da incompletude e da incerteza, sendo ao mesmo tempo
princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e do mundo sem que tenhamos
consciência disso1
.
Diríamos que ainda caminhamos junto às crenças que predominaram até a década de
1950, a própria ideia de conhecimento se alinha à reprodução/automatização. Como se
pensar a arquitetura e o urbanismo como ciência social aplicada fosse natural. Ou como
escrever uma tese com início, meio e fim também fosse natural.
É fato que a noção de criatividade, liberdade e complexidade são bastante recentes, o
que não quer dizer que antes elas não existiam2
. Já há algumas décadas observamos
que estas palavras vão sendo reproduzidas através do conteúdo de teses e
dissertações, mas dificilmente as incorporamos no processo metodológico, no processo
de criação.
Tomemos o conceito de rizoma criado por Deleuze e Guattari como exemplo. Em uma
busca rápida, observamos a quantidade de trabalhos acadêmicos, vinculados aos mais
diversos campos do conhecimento, que utilizam esse conceito. Então me pergunto: o
quanto criamos através desse conceito?
O pintor não pinta sobre uma tela
virgem, nem o escritor escreve
sobre uma página branca, mas a
página ou a tela estão já de tal
maneira cobertas de clichês
preexistentes, preestabelecidos,
que é preciso de início apagar,
limpar, laminar, mesmo
estraçalhar para fazer passar uma
corrente de ar, saída do caos, que
nos traga a visão13
.
(...) amarrações
 
	
  
4	
  
Ler e reler a obra de Deleuze e Guattari, de acordo com a metodologia dos próprios
pensadores, é um ato de produzir novos sentidos. Os conceitos para serem conceitos
devem nos arrastar rumo a regiões múltiplas, desarticuladas e imprevisíveis; planos
que não são os dos autores, mas efetivamente os nossos. Não interessa se somos
platônicos; cartesianos, kantianos ou deleuzianos, e sim como determinados conceitos
podem ser reativados em nossos problemas e inspirar novos acontecimentos.
É fato que a força dos conceitos criados por Deleuze e Guattari ao passar dos anos foi
sendo vulgarizada e, muitas vezes, transformada em metáforas, analogias ou em uma
espécie de sedução verbal, reduzindo-se o próprio conceito de conceito. Assim como
afirma Zourabichvili: “Talvez a filosofia atual se veja frequentemente diante de uma
falsa alternativa: expor ou utilizar”.3
Segundo Deleuze e Guattari4
, não há conceito simples de um só componente. Todo
conceito é multiplicidade, tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus
componentes; é um todo, mas um todo fragmentário. O conceito tem uma história, mas
esta se desdobra em zigue-zague. O conceito possui um devir.
Deleuze é método; assim, utilizar o conceito de rizoma é criar ideações a partir dele.
Ficamos, no entanto, na incoerência de utilizar esse conceito (ou outro) em uma
estrutura de trabalho hierarquizada, moderna, na qual predomina a lógica binária e as
relações biunívocas. 	
  
A própria palavra metodologia nos parece neste instante um pouco pesada, impregnada
A criação de conceitos faz apelo
por si mesma a uma forma futura,
invoca uma nova terra e um povo
que não existe ainda14
.
 
	
  
5	
  
de PREconceitos ou PÓS-conceitos. Uma palavra que esconde, muitas vezes, modelos
cartesianos de pensamento, regras sem variações, ordem sem desvio.
Ainda somos cartesianos? O quê, afinal, é pensar na primeira década do século XXI?
Que diferença faz se utilizamos conceitos que quebram os paradigmas modernos, se
ainda reproduzimos a modernidade através do método?
É provável que o papel fundamental de Deleuze tenha sido a construção de armas de
guerra. Ele nos deixou munidos. No entanto, ele não podia garantir como as armas
poderiam vir a ser utilizadas. Temos as armas e, assim, precisamos lutar.
Não é sem razão que Deleuze ganhou grande destaque nas mãos de artistas. Talvez
ele seja uns dos filósofos que mais tenha conseguido aproximar a filosofia da arte.
Deleuze libera o tempo plural, paradoxal, vertiginoso, intempestivo 5
.
Cito como exemplo a minha experiência ao ver o filme dirigido por Fernando Meirelles a
partir do livro do escritor José Saramago Ensaio sobre a cegueira. Lembro que, quando
o vi, ficava tentando me lembrar do final do livro que eu já havia lido há algum tempo (...)
não conseguia me lembrar. Naquele momento a estrutura narrativa amarrada a um
início, meio e fim se sobressaía; eu queria saber o final. Claro que não me lembraria do
final, pois no processo de experimentação-leitura mergulhava no artifício de um vir a ser
cegueira. Eu caía nas minhas próprias armadilhas metodológicas.
Durante o livro não existia necessariamente uma causa e efeito, não existia um enigma
O poder do texto faz descobrir a
possibilidade de o desenvolver
de outra maneira15
.
(...) armadilhas
 
	
  
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que ao fim seria descoberto. O problema não importava, mas o estado do problema,
pois o problema não tem resposta. A obra pronta não é o conforto, mas o limiar do
desconforto. A arte não tem finalidade!
Não se procura aqui uma resposta, uma ideia de completude, e sim várias respostas e
perguntas. Os pedaços não são um quebra-cabeça, pois os contornos irregulares não
se correspondem. Um trabalho acabado é um trabalho inexistente.
(...) devir tese, devir projeto
Adianto que não temos a intenção de apresentar uma temática e depois desenvolvê-la.
A intenção é que o tema se revele através da tese. Sugiro talvez abrir a tese em um
ponto qualquer. Que o início ou o fim das páginas – literalmente – não signifique nada,
talvez apenas uma escolha casual. As ideias repetem-se e fixam-se através da própria
linguagem, se sobrepõem, no entanto, não se hierarquizam.
Frisamos que na tese a teoria – e/ou fundamentação teórica – e a metodologia estão
sempre correlacionadas. Não há diferença entre a maneira que a tese fala e a maneira
que a tese é feita. Se a tese fala sobre o projeto e também é um projeto de tese, deve
existir como devir.
Nossa busca está na possibilidade de desvendar potenciais criadores. Vamos, assim, no
decorrer do trabalho, pinçando espaços de criações, nuances de um pensar urbano.
O problema da filosofia (meu
problema) é de adquirir uma
consistência, sem perder o infinito
no qual o pensamento mergulha16
.
Devir é nunca imitar, nem fazer
como, nem se conformar a um
modelo, seja de justiça ou de
verdade. Não há um termo do
qual se parta, nem um ao qual se
chegue ou ao qual se deva
chegar.
Devires são fenômenos de
captura, conteúdo próprio do
desejo, são a própria
consistência do real17
.
 
	
  
7	
  
A tese é nossa tentativa de tocar o que atravessa processos criativos. O que nos
importa não é projeto como um caso exemplar ou como obra completa, e sim suas
possibilidades de expansão. Não existe uma meta, mas um caminho.
Projetar não é prever, projetar é agir sobre um tempo desconhecido. Como a tese pode
vir a ser mais que uma teoria que tenta explicar a prática, como pode ser a experiência-
teoria?
Nessa perspectiva de tolerar ambiguidades em vez de tentar cristalizá-las, está meu
maior conforto e desconforto.
O projeto além do projeto... o objeto além do objeto... A tese é ensaística, não existe
uma solução. O risco de tratar a linguagem como um fluxo, e não como um código, é
nossa grande motivação, a démarche do desejo, errância de sentidos. Respiração!
(...) pensamento em projeto
Buscamos aqui recuperar a importância do pensamento em projeto. Onde guardamos a
inteligência do processo projetual de arquitetura e urbanismo? Como utilizar este
pensamento em um processo-tese?
Questionamo-nos sobre o fato da arquitetura ter saído do campo da arte, ido para
engenharia e hoje ser considerada, junto ao urbanismo, uma ciência social aplicada,
algo que foi sendo construído pelo próprio campo e por uma visão compartimentada do
(...) é na estrutura artificial que a
realidade do tema será
aprisionada, e a armadilha, ao
fechar-se sobre o tema, deixará à
mostra somente a realidade. 18
 
	
  
8	
  
senso comum teórico.
Destacamos na obra de Secchi6
que o urbanismo coincide com um saber mais do que
com uma ciência. O urbanismo que não se ocupa apenas em responder ou caracterizar
a cidade, mas também em imaginar um futuro. O urbanismo que penetra e acompanha
diferentes formas de projetos da cidade, que descreve, ilustra, demonstra, argumenta,
sugere e solicita imaginários coletivos e individuais.
Como decisão projetual, decidimos trabalhar a tese em dois extratos:
1. Fichas: transbordamento de citações e textos escritos, às vezes explicativos, às
vezes propositivos ou provocativos. As fichas são um corte no caos, dá algum tipo de
direção e sentido. O texto que agora você está lendo é uma das fichas.
2. Diagrama sanfona: Possibilidades imaginais. Projeto sanfona: deslocamento das
citações e referências. Reserva invisível, o caminho trilhado, o processo da tese.
Escolhemos trabalhar com a dobragem em sanfona, pois assim a penúltima página
pode ser vista junto com a décima segunda. Os desdobramentos são múltiplos. Os
usuários determinam a ordem da sua leitura. As combinações formam variações
infinitas.
O ideal de um livro seria expor
toda coisa sobre um tal plano de
exterioridade, sobre uma única
página (...)19
(...) imagem diagrama:
corrente de ar
 
	
  
9	
  
Os temas abordados nas fichas estão implícitos na forma sanfona e sobrevivem na
tentativa de manifestar o conteúdo. Propomos trabalhar a tese como um grande
diagrama em formato sanfona. Os textos são as fichas que sustentam o diagrama.
Funcionam como apoio à experimentação tese-leitura.
O diagrama sanfona é, portanto, a possibilidade do tema, não o tema em si mesmo.
Sendo ele mesmo uma catástrofe, não deve produzir catástrofe; sendo uma zona de
borragem, não deve borrar a obra.
Na sanfona tentamos deslocar as imagens de suas referências, como possibilidade de
ativar um processo de criação. As imagens são pinceladas, a partir das quais se criam
idealizações. A ideia é introduzir a possibilidade da tese em um conjunto de manchas
asignificantes e não representativas, cuja função seria sugerir, ativar, movimentar.
O diagrama, assim como suscita Deleuze7
, não tem nada a ver com abstração, que
reduz ao mínimo o abismo ou o caos e nos propõe um ascetismo, uma salvação
espiritual; em outras palavras, um estado inerte. O diagrama é um caos, uma catástrofe,
mas também um germe de ordem ou de ritmo, abre domínios sensíveis. O diagrama é
método!
O diagrama talvez ocupe todo o espaço, mas devemos impedir que o diagrama prolifere
e se transforme em pura abstração. Nem todos os dados devem desaparecer.
O diagrama pretende evitar a organização óptica, dando ao olhar outra potência, afirma
A tela já está de tal maneira cheia
que o pintor deve entrar nela. Ele
entra assim no clichê, na
probabilidade. E entra porque
sabe o que quer fazer. Mas o que
salva é que ele não sabe como
conseguir, não sabe como fazer o
que quer. Isso ele só conseguirá
saindo da tela20
.
Que a catástrofe não inunde
tudo! A tese existe!
 
	
  
10	
  
Deleuze8
. Ao contrário do que acontece com um texto, que, por mais que possamos
evitar a hierarquização das palavras, elas, por si só, já se apresentam de uma forma
hierarquizada, uma após a outra.
No diagrama, as marcas e os traços não se bastam, pois traçam possibilidades e ainda
não constituem o fato. O diagrama coloca elementos heterogêneos em conexão
imediata propriamente ilimitada, em um campo de presença ou sobre um plano finito em
que todos os momentos são atuais e sensíveis. É o diagrama da figura, força do
movimento que faz nascer a sensação de tempo, o acontecimento9
.
A ideia é que o leitor experimente a obra, sua experimentação faz parte da obra – o
leitor deve ir além da obra – devir-tese – devir-leitura – devir-experimentação. O devir
como potência. O devir como vontade de potência.
Experimentar no sentido de “mostração”, não de demonstração. Presentation: dando
presença.
Assim, o diagrama sanfona não é a tese, é processo tese, é possibilidade metodológica
que permite o acontecimento tese... corrente de ar.
A tese poderia gerar uma expectativa de se fazer um projeto a partir de um terreno
existente; no entanto, a intenção não é propositiva, e sim de alimentar potenciais
criativos.
Não estamos em busca de objetivos únicos, e, então, se eu pudesse falar em algum tipo
(...) Tem-se de começar de um
ponto, e se começa a partir do
tema que gradualmente, se o
trabalho estive andando bem, irá
evaporar-se e deixar aquele
resíduo que chamamos de
realidade, e que talvez vagamente
tenha a ver com a coisa que nos
serviu de ponto de partida, mas na
maioria das vezes tem muito
pouco a ver.21
Tudo ou talvez nada se
relacione!
 
	
  
11	
  
de objetivo quanto a este projeto-tese seria tratá-lo como um processo IMAginal, ou
seja, como possibilidade de dar visibilidade à imaginação.
(...)
Ficção científica também no sentido em que os pontos fracos se revelam. Ao
escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que
sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só
escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa
nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que
somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois
ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma
relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a
morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira que,
infelizmente, sentimos não ser científica10
.
Eu não quero que isto seja tão
fácil de se compreender. Eu quero
que isto seja usado como um
espelho de suas perguntas22
.
A obra será sempre
insuficiente.
 
	
  
12	
  
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
1
MORIN, 2005, p. 10.
2
Essas noções passaram a fazer parte de um senso comum teórico a partir
da segunda metade do século XX, diante da crítica ao movimento moderno.
3
ZOURABICHVILI, 2004, p. 3. Na obra O que é a filosofia?, Deleuze e
Guattari mostram-se bastante atentos a esses equívocos, que acabam
vinculando a filosofia à formação de opiniões e deslocando o campo
disciplinar para uma disciplina reflexiva. O grande intento da obra é mostrar
que a filosofia é, antes de tudo, criação de conceitos.
4
DELEUZE e GUATTARI, 2004.
5
PELBART, 2004.
6
SECCHI, 2006.
7
DELEUZE, 2007.
8
DELEUZE, ibid..
9
Essa síntese sobre o que entendemos por diagrama faz parte dos escritos de
Deleuze sobre a obra de Bacon, sobre uma metodologia de criação. DELEUZE,
2007.
10
DELEUZE, 2000, p. 10.
11
Tradução livre da autora. Original: “C’est dans les bords d’une brèche de
l’écoute qu’un autre probable se découvre”. DUSAPIN, 2009, p. 10.
12
Tradução livre da autora. Original: “Je ne cherche jamais à architecturer mon
discours sur une idée centrale, mais au contraire à créer des embranchements
par ramifications successives (...)”. DUSAPIN, ibid., p. 22.
13
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 262.
14
DELEUZE e GUATTARI, ibid., p. 140.
15
Tradução livre da autora. Original: “Le pouvoir du texte lui fait découvrir la
possibilité de développer autrement”. Pierre Boulez, citado por DUSAPIN, 2009,
p. 16.
16
DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 59.
17
Recortes da autora de trechos de O vocabulário de Deleuze,
ZOURABICHVILI, 2004.
18
Entrevista com Bacon. SYLVESTER, 2007, p. 180 e 181.
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
19
DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 18.
20
DELEUZE, 2004, p. 68.
21
Ibidem.
22
Tradução livre da autora. Original: “I don´t want it to be so easy to
understand. I want it to be used as a mirror of their questions”. Entrevista com
Tschumi, WALKER, 2003, p. 51.
 
	
  
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1	
  
: : Experimentação-múltipla e intensidade-acontecimento
A palavra pescando o que não é palavra. O projeto pescando o que não é projeto. Na
tentativa de pescar a não palavra, o não projeto – entre instantes – pescamos o
acontecimento, o entretempo que é devir.
Tocamos o conceito de acontecimento criado por Deleuze e Guattari1
.
Conceito como multiplicidade que remete a problemas que ainda estão em processo de
compreensão. O conceito como um ato de pensamento que opera em velocidade
infinita2
.
O acontecimento sustenta o projeto na dinâmica do tempo porque libera o projeto à
experimentação. Ele está a todo tempo em trânsito, construindo novas relações e novas
forças. Suscitamos que no instante-acontecimento podemos reencontrar a arte no
senso do ato de projetar. A arte que se confronta com o caos para vir a ser um instante-
sensação.
O conceito de acontecimento como eixo que perpassa a imagem-tese; uma brisa que
atravessa o tocar-ver no intervalo, o desvendar experimental, o presente limite de quase
tocar. Vamos ao acontecimento.
O acontecimento se atualiza no estado de coisas, mas tem uma parte sombria que não
Não mais é o tempo que está entre
dois instantes, é o acontecimento
que é um entretempo: o
entretempo não é o eterno, mas
também não é tempo, é devir20
.
O paradoxo deste puro devir, com
sua capacidade de furtar-se ao
presente, é a identidade infinita:
indentidade dos dois sentidos ao
mesmo tempo, do futuro e do
passado, da véspera e do
amanhã, do mais e do menos, do
demasiado e do insuficiente, do
ativo e do passivo, da causa e do
efeito21
.
 
	
  
2	
  
para de se atualizar. Não começa nem acaba, mas ganha (ou guarda) o movimento
infinito que lhe dá consistência. Sobrevoa os universos possíveis (possível como
característica estética). É imaterial, incorporal, invisível: pura reserva3
.	
  
O acontecimento independente de um estado visível em que ele se manifesta,
desdobra-se em um estranho local de um “ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por-vir-e-já-
presente”4
.
O projetar para permitir acontecimento, uma experiência que atua sem aviso. Rossi5
fala
em arquiteturas que preparam o acontecimento, que permitem o imprevisível,
permanentes movimentos detalhes. O autor afirma: “A arquitetura, como sempre,
permanece em poucos detalhes, esperando o pontapé da ‘gaivota’, a luz da escada, o
barco que atravessa o lago como em uma cúpula de cristal”6
.
O acontecimento não se confunde com o estado das coisas no qual se encarna, não é a
essência ou a coisa. E se não há maneira de pensar que não seja igualmente maneira
de realizar uma experiência, não existe dado senão em devir.7
O acontecimento é o risco do movimento, da possibilidade de se colocar em
movimento. O acontecimento é ruptura com a causalidade, é bifurcação e desvio, é um
estado de instabilidade e intensidade que abre campos de possibilidades projetuais.
(…) não há outro presente além
daquele do instante móvel que o
representa, sempre desdobrado
em passado-futuro22
.
Então não se perguntará qual o
sentido de um acontecimento: o
acontecimento é o próprio sentido.
O acontecimento pertence
essencialmente à linguagem,
mantém uma relação essencial
com a linguagem; mas a
linguagem é o que se diz das
coisas23
.
 
	
  
3	
  
Faíscas ativantes
A partir do conceito de acontecimento buscamos faíscas ativantes – simulações
imaginais – que decupem o conceito. Recortamos duas lapidações imaginais (imagens
conceituais)8
: o instante-já, na obra de Clarice Lispector (1973), e a Fênix, de Bachelard
(1990)9
.
O acontecimento como possibilidade de potencializar o instante-experimentação, como
exaltação do presente, do devir-imperceptível, da sensação: o instante-já10
.
A imaginação que tem palavra, a palavra portadora de imagem, a palavra como texto
imaginado, falar por imagens, potencializar o conceito através da imaginação. O
conceito como feixe de possibilidades que abandona suas referências, para reter
conexões e conjunções que constituem a sua consistência11
.
O instante-já como potencialidade do instante e a Fênix como potencialidade do
movimento são imagens que atravessam a tese e nos permitem viver a expansão do
instante, engendrando imaginações que potencializam o conceito de acontecimento.
Presente limite de quase tocar: devir cidade e devir projeto
Podemos, assim, dizer que o projeto é feito de vários acontecimentos que se atualizam
nos entre-instantes-experimentação. O que faz o projeto no espaço urbano se localizar
Se pudermos revelar que na
imagem poética arde um excesso
de vida, um excesso de palavras,
teremos, detalhe por detalhe,
provado que há sentido em falar
de uma linguagem quente, grande
lareira de palavras indisciplinadas
onde se consome o ser numa
ambição quase louca de promover
um mais-ser, uma mais que ser24
.
 
	
  
4	
  
em um entre-ser cidade, projeto e homem.
A abertura do projeto à experimentação possibilita o surgimento de acontecimentos,
lembrando que a concepção projetual e a experimentação do projeto não apresentam
uma relação dicotômica de causa e efeito. Assim, nos questionamos sobre a
possibilidade de projetar condições em vez de condicionar o projeto12
; em outras
palavras: como projetar para revelar acontecimentos?
Nos entre-instantes podemos reencontrar o sentido da arte no sentido do ato de
projetar. A arte que luta com o caos para fazer erigir nela um instante, uma sensação –
um acontecimento. A arte que não é caos, mas composição do caos, não previsível ou
preconcebida que desafia qualquer opinião. O artista cria puras sensações de
conceitos, cria o finito que restitui o infinito, afirmam Deleuze e Guattari13
.
Podemos dizer que o que se conserva do projeto é a sensação, o acontecimento.
Consideramos que é no instante-acontecimento que encontramos a perenidade do
projeto no urbano. O durável como o que é sempre em estado de ser transformável. A
durabilidade que é feita de instantes sem duração, podemos dizer de acontecimentos.
Deleuze e Guattari14
, exemplificam dizendo que admiramos os desenhos das crianças,
mas é raro que fiquem de pé se olhamos por muito tempo. Arte só é arte se guarda
vazios suficientes para permitir saltos. Nesse sentido, aproximamos mais uma vez as
palavras arte, cidade, projeto e devir.
O brilho, o esplendor do
acontecimento é o sentido. O
acontecimento não é o que
acontece (acidente), ele é no que
acontece o puro expresso que
nos dá sinal e nos espera25
.
O durável é feito de instantes sem
duração26
.
(…) Tudo que é simples, tudo que
é forte em nós, tudo o que é
mesmo durável, é o dom de um
instante (…)27
 
	
  
5	
  
Potencialidade do instante no Projeto: virtuais expressivos
Virtus – força + actualis – o que a torna efetiva: dynamis-energia
Explosão da ideia
Virtuais expressivos que eles criam em nós e entre nós15
.
A potencialidade do projeto está no lugar de ação do sujeito, uma extensão imaginativa,
espaço inventado. O possível depende do núcleo de realidade presente e da extensão
interpretativa, sendo essas fronteiras móveis. O possível que emerge é condicionado
pelo usuário/intérprete (sua cultura, seu interesse, seus limites de percepção), mas
também pelos dispositivos de procura inclusos nele.
O acontecimento se atualiza no instante. O instante é solidão16
. É a consciência da
solidão. O instante-experimental é solitário. Isolamento, solidão homem-cidade: devir
homem e devir cidade. A novidade do instante revela a descontinuidade do tempo.
Deleuze17
suscita que:
Insistimos no que é dado, no atual, inclusive sob a forma de possível, alternativa
como lei de divisão do real que atribui de imediato minha experiência a um certo
campo de possíveis. Que haja virtual significa que nem tudo é dado, nem
passível de ser dado. Significa, em seguida, que tudo o que acontece só pode
provir do mundo em suas potencialidades criadoras ou na criação de possíveis.
O tempo tem somente uma
realidade, aquela do instante28
.
 
	
  
6	
  
Não existe real – isto é, encontro e não apenas objeto previamente reconhecido
como possível – senão em vias de atualização.
Os acontecimentos pluralizam o campo dos possíveis em processos de atualização e
de cristalização constante, o que acarreta a afirmação de uma temporalidade múltipla,
de um tempo multidimensional18
. Na sucessão de potenciais tempo – instante-já –
existe um lugar de continuidades que permite a redefinição do projeto junto à
atualização de vetores.
Como guardar o movimento junto às suas cristalizações dando consistência ao virtual?
Não seria essa a missão do projeto?
Instante, devir, acontecimento, projeto e cidade são palavras que remetem ao mesmo
sentido. O projeto que é devir, o devir projeto que é cidade, o projeto que é um
acontecimento, a cidade que é construída de vários instantes-acontecimentos, o
instante que é devir (...). O projeto é um instante sem permanência.
Em todo acontecimento, há de fato
o momento presente da efetuação,
aquele em que o acontecimento se
encarna em um estado de coisas,
um indivíduo, uma pessoa, aquele
que é designado quando se diz:
pronto, chegou a hora; e o futuro e
o passado do acontecimento só
são julgados em função desse
presente definitivo, do ponto de
vista daquele que o encarna29
.
 
	
  
7	
  
(...)
Escrever como modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não
é palavra. Quando essa palavra morde a isca alguma coisa se escreveu. Uma vez que
se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a
analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler
"distraidamente"19
.
... podia-se com alívio jogar o
projeto fora.
 
	
  
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1
DELEUZE e GUATTARI, 2004.
2
DELEUZE e GUATTARI, ibid.
3
DELEUZE e GUATTARI, ibid.
4
DELEUZE e GUATTARI, ibid.
5
ROSSI,1984, p. 14.
6
Tradução livre da autora. Original: “La arquitectura, como siempre, permanece
en pocos detalles, esperando el pistoletazo de la ‘gaviota’, la luz de la escalera,
el bote que atraviesa el lago como en una cúpula de cristal”, ROSSI, Ibid., p. 46.
7
Os três últimos parágrafos referem-se à obra: DELEUZE e GUATTARI, 2004.
8
O sentido que utilizamos a palavra imagem remete à imaginação.
9
Ver sanfona. Fênix: ideações poéticas minhas das repercussões poéticas de
Bachelard, que atravessam o sujeito-tese. Obra de referência: Fragmentos de
uma poética do fogo, 1990. Mais especificamente, capítulo I: “A Fênix,
fenômeno de linguagem”. Instante-já: ideações poéticas minhas das
repercussões poéticas de Lispector que atravessam o sujeito-tese. Obra de
referência: Água viva, 1973.
10
LISPECTOR, 1973.
11
DELEUZE e GUATTARI, 2004.
12
A dimensão real do espaço e a experiência são definidas por Tschumi (1996)
pela categoria de “Labirinto”, definindo-a como “espaço sensório”.
13
DELEUZE e GUATTARI, 2004.
14
Ibidem.
15
RAJCHMAN, John. “Existe uma inteligência do virtual?” In: ALLIEZ, 2000.
16
M.Roupnel, apud BACHELARD, 1992, p. 13.
17
Reflexões de Deleuze na obra: ZOURABICHVILI, 2004.
18
PELBART, 2004.
19
LISPECTOR, 1999, p. 31.
20
DELEUZE e GUATTARI, 2004 , p. 204.
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
21
Tradução livre da autora. Original: “Le paradoxe de ce pour devenir, avec sa
capacité d’esquiver le présent, c’est l’identité infinie: identité infinie des deux
sens à la fois, du futur et du passé, de la veille et du lendemain, du plus et du
moins, du trop et du pas-assez, de l’actif et du passif, de la cause et de l’effet”.
DELEUZE, 2005, p. 10.
22
Tradução livre da autora. Original: “(…) n’a pas d’autre présent que celui de
l’instant mobile qui le représente, toujours dédoublé en passé-futur”. DELEUZE
e GUATTARI, 2005, p. 177.
23
DELEUZE, 2002, p. 34.
24
BACHELARD, 1990, s/p.
25
Tradução livre da autora. Original: “L’éclat, la splendeur de l’événement, c’est
le sens. L’événement n’est pas ce qui arrive (accident), il est dans ce qui arrive
le pur exprimé qui nous fait signe et nous attend”. DELEUZE, 2006, p. 175.
26
Tradução livre da autora. Original: “La durée est faite d’instants sans
durée”. BACHELARD, 1992, p. 20.
27
Tradução livre da autora. Original: “(...) Tout ce qui est simple, tout ce qui est
fort en nous, tout ce qui est durable même, est le don d’un instant (...)”.
BACHELARD, ibid., p. 20.
28
M. Roupnel, apud BACHELARD, 1992, p. 13.
29
Tradução livre da autora. Original: “(…) Dans tout l’événement, il y a bien le
moment présent de l’effectuation, celui où l’événement s’incarne dans un état
des choses, un individu, une personne, celui qu’on désigne en disant: voilà, le
moment est venu; et le futur et le passé de l’événement ne se jugent qu’en
fonction de ce présent définitif, du point de vue de celui qui l’incarne”.
DELEUZE, 2005, p. 177.
 
	
  
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ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de
Janeiro: IFCH, 2004 (versão eletrônica).
 
	
  
1	
  
: : Entre o conceitual e experimental, previsível e imprevisível
Defendemos aqui a ideia de que a arquitetura e o projeto no espaço urbano estão entre
o conceitual e o experimental. Entre o previsível e o imprevisível.1
Argan2
nos suscita dizendo que: “nunca se projeta para, mas contra alguém ou alguma
coisa (...) contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à desordem, aos golpes cegos
dos acontecimentos, ao destino”, na tentativa de se fixar um presente no qual se quer
agir e que continuamente nos escapa3
.
O projeto está contaminado pela condição da imprevisibilidade, mas também pelo
desejo do autor de certeza (segurança). Certeza como mecanismo de dispersão do
invisível e do imprevisível.
O projeto lida com problema e possibilidade, intenção e transformação, faz parte daquilo
que ainda não é, mas poderá ser ou já é. A natureza do projeto é incerta, na medida em
que não existe um objetivo puro, “(...) quando não muda o objeto mudam os métodos
para interpretá-lo”4
. Ao mesmo tempo, o mundo em que se projeta é instantâneo e
imprevisível.
As razões de incerteza que residem sobre as coisas – o momento de mutação, o
período de perda de simultaneidade dos tempos – vem penetrando e suscitando nossas
indagações. Dinâmicas que não têm a mesma duração, nem os mesmos ritmos, situam-
Quando chegamos a um horizonte
já existe outro19
.
(…) porque geralmente as
pessoas querem que a arquitetura
seja a representação da certeza,
elas querem que a arquitetura seja
uma marca de identidade. E elas
não gostam quando dizemos a
elas “sim”, isto vai funcionar por
um tempo, mas não acredite que
para sempre!20
 
	
  
2	
  
se em regimes diversos5
.
Qual é a visão de tempo que temos? Assim como a matriz moderna, o futuro está mais
próximo, ou o futuro já é presente e um ainda-aqui e já-passado?
Ressaltamos a noção de projeto como desígnio, um lançar-se à frente – hipótese
presente, devir. Devir como vontade de potência.
Projeto, sugere Murad6
, como: “(...) um pretexto de Imaginação que teima em originar
objetos no Mundo” e que, ao mesmo tempo, é pura imprevisibilidade. O projeto que (...)
não se desenvolve em uma horizontalidade, não segue uma continuidade linear,
sucessiva, crescente e, portanto, previsível. Ele (o projeto) é primordialmente uma
dinâmica de rupturas, de descontinuidades, de oscilações entre ascensão e
aprofundamento.
Projeto como interferência: bloco de sensações
O projeto urbano, como resposta ao urbanismo racionalista, muitas vezes busca
contextualizar o projeto por meio de uma resposta à expectativa local. Consideramos
que, nesse processo de mimetismo da realidade percebida, a dimensão criativa do
projeto se perde, o projeto se transforma em uma reprodução, representação ou algum
tipo de adaptação à realidade visível.
O projeto no espaço urbano não se reduz ao que poderíamos denominar de adaptação
Como preservar a verdade se
contra ela conspira a “força do
tempo”, no sentido que torna
compossíveis presentes
incompossíveis, faz coexistirem
passados não necessariamente
verdadeiros, e toda uma potência
do falso se afirma como
criadora?21
 
	
  
3	
  
à realidade, ou seja, ao que nos é percebido, ou àquilo que Rosalind Krauss7
denomina
Percepção de Similitude – estratégia para reduzir tudo que nos é estranho, tanto no
tempo como no espaço, àquilo que já conhecemos e somos –, e sim à possibilidade de
interferência, de experimentação.
A tese compreende o projeto no espaço urbano8
não como ruptura – modernos – ou
como algum tipo de continuidade, e sim como possibilidade de transbordamento que
envolve o espaço “entre” a ruptura e a continuidade que é o acontecimento. Estamos
falando de realidades outras em que tudo pode ser um suporte do urbanismo.
Riscos na paisagem
O projeto como transbordamento é a possibilidade de potencializar forças da paisagem.
Paisagem que excita e estimula desejos junto a novas possibilidades expansivas. A
paisagem não vista, mas que doa a visão9
.
No processo de experimentação, o projeto deixa de ser projeto, passa a fazer parte de
um grande tecido que denominamos realidade. Nesse processo o projeto já é
paisagem10
, jamais permanece no seu estado doado, mas que ao ser tocado já é
transformado, envolve-se em um movimento do que nos é dado, assumindo novos
sentidos.
A cada vez que pensamos ingenuamente constatamos a presença da paisagem, e é aí
Se o meu próprio edifício tem um
papel irritante em relação ao
contexto em que está localizado,
isto pode ser benéfico, e permitir
ativar um pouco o que está
acontecendo ao redor. O arquiteto
pode, de tempos em tempos,
trabalhar com o irritante, o
provocador22
.
Como se a forma procurasse seu
ponto de esquecimento23
.
 
	
  
4	
  
posta a questão de uma mudança possível dos nossos dispositivos perceptivos. Vasto
tecido de referências implícitas, produção de imagens, atividade intensa de ficção que
nos habita e que nós não sabemos entender a sua importância, nem a sua magia11
.
Mas por que será que a paisagem nos livra do sentimento de perfeição das coisas e
pessoas, mais frequentemente, daquele sentimento associado à obra de arte ou ao
projeto? Como que a paisagem provoca um entusiasmo de outro gênero, além da
simples satisfação?
O prazer da paisagem, suscita Cauquelin12
, não está no sentimento de satisfação
quanto a um objeto que funciona bem; não está implícito o sentimento de uma
legitimidade possível que se confronta com o prazer dado pelas coisas.
A paisagem tem necessidade nula de se legitimar. Assim, não possui categorias de
julgamento habituais que dão valor ao objeto e classificam-no como obra de arte ou
projeto, ou seja, categorias de julgamento estético. A paisagem nos relega um
sentimento fundador, forças elementares, é o começo e o fim do mundo.
A paisagem nos liga àquilo que nos é mais profundo, por isso vinculá-la com o que
existe antes da nossa existência, ligação da paisagem ao natural, à origem. Sentimento
da perfeição imediata, no instante, intuição instantânea13
.
A paisagem traduz para nós uma relação íntima com o mundo. Intermédio de uma
conversação infinita, vínculo de emoções cotidianas. Experimentamos instantes de
Paisagem não é meramente o
mundo que vemos, é a construção,
a composição do mundo.
Paisagem é uma maneira de ver o
mundo24
.
 
	
  
5	
  
enquadramento e a paisagem continua.
A paisagem nos revela lacunas no campo do urbanismo, suscita novos olhares que
reconheçam o movimento e a participação ativa do sujeito na sua construção. Falamos
em contemporaneidade (ou pós-modernidade como alguns preferem), mas ainda
reproduzimos a matriz moderna por meio do método de relações binárias: casa/rua;
público/privado; formal/informal; periférico/central; natural/urbano; paisagem
urbana/paisagem natural. A paisagem pode revelar o intermezzo14
, devir captura,
conteúdo próprio do desejo, consistência fugaz do real.
Na paisagem encontramos as forças do projeto, pois a paisagem aproxima o projeto das
suas dimensões mais naturais; aproxima o homem da sua natureza sensível.
Depararmo-nos com a paisagem no sentir ver de cada instante, como possibilidade de
expansão e criação, como o que fica do projeto, mas também o que vai. É perene e
instantânea, guarda o instante e o movimento infinito.
Gavetas, cofres e armários
Frisamos que a importância do projeto no urbano é deixar o espaço aberto ao
imprevisível, lacunas suficientes que permitam o acontecimento. É no desejo de tudo
expor e de tudo revelar que pouco se revela. Na tentativa de esgotar o mundo ele perde
seu encanto. Teríamos como desafio a tarefa de projetar algo que quando vire projeto já
Aqui não é a inteligência que é um
móvel com gavetas. É o móvel
com gavetas que é uma
inteligência25
.
Mas o verdadeiro armário não é
um móvel quotidiano. Ele não se
abre todos os dias. Assim, como
uma alma que não se confia, a
chave não está sobre a porta26
.
 
	
  
6	
  
não é mais projeto, é devir paisagem, devir cidade.
De acordo com Tschumi15
, a arquitetura, em vez de ser socialmente ou contextualmente
inclusiva, deveria se manifestar em oposição, suscitar conflito e tensão, não inclusão
direta.
Ao mesmo tempo, projetos vitrines surgem com força. Edifícios que se autoafirmam
como objeto, se disputam, são modelos deslumbrantes, vestem a mais nova coleção,
são sustentáveis, vestem as novidades de ponta.
O paradoxo que justifica a arquitetura atualmente é justamente a aparência e a
pretensão. A arquitetura se revela, mas é de uma só vez. Está ali tão exposta que não
se tem o que experimentar. Como se a arquitetura já tivesse sido experimentada. Inibe
a curiosidade de descobrir o mundo. Tudo já está ali!
O projeto necessita de segredos, partes a serem reveladas. A força do projeto está em
revelar o que está escondido. Devir-revelação, devir-sensação.
Tschumi suscita que o arquiteto e o usuário são formadores da arquitetura: o primeiro,
pela concepção do projeto – concebendo a arquitetura (espaço urbano) de forma a
possibilitar a experiência estética –; e o segundo, por meio de sua experiência – tendo
consciência do ato de experimentação. De acordo com ele, a dimensão real do espaço
– a materialidade do espaço – solicita a experiência.
Assim, podemos dizer que o projeto do espaço urbano depende da interação do
(...) é a dificuldade de “descobrir” a
arquitetura que a torna
intensamente desejável. Esse
desvelamento é parte do prazer da
arquitetura27
.
(…) uma intuição não se prova, ela
se experimenta. E ela é
experimentada multiplicando, ou
mesmo modificando, as condições
de seu uso28
.
 
	
  
7	
  
usuário/intérprete com o projeto, que é a experiência16
; poderíamos dizer: o movimento-
experimentação, o que denominamos acontecimento.
A experiência permite tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo e que
nos afetam, nos fazem devir. Com o passar do tempo, o que se conserva no projeto,
independentemente do criador, é um bloco de sensações composto por afectos e
perceptos. De acordo com Deleuze17
, só se atinge o percepto ou o afecto como seres
autônomos e suficientes, independentemente do criador.
Consideramos que o grande desafio que temos como arquitetos-urbanistas é a
capacidade de deixar o projeto aberto à experimentação, permitir o acontecimento. Em
outras palavras, reconhecer a realidade como devir: combinar e permutar para
manifestar os segredos do mundo e liberar as intensidades criativas. Permitir que o
projeto se revele como acontecimento.
A arquitetura é um fato de arte, um fenômeno de emoção, fora das questões de construção,
além delas. A construção É PARA SUSTENTAR; a arquitetura É PARA EMOCIONAR. A
emoção arquitetural existe quando a obra soa em você ao diapasão de um universo cujas leis
sofremos, reconhecemos e admiramos. Quando são atingidas certas relações, somos
apreendidos pela obra. Arquitetura consiste em “relações”, é “pura criação do espírito”18
.
O objetivo da arte, com os meios
do material, é arrancar o percepto
das percepções do objeto e dos
estados de um sujeito percipiente,
arrancar o afecto das afecções,
como passagem de um estado a
um outro. Extrair um bloco de
sensações, um puro ser de
sensações29
.
 
	
  
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1
Recuperamos aqui uma das nossas grandes questões trabalhada na
dissertação de mestrado: Previsibilidade e imprevisibilidade: fronteiras móveis
do Projeto-Urbano (LOURES, 2006).
2
ARGAN, 2000.
3
BAUMAN, 1999.
4
ECO, 2005.
5
LEPETIT e PUMAIN, 1993.
6
MURAD, 1999, p. 22-17.
7
KRAUSS, 1984.
8
Neste trabalho evitaremos a utilização da expressão projeto urbano, pois
acreditamos que nela está impregnada uma forte carga de sentidos. Assim
preferimos falar do projeto no urbano ou projeto no espaço urbano.
9
CAUQUELIN, 2002, p.27.
10
Entendemos a paisagem como movimento e ação – “an idea formation (...) on
going movement” (CORNER, 1999) – opondo-se à noção tradicional que
compreende a paisagem como algo estático e contemplativo. Paisagem como
verbo (atuante), temporalidades, corpo de memórias, caminho de uma
alternativa, lugar de ação, espaço inventado.
11
CAUQUELIN, 2000, p. 23.
12
CAUQUELIN, ibid. p. 108.
13
CAUQUELIN, ibid. p. 112.
14
DELEUZE e GUATTARI, 2004.
15
Nesta passagem utilizamos trechos da entrevista de Bernard Tschumi a
Liliana Gómez. Junho de 2005 em Nova York. Acesso em janeiro de 2009.
http://www.puntocero.de/content/tschumi.html.
16
TSCHUMI, ibid..
17
DELEUZE, 2004, p. 218.
18
LE CORBUSIER, 2000a, p. 10.
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
19
Tradução livre da autora. Original: “Quand on arrive à un horizon il y a autre”.
Palestra 1
o
dez 2008 – Au Détour du Monde – Raymond Depardon et Paul
Virilio – Fondation Cartier, Paris, França.
20
Tradução livre da autora. Original: “(…) because generally people want
architecture to be the representation of certainty, they want architecture to be
identity branding. And they do not like when you tell them ‘yes’, it is going to
work for a while, but do not believe in it forever!”. Entrevista com TSCHUMI,
Bernard Tshumni por Liliana Gómez. 1º de junho, 2005, Nova York.
http://www.puntocero.de/content/tschumi.html. Acesso: janeiro de 2009.
21
PELBART, 2004, p. 20.
22
Tradução livre da autora. Original: “Si mon bâtiment lui-même joue un rôle
d'irritant a rapport au contexte dans lequel il se trouve, cela peut être bénéfique,
et permettre d'activer un peu ce qui se passe autour. L'architecte peut, de temps
en temps, faire œuvre d'irritant, de provocateur”. Entrevista com TSCHUMI, E2-
CONTEST, 2002, p. 107.
23
Tradução livre da autora: Original: “(...) comme si la forme cherchait son point
d’oubli”. DUSAPIN, 2009, p. 53.
24
	
  Tradução livre da autora. Original: “Landscape is not merely the world we see,
it is a construction, a composition of that world. Landscape is a way of seeing
the world”. COSGROVE, 1998.
	
  
25
Tradução livre da autora. Original: “C’est pas ici l’intelligence qui est un
meuble à tiroir. C’est le meuble à tiroir qui est une intelligence”. BACHELARD,
2008, p. 81 e 82.
26
Tradução livre da autora. Original: “Mais la véritable armoire n’est pas un
meuble quotidien. Elle ne s’ouvre pas tous les jours. Ainsi d’une âme qui ne se
confie pas, la clef n’est pas sur la porte”. BACHELARD, 2008, p. 84.
27
TSCHUMI, 1996, p. 94.
28
Tradução livre da autora. Original: “(…) une intuition ne se prouve pas, elle
s’expérimente. Et elle s’expérimente en multipliant ou même en modifiant les
conditions de son usage”. BACHELARD, 1992, p. 8.
29
DELEUZE, 2004, p. 217.
 
	
  
9	
  
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
Referências bibliográficas
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DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs. Devir-intenso, devir-
animal, devir-imperceptível. Vol. IV. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995.
______. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004.
DUSAPIN, Pascal. Une musique en train de se faire. Paris: Seuil, 2009.
LOURES, Moema Falci. Previsibilidade e imprevisibilidade: fronteiras
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MURAD, Carlos A. “A criação no pensamento das imagens”. In:
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PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo:
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KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Tradução
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TSCHUMI, Bernard. Architecture and disjunction. Cambridge: MIT
Press, 1996.
VIRILIO, Paul. Un paysage d’événements. Paris: Editions Galilée, 1996.
 
	
  
1	
  
: : Teorias modernas
Vivemos em um período de instituição da dúvida1
. As incertezas foram aceitas! A
situação ambivalente está mais visível. Mas será que deixamos de ser modernos?
Liquidez é a palavra de ordem: cidade líquida, modernidade líquida. Virou moda, capa
de revista, título de trabalhos acadêmicos, notícia de jornal.
Compartilhamos com alguns autores que vivemos em um período de radicalização da
modernidade, argumenta Giddens2
. Ou como prefere Bauman, Modernidade líquida3
ou
Terceira modernidade, afirma Ascher4
, ambas modernidades.
Não existem acordos sobre as datas nem consenso sobre o que deve ser datado
quando nos referimos ao verbete modernidade, “(...) e uma vez que se inicie a sério o
esforço de datação, o próprio objeto começa a desaparecer” suscita Bauman5
.
Utilizaremos a noção que define a modernidade como um projeto que ganha força a
partir do Renascimento6
e atinge sua maturidade com o desenvolvimento da sociedade
industrial e, que nos dias de hoje, apresenta-se como um projeto inacabado.
Ressaltamos que definir a modernidade como um estilo, costume de vida ou
organização social acaba por associá-la a um período de tempo e uma localização
geográfica inicial, sendo que suas “(...) características principais ficam guardadas em
As teorias modernas rendem-
se às críticas, mas não há
suicídio.
 
	
  
2	
  
segurança numa caixa preta”7
. Não seria esse o nosso intuito.
A modernidade é marcada inicialmente pela exacerbação dos princípios de ordem,
unidade e simplicidade que vão ao longo dos anos delimitando a realidade escondida
atrás das aparências de confusão, pluralidades e complexidades. Le Corbusier8
afirma
que a grande cidade é fenômeno de força em movimento, fala das cidades em
desespero, no desespero das cidades; reconhece a imprevisibilidade, enquanto acredita
que a ação do arquiteto/urbanista está ligada ao gesto previsível na cidade imprevisível.
Diante disso proclama9
: “Prever, é tudo quanto é preciso, mas também o que é
indispensável e urgente”.
Frisamos que não devemos subestimar os modernos10
e pensar que eles não tinham
consciência da imprevisibilidade. A tentativa de camuflar as incertezas já apontava para
a sua existência e para “obsessão delirante de encontrar a pedra fundamental"11
.
A obsessão pelo previsível é um dos principais paradigmas que acompanha a
modernidade, sendo a própria noção de paradigma moderno. O conceito de
paradigma12
, em Morin13
(2002), surge como algo que exclui os problemas que não
reconhece, na necessidade constante de confirmar o determinismo e descobrir novas
evidências auto-ocultando-se. O paradigma é cogerador do sentimento de realidade,
estando todo tempo ligado aos discursos e visões de mundo14
.
Dessa forma, podemos afirmar que existe algum tipo de transição na própria leitura do
conceito de paradigma. Diante de uma breve revisão da literatura do final do século XX,
Ser moderno é encontrar-se em
um ambiente que promete
aventura, poder, alegria,
crescimento, transformação de si e
do mundo – e, ao mesmo tempo,
ameaça destruir tudo o que temos,
tudo o que sabemos, tudo o que
somos31
.
 
	
  
3	
  
é evidente o reconhecimento da imprevisibilidade junto à previsibilidade. Tentamos,
hoje, avançar diante das críticas da década de 1960 à dogmática moderna que, diante
de um pessimismo contagiante, teve grande dificuldade de ação: uma “penumbra
total”15
.
No urbanismo, observa-se nos anos 1960, perante a fé nas ciências e disciplinas sociais
junto ao “terrorismo” funcionalista, uma tentativa de distanciamento das dimensões
espaciais do projeto. O urbanismo torna-se ciência e o arquiteto, o técnico que passa a
ser destinado ao fim do processo. Nesse momento, começa-se a se falar em pós-
modernidade, um conceito autêntico na sua inadequação, assim como afirma
Boaventura16
.
O autor17
alerta que, de um lado, é bastante claro o caminhar em direção à mudança de
paradigmas epistemológicos; por outro, ainda existe um longo caminho em direção à
mudança de um paradigma societal18
. Assim, não poderíamos falar em uma mudança
paradigmática. O paradigma contém categorias mestras de inteligibilidade, encontrando-
se no núcleo não apenas de qualquer sistema de ideias e de qualquer discurso, mas de
qualquer cogitação, afirma Morin19
. Os paradigmas como “princípios ocultos que
governam nossa visão das coisas e do mundo sem que tenhamos consciência disso”20
.
Sem dúvida, a única coisa que é segura na modernidade é a insegurança – a certeza
como refúgio da incerteza ou a incerteza como refúgio de si própria?
O urbanismo reconhece a cidade complexa, a cidade mutável, o seu cenário de
 
	
  
4	
  
intervenção. No início do século XX, esse reconhecimento é dado por oposição: o
projeto como ato de previsibilidade no meio imprevisível que poderia supostamente
torna-se previsível. Posteriormente, a crítica, a falta de projeto, tudo se torna
demasiadamente imprevisível. Já no século XXI, é reconhecida a importância do projeto
que não deixa de ser um ato de previsibilidade, contudo, implicando no reconhecimento
da incompletude e da incerteza.
A própria noção de projeto e cidade está entrelaçada ao projeto de modernidade.
Reconhecemos que a modernidade tem um compromisso inacabado com a descoberta,
com a oposição entre o efêmero e o eterno. Paralelamente, o que se vê é a busca por
mecanismos de segurança e previsibilidade. A imprevisibilidade e previsibilidade
mutuamente se revelam diante de um pensamento obcecado pela reflexividade.
A representação do eterno pode existir por meio de um efeito instantâneo. A captura do
projeto no instante que, assim como a modernidade, deriva a sua estética21
de alguma
forma do fato da fragmentação, da efemeridade e do fluxo caótico22
.
O projeto na modernidade, a modernidade como projeto. Projeto como exploração e
experimentação caótica, como experiência paradoxal na intensidade limite que leva à
criação e à formação de sentido.
Compartilhamos com Giddens23
, Bauman24
, Harvey25
, Boaventura26
, Maffesoli27
,
Morin28
, Featherstone29
, entre outros autores, a ideia de que ainda somos todos
modernos, apesar de existirem brechas que sensibilizam para um pensamento
 
	
  
5	
  
multidimensional. É nessas brechas que pretendemos avançar na tese, mais
especificamente através de possibilidades projetuais, como a possibilidade de liberar
intensidades (acontecimentos) criativas. Instantes em que estão a dinâmica e o
movimento, o movimento como representação do perene.
O projeto que se reencadeia por sobre uma lacuna (não por prolongamento). As
plataformas como aquilo que não mais interessa.
O projeto que dá acesso ao imprevisível, ao acontecimento. No entanto, se não existe
projeto, também não existe acontecimento.
(...) a única maneira de
representar verdades eternas é um
processo de destruição possível
de, no final, destruir ele mesmo
essas verdades. E, no entanto,
somos forçados, se buscamos o
eterno e o imutável, a tentar e
deixar a nossa marca no caótico,
no efêmero e no fragmentário32
.
 
	
  
6	
  
Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais
angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que
desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras,
que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição
coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com o nada incolor e silencioso que
percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo ou curto
demais para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar
nossas ideias. É por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos
somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a
associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança,
contiguidade, causalidade que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de
uma outra a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa “fantasia” (o
delírio, a loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos alados e
dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas ideias, se não houvesse
também nas coisas ou estados de coisas, como um anticaos objetivo (...)30
.
 
	
  
7	
  
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
1
GIDDENS, 1991, p. 175.
2
Ibidem.
3
BAUMAN, 2001.
4
ASCHER, 2001.
5
BAUMAN, 1999, p. 11.
6
É nos tempos modernos que a consciência de complexidade começa a
aparecer com maior clareza, por isso situar a modernidade no Renascimento.
Diante de visões de mundo diversificadas e surgimentos de novos conflitos e
representações, vamos engendrando a necessidade (falsa ou real) de
regulamentação. O urbanismo como campo disciplinar, por exemplo, aparece a
partir da premissa de diminuição de riscos.
7
GIDDENS, 1991, p. 11.
8
LE CORBUSIER, 2000: passim 24-51.
9
LE CORBUSIER, Ibid., p. 64.
10
Os modernos propõem uma ideia fictícia de previsibilidade visando ao
controle dos conflitos a partir de um mesmo quadrante.
11
MORIN, 2002, p. 277.
12
Kunh (2003) é quem introduz o conceito de paradigma como exemplos
compartilhados que têm papel central na orientação metodológica de esquemas
fundamentais de pensamento, de pressupostos ou de crenças. Morin (2002)
afirma que esse é o ponto forte do sentido de paradigma desenvolvido pelo
autor, contudo, diz que o ponto fraco é que esse conceito oscila entre sentidos
diversos, cobrindo in extremis, de modo difuso, a adesão coletiva dos cientistas
a uma visão de mundo.
13
MORIN, 2002.
14
MORIN, 2005.
15
HART, 1994.
16
SANTOS, 2001.
17
SANTOS, ibid..
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
18
Formas de conhecimento com vinculação específica a diferentes práticas
sociais.
19
MORIN, 2005.
20
MORIN, Ibid., p. 10.
21
Estética como movimento e motivação a partir de uma sensação.
22
Ver HARVEY, 2006, p. 113, sobre a modernidade.
23
GIDDENS,1999.
24
BAUMAN, 2001.
25
HARVEY, 2006.
26
SANTOS, 2001.
27
MAFFESOLI, 2005.
28
MORIN, 2002, 2005.
29
FEATHERSTONE, 1995.
30
	
  DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 259.
31
HARVEY, 2006, p. 21.
32
HARVEY, ibid., p. 26.
 
	
  
8	
  
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
Referências bibliográficas
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Éditions de L’ Aube, 2001.
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1998.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1999.
______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
______. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de
Janeiro: Ed. 34, 2004.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São
Paulo: Studio Nobel, 1995.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo:
Editora Unesp, 1991.
______. A transformação da intimidade. São Paulo: Editora Unesp,
1994 (Biblioteca básica).
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Gulbenkian, 1994.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2006.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LEPETIT, Bernard e PUMAIN, Denise. Temporalités urbaines. Paris:
Anthropos, 1993.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 2005.
MORIN, Edgar. O método 4: as ideias. Porto Alegre: Sulina, 2002.
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
______. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina,
2005.
______, MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. São
Paulo: Sulina, 2000.
ROSSI, Aldo. Bibliografia científica. Barcelona: Gustavo Gilli, 1984.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o
desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2001.
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
PARTE II
: : Projeto, repetição e devir ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 01 - 11
: : Força do movimento: sensação do tempo ------------------------------------------------------------------------------------------------- 01 - 08
: : A montagem como potencial criador -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 01 - 16
: : Prazer e intrusão: possibilidades projetuais em Tschumi ------------------------------------------------------------------------------ 01 -12
 
	
  
1	
  
: : Projeto, repetição e devir
Deleuze1
defende sua tese de doutorado, Diferença e repetição, em oposição ao
pensamento clássico e moderno unidade/identidade. As coisas se repetem
diferenciando-se. Diferentes quando (ou porque) produzem devir.
O que instaura a repetição – um objeto que se repete incontáveis vezes – se remete a
uma potência singular. Forças se asseguram na repetição, na passagem de uma coisa
para a outra. A repetição assegura a distribuição e o deslocamento, o transporte do
elemento para outras dimensões. Um movimento constante de um vir-a-ser.
Nunca se retorna ao mesmo, afirma Nietzsche2
. A repetição é a forma do devir.
Segundo Deleuze3
, é o eterno retorno que expulsa o mesmo e a repetição-igual. O
eterno retorno é a criação, é a condição para que algo advenha.
O eterno retorno é o retorno de um fragmento que está sempre em processo de
atualização. O eterno retorno não é um devir igual, não é um ciclo, não supõe o um, o
mesmo, o igual, o idêntico. Não é um retorno do todo, um retorno do mesmo, nem um
retorno ao mesmo, afirma Machado4
.
Um dos momentos mais importantes de interpretação deleuziana do eterno retorno,
segundo o autor5
, seria não pensar o ser como oposto ao devir, o um como oposto ao
múltiplo, a necessidade oposta ao acaso, ou, de modo geral, a identidade oposta à
diferença.
Há quinhentos anos, o chefe de
um hexágono superior deparou
com um livro tão confuso como os
outros, porém que possuía quase
duas folhas de linhas
homogêneas. Mostrou seu achado
a um decifrador ambulante, que
lhe disse que estavam redigidas
em português; outros lhe
afirmaram que em iídiche. Antes
de um século pôde ser
estabelecido o idioma: um dialeto
samoiedo-lituano do guarani, com
inflexões de árabe clássico.
Também decifrou-se o conteúdo:
noções de análise combinatória,
ilustradas por exemplos de
variantes com repetição ilimitada.
Esses exemplos permitiram que
um bibliotecário de gênio
descobrisse a lei fundamental da
Biblioteca.
 
	
  
2	
  
No eterno retorno, a repetição não é a repetição do mesmo, mas do diferente, a
diferença tem como objeto a repetição. No eterno retorno, a repetição é a potência da
diferença6
.
Podemos nos perguntar em que circunstâncias a repetição revela acontecimentos.
Poderíamos dizer justamente nas derivações, nas relações entre a repetição, na relação
entre relações, na repetição que incide sobre repetições.
A hipótese que levantamos aqui é a da repetição como base de processos criativos ou
como condição que torna possível a criatividade. No entanto, para que isso ocorra, é
necessário pensar a repetição como processo. O processo repetição como forma de
proporcionar relações, abrindo-se a inesperados sentidos, dimensões, rotações.
Nesse processo o que importa é a experiência da coisa, não a coisa em si. O processo
assim se reinicia suscitando uma nova experiência de ruptura, o acontecimento. Os
elementos se repetem, mas a experiência é singular. Nesses instantes-repetições, a
experiência não se deixa representar, não existe em uma estaticidade.
Estamos interessados no mesmo no que se difere. Buscamos um raciocínio que
privilegia a intensidade, um dos mais importantes conceitos da teoria de Deleuze. O
acontecimento é intensidade, vontade de potência, querer interno. Estamos no domínio
do universo das intensidades – princípio intensivo das forças.
A vontade de potência não é a força, mas o elemento diferencial que determina tanto a
Esse pensador observou que
todos os livros, por diversos que
sejam, constam de elementos
iguais: o espaço, o ponto, a
vírgula, as vinte e duas letras do
alfabeto.
Também alegou um fato que todos
os viajantes confirmaram: "Não há,
na vasta Biblioteca, dois livros
idênticos". Dessas premissas
incontrovertíveis deduziu que a
Biblioteca é total e que suas
prateleiras registram todas as
possíveis combinações dos vinte e
tantos símbolos ortográficos
(número, ainda que vastíssimo,
não infinito), ou seja, tudo o que é
dado expressar: em todos os
idiomas23
.
 
	
  
3	
  
relação entre as forças (quantidade) quanto a qualidade respectiva das forças em
relação. A vontade de potência é o sensível, a sensibilidade das forças, o devir sensível
das forças, a sensibilidade diferencial.
O eterno retorno, compreendido como ser do devir, está intrinsecamente ligado à
vontade de potência considerada como devir das forças ou princípio da diferença7
.
Estudando a repetição, podemos observar que ela ativa a imaginação, sustenta uma
ideia ou pensamento por um determinado tempo. Em linguística, destacamos duas
formas de repetição que bastante nos interessa. A repetição anáfora – a repetição da
mesma palavra ou grupo de palavras no princípio de frases ou versos consecutivos; e a
repetição pleonasmo – repetição que envolve redundância. Duas figuras de linguagem
que têm como objetivo reforçar a experiência-repetição.
Nesta tese, por exemplo, em diversos momentos, criamos palavras compostas como
instante-acontecimento. Mas se compreendemos que o acontecimento só existe entre
instantes, isso não faria sentido. Nossas palavras compostas também são pleonasmos,
nascem na tentativa de ressaltar e exagerar conceitos.
A repetição é um notável recurso poético na linguagem. Diversos escritores como
Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Rui Barbosa buscam intensidade
poética por meio da repetição. A repetição como força dinamizadora do discurso.
Já a repetição negativa seria aquela em que conceitos dogmáticos são repetidos sem
(...)
Acabo de escrever infinita. Não
interpelei esse adjetivo por
costume retórico; digo que não é
ilógico pensar que o mundo é
infinito. Aqueles que o julgam
limitado postulam que em lugares
remotos os corredores e escadas
e hexágonos podem
inconcebivelmente cessar – o que
é absurdo. Aqueles que o
imaginam sem limites esquecem
que os abrange o número possível
de livros24
.
 
	
  
4	
  
aberturas às derivações. Nesse sentido, repetir poderia ser sinônimo de esvaziamento
imaginativo ou de monotonia. Aqui, no entanto, estamos seduzidos pelo processo
repetição como eco de uma vibração secreta, como potência singular.
A Pop-Art, por exemplo, explorou a cópia, a cópia da cópia, até o ponto que a cópia
deixa de ser cópia e se torna simulacro, suscita Deleuze8
:
(...) as repetições brutas e mecânicas do hábito deixam-se extrair pequenas
modificações, que, por sua vez, animam repetições da memória para uma
repetição mais fundamental em que a vida e a morte estão em jogo, mesmo que
venham a reagir sobre o conjunto, nele introduzindo uma nova seleção, sendo
que todas estas repetições coexistem e, todavia, estão deslocadas umas em
relação às outras.
Como conduta externa, essa repetição talvez seja o eco de uma vibração mais secreta,
de uma repetição interior e mais profunda no singular que a anima, afirma Deleuze9
:
Se a repetição é possível, é por ser mais da ordem do milagre que da lei. Ela é
contra a lei: contra a forma semelhante e o conteúdo equivalente da lei.
Se a repetição pode ser encontrada, mesmo na natureza, é em nome de uma
potência que se afirma contra a lei, que trabalha sob as leis, talvez superior às
leis. Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade
contra o geral, uma universalidade contra o particular, um relevante contra o
ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a
 
	
  
5	
  
permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão. Ela põe a lei
em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade
mais profunda e mais artística.
Duas coisas só são diferentes se forem expressas por conceitos diferentes. A repetição
só pode ser definida como uma diferença sem conceito. Só há repetição se dois entes
ou dois acontecimentos idênticos naquilo que neles é representado forem distintos
numericamente no tempo, argumenta Deleuze10
.
O conceito de repetição, de acordo com Deleuze11
, tal qual as repetições físicas,
mecânicas ou nuas (repetição do mesmo), encontraria sua razão nas estruturas mais
profundas de uma repetição oculta, em que se disfarça e se desloca um "diferencial".
A partir de uma tese paradoxal – o grau máximo da diferença é o que existe na
repetição de algo idêntico – Deleuze, unindo-se aos pensamentos de Nietzsche12
, nos
instiga para uma potência própria da repetição no projeto, no sentido da criação de
forças derivadas da repetição, em vez de criação de fórmulas repetidas. A repetição
aqui como um meio de explorar e de avançar no plano experimental do projeto.
Essas questões nos conduzem ao trabalho do arquiteto Peter Eisenman, aqui, mais
especificamente, o projeto do Memorial do Holocausto, em Berlim. O arquiteto propõe
um sistema de grid aberto com 2.700 pilares de concretos.
Esses blocos são organizados em um terreno irregular, abaixo do nível da rua, com
 
	
  
6	
  
largura de 95 cm e altura que varia de 0 a 4 m. A distância entre os pilares permite a
passagem de apenas uma pessoa por vez.
Esse sistema de repetições permite variações infinitas a partir da experiência de cada
usuário/intérprete. O projeto potencializa a experiência individual e a sensação de
desconforto e solidão, incentivando a reflexão sobre o drama dos milhares de judeus
mortos na 2a
Guerra. Eisenman provoca a instabilidade no que aparentemente é um
sistema ordenado e estável.
O arquiteto sustenta a ideia de que o resultado final do projeto não é uma síntese de um
processo, o resultado de uma acumulação, mas uma pausa arbitrária de uma série que
poderia continuar infinitamente através de deslocamentos sucessivos. Nesse senso,
contaminações e recombinações imprevisíveis são desencadeadas. A norma é
invertida, sem, no entanto, desaparecer. 	
  
Sugerimos, então, refletir sobre três formas de repetição que bastante nos instiga como
ferramentas de projeto na concepção do espaço urbano. Esses tipos, obviamente,
podem se sobrepor e nem sempre são facilmente identificados:
1- Repetição-pleonasmo. Repete-se para exagerar e ressaltar alguma coisa.
Repetição que envolve redundância/repetição desnecessária.
2- Repetição-anáfora. Repete-se somente quando se introduz um novo elemento.
Esse novo elemento pode ser de choque.
 
	
  
7	
  
3- Repetição-esquecimento. Repete-se diversas vezes um objeto até que ele
passa a ser outra coisa.
Laugier, citado em diversos textos por Le Corbusier13
e por Tschumi14
, já dizia:
“Uniformidade no detalhe, tumulto (movimento) no conjunto”. Ao contrário do que
fazemos, afirma Le Corbusier15
, uma louca variedade dos detalhes e uma uniformidade
morna dos traçados das ruas e das cidades.
Tschumi16
suscita que qualquer um que sabe como projetar um parque não terá
dificuldades em traçar o programa de um edifício da cidade, de acordo com sua área e
situação. Deve haver regularidade e fantasia, relações e oposições, e elementos
casuais e inesperados que variem a cena; grande ordem nos detalhes, confusão,
excitação e tumulto, em geral.
Ao ler e reler essa colocação de Laugier e a citação de Le Corbusier e Tschumi em
diversas obras dos autores, questionamo-nos se não seria esta a tese de Deleuze e a
proposta de Eisenstein: o máximo de repetição para garantir o máximo de diferença.
Alimentando a nossa tese estão as premissas do grupo de estudos do “Studio V:
Singular Repetition”17
, dirigido por Tschumi na Universidade de Columbia, Nova York:
O NÚMERO QUATRO
O número quatro feito coisa
ou a coisa pelo quatro quadrada,
seja espaço, quadrúpede, mesa,
está racional em suas patas;
está plantada, à margem e acima
de tudo o que tentar abalá-la,
imóvel ao vento, terremotos,
no mar maré ou no mar ressaca.
Só o tempo que ama o ímpar
instável
pode contra essa coisa ao passá-
la:
mas a roda, criatura do tempo,
é uma coisa em quatro,
desgastada25
.
 
	
  
8	
  
1. Mais repetição melhor a arquitetura.
Gostaríamos de argumentar que ao contrário da crença popular, quanto mais
houver repetição, melhor a arquitetura se torna18
.
2. Não existe arquitetura sem repetição.
Começamos com a hipótese de que não há arquitetura sem repetição: com
suas linhas das janelas, colunas, tijolos, escadas, etc., a arquitetura
inevitavelmente é a arte organizadora da repetição19
.
3. A repetição pode ser excitante e pode trazer novas descobertas.
Mais do que qualquer outra arte, a arquitetura depende da acumulação sem fim
de elementos semelhantes.
Longe de ser entediante, a repetição é excitante, desafiadora e pode levar a
novas descobertas, desde que você ultrapasse um determinado limite. Em
outras palavras: nós sugerimos que o excesso quantitativo é efetivamente
qualitativo20
.
4. A repetição de elementos não quer dizer que a arquitetura será similar.
No entanto, toda a boa arquitetura é frequentemente singular. Isso significa que
 
	
  
9	
  
ela não pode ser infinitamente reproduzida ou repetida. Por exemplo, imitar o
padrão repetitivo da cortina de vidro projetada por Mies van der Rohe não quer
dizer que a arquitetura será necessariamente boa, enquanto o seu original
foi21
.
5. A arquitetura é singular.
Daí a nossa reivindicação: a melhor arquitetura é muitas vezes a manifestação de
ambas singularidade e repetição, ou repetição singular. Vamos, portanto,
argumentar em favor de "um-de-um tipo" de repetições22
.
Manchas Imaginais
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Manchas Imaginais

  • 1. MOEMA FALCI LOURES espaço ginalIMARastros de uma escritura em projeto TESE DE DOUTORADO_PROURB_UFRJ
  • 2.
  • 3.
  • 4.
  • 5.
  • 6.
  • 7.   I   MOEMA FALCI LOURES     Espaço  IMAginal:  rastros  de  uma  escritura  em  projeto     Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Urbanismo como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Urbanismo. Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Letras e Artes Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Prourb) Orientadora: Professora Doutora Rosângela Lunardelli Cavallazzi Rio de Janeiro, 2011 Moema  Falci  Loures  
  • 8.   II         Espaço  IMAginal:  rastros  de  uma  escritura  em  projeto       Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Prourb), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor em Urbanismo. Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2011
  • 10.   IV   Agradecimentos Aos meus pais, Flávia e Renato, pelo apoio incondicional. Aos meus irmãos, Gisela e Renato Ao Fábio, pelo carinho e amor. À amiga Claudinha, pelas trocas e sincera amizade. Aos companheiros de tese em Paris, Wanda, Mônica, Alberto e Adriana. Ao professor Jean Attali, que me recebeu na École Nationale Supérieure d'Architecture – Paris Malaquais, no âmbito do Doutorado Sanduíche, abrindo novos horizontes e descobertas. Ao Pascal Rousse, que muito me ensinou sobre Eisenstein, montagem, arte e cinema. Aos professores do Prourb, em especial às professoras Lúcia Costa e Denise Pinheiro Machado. Ao querido professor Carlos Murad e seus ensinamentos rumo a um universo sensível. Ao corpo técnico do Prourb, em especial à Keila, sempre disposta a ajudar. Ao apoio do CNPq, que financiou os anos de estudo no Brasil. À Capes, que financiou meus estudos em Paris. À querida professora Rosângela Cavallazzi, orientadora e amiga, pelo incentivo, confiança e afeto.
  • 11.   V   Resumo Espaço IMAginal: rastros de uma escritura em projeto Vislumbramos um raciocínio que privilegia a intensidade – o acontecimento. O projeto no espaço urbano não como ruptura ou como continuidade, mas como transbordamento; não como construção de formas, mas como construção de forças. O projeto que suscita tensão, não inclusão direta. A tese considera o processo repetição-montagem como base de processos criativos, como meio de explorar e de avançar no plano experimental do projeto e potencializar a sensação. Nossa busca constante está na abertura do projeto de arquitetura e urbanismo ao gesto criador por meio de um “estouro de realidade”. Estamos interessados nas potencialidades do processo de criação, que tendem a gerar novas realidades, expansões imaginais. Suscitamos que o grande desafio que temos como arquitetos urbanistas é a capacidade de deixar o projeto aberto à experimentação. O que importa não é o projeto em si, mas para onde ele nos leva. Buscamos, assim, rastros de uma escritura em projeto, nuances de um pensar urbano no espaço IMAginal. Palavras-chave: projeto – urbanismo – arquitetura – imaginal – montagem – repetição.
  • 12.   VI   Abstract IMAginal space: traces of writing in design We envision an argument that favors intensity - the event itself. Design in the urban space not as a rupture or continuity but as an overflow; not as building forms but as building strength. The design that raises tension, not direct inclusion. The thesis considers the repetition-assembly process as the basis of creative processes, as a means to explore and improve experimental design and to enhance feeling. Our constant search lies in the possibility of opening urban design to a creative gesture through a "burst of reality". We are interested in the potential of a creative process that tends to generate new realities, imaginal expansions. We point out that the greatest challenge we have as Architects and Urbanists is the ability to leave design open to experimentation. What matters is not design itself, but where it leads us. Thus we seek traces of writing in design, nuances of an urban thinking in the IMAginal space. Keywords: design – urbanism – architecture – imaginal – assembly – repetition.  
  • 13.   VII   Résumé Espace Imaginal: une écriture en projet Nous envisageons un argument qui favorise l'intensité - l'événement. Le projet est perçu, dans l’espace urbain, non comme rupture ou une continuité, mais bien comme une sorte de “débordement”. L’objet du projet n’est pas la construction de formes, mais la construction de forces. Le projet soulève des tensions, mais pas de participation directe. La thèse considère le processus répétition-montage comme base du processus de création ; comme un moyen d'explorer et d’avancer dans le plan expérimental du projet et de potentialiser la sensation. Notre constant moteur de recherche réside dans l’ouverture à la création, du projet urbain et d’architecture, par un “éclatement de la réalité”. Nous sommes intéressés par les potentialités du processus de création, qui tendent à la genèse de nouvelles réalités, d’expansions "imaginales" . Le grand défi des architectes urbanistes résiderait alors dans leur capacité à laisser le projet ouvert à l’expérimentation. Ce qui importe n'est pas le projet lui-même, mais bien où il nous mène. La thèse propose alors les traces d’une écriture en projet, véritables nuances d’une pensée urbaine dans l’espace imaginal. Mots-clés: projet – urbanisme – architecture – imaginal – montage – répétition.
  • 14.   VIII   Fichas PARTE I : : Manchas ------------------------------------------------------------------------------------------ 01 - 13 : : Experimentação múltipla e intensidade-acontecimento ------------------------------- 01 - 09 : : Entre o conceitual e experimental, previsível e imprevisível ------------------------ 01 - 09 : : Teorias modernas ------------------------------------------------------------------------------ 01 - 08 PARTE II : : Projeto, repetição e devir ---------------------------------------------------------------------- 01 - 11 : : Força do movimento: sensação do tempo ------------------------------------------------ 01 - 08 : : A montagem como potencial criador ------------------------------------------------------ 01 - 16 : : Prazer e intrusão: possibilidades projetuais em Tschumi ----------------------------- 01 -12 PARTE III : : Rastros IMAginais: o que fica e o que vai ------------------------------------------------ 01 - 06 : : Bastidores do diálogo com os autores ---------------------------------------------------- 01 - 12
  • 15. PARTE I : : Manchas ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 01 - 13 : : Experimentação múltipla e intensidade-acontecimento ------------------------------------------------------------------------------- 01 - 09 : : Entre o conceitual e experimental, previsível e imprevisível ------------------------------------------------------------------------ 01 - 09 : : Teorias modernas ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 01 - 08
  • 16.     1   : : Manchas Quando começamos a ler um texto, queremos logo de início saber o tema. Afinal, do que se trata? E quando a intenção não é o conteúdo em si, e sim o processo de construção? Como falar em projeto como gesto criador sem pensar na própria tese como um processo-projeto, um vir-a-ser? Como ter Gilles Deleuze como marco-teórico e não continuar reproduzindo aquilo que ele critica através do método? Por que ao lermos Clarice Lispector não encontramos o tema de sua narrativa? Por que Francis Bacon joga a tinta na tela antes de começar a pintar? Como interromper a narração e impedir a ilustração? Por que insistimos todos os dias em querer nomear as coisas, como se o ato de nomear fosse reflexo do entendimento de certo tema ou objeto? Por que criamos palavras que fingem entender as coisas? O que é construir uma tese de doutorado no fim da primeira década do século XXI? Por que continuamos reproduzindo a modernidade através do método? O que fazer com tudo que nos dizem sobre o que é uma tese? Que história estamos construindo através de nossas teses? O que é ser consistente em um mundo editado, quando a única certeza é a própria incerteza? E então, onde repousa as dimensões criativas do projeto dentro do campo do urbanismo? O que existe além da tese? O que podemos desvendar no espaço “entre” a tese, o projeto e a cidade? Como representar a imagem-tese? Por que poucos falam dentro dos campos da arquitetura e do urbanismo sobre o processo criativo do projeto no urbano? É nas bordas de uma brecha da escuta que um outro provável se descobre11 .
  • 17.     2   Será que realmente se trata de uma ciência social aplicada? A partir de quando começamos a pensar no conhecimento como algo aplicado? Da matemática à física? De acordo com Aristóteles, a ânsia pelo conhecimento é o instinto humano, por isto não é aplicado ou tem alguma finalidade? Vivo em um espiral de intensas perguntas, e atrás delas há brechas de desconfortos. Como evitar nosso encadeamento em processos metodológicos que daqui a alguns anos podem não fazer o menor sentido ou que já não o fazem? Temos a autonomia das folhas em branco, escolhemos os nossos temas, nossos marcos teóricos, nossas referências bibliografias, mas por que pouco criamos metodologicamente e acabamos nos amarrando em âncoras que nós mesmos pouco acreditamos (ou que fazemos um grande esforço em acreditar)? Manchas em torno do método Ao escutar a palavra metodologia, via de regra a associamos a uma proposta fechada, rígida. Traçamos objetivos, metas e justificativas. Escrevemos o trabalho, uma introdução, desenvolvimento e, então, uma conclusão. Também buscamos conceitos, utilizado-os segundo um ou outro autor, fazemos comparações. Temos medo de errar e de não sermos fiéis aos autores ou/e aos nossos critérios preestabelecidos. Escrevemos na 1ª pessoa do plural. Eu escrevo na 1a pessoa do Eu procuro jamais arquiteturar meu discurso a partir de uma ideia central, mas ao contrário procuro criar ramos através de ramificações sucessivas (...)12 .
  • 18.     3   plural. Nesse limiar epistemológico uma questão perpassa o método, paradigmas do mundo moderno: hierarquias, categorias, limites, dicotomias, aplicações. Paradigmas que não reconhecem os princípios da incompletude e da incerteza, sendo ao mesmo tempo princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e do mundo sem que tenhamos consciência disso1 . Diríamos que ainda caminhamos junto às crenças que predominaram até a década de 1950, a própria ideia de conhecimento se alinha à reprodução/automatização. Como se pensar a arquitetura e o urbanismo como ciência social aplicada fosse natural. Ou como escrever uma tese com início, meio e fim também fosse natural. É fato que a noção de criatividade, liberdade e complexidade são bastante recentes, o que não quer dizer que antes elas não existiam2 . Já há algumas décadas observamos que estas palavras vão sendo reproduzidas através do conteúdo de teses e dissertações, mas dificilmente as incorporamos no processo metodológico, no processo de criação. Tomemos o conceito de rizoma criado por Deleuze e Guattari como exemplo. Em uma busca rápida, observamos a quantidade de trabalhos acadêmicos, vinculados aos mais diversos campos do conhecimento, que utilizam esse conceito. Então me pergunto: o quanto criamos através desse conceito? O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão13 . (...) amarrações
  • 19.     4   Ler e reler a obra de Deleuze e Guattari, de acordo com a metodologia dos próprios pensadores, é um ato de produzir novos sentidos. Os conceitos para serem conceitos devem nos arrastar rumo a regiões múltiplas, desarticuladas e imprevisíveis; planos que não são os dos autores, mas efetivamente os nossos. Não interessa se somos platônicos; cartesianos, kantianos ou deleuzianos, e sim como determinados conceitos podem ser reativados em nossos problemas e inspirar novos acontecimentos. É fato que a força dos conceitos criados por Deleuze e Guattari ao passar dos anos foi sendo vulgarizada e, muitas vezes, transformada em metáforas, analogias ou em uma espécie de sedução verbal, reduzindo-se o próprio conceito de conceito. Assim como afirma Zourabichvili: “Talvez a filosofia atual se veja frequentemente diante de uma falsa alternativa: expor ou utilizar”.3 Segundo Deleuze e Guattari4 , não há conceito simples de um só componente. Todo conceito é multiplicidade, tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes; é um todo, mas um todo fragmentário. O conceito tem uma história, mas esta se desdobra em zigue-zague. O conceito possui um devir. Deleuze é método; assim, utilizar o conceito de rizoma é criar ideações a partir dele. Ficamos, no entanto, na incoerência de utilizar esse conceito (ou outro) em uma estrutura de trabalho hierarquizada, moderna, na qual predomina a lógica binária e as relações biunívocas.   A própria palavra metodologia nos parece neste instante um pouco pesada, impregnada A criação de conceitos faz apelo por si mesma a uma forma futura, invoca uma nova terra e um povo que não existe ainda14 .
  • 20.     5   de PREconceitos ou PÓS-conceitos. Uma palavra que esconde, muitas vezes, modelos cartesianos de pensamento, regras sem variações, ordem sem desvio. Ainda somos cartesianos? O quê, afinal, é pensar na primeira década do século XXI? Que diferença faz se utilizamos conceitos que quebram os paradigmas modernos, se ainda reproduzimos a modernidade através do método? É provável que o papel fundamental de Deleuze tenha sido a construção de armas de guerra. Ele nos deixou munidos. No entanto, ele não podia garantir como as armas poderiam vir a ser utilizadas. Temos as armas e, assim, precisamos lutar. Não é sem razão que Deleuze ganhou grande destaque nas mãos de artistas. Talvez ele seja uns dos filósofos que mais tenha conseguido aproximar a filosofia da arte. Deleuze libera o tempo plural, paradoxal, vertiginoso, intempestivo 5 . Cito como exemplo a minha experiência ao ver o filme dirigido por Fernando Meirelles a partir do livro do escritor José Saramago Ensaio sobre a cegueira. Lembro que, quando o vi, ficava tentando me lembrar do final do livro que eu já havia lido há algum tempo (...) não conseguia me lembrar. Naquele momento a estrutura narrativa amarrada a um início, meio e fim se sobressaía; eu queria saber o final. Claro que não me lembraria do final, pois no processo de experimentação-leitura mergulhava no artifício de um vir a ser cegueira. Eu caía nas minhas próprias armadilhas metodológicas. Durante o livro não existia necessariamente uma causa e efeito, não existia um enigma O poder do texto faz descobrir a possibilidade de o desenvolver de outra maneira15 . (...) armadilhas
  • 21.     6   que ao fim seria descoberto. O problema não importava, mas o estado do problema, pois o problema não tem resposta. A obra pronta não é o conforto, mas o limiar do desconforto. A arte não tem finalidade! Não se procura aqui uma resposta, uma ideia de completude, e sim várias respostas e perguntas. Os pedaços não são um quebra-cabeça, pois os contornos irregulares não se correspondem. Um trabalho acabado é um trabalho inexistente. (...) devir tese, devir projeto Adianto que não temos a intenção de apresentar uma temática e depois desenvolvê-la. A intenção é que o tema se revele através da tese. Sugiro talvez abrir a tese em um ponto qualquer. Que o início ou o fim das páginas – literalmente – não signifique nada, talvez apenas uma escolha casual. As ideias repetem-se e fixam-se através da própria linguagem, se sobrepõem, no entanto, não se hierarquizam. Frisamos que na tese a teoria – e/ou fundamentação teórica – e a metodologia estão sempre correlacionadas. Não há diferença entre a maneira que a tese fala e a maneira que a tese é feita. Se a tese fala sobre o projeto e também é um projeto de tese, deve existir como devir. Nossa busca está na possibilidade de desvendar potenciais criadores. Vamos, assim, no decorrer do trabalho, pinçando espaços de criações, nuances de um pensar urbano. O problema da filosofia (meu problema) é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha16 . Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Devires são fenômenos de captura, conteúdo próprio do desejo, são a própria consistência do real17 .
  • 22.     7   A tese é nossa tentativa de tocar o que atravessa processos criativos. O que nos importa não é projeto como um caso exemplar ou como obra completa, e sim suas possibilidades de expansão. Não existe uma meta, mas um caminho. Projetar não é prever, projetar é agir sobre um tempo desconhecido. Como a tese pode vir a ser mais que uma teoria que tenta explicar a prática, como pode ser a experiência- teoria? Nessa perspectiva de tolerar ambiguidades em vez de tentar cristalizá-las, está meu maior conforto e desconforto. O projeto além do projeto... o objeto além do objeto... A tese é ensaística, não existe uma solução. O risco de tratar a linguagem como um fluxo, e não como um código, é nossa grande motivação, a démarche do desejo, errância de sentidos. Respiração! (...) pensamento em projeto Buscamos aqui recuperar a importância do pensamento em projeto. Onde guardamos a inteligência do processo projetual de arquitetura e urbanismo? Como utilizar este pensamento em um processo-tese? Questionamo-nos sobre o fato da arquitetura ter saído do campo da arte, ido para engenharia e hoje ser considerada, junto ao urbanismo, uma ciência social aplicada, algo que foi sendo construído pelo próprio campo e por uma visão compartimentada do (...) é na estrutura artificial que a realidade do tema será aprisionada, e a armadilha, ao fechar-se sobre o tema, deixará à mostra somente a realidade. 18
  • 23.     8   senso comum teórico. Destacamos na obra de Secchi6 que o urbanismo coincide com um saber mais do que com uma ciência. O urbanismo que não se ocupa apenas em responder ou caracterizar a cidade, mas também em imaginar um futuro. O urbanismo que penetra e acompanha diferentes formas de projetos da cidade, que descreve, ilustra, demonstra, argumenta, sugere e solicita imaginários coletivos e individuais. Como decisão projetual, decidimos trabalhar a tese em dois extratos: 1. Fichas: transbordamento de citações e textos escritos, às vezes explicativos, às vezes propositivos ou provocativos. As fichas são um corte no caos, dá algum tipo de direção e sentido. O texto que agora você está lendo é uma das fichas. 2. Diagrama sanfona: Possibilidades imaginais. Projeto sanfona: deslocamento das citações e referências. Reserva invisível, o caminho trilhado, o processo da tese. Escolhemos trabalhar com a dobragem em sanfona, pois assim a penúltima página pode ser vista junto com a décima segunda. Os desdobramentos são múltiplos. Os usuários determinam a ordem da sua leitura. As combinações formam variações infinitas. O ideal de um livro seria expor toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página (...)19 (...) imagem diagrama: corrente de ar
  • 24.     9   Os temas abordados nas fichas estão implícitos na forma sanfona e sobrevivem na tentativa de manifestar o conteúdo. Propomos trabalhar a tese como um grande diagrama em formato sanfona. Os textos são as fichas que sustentam o diagrama. Funcionam como apoio à experimentação tese-leitura. O diagrama sanfona é, portanto, a possibilidade do tema, não o tema em si mesmo. Sendo ele mesmo uma catástrofe, não deve produzir catástrofe; sendo uma zona de borragem, não deve borrar a obra. Na sanfona tentamos deslocar as imagens de suas referências, como possibilidade de ativar um processo de criação. As imagens são pinceladas, a partir das quais se criam idealizações. A ideia é introduzir a possibilidade da tese em um conjunto de manchas asignificantes e não representativas, cuja função seria sugerir, ativar, movimentar. O diagrama, assim como suscita Deleuze7 , não tem nada a ver com abstração, que reduz ao mínimo o abismo ou o caos e nos propõe um ascetismo, uma salvação espiritual; em outras palavras, um estado inerte. O diagrama é um caos, uma catástrofe, mas também um germe de ordem ou de ritmo, abre domínios sensíveis. O diagrama é método! O diagrama talvez ocupe todo o espaço, mas devemos impedir que o diagrama prolifere e se transforme em pura abstração. Nem todos os dados devem desaparecer. O diagrama pretende evitar a organização óptica, dando ao olhar outra potência, afirma A tela já está de tal maneira cheia que o pintor deve entrar nela. Ele entra assim no clichê, na probabilidade. E entra porque sabe o que quer fazer. Mas o que salva é que ele não sabe como conseguir, não sabe como fazer o que quer. Isso ele só conseguirá saindo da tela20 . Que a catástrofe não inunde tudo! A tese existe!
  • 25.     10   Deleuze8 . Ao contrário do que acontece com um texto, que, por mais que possamos evitar a hierarquização das palavras, elas, por si só, já se apresentam de uma forma hierarquizada, uma após a outra. No diagrama, as marcas e os traços não se bastam, pois traçam possibilidades e ainda não constituem o fato. O diagrama coloca elementos heterogêneos em conexão imediata propriamente ilimitada, em um campo de presença ou sobre um plano finito em que todos os momentos são atuais e sensíveis. É o diagrama da figura, força do movimento que faz nascer a sensação de tempo, o acontecimento9 . A ideia é que o leitor experimente a obra, sua experimentação faz parte da obra – o leitor deve ir além da obra – devir-tese – devir-leitura – devir-experimentação. O devir como potência. O devir como vontade de potência. Experimentar no sentido de “mostração”, não de demonstração. Presentation: dando presença. Assim, o diagrama sanfona não é a tese, é processo tese, é possibilidade metodológica que permite o acontecimento tese... corrente de ar. A tese poderia gerar uma expectativa de se fazer um projeto a partir de um terreno existente; no entanto, a intenção não é propositiva, e sim de alimentar potenciais criativos. Não estamos em busca de objetivos únicos, e, então, se eu pudesse falar em algum tipo (...) Tem-se de começar de um ponto, e se começa a partir do tema que gradualmente, se o trabalho estive andando bem, irá evaporar-se e deixar aquele resíduo que chamamos de realidade, e que talvez vagamente tenha a ver com a coisa que nos serviu de ponto de partida, mas na maioria das vezes tem muito pouco a ver.21 Tudo ou talvez nada se relacione!
  • 26.     11   de objetivo quanto a este projeto-tese seria tratá-lo como um processo IMAginal, ou seja, como possibilidade de dar visibilidade à imaginação. (...) Ficção científica também no sentido em que os pontos fracos se revelam. Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira que, infelizmente, sentimos não ser científica10 . Eu não quero que isto seja tão fácil de se compreender. Eu quero que isto seja usado como um espelho de suas perguntas22 . A obra será sempre insuficiente.
  • 27.     12                                                                                                                                                                                                                                                                                   1 MORIN, 2005, p. 10. 2 Essas noções passaram a fazer parte de um senso comum teórico a partir da segunda metade do século XX, diante da crítica ao movimento moderno. 3 ZOURABICHVILI, 2004, p. 3. Na obra O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari mostram-se bastante atentos a esses equívocos, que acabam vinculando a filosofia à formação de opiniões e deslocando o campo disciplinar para uma disciplina reflexiva. O grande intento da obra é mostrar que a filosofia é, antes de tudo, criação de conceitos. 4 DELEUZE e GUATTARI, 2004. 5 PELBART, 2004. 6 SECCHI, 2006. 7 DELEUZE, 2007. 8 DELEUZE, ibid.. 9 Essa síntese sobre o que entendemos por diagrama faz parte dos escritos de Deleuze sobre a obra de Bacon, sobre uma metodologia de criação. DELEUZE, 2007. 10 DELEUZE, 2000, p. 10. 11 Tradução livre da autora. Original: “C’est dans les bords d’une brèche de l’écoute qu’un autre probable se découvre”. DUSAPIN, 2009, p. 10. 12 Tradução livre da autora. Original: “Je ne cherche jamais à architecturer mon discours sur une idée centrale, mais au contraire à créer des embranchements par ramifications successives (...)”. DUSAPIN, ibid., p. 22. 13 DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 262. 14 DELEUZE e GUATTARI, ibid., p. 140. 15 Tradução livre da autora. Original: “Le pouvoir du texte lui fait découvrir la possibilité de développer autrement”. Pierre Boulez, citado por DUSAPIN, 2009, p. 16. 16 DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 59. 17 Recortes da autora de trechos de O vocabulário de Deleuze, ZOURABICHVILI, 2004. 18 Entrevista com Bacon. SYLVESTER, 2007, p. 180 e 181.                                                                                                                                                                                                                                                                                 19 DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 18. 20 DELEUZE, 2004, p. 68. 21 Ibidem. 22 Tradução livre da autora. Original: “I don´t want it to be so easy to understand. I want it to be used as a mirror of their questions”. Entrevista com Tschumi, WALKER, 2003, p. 51.
  • 28.     13                                                                                                                                                                                                                                                                                   Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles. Cinema 1. L’image-mouvement. Collection Critique. Paris: Les éditions de minuit, 2006. ______. Cinema 1. L’image-temps. Collection Critique. Paris: Les éditions de minuit, 2006. ______. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D'Água, 2000. ______. Logique du sens. Collection Critique. Paris: Les Éditions de Minuit, 2006. ______. Francis Bacon. Lógica da sensação. Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs. Devir-Intenso, Devir- Animal, Devir-Imperceptível. Vol. IV. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. ______. Mil platôs. Introdução: rizoma. Vol. São Paulo: Ed. 34, 1995. ______. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. DELEUZE, Gilles et PARNET, Claire. Dialogues. Champs essais, 1996. DOMINO, Christophe. Bacon: monstre de peinture. Paris : Gallimard, 2008. DUSAPIN, Pascal. Une musique en train de se faire. Paris: Seuil, 2009. ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1971. ______. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2005. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Artenova, 1973. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2004.                                                                                                                                                                                                                                                                                 SECCHI, Bernardo. Première leçon d’urbanisme. Marseille: Parenthèses, 2006. SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 2007. WALKER, Enrique. Tschumi on architecture: conversations with Enrique Walker. New York: The Monacelli Press, 2003. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: IFCH, 2004 (versão eletrônica).
  • 29.     1   : : Experimentação-múltipla e intensidade-acontecimento A palavra pescando o que não é palavra. O projeto pescando o que não é projeto. Na tentativa de pescar a não palavra, o não projeto – entre instantes – pescamos o acontecimento, o entretempo que é devir. Tocamos o conceito de acontecimento criado por Deleuze e Guattari1 . Conceito como multiplicidade que remete a problemas que ainda estão em processo de compreensão. O conceito como um ato de pensamento que opera em velocidade infinita2 . O acontecimento sustenta o projeto na dinâmica do tempo porque libera o projeto à experimentação. Ele está a todo tempo em trânsito, construindo novas relações e novas forças. Suscitamos que no instante-acontecimento podemos reencontrar a arte no senso do ato de projetar. A arte que se confronta com o caos para vir a ser um instante- sensação. O conceito de acontecimento como eixo que perpassa a imagem-tese; uma brisa que atravessa o tocar-ver no intervalo, o desvendar experimental, o presente limite de quase tocar. Vamos ao acontecimento. O acontecimento se atualiza no estado de coisas, mas tem uma parte sombria que não Não mais é o tempo que está entre dois instantes, é o acontecimento que é um entretempo: o entretempo não é o eterno, mas também não é tempo, é devir20 . O paradoxo deste puro devir, com sua capacidade de furtar-se ao presente, é a identidade infinita: indentidade dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito21 .
  • 30.     2   para de se atualizar. Não começa nem acaba, mas ganha (ou guarda) o movimento infinito que lhe dá consistência. Sobrevoa os universos possíveis (possível como característica estética). É imaterial, incorporal, invisível: pura reserva3 .   O acontecimento independente de um estado visível em que ele se manifesta, desdobra-se em um estranho local de um “ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por-vir-e-já- presente”4 . O projetar para permitir acontecimento, uma experiência que atua sem aviso. Rossi5 fala em arquiteturas que preparam o acontecimento, que permitem o imprevisível, permanentes movimentos detalhes. O autor afirma: “A arquitetura, como sempre, permanece em poucos detalhes, esperando o pontapé da ‘gaivota’, a luz da escada, o barco que atravessa o lago como em uma cúpula de cristal”6 . O acontecimento não se confunde com o estado das coisas no qual se encarna, não é a essência ou a coisa. E se não há maneira de pensar que não seja igualmente maneira de realizar uma experiência, não existe dado senão em devir.7 O acontecimento é o risco do movimento, da possibilidade de se colocar em movimento. O acontecimento é ruptura com a causalidade, é bifurcação e desvio, é um estado de instabilidade e intensidade que abre campos de possibilidades projetuais. (…) não há outro presente além daquele do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado-futuro22 . Então não se perguntará qual o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido. O acontecimento pertence essencialmente à linguagem, mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas23 .
  • 31.     3   Faíscas ativantes A partir do conceito de acontecimento buscamos faíscas ativantes – simulações imaginais – que decupem o conceito. Recortamos duas lapidações imaginais (imagens conceituais)8 : o instante-já, na obra de Clarice Lispector (1973), e a Fênix, de Bachelard (1990)9 . O acontecimento como possibilidade de potencializar o instante-experimentação, como exaltação do presente, do devir-imperceptível, da sensação: o instante-já10 . A imaginação que tem palavra, a palavra portadora de imagem, a palavra como texto imaginado, falar por imagens, potencializar o conceito através da imaginação. O conceito como feixe de possibilidades que abandona suas referências, para reter conexões e conjunções que constituem a sua consistência11 . O instante-já como potencialidade do instante e a Fênix como potencialidade do movimento são imagens que atravessam a tese e nos permitem viver a expansão do instante, engendrando imaginações que potencializam o conceito de acontecimento. Presente limite de quase tocar: devir cidade e devir projeto Podemos, assim, dizer que o projeto é feito de vários acontecimentos que se atualizam nos entre-instantes-experimentação. O que faz o projeto no espaço urbano se localizar Se pudermos revelar que na imagem poética arde um excesso de vida, um excesso de palavras, teremos, detalhe por detalhe, provado que há sentido em falar de uma linguagem quente, grande lareira de palavras indisciplinadas onde se consome o ser numa ambição quase louca de promover um mais-ser, uma mais que ser24 .
  • 32.     4   em um entre-ser cidade, projeto e homem. A abertura do projeto à experimentação possibilita o surgimento de acontecimentos, lembrando que a concepção projetual e a experimentação do projeto não apresentam uma relação dicotômica de causa e efeito. Assim, nos questionamos sobre a possibilidade de projetar condições em vez de condicionar o projeto12 ; em outras palavras: como projetar para revelar acontecimentos? Nos entre-instantes podemos reencontrar o sentido da arte no sentido do ato de projetar. A arte que luta com o caos para fazer erigir nela um instante, uma sensação – um acontecimento. A arte que não é caos, mas composição do caos, não previsível ou preconcebida que desafia qualquer opinião. O artista cria puras sensações de conceitos, cria o finito que restitui o infinito, afirmam Deleuze e Guattari13 . Podemos dizer que o que se conserva do projeto é a sensação, o acontecimento. Consideramos que é no instante-acontecimento que encontramos a perenidade do projeto no urbano. O durável como o que é sempre em estado de ser transformável. A durabilidade que é feita de instantes sem duração, podemos dizer de acontecimentos. Deleuze e Guattari14 , exemplificam dizendo que admiramos os desenhos das crianças, mas é raro que fiquem de pé se olhamos por muito tempo. Arte só é arte se guarda vazios suficientes para permitir saltos. Nesse sentido, aproximamos mais uma vez as palavras arte, cidade, projeto e devir. O brilho, o esplendor do acontecimento é o sentido. O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera25 . O durável é feito de instantes sem duração26 . (…) Tudo que é simples, tudo que é forte em nós, tudo o que é mesmo durável, é o dom de um instante (…)27
  • 33.     5   Potencialidade do instante no Projeto: virtuais expressivos Virtus – força + actualis – o que a torna efetiva: dynamis-energia Explosão da ideia Virtuais expressivos que eles criam em nós e entre nós15 . A potencialidade do projeto está no lugar de ação do sujeito, uma extensão imaginativa, espaço inventado. O possível depende do núcleo de realidade presente e da extensão interpretativa, sendo essas fronteiras móveis. O possível que emerge é condicionado pelo usuário/intérprete (sua cultura, seu interesse, seus limites de percepção), mas também pelos dispositivos de procura inclusos nele. O acontecimento se atualiza no instante. O instante é solidão16 . É a consciência da solidão. O instante-experimental é solitário. Isolamento, solidão homem-cidade: devir homem e devir cidade. A novidade do instante revela a descontinuidade do tempo. Deleuze17 suscita que: Insistimos no que é dado, no atual, inclusive sob a forma de possível, alternativa como lei de divisão do real que atribui de imediato minha experiência a um certo campo de possíveis. Que haja virtual significa que nem tudo é dado, nem passível de ser dado. Significa, em seguida, que tudo o que acontece só pode provir do mundo em suas potencialidades criadoras ou na criação de possíveis. O tempo tem somente uma realidade, aquela do instante28 .
  • 34.     6   Não existe real – isto é, encontro e não apenas objeto previamente reconhecido como possível – senão em vias de atualização. Os acontecimentos pluralizam o campo dos possíveis em processos de atualização e de cristalização constante, o que acarreta a afirmação de uma temporalidade múltipla, de um tempo multidimensional18 . Na sucessão de potenciais tempo – instante-já – existe um lugar de continuidades que permite a redefinição do projeto junto à atualização de vetores. Como guardar o movimento junto às suas cristalizações dando consistência ao virtual? Não seria essa a missão do projeto? Instante, devir, acontecimento, projeto e cidade são palavras que remetem ao mesmo sentido. O projeto que é devir, o devir projeto que é cidade, o projeto que é um acontecimento, a cidade que é construída de vários instantes-acontecimentos, o instante que é devir (...). O projeto é um instante sem permanência. Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna29 .
  • 35.     7   (...) Escrever como modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa palavra morde a isca alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler "distraidamente"19 . ... podia-se com alívio jogar o projeto fora.
  • 36.     8                                                                                                                                                                                                                                                                                   1 DELEUZE e GUATTARI, 2004. 2 DELEUZE e GUATTARI, ibid. 3 DELEUZE e GUATTARI, ibid. 4 DELEUZE e GUATTARI, ibid. 5 ROSSI,1984, p. 14. 6 Tradução livre da autora. Original: “La arquitectura, como siempre, permanece en pocos detalles, esperando el pistoletazo de la ‘gaviota’, la luz de la escalera, el bote que atraviesa el lago como en una cúpula de cristal”, ROSSI, Ibid., p. 46. 7 Os três últimos parágrafos referem-se à obra: DELEUZE e GUATTARI, 2004. 8 O sentido que utilizamos a palavra imagem remete à imaginação. 9 Ver sanfona. Fênix: ideações poéticas minhas das repercussões poéticas de Bachelard, que atravessam o sujeito-tese. Obra de referência: Fragmentos de uma poética do fogo, 1990. Mais especificamente, capítulo I: “A Fênix, fenômeno de linguagem”. Instante-já: ideações poéticas minhas das repercussões poéticas de Lispector que atravessam o sujeito-tese. Obra de referência: Água viva, 1973. 10 LISPECTOR, 1973. 11 DELEUZE e GUATTARI, 2004. 12 A dimensão real do espaço e a experiência são definidas por Tschumi (1996) pela categoria de “Labirinto”, definindo-a como “espaço sensório”. 13 DELEUZE e GUATTARI, 2004. 14 Ibidem. 15 RAJCHMAN, John. “Existe uma inteligência do virtual?” In: ALLIEZ, 2000. 16 M.Roupnel, apud BACHELARD, 1992, p. 13. 17 Reflexões de Deleuze na obra: ZOURABICHVILI, 2004. 18 PELBART, 2004. 19 LISPECTOR, 1999, p. 31. 20 DELEUZE e GUATTARI, 2004 , p. 204.                                                                                                                                                                                                                                                                                 21 Tradução livre da autora. Original: “Le paradoxe de ce pour devenir, avec sa capacité d’esquiver le présent, c’est l’identité infinie: identité infinie des deux sens à la fois, du futur et du passé, de la veille et du lendemain, du plus et du moins, du trop et du pas-assez, de l’actif et du passif, de la cause et de l’effet”. DELEUZE, 2005, p. 10. 22 Tradução livre da autora. Original: “(…) n’a pas d’autre présent que celui de l’instant mobile qui le représente, toujours dédoublé en passé-futur”. DELEUZE e GUATTARI, 2005, p. 177. 23 DELEUZE, 2002, p. 34. 24 BACHELARD, 1990, s/p. 25 Tradução livre da autora. Original: “L’éclat, la splendeur de l’événement, c’est le sens. L’événement n’est pas ce qui arrive (accident), il est dans ce qui arrive le pur exprimé qui nous fait signe et nous attend”. DELEUZE, 2006, p. 175. 26 Tradução livre da autora. Original: “La durée est faite d’instants sans durée”. BACHELARD, 1992, p. 20. 27 Tradução livre da autora. Original: “(...) Tout ce qui est simple, tout ce qui est fort en nous, tout ce qui est durable même, est le don d’un instant (...)”. BACHELARD, ibid., p. 20. 28 M. Roupnel, apud BACHELARD, 1992, p. 13. 29 Tradução livre da autora. Original: “(…) Dans tout l’événement, il y a bien le moment présent de l’effectuation, celui où l’événement s’incarne dans un état des choses, un individu, une personne, celui qu’on désigne en disant: voilà, le moment est venu; et le futur et le passé de l’événement ne se jugent qu’en fonction de ce présent définitif, du point de vue de celui qui l’incarne”. DELEUZE, 2005, p. 177.
  • 37.     9                                                                                                                                                                                                                                                                                   Referências Bibliográficas ALLIEZ, Éric. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed.34., 2000. BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990. ______. La poétique de l’espace. Paris: Quadrige, 2008. ______. L’Intuition de l’instant. Paris: Livre de Poche, 1992. DELEUZE, Gilles. Cinema 1. L’image-mouvement. Collection Critique. Paris: Les éditions de minuit, 2006. ______. Cinema 1. L’image-temps. Collection Critique. Paris: Les éditions de minuit, 2006. ______. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D'Água, 2000. ______. Logique du sens. Collection Critique. Paris: Les éditions de minuit, 2006. ______. Francis Bacon. Lógica da sensação. Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs. Devir-intenso, devir- animal, devir-imperceptível. Vol. IV. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. ______. Mil platôs. Introdução: rizoma. Vol. I. São Paulo: Ed. 34, 1995. ______. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Dialogues. Champs essais, 1996. DUSAPIN, Pascal. Une musique en train de se faire. Paris: Seuil, 2009. LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Artenova, 1973. PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2004. TSCHUMI, Bernard. Architecture and disjunction. Cambridge: MIT Press, 1996.                                                                                                                                                                                                                                                                                 ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: IFCH, 2004 (versão eletrônica).
  • 38.     1   : : Entre o conceitual e experimental, previsível e imprevisível Defendemos aqui a ideia de que a arquitetura e o projeto no espaço urbano estão entre o conceitual e o experimental. Entre o previsível e o imprevisível.1 Argan2 nos suscita dizendo que: “nunca se projeta para, mas contra alguém ou alguma coisa (...) contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à desordem, aos golpes cegos dos acontecimentos, ao destino”, na tentativa de se fixar um presente no qual se quer agir e que continuamente nos escapa3 . O projeto está contaminado pela condição da imprevisibilidade, mas também pelo desejo do autor de certeza (segurança). Certeza como mecanismo de dispersão do invisível e do imprevisível. O projeto lida com problema e possibilidade, intenção e transformação, faz parte daquilo que ainda não é, mas poderá ser ou já é. A natureza do projeto é incerta, na medida em que não existe um objetivo puro, “(...) quando não muda o objeto mudam os métodos para interpretá-lo”4 . Ao mesmo tempo, o mundo em que se projeta é instantâneo e imprevisível. As razões de incerteza que residem sobre as coisas – o momento de mutação, o período de perda de simultaneidade dos tempos – vem penetrando e suscitando nossas indagações. Dinâmicas que não têm a mesma duração, nem os mesmos ritmos, situam- Quando chegamos a um horizonte já existe outro19 . (…) porque geralmente as pessoas querem que a arquitetura seja a representação da certeza, elas querem que a arquitetura seja uma marca de identidade. E elas não gostam quando dizemos a elas “sim”, isto vai funcionar por um tempo, mas não acredite que para sempre!20
  • 39.     2   se em regimes diversos5 . Qual é a visão de tempo que temos? Assim como a matriz moderna, o futuro está mais próximo, ou o futuro já é presente e um ainda-aqui e já-passado? Ressaltamos a noção de projeto como desígnio, um lançar-se à frente – hipótese presente, devir. Devir como vontade de potência. Projeto, sugere Murad6 , como: “(...) um pretexto de Imaginação que teima em originar objetos no Mundo” e que, ao mesmo tempo, é pura imprevisibilidade. O projeto que (...) não se desenvolve em uma horizontalidade, não segue uma continuidade linear, sucessiva, crescente e, portanto, previsível. Ele (o projeto) é primordialmente uma dinâmica de rupturas, de descontinuidades, de oscilações entre ascensão e aprofundamento. Projeto como interferência: bloco de sensações O projeto urbano, como resposta ao urbanismo racionalista, muitas vezes busca contextualizar o projeto por meio de uma resposta à expectativa local. Consideramos que, nesse processo de mimetismo da realidade percebida, a dimensão criativa do projeto se perde, o projeto se transforma em uma reprodução, representação ou algum tipo de adaptação à realidade visível. O projeto no espaço urbano não se reduz ao que poderíamos denominar de adaptação Como preservar a verdade se contra ela conspira a “força do tempo”, no sentido que torna compossíveis presentes incompossíveis, faz coexistirem passados não necessariamente verdadeiros, e toda uma potência do falso se afirma como criadora?21
  • 40.     3   à realidade, ou seja, ao que nos é percebido, ou àquilo que Rosalind Krauss7 denomina Percepção de Similitude – estratégia para reduzir tudo que nos é estranho, tanto no tempo como no espaço, àquilo que já conhecemos e somos –, e sim à possibilidade de interferência, de experimentação. A tese compreende o projeto no espaço urbano8 não como ruptura – modernos – ou como algum tipo de continuidade, e sim como possibilidade de transbordamento que envolve o espaço “entre” a ruptura e a continuidade que é o acontecimento. Estamos falando de realidades outras em que tudo pode ser um suporte do urbanismo. Riscos na paisagem O projeto como transbordamento é a possibilidade de potencializar forças da paisagem. Paisagem que excita e estimula desejos junto a novas possibilidades expansivas. A paisagem não vista, mas que doa a visão9 . No processo de experimentação, o projeto deixa de ser projeto, passa a fazer parte de um grande tecido que denominamos realidade. Nesse processo o projeto já é paisagem10 , jamais permanece no seu estado doado, mas que ao ser tocado já é transformado, envolve-se em um movimento do que nos é dado, assumindo novos sentidos. A cada vez que pensamos ingenuamente constatamos a presença da paisagem, e é aí Se o meu próprio edifício tem um papel irritante em relação ao contexto em que está localizado, isto pode ser benéfico, e permitir ativar um pouco o que está acontecendo ao redor. O arquiteto pode, de tempos em tempos, trabalhar com o irritante, o provocador22 . Como se a forma procurasse seu ponto de esquecimento23 .
  • 41.     4   posta a questão de uma mudança possível dos nossos dispositivos perceptivos. Vasto tecido de referências implícitas, produção de imagens, atividade intensa de ficção que nos habita e que nós não sabemos entender a sua importância, nem a sua magia11 . Mas por que será que a paisagem nos livra do sentimento de perfeição das coisas e pessoas, mais frequentemente, daquele sentimento associado à obra de arte ou ao projeto? Como que a paisagem provoca um entusiasmo de outro gênero, além da simples satisfação? O prazer da paisagem, suscita Cauquelin12 , não está no sentimento de satisfação quanto a um objeto que funciona bem; não está implícito o sentimento de uma legitimidade possível que se confronta com o prazer dado pelas coisas. A paisagem tem necessidade nula de se legitimar. Assim, não possui categorias de julgamento habituais que dão valor ao objeto e classificam-no como obra de arte ou projeto, ou seja, categorias de julgamento estético. A paisagem nos relega um sentimento fundador, forças elementares, é o começo e o fim do mundo. A paisagem nos liga àquilo que nos é mais profundo, por isso vinculá-la com o que existe antes da nossa existência, ligação da paisagem ao natural, à origem. Sentimento da perfeição imediata, no instante, intuição instantânea13 . A paisagem traduz para nós uma relação íntima com o mundo. Intermédio de uma conversação infinita, vínculo de emoções cotidianas. Experimentamos instantes de Paisagem não é meramente o mundo que vemos, é a construção, a composição do mundo. Paisagem é uma maneira de ver o mundo24 .
  • 42.     5   enquadramento e a paisagem continua. A paisagem nos revela lacunas no campo do urbanismo, suscita novos olhares que reconheçam o movimento e a participação ativa do sujeito na sua construção. Falamos em contemporaneidade (ou pós-modernidade como alguns preferem), mas ainda reproduzimos a matriz moderna por meio do método de relações binárias: casa/rua; público/privado; formal/informal; periférico/central; natural/urbano; paisagem urbana/paisagem natural. A paisagem pode revelar o intermezzo14 , devir captura, conteúdo próprio do desejo, consistência fugaz do real. Na paisagem encontramos as forças do projeto, pois a paisagem aproxima o projeto das suas dimensões mais naturais; aproxima o homem da sua natureza sensível. Depararmo-nos com a paisagem no sentir ver de cada instante, como possibilidade de expansão e criação, como o que fica do projeto, mas também o que vai. É perene e instantânea, guarda o instante e o movimento infinito. Gavetas, cofres e armários Frisamos que a importância do projeto no urbano é deixar o espaço aberto ao imprevisível, lacunas suficientes que permitam o acontecimento. É no desejo de tudo expor e de tudo revelar que pouco se revela. Na tentativa de esgotar o mundo ele perde seu encanto. Teríamos como desafio a tarefa de projetar algo que quando vire projeto já Aqui não é a inteligência que é um móvel com gavetas. É o móvel com gavetas que é uma inteligência25 . Mas o verdadeiro armário não é um móvel quotidiano. Ele não se abre todos os dias. Assim, como uma alma que não se confia, a chave não está sobre a porta26 .
  • 43.     6   não é mais projeto, é devir paisagem, devir cidade. De acordo com Tschumi15 , a arquitetura, em vez de ser socialmente ou contextualmente inclusiva, deveria se manifestar em oposição, suscitar conflito e tensão, não inclusão direta. Ao mesmo tempo, projetos vitrines surgem com força. Edifícios que se autoafirmam como objeto, se disputam, são modelos deslumbrantes, vestem a mais nova coleção, são sustentáveis, vestem as novidades de ponta. O paradoxo que justifica a arquitetura atualmente é justamente a aparência e a pretensão. A arquitetura se revela, mas é de uma só vez. Está ali tão exposta que não se tem o que experimentar. Como se a arquitetura já tivesse sido experimentada. Inibe a curiosidade de descobrir o mundo. Tudo já está ali! O projeto necessita de segredos, partes a serem reveladas. A força do projeto está em revelar o que está escondido. Devir-revelação, devir-sensação. Tschumi suscita que o arquiteto e o usuário são formadores da arquitetura: o primeiro, pela concepção do projeto – concebendo a arquitetura (espaço urbano) de forma a possibilitar a experiência estética –; e o segundo, por meio de sua experiência – tendo consciência do ato de experimentação. De acordo com ele, a dimensão real do espaço – a materialidade do espaço – solicita a experiência. Assim, podemos dizer que o projeto do espaço urbano depende da interação do (...) é a dificuldade de “descobrir” a arquitetura que a torna intensamente desejável. Esse desvelamento é parte do prazer da arquitetura27 . (…) uma intuição não se prova, ela se experimenta. E ela é experimentada multiplicando, ou mesmo modificando, as condições de seu uso28 .
  • 44.     7   usuário/intérprete com o projeto, que é a experiência16 ; poderíamos dizer: o movimento- experimentação, o que denominamos acontecimento. A experiência permite tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo e que nos afetam, nos fazem devir. Com o passar do tempo, o que se conserva no projeto, independentemente do criador, é um bloco de sensações composto por afectos e perceptos. De acordo com Deleuze17 , só se atinge o percepto ou o afecto como seres autônomos e suficientes, independentemente do criador. Consideramos que o grande desafio que temos como arquitetos-urbanistas é a capacidade de deixar o projeto aberto à experimentação, permitir o acontecimento. Em outras palavras, reconhecer a realidade como devir: combinar e permutar para manifestar os segredos do mundo e liberar as intensidades criativas. Permitir que o projeto se revele como acontecimento. A arquitetura é um fato de arte, um fenômeno de emoção, fora das questões de construção, além delas. A construção É PARA SUSTENTAR; a arquitetura É PARA EMOCIONAR. A emoção arquitetural existe quando a obra soa em você ao diapasão de um universo cujas leis sofremos, reconhecemos e admiramos. Quando são atingidas certas relações, somos apreendidos pela obra. Arquitetura consiste em “relações”, é “pura criação do espírito”18 . O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações29 .
  • 45.     8                                                                                                                                                                                                                                                                                   1 Recuperamos aqui uma das nossas grandes questões trabalhada na dissertação de mestrado: Previsibilidade e imprevisibilidade: fronteiras móveis do Projeto-Urbano (LOURES, 2006). 2 ARGAN, 2000. 3 BAUMAN, 1999. 4 ECO, 2005. 5 LEPETIT e PUMAIN, 1993. 6 MURAD, 1999, p. 22-17. 7 KRAUSS, 1984. 8 Neste trabalho evitaremos a utilização da expressão projeto urbano, pois acreditamos que nela está impregnada uma forte carga de sentidos. Assim preferimos falar do projeto no urbano ou projeto no espaço urbano. 9 CAUQUELIN, 2002, p.27. 10 Entendemos a paisagem como movimento e ação – “an idea formation (...) on going movement” (CORNER, 1999) – opondo-se à noção tradicional que compreende a paisagem como algo estático e contemplativo. Paisagem como verbo (atuante), temporalidades, corpo de memórias, caminho de uma alternativa, lugar de ação, espaço inventado. 11 CAUQUELIN, 2000, p. 23. 12 CAUQUELIN, ibid. p. 108. 13 CAUQUELIN, ibid. p. 112. 14 DELEUZE e GUATTARI, 2004. 15 Nesta passagem utilizamos trechos da entrevista de Bernard Tschumi a Liliana Gómez. Junho de 2005 em Nova York. Acesso em janeiro de 2009. http://www.puntocero.de/content/tschumi.html. 16 TSCHUMI, ibid.. 17 DELEUZE, 2004, p. 218. 18 LE CORBUSIER, 2000a, p. 10.                                                                                                                                                                                                                                                                                 19 Tradução livre da autora. Original: “Quand on arrive à un horizon il y a autre”. Palestra 1 o dez 2008 – Au Détour du Monde – Raymond Depardon et Paul Virilio – Fondation Cartier, Paris, França. 20 Tradução livre da autora. Original: “(…) because generally people want architecture to be the representation of certainty, they want architecture to be identity branding. And they do not like when you tell them ‘yes’, it is going to work for a while, but do not believe in it forever!”. Entrevista com TSCHUMI, Bernard Tshumni por Liliana Gómez. 1º de junho, 2005, Nova York. http://www.puntocero.de/content/tschumi.html. Acesso: janeiro de 2009. 21 PELBART, 2004, p. 20. 22 Tradução livre da autora. Original: “Si mon bâtiment lui-même joue un rôle d'irritant a rapport au contexte dans lequel il se trouve, cela peut être bénéfique, et permettre d'activer un peu ce qui se passe autour. L'architecte peut, de temps en temps, faire œuvre d'irritant, de provocateur”. Entrevista com TSCHUMI, E2- CONTEST, 2002, p. 107. 23 Tradução livre da autora: Original: “(...) comme si la forme cherchait son point d’oubli”. DUSAPIN, 2009, p. 53. 24  Tradução livre da autora. Original: “Landscape is not merely the world we see, it is a construction, a composition of that world. Landscape is a way of seeing the world”. COSGROVE, 1998.   25 Tradução livre da autora. Original: “C’est pas ici l’intelligence qui est un meuble à tiroir. C’est le meuble à tiroir qui est une intelligence”. BACHELARD, 2008, p. 81 e 82. 26 Tradução livre da autora. Original: “Mais la véritable armoire n’est pas un meuble quotidien. Elle ne s’ouvre pas tous les jours. Ainsi d’une âme qui ne se confie pas, la clef n’est pas sur la porte”. BACHELARD, 2008, p. 84. 27 TSCHUMI, 1996, p. 94. 28 Tradução livre da autora. Original: “(…) une intuition ne se prouve pas, elle s’expérimente. Et elle s’expérimente en multipliant ou même en modifiant les conditions de son usage”. BACHELARD, 1992, p. 8. 29 DELEUZE, 2004, p. 217.
  • 46.     9                                                                                                                                                                                                                                                                                   Referências bibliográficas ARGAN, Giulio Carlos. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ______. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000. BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990. ______. La poétique de l’espace. Paris: Quadrige, 2008. ______. L’Intuition de l’instant. Livre de Poche, 1992. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. ______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. ______. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1971. ______. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2005. CAUQUELIN, Anne. L’invention du paysage. Paris: Quadrige/PUF, 2000. ______. Le site et le paysage. Paris: Quadrige/PUF, 2002. CORNER, James (editor). Recovering Landscape. Essays in Contemporary Landscape Architecture. New York: Princeton Architectural Press, 1999. COSGROVE, Denis E. Social formation and symbolic landscape. Wisconsin: Wisconsin Press, 1998. DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Collection Critique. Paris: Les Éditions de Minuit, 2006. ______. Francis Bacon. Lógica da sensação. Jorge Zahar, 2007.                                                                                                                                                                                                                                                                                 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs. Devir-intenso, devir- animal, devir-imperceptível. Vol. IV. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995. ______. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. DUSAPIN, Pascal. Une musique en train de se faire. Paris: Seuil, 2009. LOURES, Moema Falci. Previsibilidade e imprevisibilidade: fronteiras móveis do Projeto-Urbano. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado (UFRJ/ Prourb), 2006. MURAD, Carlos A. “A criação no pensamento das imagens”. In: PINHEIRO MACHADO, Denise B. (org.). Sobre Urbanismo. Coleção Arquitetura e Cidade. Rio de Janeiro. Viana & Mosley/Editora Prourb, 2006, p. 223-239. ______. “A imaginação criadora e o gesto projetual”. In: Estudos em Design. Rio de Janeiro: [s.n.], n°3, vol. 7, dez. 1999, p. 11-23. PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2004. KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Tradução Elizabeth Carbone Baez. Rio de Janeiro: Revista Gávea, nº 1, 1984. TSCHUMI, Bernard. Architecture and disjunction. Cambridge: MIT Press, 1996. VIRILIO, Paul. Un paysage d’événements. Paris: Editions Galilée, 1996.
  • 47.     1   : : Teorias modernas Vivemos em um período de instituição da dúvida1 . As incertezas foram aceitas! A situação ambivalente está mais visível. Mas será que deixamos de ser modernos? Liquidez é a palavra de ordem: cidade líquida, modernidade líquida. Virou moda, capa de revista, título de trabalhos acadêmicos, notícia de jornal. Compartilhamos com alguns autores que vivemos em um período de radicalização da modernidade, argumenta Giddens2 . Ou como prefere Bauman, Modernidade líquida3 ou Terceira modernidade, afirma Ascher4 , ambas modernidades. Não existem acordos sobre as datas nem consenso sobre o que deve ser datado quando nos referimos ao verbete modernidade, “(...) e uma vez que se inicie a sério o esforço de datação, o próprio objeto começa a desaparecer” suscita Bauman5 . Utilizaremos a noção que define a modernidade como um projeto que ganha força a partir do Renascimento6 e atinge sua maturidade com o desenvolvimento da sociedade industrial e, que nos dias de hoje, apresenta-se como um projeto inacabado. Ressaltamos que definir a modernidade como um estilo, costume de vida ou organização social acaba por associá-la a um período de tempo e uma localização geográfica inicial, sendo que suas “(...) características principais ficam guardadas em As teorias modernas rendem- se às críticas, mas não há suicídio.
  • 48.     2   segurança numa caixa preta”7 . Não seria esse o nosso intuito. A modernidade é marcada inicialmente pela exacerbação dos princípios de ordem, unidade e simplicidade que vão ao longo dos anos delimitando a realidade escondida atrás das aparências de confusão, pluralidades e complexidades. Le Corbusier8 afirma que a grande cidade é fenômeno de força em movimento, fala das cidades em desespero, no desespero das cidades; reconhece a imprevisibilidade, enquanto acredita que a ação do arquiteto/urbanista está ligada ao gesto previsível na cidade imprevisível. Diante disso proclama9 : “Prever, é tudo quanto é preciso, mas também o que é indispensável e urgente”. Frisamos que não devemos subestimar os modernos10 e pensar que eles não tinham consciência da imprevisibilidade. A tentativa de camuflar as incertezas já apontava para a sua existência e para “obsessão delirante de encontrar a pedra fundamental"11 . A obsessão pelo previsível é um dos principais paradigmas que acompanha a modernidade, sendo a própria noção de paradigma moderno. O conceito de paradigma12 , em Morin13 (2002), surge como algo que exclui os problemas que não reconhece, na necessidade constante de confirmar o determinismo e descobrir novas evidências auto-ocultando-se. O paradigma é cogerador do sentimento de realidade, estando todo tempo ligado aos discursos e visões de mundo14 . Dessa forma, podemos afirmar que existe algum tipo de transição na própria leitura do conceito de paradigma. Diante de uma breve revisão da literatura do final do século XX, Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo – e, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos31 .
  • 49.     3   é evidente o reconhecimento da imprevisibilidade junto à previsibilidade. Tentamos, hoje, avançar diante das críticas da década de 1960 à dogmática moderna que, diante de um pessimismo contagiante, teve grande dificuldade de ação: uma “penumbra total”15 . No urbanismo, observa-se nos anos 1960, perante a fé nas ciências e disciplinas sociais junto ao “terrorismo” funcionalista, uma tentativa de distanciamento das dimensões espaciais do projeto. O urbanismo torna-se ciência e o arquiteto, o técnico que passa a ser destinado ao fim do processo. Nesse momento, começa-se a se falar em pós- modernidade, um conceito autêntico na sua inadequação, assim como afirma Boaventura16 . O autor17 alerta que, de um lado, é bastante claro o caminhar em direção à mudança de paradigmas epistemológicos; por outro, ainda existe um longo caminho em direção à mudança de um paradigma societal18 . Assim, não poderíamos falar em uma mudança paradigmática. O paradigma contém categorias mestras de inteligibilidade, encontrando- se no núcleo não apenas de qualquer sistema de ideias e de qualquer discurso, mas de qualquer cogitação, afirma Morin19 . Os paradigmas como “princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e do mundo sem que tenhamos consciência disso”20 . Sem dúvida, a única coisa que é segura na modernidade é a insegurança – a certeza como refúgio da incerteza ou a incerteza como refúgio de si própria? O urbanismo reconhece a cidade complexa, a cidade mutável, o seu cenário de
  • 50.     4   intervenção. No início do século XX, esse reconhecimento é dado por oposição: o projeto como ato de previsibilidade no meio imprevisível que poderia supostamente torna-se previsível. Posteriormente, a crítica, a falta de projeto, tudo se torna demasiadamente imprevisível. Já no século XXI, é reconhecida a importância do projeto que não deixa de ser um ato de previsibilidade, contudo, implicando no reconhecimento da incompletude e da incerteza. A própria noção de projeto e cidade está entrelaçada ao projeto de modernidade. Reconhecemos que a modernidade tem um compromisso inacabado com a descoberta, com a oposição entre o efêmero e o eterno. Paralelamente, o que se vê é a busca por mecanismos de segurança e previsibilidade. A imprevisibilidade e previsibilidade mutuamente se revelam diante de um pensamento obcecado pela reflexividade. A representação do eterno pode existir por meio de um efeito instantâneo. A captura do projeto no instante que, assim como a modernidade, deriva a sua estética21 de alguma forma do fato da fragmentação, da efemeridade e do fluxo caótico22 . O projeto na modernidade, a modernidade como projeto. Projeto como exploração e experimentação caótica, como experiência paradoxal na intensidade limite que leva à criação e à formação de sentido. Compartilhamos com Giddens23 , Bauman24 , Harvey25 , Boaventura26 , Maffesoli27 , Morin28 , Featherstone29 , entre outros autores, a ideia de que ainda somos todos modernos, apesar de existirem brechas que sensibilizam para um pensamento
  • 51.     5   multidimensional. É nessas brechas que pretendemos avançar na tese, mais especificamente através de possibilidades projetuais, como a possibilidade de liberar intensidades (acontecimentos) criativas. Instantes em que estão a dinâmica e o movimento, o movimento como representação do perene. O projeto que se reencadeia por sobre uma lacuna (não por prolongamento). As plataformas como aquilo que não mais interessa. O projeto que dá acesso ao imprevisível, ao acontecimento. No entanto, se não existe projeto, também não existe acontecimento. (...) a única maneira de representar verdades eternas é um processo de destruição possível de, no final, destruir ele mesmo essas verdades. E, no entanto, somos forçados, se buscamos o eterno e o imutável, a tentar e deixar a nossa marca no caótico, no efêmero e no fragmentário32 .
  • 52.     6   Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com o nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo ou curto demais para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas ideias. É por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contiguidade, causalidade que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma outra a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa “fantasia” (o delírio, a loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas ideias, se não houvesse também nas coisas ou estados de coisas, como um anticaos objetivo (...)30 .
  • 53.     7                                                                                                                             1 GIDDENS, 1991, p. 175. 2 Ibidem. 3 BAUMAN, 2001. 4 ASCHER, 2001. 5 BAUMAN, 1999, p. 11. 6 É nos tempos modernos que a consciência de complexidade começa a aparecer com maior clareza, por isso situar a modernidade no Renascimento. Diante de visões de mundo diversificadas e surgimentos de novos conflitos e representações, vamos engendrando a necessidade (falsa ou real) de regulamentação. O urbanismo como campo disciplinar, por exemplo, aparece a partir da premissa de diminuição de riscos. 7 GIDDENS, 1991, p. 11. 8 LE CORBUSIER, 2000: passim 24-51. 9 LE CORBUSIER, Ibid., p. 64. 10 Os modernos propõem uma ideia fictícia de previsibilidade visando ao controle dos conflitos a partir de um mesmo quadrante. 11 MORIN, 2002, p. 277. 12 Kunh (2003) é quem introduz o conceito de paradigma como exemplos compartilhados que têm papel central na orientação metodológica de esquemas fundamentais de pensamento, de pressupostos ou de crenças. Morin (2002) afirma que esse é o ponto forte do sentido de paradigma desenvolvido pelo autor, contudo, diz que o ponto fraco é que esse conceito oscila entre sentidos diversos, cobrindo in extremis, de modo difuso, a adesão coletiva dos cientistas a uma visão de mundo. 13 MORIN, 2002. 14 MORIN, 2005. 15 HART, 1994. 16 SANTOS, 2001. 17 SANTOS, ibid..                                                                                                                                                                                                                                                                                 18 Formas de conhecimento com vinculação específica a diferentes práticas sociais. 19 MORIN, 2005. 20 MORIN, Ibid., p. 10. 21 Estética como movimento e motivação a partir de uma sensação. 22 Ver HARVEY, 2006, p. 113, sobre a modernidade. 23 GIDDENS,1999. 24 BAUMAN, 2001. 25 HARVEY, 2006. 26 SANTOS, 2001. 27 MAFFESOLI, 2005. 28 MORIN, 2002, 2005. 29 FEATHERSTONE, 1995. 30  DELEUZE e GUATTARI, 2004, p. 259. 31 HARVEY, 2006, p. 21. 32 HARVEY, ibid., p. 26.
  • 54.     8                                                                                                                                                                                                                                                                                   Referências bibliográficas ASCHER, François. Les nouveaux principes de l’ urbanisme. Paris: Éditions de L’ Aube, 2001. ______. Metapolis: acerca do futuro da cidade. Oeiras: Celta Editora, 1998. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. ______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. ______. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. ______. A transformação da intimidade. São Paulo: Editora Unesp, 1994 (Biblioteca básica). HART. Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2006. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. LEPETIT, Bernard e PUMAIN, Denise. Temporalités urbaines. Paris: Anthropos, 1993. MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 2005. MORIN, Edgar. O método 4: as ideias. Porto Alegre: Sulina, 2002.                                                                                                                                                                                                                                                                                 ______. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. ______, MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. São Paulo: Sulina, 2000. ROSSI, Aldo. Bibliografia científica. Barcelona: Gustavo Gilli, 1984. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2001. SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
  • 55. PARTE II : : Projeto, repetição e devir ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 01 - 11 : : Força do movimento: sensação do tempo ------------------------------------------------------------------------------------------------- 01 - 08 : : A montagem como potencial criador -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 01 - 16 : : Prazer e intrusão: possibilidades projetuais em Tschumi ------------------------------------------------------------------------------ 01 -12
  • 56.     1   : : Projeto, repetição e devir Deleuze1 defende sua tese de doutorado, Diferença e repetição, em oposição ao pensamento clássico e moderno unidade/identidade. As coisas se repetem diferenciando-se. Diferentes quando (ou porque) produzem devir. O que instaura a repetição – um objeto que se repete incontáveis vezes – se remete a uma potência singular. Forças se asseguram na repetição, na passagem de uma coisa para a outra. A repetição assegura a distribuição e o deslocamento, o transporte do elemento para outras dimensões. Um movimento constante de um vir-a-ser. Nunca se retorna ao mesmo, afirma Nietzsche2 . A repetição é a forma do devir. Segundo Deleuze3 , é o eterno retorno que expulsa o mesmo e a repetição-igual. O eterno retorno é a criação, é a condição para que algo advenha. O eterno retorno é o retorno de um fragmento que está sempre em processo de atualização. O eterno retorno não é um devir igual, não é um ciclo, não supõe o um, o mesmo, o igual, o idêntico. Não é um retorno do todo, um retorno do mesmo, nem um retorno ao mesmo, afirma Machado4 . Um dos momentos mais importantes de interpretação deleuziana do eterno retorno, segundo o autor5 , seria não pensar o ser como oposto ao devir, o um como oposto ao múltiplo, a necessidade oposta ao acaso, ou, de modo geral, a identidade oposta à diferença. Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior deparou com um livro tão confuso como os outros, porém que possuía quase duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros lhe afirmaram que em iídiche. Antes de um século pôde ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também decifrou-se o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada. Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca.
  • 57.     2   No eterno retorno, a repetição não é a repetição do mesmo, mas do diferente, a diferença tem como objeto a repetição. No eterno retorno, a repetição é a potência da diferença6 . Podemos nos perguntar em que circunstâncias a repetição revela acontecimentos. Poderíamos dizer justamente nas derivações, nas relações entre a repetição, na relação entre relações, na repetição que incide sobre repetições. A hipótese que levantamos aqui é a da repetição como base de processos criativos ou como condição que torna possível a criatividade. No entanto, para que isso ocorra, é necessário pensar a repetição como processo. O processo repetição como forma de proporcionar relações, abrindo-se a inesperados sentidos, dimensões, rotações. Nesse processo o que importa é a experiência da coisa, não a coisa em si. O processo assim se reinicia suscitando uma nova experiência de ruptura, o acontecimento. Os elementos se repetem, mas a experiência é singular. Nesses instantes-repetições, a experiência não se deixa representar, não existe em uma estaticidade. Estamos interessados no mesmo no que se difere. Buscamos um raciocínio que privilegia a intensidade, um dos mais importantes conceitos da teoria de Deleuze. O acontecimento é intensidade, vontade de potência, querer interno. Estamos no domínio do universo das intensidades – princípio intensivo das forças. A vontade de potência não é a força, mas o elemento diferencial que determina tanto a Esse pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: "Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos". Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas23 .
  • 58.     3   relação entre as forças (quantidade) quanto a qualidade respectiva das forças em relação. A vontade de potência é o sensível, a sensibilidade das forças, o devir sensível das forças, a sensibilidade diferencial. O eterno retorno, compreendido como ser do devir, está intrinsecamente ligado à vontade de potência considerada como devir das forças ou princípio da diferença7 . Estudando a repetição, podemos observar que ela ativa a imaginação, sustenta uma ideia ou pensamento por um determinado tempo. Em linguística, destacamos duas formas de repetição que bastante nos interessa. A repetição anáfora – a repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no princípio de frases ou versos consecutivos; e a repetição pleonasmo – repetição que envolve redundância. Duas figuras de linguagem que têm como objetivo reforçar a experiência-repetição. Nesta tese, por exemplo, em diversos momentos, criamos palavras compostas como instante-acontecimento. Mas se compreendemos que o acontecimento só existe entre instantes, isso não faria sentido. Nossas palavras compostas também são pleonasmos, nascem na tentativa de ressaltar e exagerar conceitos. A repetição é um notável recurso poético na linguagem. Diversos escritores como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Rui Barbosa buscam intensidade poética por meio da repetição. A repetição como força dinamizadora do discurso. Já a repetição negativa seria aquela em que conceitos dogmáticos são repetidos sem (...) Acabo de escrever infinita. Não interpelei esse adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o número possível de livros24 .
  • 59.     4   aberturas às derivações. Nesse sentido, repetir poderia ser sinônimo de esvaziamento imaginativo ou de monotonia. Aqui, no entanto, estamos seduzidos pelo processo repetição como eco de uma vibração secreta, como potência singular. A Pop-Art, por exemplo, explorou a cópia, a cópia da cópia, até o ponto que a cópia deixa de ser cópia e se torna simulacro, suscita Deleuze8 : (...) as repetições brutas e mecânicas do hábito deixam-se extrair pequenas modificações, que, por sua vez, animam repetições da memória para uma repetição mais fundamental em que a vida e a morte estão em jogo, mesmo que venham a reagir sobre o conjunto, nele introduzindo uma nova seleção, sendo que todas estas repetições coexistem e, todavia, estão deslocadas umas em relação às outras. Como conduta externa, essa repetição talvez seja o eco de uma vibração mais secreta, de uma repetição interior e mais profunda no singular que a anima, afirma Deleuze9 : Se a repetição é possível, é por ser mais da ordem do milagre que da lei. Ela é contra a lei: contra a forma semelhante e o conteúdo equivalente da lei. Se a repetição pode ser encontrada, mesmo na natureza, é em nome de uma potência que se afirma contra a lei, que trabalha sob as leis, talvez superior às leis. Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um relevante contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a
  • 60.     5   permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e mais artística. Duas coisas só são diferentes se forem expressas por conceitos diferentes. A repetição só pode ser definida como uma diferença sem conceito. Só há repetição se dois entes ou dois acontecimentos idênticos naquilo que neles é representado forem distintos numericamente no tempo, argumenta Deleuze10 . O conceito de repetição, de acordo com Deleuze11 , tal qual as repetições físicas, mecânicas ou nuas (repetição do mesmo), encontraria sua razão nas estruturas mais profundas de uma repetição oculta, em que se disfarça e se desloca um "diferencial". A partir de uma tese paradoxal – o grau máximo da diferença é o que existe na repetição de algo idêntico – Deleuze, unindo-se aos pensamentos de Nietzsche12 , nos instiga para uma potência própria da repetição no projeto, no sentido da criação de forças derivadas da repetição, em vez de criação de fórmulas repetidas. A repetição aqui como um meio de explorar e de avançar no plano experimental do projeto. Essas questões nos conduzem ao trabalho do arquiteto Peter Eisenman, aqui, mais especificamente, o projeto do Memorial do Holocausto, em Berlim. O arquiteto propõe um sistema de grid aberto com 2.700 pilares de concretos. Esses blocos são organizados em um terreno irregular, abaixo do nível da rua, com
  • 61.     6   largura de 95 cm e altura que varia de 0 a 4 m. A distância entre os pilares permite a passagem de apenas uma pessoa por vez. Esse sistema de repetições permite variações infinitas a partir da experiência de cada usuário/intérprete. O projeto potencializa a experiência individual e a sensação de desconforto e solidão, incentivando a reflexão sobre o drama dos milhares de judeus mortos na 2a Guerra. Eisenman provoca a instabilidade no que aparentemente é um sistema ordenado e estável. O arquiteto sustenta a ideia de que o resultado final do projeto não é uma síntese de um processo, o resultado de uma acumulação, mas uma pausa arbitrária de uma série que poderia continuar infinitamente através de deslocamentos sucessivos. Nesse senso, contaminações e recombinações imprevisíveis são desencadeadas. A norma é invertida, sem, no entanto, desaparecer.   Sugerimos, então, refletir sobre três formas de repetição que bastante nos instiga como ferramentas de projeto na concepção do espaço urbano. Esses tipos, obviamente, podem se sobrepor e nem sempre são facilmente identificados: 1- Repetição-pleonasmo. Repete-se para exagerar e ressaltar alguma coisa. Repetição que envolve redundância/repetição desnecessária. 2- Repetição-anáfora. Repete-se somente quando se introduz um novo elemento. Esse novo elemento pode ser de choque.
  • 62.     7   3- Repetição-esquecimento. Repete-se diversas vezes um objeto até que ele passa a ser outra coisa. Laugier, citado em diversos textos por Le Corbusier13 e por Tschumi14 , já dizia: “Uniformidade no detalhe, tumulto (movimento) no conjunto”. Ao contrário do que fazemos, afirma Le Corbusier15 , uma louca variedade dos detalhes e uma uniformidade morna dos traçados das ruas e das cidades. Tschumi16 suscita que qualquer um que sabe como projetar um parque não terá dificuldades em traçar o programa de um edifício da cidade, de acordo com sua área e situação. Deve haver regularidade e fantasia, relações e oposições, e elementos casuais e inesperados que variem a cena; grande ordem nos detalhes, confusão, excitação e tumulto, em geral. Ao ler e reler essa colocação de Laugier e a citação de Le Corbusier e Tschumi em diversas obras dos autores, questionamo-nos se não seria esta a tese de Deleuze e a proposta de Eisenstein: o máximo de repetição para garantir o máximo de diferença. Alimentando a nossa tese estão as premissas do grupo de estudos do “Studio V: Singular Repetition”17 , dirigido por Tschumi na Universidade de Columbia, Nova York: O NÚMERO QUATRO O número quatro feito coisa ou a coisa pelo quatro quadrada, seja espaço, quadrúpede, mesa, está racional em suas patas; está plantada, à margem e acima de tudo o que tentar abalá-la, imóvel ao vento, terremotos, no mar maré ou no mar ressaca. Só o tempo que ama o ímpar instável pode contra essa coisa ao passá- la: mas a roda, criatura do tempo, é uma coisa em quatro, desgastada25 .
  • 63.     8   1. Mais repetição melhor a arquitetura. Gostaríamos de argumentar que ao contrário da crença popular, quanto mais houver repetição, melhor a arquitetura se torna18 . 2. Não existe arquitetura sem repetição. Começamos com a hipótese de que não há arquitetura sem repetição: com suas linhas das janelas, colunas, tijolos, escadas, etc., a arquitetura inevitavelmente é a arte organizadora da repetição19 . 3. A repetição pode ser excitante e pode trazer novas descobertas. Mais do que qualquer outra arte, a arquitetura depende da acumulação sem fim de elementos semelhantes. Longe de ser entediante, a repetição é excitante, desafiadora e pode levar a novas descobertas, desde que você ultrapasse um determinado limite. Em outras palavras: nós sugerimos que o excesso quantitativo é efetivamente qualitativo20 . 4. A repetição de elementos não quer dizer que a arquitetura será similar. No entanto, toda a boa arquitetura é frequentemente singular. Isso significa que
  • 64.     9   ela não pode ser infinitamente reproduzida ou repetida. Por exemplo, imitar o padrão repetitivo da cortina de vidro projetada por Mies van der Rohe não quer dizer que a arquitetura será necessariamente boa, enquanto o seu original foi21 . 5. A arquitetura é singular. Daí a nossa reivindicação: a melhor arquitetura é muitas vezes a manifestação de ambas singularidade e repetição, ou repetição singular. Vamos, portanto, argumentar em favor de "um-de-um tipo" de repetições22 .