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SAID. Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa
Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
A obra tem por objeto o estudo do orientalismo, entendido como um
conjunto de diversas realidades interdependentes, nas quais se destaca a construção
acadêmica e doutrinária desenvolvida, precipuamente pelos povos ocidentais, em relação ao
Oriente.
No primeiro capítulo, denominado “O âmbito do Orientalismo”, o
autor disserta sobre o alcance do Orientalismo, trazendo a visão ocidental acerca do Oriente.
Inicia seu relato voltando-se ao pensamento europeu durante o século XIX (e também nos
primórdios do século XX). Primeiramente, através da exposição do discurso proferido por
Arthur James Balfour à Câmara dos Comuns, no ano de 1910, denota a condição de
superioridade auto-proclamada pela comunidade européia (essencialmente os ingleses) em
detrimento às civilizações orientais – no caso descrito, os egípcios. Isto porque o Egito,
conquanto colônia da Inglaterra, havia sido, durante os anos anteriores, administrativamente
subordinado aos britânicos. As idéias de dominação intelectual advinham de uma linha de
pensamento desenvolvida pelos próprios colonizadores, baseados em sua visão pessoal, e no
convívio com os colonizados. Ao empreender contato com sua raça, cultura, tradições,
história e caráter, e lançar juízos de valor, estabelecendo comparação com sua própria
realidade, terminavam por conceituar o oriental sob títulos por vezes degradante.
Para o estudioso, o homem oriental era sempre contido e
representado por estruturas dominantes. Destas estruturas, nasceram os juízos que compõem
o conceito de orientalismo. Embora o autor saliente que se trata de conceito extremamente
vago, é dele que derivam as noções do Oriente grafadas pelos manuais, livros e demais
produções do Ocidente.
Defende o autor, assim, que a acepção pela qual se divide o mundo
em “oriente” e “ocidente”, embora resguardada sob inocente desígnio de mera distinção,
serve, na realidade, para intensificar as diferenças e obstar quaisquer tentativas de
aproximação entre as culturas. A tradição orientalista, ao apontar a existência de tantas
diferenças, constitui-se num convite à subjugação oriental.
1
Explica que um conceito mais restritivo de “orientalismo”
conceituaria o termo como um campo de estudos eruditos, fundados na unidade geográfica,
cultural, lingüística e étnica do Oriente. Geograficamente, é como se houvesse uma linha
imaginária a dividir o continente europeu do asiático com linhas muito mais profundas.
Culturalmente, a própria literatura e arte produzida no Ocidente tende a corroborar este
pensamento. O autor cita, como exemplo, passagens da Divina Comédia, do italiano Dante
Alighieri, em que o profeta Maomé é visto como “morador do inferno”, dentre outras obras.
Desta forma, o estudioso explicita que não pode ser adotado de
forma plena, filosoficamente, o pensamento e visão orientalista, sob risco de tomar por
realidade o que constitui, tão somente, uma visão distorcida. Para ele, do ponto de vista
psicológico, o orientalismo é uma “paranóia”, resultado de conceitos e idéias traçados desde
o século XIX. A grande verdade é que o desenvolvimento das idéias sobre o mundo oriental
sempre foi processo eivado de preconceitos.O autor cita, como exemplo, a biografia do
profeta Maomé, escrita por Humphrey Prideaux, que tinha como subtítulo “A verdadeira
natureza de uma impostura”. Não se tratava de um “ataque” verbal ao profeta, mas ao próprio
berço cultural que o gerou.
Outra situação apontada pelo autor, quanto à visão trazida pelo
Orientalismo, diz respeito, essencialmente, ao Islã. A referência de Oriente que temos,
quando não incutida de exotismo ou distância, volta-se para o islamismo em suas
manifestações culturais e de religiosidade. Anteriormente ao século XVIII, aliás, toda a
conceituação de Oriente vinha impregnada de referências ao “ameaçadores” árabes,
islâmicos e otomanos.
Tal idéia só passou a ser modificada quando do surgimento de
trabalhos científicos que se voltavam à cultura e aos costumes ali perpetrados sob ótica
diversa daquela exclusivamente européia. Como exemplo, o trabalho desenvolvido pelo
estudioso Abraham-Hyacinthe Anquetil-Duperron, e também por William Jones, que
igualmente interferiram na forma com que se via o “mundo oriental”. Graças a eles, o
sânscrito, a religião e a história indiana passaram a ser admitidos como fontes de
conhecimento científico. Todavia, explicita o autor que
O conhecimento apropriado do Oriente começava por um completo estudo dos
textos clássicos e só depois passava a aplicação desses textos ao Oriente moderno.
Em face da óbvia decrepitude e impotência política do oriental moderno, o
orientalista europeu considerava como dever dele resgatar urna parte de urna
perdida grandeza c1ássica do passado oriental, de maneira a "facilitar os
melhoramentos" no Oriente do presente. O que o europeu tomava do passado
clássico oriental era urna visão (e milhares de fatos e artefatos) que apenas ele
podia empregar com maior vantagem; para o oriental moderno ele dava íacilitacóes
2
e melhoramentos - e, também, o benefício do seu julgamento sobre o que era
melhor para o Oriente moderno. (p. 88)
As incursões de Napoleão ao Egito, embora visassem a dominação
do local, também foram de grande valia aos projetos orientalistas. O imperador, fascinado
pelo Oriente, solicitou trabalhos de muitos sábios, destacando-se aqueles desenvolvidos pelo
conde de Volney, para desenvolver seu conhecimento sobre o local. Assim, ao iniciar seus
projetos de conquista, intentou a dominação pela conquista da confiança dos habitantes,
inclusive misturando-se a eles em suas manifestações culturais e desenvolvendo relações
próximas com muçulmanos. Napoleão tinha, entretanto, muitos outros objetivos: pretendia
“instruir” o Oriente, dentro das maneiras do Ocidente, subordinar seu poderio militar e
reformular a cultura, identidade e definição do Oriente, alocando-o dentro da história de
“glórias” do próprio imperador.
Todavia, o fracasso das pretensões napoleônicas não foi capaz de
destituir a importância de suas notáveis contribuições de cunho artístico, textual e cientifíco.
Ademais, seguiram-se novas missões ao Oriente, em busca de um período de “novos
projetos, novas visões, novas empreendimentos que combinassem partes adicionais do velho
Oriente com o espírito conquistador europeu” (p. 96). O século XIX trouxe, assim, novas
possibilidades e perspectivas, inda mais depois da histórica conquista de De Lesseps, ao
atravessar o Canal de Suez. Surgiram novos estudiosos e farta produção acadêmica. Neste
sentido, salienta que
Para o Ocidente, a Ásia representara outrora a distância silenciosa e a alienação: o
Islã era a hostilidade militante ao cristianismo europeu. Para superar essas temíveis
constantes, o Oriente precisava primeiro ser conhecido, depois invadido e
possuído, e entáo recriado por estudiosos, soldados e juizes que desenterraram
línguas, histórias, raças e culturas esquecidas, de maneira a situá-las - além do
alcance do oriental moderno - como o verdadeiro Oriente clássico que poderia ser
usado para julgar e governar o Oriente moderno. (p. 103)
O autor, no entanto, critica estes trabalhos porque, em sua maioria,
baseavam-se tão-somente em perspectivas não-empíricas, como aquelas a embasar a proposta
Napoleônica. Identifica, no orientalismo ao longo do século XIX, dois traços principais: a
autoconsciência científica, baseada na importância lingüística do Oriente para a Europa, e a
inclinação a interferir no tema sem, no entanto, mudar de opinião sobre o Oriente como algo
imutável, uniforme, embora peculiar (p. 107). O Oriente era apenas “olhado”, observado,
como salientara Flaubert. O orientalista moderno, assim, disfarçava sua antipatia de
conhecimento profissional, e rigorosismo científico. O Oriente era visto apenas dentro de
uma concepção técnica, que, após a Primeira Guerra, perderia parte de seu encanto. Assim
3
O campo de ação do orientalismo correspondia exatamente ao campo de ação do
império, e foi essa absoluta unanimidade entre os dois que provocou a única crise
na história do pensamento ocidental sobre o Oriente e nas suas tratativas com este.
E a crise continua até hoje (p. 113).
No século seguinte, a crise agigantar-se-ia, a ponto de estudiosos de
renome passarem a referir-se ao Islã como mera “tenda e tribo” (p. 114). Outras atitudes
orientalistas contemporâneas passaram a existir, evidenciando a nova ordem. Surgem as
figuras dos chineses pérfidos, indianos seminus e muçulmanos passivos, considerados
mesmo como “abutres” à generosidade ocidental. O homem ocidental passou a analisar,
esmiuçar e julgar todo o comportamento oriental.
Conforme ressaltado pelo autor, os textos orientalistas não poderiam,
mesmo com tanta riqueza de “detalhes”, preparar seus leitores ao grandes conflitos que se
principiaram na região após o final da Segunda Guerra Mundial. O mundo passaria a
questionar, chocar-se e aumentar a distância, mais que física, entre os extremos. Como
solução para isto, aponta a necessidade de trabalhos despidos dos velhos e novos
preconceitos. Para o estudioso, “Investigar o orientalismo é também propor modos
intelectuais de tratar os problemas metodológicos a que a história deu origem, por assim
dizer, em seu tema de estudos, o Oriente” (p. 119).
Deste modo, no segundo capítulo, intitulado “Estruturas e estruturas
orientalistas” o autor busca destrinchar, cronologicamente, as principais obras e produções
sobre o Oriente, indicando os mecanismos utilizados em sua produção e, ao mesmo tempo,
trazendo uma farta explanação sobre como se deu o desenvolvimento, e também as
transformações, das visões acerca do Oriente.
Neste capítulo, inicia evocando, precipuamente, a necessidade de se
retraçar as fronteiras e redefinir as questões de estudo. Indica que, no orientalismo moderno,
permanecem ainda os elementos de correntes de pensamento inerentes ao século XVIII – a
expansão, o confronto histórico, a solidariedade e a classificação. Sem a presença de tais
elementos, aponta que, muito provavelmente, a concepção moderna do orientalismo não teria
existido, mas se constituiria de ideais libertadores, amplos e realmente “modernos”.
O orientalista se autodenominava como um herói, um desbravador,
mas, na opinião do autor, não o era. Isto porque não deixava o Oriente “falar por si” (p. 131).
Dois estudiosos, neste aspecto, foram de fundamental importância, ainda no século XIX:
Silvestre de Sacy e Ernest Renan. Sacy, em suas obras, tomava um tom pessoal, isolando o
Oriente e, de maneira didática, passava a exibi-lo, em suas partes mais representativas. Deste
modo, trazia à tona seu poder, como autoridade no assunto, de significar o Oriente, buscando
4
decifrá-lo e, a seguir, disponibilizando seu conhecimento. É, por isto, considerado o “pai” do
Orientalismo – embora aqueles que o seguiram, ao interpor suas próprias visões pessoais, não
puderam desenvolver com tanta maestria.
Renan, noutro sentido, desenvolveu seu trabalho associando o
Oriente às modernas disciplinas comparativas, como a filologia, conferindo maior
visibilidade às estruturas do Orientalismo. Utilizava-se, assim, ao se referir ao Oriente, de
uma linguagem extremamente enraizada em linhas filológicas, que era empolgada e
romântica. Entretanto, por motivações pessoais, Renan havia substituído sua fé cristã pelo
estudo do semítico e, ao fazer afirmações sobre povos judeus ou muçulmanos, o fazia sempre
com severas restrições. Assim, “todo o esforço de Renan foi para negar a cultura oriental o
direito de ser gerada, a não ser. artificialmente no laboratório filológico” (p. 156). Mas Renan
não era o único.
Os orientalistas, como muitos pensadores do início do século XIX, concebem a
humanidade como grandes termos coletivos ou como generalidades abstratas. Os
orientalistas nem estão interessados nem são capazes de discutir indivíduos; em
vez disso, o que predomina são as entidades artificiais, talvez com raízes no
populismo herderiano. Há orientais, semitas, asiáticos, rnuçulmanos, árabes,
judeus, raças, mentalidades, nações e coisas do gênero, algumas delas o produto de
operações eruditas do tipo encontrado na obra de Renan. Do mesmo modo a
distinção, velha de séculos, entre a "Europa" e a "Ásia", ou "Ocidente" e "Oriente"
carrega, sob rótulos muito abrangentes, todas as variações possíveis
da pluralidade humana, reduzindo-a no processo a urna ou duas abstrações
coletivas terminais. (p. 163).
O autor cita, como embasamento, obras e pensamento de Marx que
trouxeram considerações de grande importância sobre o tema. Destaca, então, o trabalho de
Lane, estudioso inglês que reprogramava e re-situava essencialmente o Oriente quando
escrevia sobre ele. Utilizava-se da prosa normativa européia para descrever, de maneira
acessível ao Ocidental, as excentricidades do oriental, com seus calendários diversificados, as
diferenças lingüísticas e até mesmo a ausência do decoro moralista típico do povo europeu.
Salienta ainda que, ao longo do século XIX, houve um
enriquecimento destas idéias por ser o Oriente um grande núcleo de roteiros turísticos. A
população estava ávida pelo Oriente, embora buscasse mais um aspecto externo que interno.
O orientalista, neste cenário, se via como um observador, escritor. Absorvia e exalava
conhecimento, dentro da poesia, da atmosfera e das possibilidades que tanto encantavam o
mero observador, viajante em busca de exotismo. Chateaubriand, francês, em suas
expedições, também participou deste momento, retransmitindo suas experiências e
impressões.
5
Inúmeros estudiosos seguiram-se, buscando recolher notas e
construções acadêmicas pessoais acerca do Oriente. Destacam-se, para o autor, os esforços de
Burton, que, desenvolvendo um trabalho intermediário entre o intenso subjetivismo e a
imparcialidade extrema, que eram características marcantes em seus antecessores, trouxe
documentação farta e gerou uma produção bem fundamentada e rica em detalhes.
O terceiro capítulo, cognomizado “O orientalismo hoje”, inicia-se
com um retorno às explanações iniciais, tendo por objeto reiterar o desígnio indicado pelos
capítulos anteriores. O autor explica que, pela utilização de obras dos grandes escritores,
filósofos e poetas que usaram o Oriente como referencial, construiu uma caricata figura, que
representa o Orientalismo em suas vertentes, conquanto direcionamento científico. E, sobre a
forma com que foi concebido, aduz:
O Oriente que aparece no orientalismo, portanto, é um sistema de representações
enquadrado por todo um conjunto de forças que introduziram o Oriente na cultura
ocidental, na consciência ocidental e,
mais tarde, no império ocidenta1. Se esta definição do orientalismo parece mais
política que outra coisa, isso acontece apenas porque acredito que o próprio
orientalismo foi um produto de certas forcas e atividades políticas. O orientalismo
é urna escola de interpretação cujo material, por acaso, o Oriente, suas
civilizações, seus povos e suas localidades. (p. 209)
Por tal expediente, o autor traz que o orientalismo não é apenas
doutrina positiva, mas uma realidade de caráter multifacetário, servindo-se conquanto
orientação acadêmica e área de interesse para curiosos e interessados dos mais diversos
campos de atuação. Conclui que, no século XIX, o europeu tinha visão puramente racista do
Oriente, por enxergar o mundo de forma etnocêntrica. Foram precisos esforços e pressões de
cultura geral para que, diferenciando-se corretamente Leste e Oeste, se pudesse construir uma
ciência despida dos preconceitos anteriormente vigentes.
O autor distingue o orientalismo latente, formado por concepções
inconscientes e intangíveis do Oriente, do orientalismo manifesto, que é este conjunto de
visões e idéias que se encontram declaradas, impressas, transmitidas.
Explica que o interesse europeu, e depois o americano, pelo
Ocidente, principiou-se por motivação de ordem histórica (pelas lutas e conquistas
territoriais, por exemplo), mas que a cultura foi quem, de fato, intensificou o interesse, ainda
que agindo em conjunto com as fundamentações políticas, econômicas e militares. Assim,
misturando-se no cenário aquilo que é manifesto àquilo que é puramente insinuado, o autor
indica que o orientalismo foi se descortinando em todas as suas ramificações, erros e acertos.
6
E, no entanto, apesar dos seus fracassos, da sua lamentável linguagem
especializada, do seu mal ocultado racismo e da fragilidade do seu aparato
intelectual, o orientalismo floresce hoje nas formas que tentei descrever. De fato,
há urna razáo para alarme no fato de a sua influência ter se estendido ao próprio
Oriente; as páginas dos lívros e jornais em língua árabe (e sem dúvída ern japones,
em diversos dialetos indianos e em outras línguas orientais) estáo cheias de
análíses de segunda categoria feitas por árabes sobre "a mente árabe", "o islã” e
outros mitos. (p. 326)
Ao final, aludindo ao deslocamento da hegemonia dos países
europeus à América, e mais intensamente aos Estados Unidos, conquanto potência altamente
influenciadora, volta-se para as realidades intelectuais e sociais do orientalismo
predominantes no “Novo Mundo”. Ressurgem, ainda que de forma disfarçada, o dirigismo
intelectual, a supremacia auto-proclamada e muitos preconceitos velados. O autor explicita
que os americanos mantém sob constante vigilância, e até mesmo sob sua dominação, a
economia do Oriente – e cita, além da questão do petróleo, o crescente consumismo dos
povos orientais, que digerem os produtos da nova cultura de forma ávida. Há uma
desvalorização, pouco percebida, da própria cultura. E tais considerações são explicitadas
quando o autor diz que
Há todo tipo de outras indicações de como é mantida a dominação cultural, tanto
por consentimento oriental quanto por pressões econômicas diretas e grosseiras
por parte dos Estados Unidos. Faz-nos mais moderados descobrir, por exemplo,
que, ao passo que existem dúzias de organizações nos Estados Unidos para estudar
o árabe e o Oriente islâmico, não existe nenhuma no próprio Oriente para estudar
os Estados Unidos, de longe a maior influencia econômica e política na região.
Pior, mal existem quaisquer instituições, até mesmo de estatura modesta, no
Oriente, devotadas ao estudo do Oriente. (p. 328)
O autor aponta, assim, soluções a serem consideradas para a
compensação, e a transmutação, destes fenômenos. Indica a possibilidade de uma
“descolonização”, lançando-se mão, igualmente, da individualização das culturas, postura
passível de trazer, como conseqüência, o fim do “narcisismo” e das hostilidades em relação
ao outro.
Embora acredite que a erudição nos discursos, e a maneira sempre
intelectual, ideológica, fantasiosa e política com que o orientalismo se propaga, não possam
ser de todo sanadas, Said acredita que, amoldando-se às vivências e sendo estas iluminadas
pelo estudo, será possível atingir patamares mais elevados de consciência. E, por
conseguinte, lançar mão de todas as construções equivocas que até então se fizeram, a fim de
produzir uma nova realidade. Encerra, sob tal interesse, indicando que, se porventura “(...) o
conhecimento do orientalismo tem qualquer sentido, é como um lembrete da sedutora
7
degradação do conhecimento, qualquer conhecimento, em qualquer lugar, a qualquer
momento. Hoje em dia talvez mais que antes”. (p. 332)
Fato é que são evidentes os esforços do autor no sentido de
decompor o orientalismo sob todas as figuras que se impõe a título de conceito, e analisar, de
maneira pormenorizada, os erros e acertos que o construíram, ao longo do tempo, até adquirir
a forma que possuía quando da produção de sua obra. Embora de forma repetitiva e, por
vezes, até confusa, no tocante à (des)construção histórica que antecede suas considerações
críticas, o autor denota franca insatisfação com a realidade intelectual e doutrinária
propagada à sua época, mas esperanças de transformação, ainda que vagarosa.
No intróito da obra, o autor salienta sua vontade de realizar um
“desaprendizado”, ou seja, um trabalho inverso, visando limpar do “sendo comum” tudo o
que se divulgou, ensinou e propagou acerca do Oriente quando fundado em proposições que
não possuíam o necessário embasamento fático.
É visível que, quando propaga seus maiores temores voltados às
imprecisões e distorções, o autor quer reforçar este desejo de encontrar caminhos para
corrigir as falhas, ou ao menos sanar seus efeitos.
O problema é encontrar um ponto de equilíbrio. Ou, mais
corretamente, uma fórmula suficiente para, correndo contra o tempo ao apagar todas as
impressões errôneas até então construída, não se omitissem as novas concepções, sendo
possível, igualmente, corrigi-las antes mesmo de se propagarem.
A verdade é que, num mundo globalizado, o conhecimento é
transmitido em proporções inimagináveis, e velocidade vertiginosa. Não é apenas o ambiente
que sofre alterações, mas a visão que dele se têm. A “moda” surge como termo e sentido para
explicar tamanha maleabilidade nos pensamentos e vontades humanas; porém, não é capaz
de descrever por qual motivo surgem e somem tão rapidamente ídolos, arquétipos e, também,
opiniões.
Em seu prefácio à edição de 2003, o autor declara que permanecem
surgindo mudanças, conflitos e controvérsias no Oriente. E de fato, estas é que tornam sua
obra, ainda que pautada muito mais em fenômenos históricos que num “futurismo” ficcional,
sempre atualizada e utilizável.
Por certo que, ao encerrar o estudo já prenunciando uma visão
oriental burlesca - que padeceria dos vícios da teatralidade e da comicidade com que os
americanos desenham as outras sociedades - o autor sequer vislumbrava realidade tão difusa
8
e completamente distante das propostas que trouxera, em que o modo de vida do “outro”
seria analisado por óticas pessoais e a cultura alheia termina como objeto de depreciação.
Os muitos conflitos no Oriente Médio; o surgimento de líderes
religiosos e políticos que, de certa forma, ameaçaram a “invasão cultural” americana; as
ações de grupos terroristas radicais e, com muito maior propriedade, o ataque às Torres
Gêmeas, no fatídico 11 de setembro, inegavelmente fizeram ressurgir, com maior
intensidade, os preconceitos ocidentais atribuídos ao século XVIII. O oriental deixou de ser
um factóide e tornou-se uma ameaça.
Do dia para noite, indivíduos de origem islâmica se viram alvos de
perseguições das mais diversas searas. Prisões infundadas, agressões, tudo era meio para
externar a intolerância, que, sob a justificativa do medo, talvez escondesse pretensões muito
mais densas. Transcorridos tantos anos, e já com o anúncio do novo presidente americano da
saída progressiva de suas tropas do território oriental, poderia um perfeito otimista imaginar
que o pensamento “dominante” ocidental estaria prestes a dar uma trégua ao oriental.
A verdade é que, ainda que não hajam mais perseguições, o
preconceito continua, sempre velado, subentendido, maquiado.
Talvez, ao analisar com maior acuidade todas as progressivas
edificações históricas da obra de Edward W. Said, e transportá-las à nossa realidade, o leitor
fique com a impressão de que, no fundo, não houve uma “evolução”, mas apenas o
surgimento de novos pontos de vista que não excluíram, em momento algum, aqueles
crendices dos colonizadores.
Não foi o colonialismo quem criou, sozinho, a idéia imperativa de
Oriente. Antes mesmo de ir ao seu encontro, o Ocidente já havia se apropriado,
intelectualmente, do Oriente, por suas produções ideológicas e míticas. E a própria sociedade
moderna, mesmo possuindo meios para obter conhecimento adequado, limita-se a aceitar e
fazer reviver estes ideais, tão imprecisos quanto os vigentes no século XVIII.
Mesmo pertencendo a um país dito “terceiro mundo”, somos
convidados, diariamente, pela TV, pelos filmes, pela internet, e por todos os demais meios de
comunicação, a desbravar um Oriente que ainda é visto como fonte de exotismo, imoralidade
e primitivismo. Sua cultura, seus costumes, suas vestimentas, sua religião, não nos são
mostrados de maneira respeitosa, parcial, equânime. Somos convidados a não apenas julgar,
como também a condenar, arbitrariamente, os povos ali instalados. E estes cedem, cada vez
mais, espaço aos “ocidentalismos”.
9
O que falta à obra de Said quiçá seja a presença de discurso mais
acessível – embora não lhe falte atualidade. Porque, embora tão divulgada, traduzida e
propagada, sofre do mesmo mal que grandes produções literárias universais: a
impossibilidade de atingir, fundamentalmente, o público a que se destina. Seu discurso, por
vezes recaindo em preciosismos e circunlóquios filosóficos, embora recheado de boas
intenções, por vezes chega muito próximo à erudição que tanto condena ao longo da obra.
Claro que, alterar-lhe a forma ou o conteúdo, inda mais sem a presença física do autor e,
portanto, sem o seu expresso consentimento, poderia implicar em empobrecê-la. A solução
seria, talvez, acrescer-lhe novos exemplos práticos, dentro das sociedades para onde o livro é
traduzido, possibilitando sua utilização até mesmo fora dos meios acadêmicos, fazendo com
que se tornasse representação viva daquilo que apregoa.
E se, a título de ideação, optamos por tal proposição, é justamente
por acreditar, sinceramente, que obra de tão grande valor merece lugar de destaque não
apenas nas bibliotecas, mas também nas livrarias. Se a cultura de massa orienta que todos
adquiram, leiam e apliquem em sua vivência produções voltadas ao enriquecimento
subjetivo, sob o tema da “auto-ajuda”, porque não seria possível propagar obras de interesse
continental, mundial?
Deste modo, poderia a leitura trazer perspectivas ponderadas sobre o
Oriente mesmo ao indivíduo desprovido de recursos, que não poderia jamais se deslocar às
suas expensas e, partindo rumo ao Oriente como estudioso e não como breve turista, “ver
para crer”. Este indíviduo é quem, hoje, vem sendo o grande alvo da contracultura, e seu
maior divulgador. Fornecendo-lhe novas visões poderia abandonar aqueles conceitos
errôneos, e, quem sabe, substituir os juízos de valor até então construídos.
Seria lícito, deste modo, não apenas ao erudito, mas a qualquer
pessoa, construir concepções modernas e seguras sobre as fronteiras geográficas a separar tão
díspares, e tão idênticas, porções da Humanidade. E, permitindo que o conhecimento fosse
semeado, o Oriente não seria mais objeto de temores, nem de confabulações infundadas, mas,
ao menos, de respeito. No fundo, cremos ser esta a pretensão de Said, em suas inúmeras
tentativas de chamar a atenção do leitor, ao longo de toda a discussão, para a injustiça que se
perfazia não tanto dos comportamentos ocidentais, mas com maior gravidade de seus
pensamentos. Considerando-se as recentes produções artísticas voltadas ao Oriente, e
divulgada nos meios de massa, temos que este escopo, embora implícito, não poderia ser
mais apropriado.
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O orientalismo e a construção da visão ocidental sobre o Oriente

  • 1. SAID. Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. A obra tem por objeto o estudo do orientalismo, entendido como um conjunto de diversas realidades interdependentes, nas quais se destaca a construção acadêmica e doutrinária desenvolvida, precipuamente pelos povos ocidentais, em relação ao Oriente. No primeiro capítulo, denominado “O âmbito do Orientalismo”, o autor disserta sobre o alcance do Orientalismo, trazendo a visão ocidental acerca do Oriente. Inicia seu relato voltando-se ao pensamento europeu durante o século XIX (e também nos primórdios do século XX). Primeiramente, através da exposição do discurso proferido por Arthur James Balfour à Câmara dos Comuns, no ano de 1910, denota a condição de superioridade auto-proclamada pela comunidade européia (essencialmente os ingleses) em detrimento às civilizações orientais – no caso descrito, os egípcios. Isto porque o Egito, conquanto colônia da Inglaterra, havia sido, durante os anos anteriores, administrativamente subordinado aos britânicos. As idéias de dominação intelectual advinham de uma linha de pensamento desenvolvida pelos próprios colonizadores, baseados em sua visão pessoal, e no convívio com os colonizados. Ao empreender contato com sua raça, cultura, tradições, história e caráter, e lançar juízos de valor, estabelecendo comparação com sua própria realidade, terminavam por conceituar o oriental sob títulos por vezes degradante. Para o estudioso, o homem oriental era sempre contido e representado por estruturas dominantes. Destas estruturas, nasceram os juízos que compõem o conceito de orientalismo. Embora o autor saliente que se trata de conceito extremamente vago, é dele que derivam as noções do Oriente grafadas pelos manuais, livros e demais produções do Ocidente. Defende o autor, assim, que a acepção pela qual se divide o mundo em “oriente” e “ocidente”, embora resguardada sob inocente desígnio de mera distinção, serve, na realidade, para intensificar as diferenças e obstar quaisquer tentativas de aproximação entre as culturas. A tradição orientalista, ao apontar a existência de tantas diferenças, constitui-se num convite à subjugação oriental. 1
  • 2. Explica que um conceito mais restritivo de “orientalismo” conceituaria o termo como um campo de estudos eruditos, fundados na unidade geográfica, cultural, lingüística e étnica do Oriente. Geograficamente, é como se houvesse uma linha imaginária a dividir o continente europeu do asiático com linhas muito mais profundas. Culturalmente, a própria literatura e arte produzida no Ocidente tende a corroborar este pensamento. O autor cita, como exemplo, passagens da Divina Comédia, do italiano Dante Alighieri, em que o profeta Maomé é visto como “morador do inferno”, dentre outras obras. Desta forma, o estudioso explicita que não pode ser adotado de forma plena, filosoficamente, o pensamento e visão orientalista, sob risco de tomar por realidade o que constitui, tão somente, uma visão distorcida. Para ele, do ponto de vista psicológico, o orientalismo é uma “paranóia”, resultado de conceitos e idéias traçados desde o século XIX. A grande verdade é que o desenvolvimento das idéias sobre o mundo oriental sempre foi processo eivado de preconceitos.O autor cita, como exemplo, a biografia do profeta Maomé, escrita por Humphrey Prideaux, que tinha como subtítulo “A verdadeira natureza de uma impostura”. Não se tratava de um “ataque” verbal ao profeta, mas ao próprio berço cultural que o gerou. Outra situação apontada pelo autor, quanto à visão trazida pelo Orientalismo, diz respeito, essencialmente, ao Islã. A referência de Oriente que temos, quando não incutida de exotismo ou distância, volta-se para o islamismo em suas manifestações culturais e de religiosidade. Anteriormente ao século XVIII, aliás, toda a conceituação de Oriente vinha impregnada de referências ao “ameaçadores” árabes, islâmicos e otomanos. Tal idéia só passou a ser modificada quando do surgimento de trabalhos científicos que se voltavam à cultura e aos costumes ali perpetrados sob ótica diversa daquela exclusivamente européia. Como exemplo, o trabalho desenvolvido pelo estudioso Abraham-Hyacinthe Anquetil-Duperron, e também por William Jones, que igualmente interferiram na forma com que se via o “mundo oriental”. Graças a eles, o sânscrito, a religião e a história indiana passaram a ser admitidos como fontes de conhecimento científico. Todavia, explicita o autor que O conhecimento apropriado do Oriente começava por um completo estudo dos textos clássicos e só depois passava a aplicação desses textos ao Oriente moderno. Em face da óbvia decrepitude e impotência política do oriental moderno, o orientalista europeu considerava como dever dele resgatar urna parte de urna perdida grandeza c1ássica do passado oriental, de maneira a "facilitar os melhoramentos" no Oriente do presente. O que o europeu tomava do passado clássico oriental era urna visão (e milhares de fatos e artefatos) que apenas ele podia empregar com maior vantagem; para o oriental moderno ele dava íacilitacóes 2
  • 3. e melhoramentos - e, também, o benefício do seu julgamento sobre o que era melhor para o Oriente moderno. (p. 88) As incursões de Napoleão ao Egito, embora visassem a dominação do local, também foram de grande valia aos projetos orientalistas. O imperador, fascinado pelo Oriente, solicitou trabalhos de muitos sábios, destacando-se aqueles desenvolvidos pelo conde de Volney, para desenvolver seu conhecimento sobre o local. Assim, ao iniciar seus projetos de conquista, intentou a dominação pela conquista da confiança dos habitantes, inclusive misturando-se a eles em suas manifestações culturais e desenvolvendo relações próximas com muçulmanos. Napoleão tinha, entretanto, muitos outros objetivos: pretendia “instruir” o Oriente, dentro das maneiras do Ocidente, subordinar seu poderio militar e reformular a cultura, identidade e definição do Oriente, alocando-o dentro da história de “glórias” do próprio imperador. Todavia, o fracasso das pretensões napoleônicas não foi capaz de destituir a importância de suas notáveis contribuições de cunho artístico, textual e cientifíco. Ademais, seguiram-se novas missões ao Oriente, em busca de um período de “novos projetos, novas visões, novas empreendimentos que combinassem partes adicionais do velho Oriente com o espírito conquistador europeu” (p. 96). O século XIX trouxe, assim, novas possibilidades e perspectivas, inda mais depois da histórica conquista de De Lesseps, ao atravessar o Canal de Suez. Surgiram novos estudiosos e farta produção acadêmica. Neste sentido, salienta que Para o Ocidente, a Ásia representara outrora a distância silenciosa e a alienação: o Islã era a hostilidade militante ao cristianismo europeu. Para superar essas temíveis constantes, o Oriente precisava primeiro ser conhecido, depois invadido e possuído, e entáo recriado por estudiosos, soldados e juizes que desenterraram línguas, histórias, raças e culturas esquecidas, de maneira a situá-las - além do alcance do oriental moderno - como o verdadeiro Oriente clássico que poderia ser usado para julgar e governar o Oriente moderno. (p. 103) O autor, no entanto, critica estes trabalhos porque, em sua maioria, baseavam-se tão-somente em perspectivas não-empíricas, como aquelas a embasar a proposta Napoleônica. Identifica, no orientalismo ao longo do século XIX, dois traços principais: a autoconsciência científica, baseada na importância lingüística do Oriente para a Europa, e a inclinação a interferir no tema sem, no entanto, mudar de opinião sobre o Oriente como algo imutável, uniforme, embora peculiar (p. 107). O Oriente era apenas “olhado”, observado, como salientara Flaubert. O orientalista moderno, assim, disfarçava sua antipatia de conhecimento profissional, e rigorosismo científico. O Oriente era visto apenas dentro de uma concepção técnica, que, após a Primeira Guerra, perderia parte de seu encanto. Assim 3
  • 4. O campo de ação do orientalismo correspondia exatamente ao campo de ação do império, e foi essa absoluta unanimidade entre os dois que provocou a única crise na história do pensamento ocidental sobre o Oriente e nas suas tratativas com este. E a crise continua até hoje (p. 113). No século seguinte, a crise agigantar-se-ia, a ponto de estudiosos de renome passarem a referir-se ao Islã como mera “tenda e tribo” (p. 114). Outras atitudes orientalistas contemporâneas passaram a existir, evidenciando a nova ordem. Surgem as figuras dos chineses pérfidos, indianos seminus e muçulmanos passivos, considerados mesmo como “abutres” à generosidade ocidental. O homem ocidental passou a analisar, esmiuçar e julgar todo o comportamento oriental. Conforme ressaltado pelo autor, os textos orientalistas não poderiam, mesmo com tanta riqueza de “detalhes”, preparar seus leitores ao grandes conflitos que se principiaram na região após o final da Segunda Guerra Mundial. O mundo passaria a questionar, chocar-se e aumentar a distância, mais que física, entre os extremos. Como solução para isto, aponta a necessidade de trabalhos despidos dos velhos e novos preconceitos. Para o estudioso, “Investigar o orientalismo é também propor modos intelectuais de tratar os problemas metodológicos a que a história deu origem, por assim dizer, em seu tema de estudos, o Oriente” (p. 119). Deste modo, no segundo capítulo, intitulado “Estruturas e estruturas orientalistas” o autor busca destrinchar, cronologicamente, as principais obras e produções sobre o Oriente, indicando os mecanismos utilizados em sua produção e, ao mesmo tempo, trazendo uma farta explanação sobre como se deu o desenvolvimento, e também as transformações, das visões acerca do Oriente. Neste capítulo, inicia evocando, precipuamente, a necessidade de se retraçar as fronteiras e redefinir as questões de estudo. Indica que, no orientalismo moderno, permanecem ainda os elementos de correntes de pensamento inerentes ao século XVIII – a expansão, o confronto histórico, a solidariedade e a classificação. Sem a presença de tais elementos, aponta que, muito provavelmente, a concepção moderna do orientalismo não teria existido, mas se constituiria de ideais libertadores, amplos e realmente “modernos”. O orientalista se autodenominava como um herói, um desbravador, mas, na opinião do autor, não o era. Isto porque não deixava o Oriente “falar por si” (p. 131). Dois estudiosos, neste aspecto, foram de fundamental importância, ainda no século XIX: Silvestre de Sacy e Ernest Renan. Sacy, em suas obras, tomava um tom pessoal, isolando o Oriente e, de maneira didática, passava a exibi-lo, em suas partes mais representativas. Deste modo, trazia à tona seu poder, como autoridade no assunto, de significar o Oriente, buscando 4
  • 5. decifrá-lo e, a seguir, disponibilizando seu conhecimento. É, por isto, considerado o “pai” do Orientalismo – embora aqueles que o seguiram, ao interpor suas próprias visões pessoais, não puderam desenvolver com tanta maestria. Renan, noutro sentido, desenvolveu seu trabalho associando o Oriente às modernas disciplinas comparativas, como a filologia, conferindo maior visibilidade às estruturas do Orientalismo. Utilizava-se, assim, ao se referir ao Oriente, de uma linguagem extremamente enraizada em linhas filológicas, que era empolgada e romântica. Entretanto, por motivações pessoais, Renan havia substituído sua fé cristã pelo estudo do semítico e, ao fazer afirmações sobre povos judeus ou muçulmanos, o fazia sempre com severas restrições. Assim, “todo o esforço de Renan foi para negar a cultura oriental o direito de ser gerada, a não ser. artificialmente no laboratório filológico” (p. 156). Mas Renan não era o único. Os orientalistas, como muitos pensadores do início do século XIX, concebem a humanidade como grandes termos coletivos ou como generalidades abstratas. Os orientalistas nem estão interessados nem são capazes de discutir indivíduos; em vez disso, o que predomina são as entidades artificiais, talvez com raízes no populismo herderiano. Há orientais, semitas, asiáticos, rnuçulmanos, árabes, judeus, raças, mentalidades, nações e coisas do gênero, algumas delas o produto de operações eruditas do tipo encontrado na obra de Renan. Do mesmo modo a distinção, velha de séculos, entre a "Europa" e a "Ásia", ou "Ocidente" e "Oriente" carrega, sob rótulos muito abrangentes, todas as variações possíveis da pluralidade humana, reduzindo-a no processo a urna ou duas abstrações coletivas terminais. (p. 163). O autor cita, como embasamento, obras e pensamento de Marx que trouxeram considerações de grande importância sobre o tema. Destaca, então, o trabalho de Lane, estudioso inglês que reprogramava e re-situava essencialmente o Oriente quando escrevia sobre ele. Utilizava-se da prosa normativa européia para descrever, de maneira acessível ao Ocidental, as excentricidades do oriental, com seus calendários diversificados, as diferenças lingüísticas e até mesmo a ausência do decoro moralista típico do povo europeu. Salienta ainda que, ao longo do século XIX, houve um enriquecimento destas idéias por ser o Oriente um grande núcleo de roteiros turísticos. A população estava ávida pelo Oriente, embora buscasse mais um aspecto externo que interno. O orientalista, neste cenário, se via como um observador, escritor. Absorvia e exalava conhecimento, dentro da poesia, da atmosfera e das possibilidades que tanto encantavam o mero observador, viajante em busca de exotismo. Chateaubriand, francês, em suas expedições, também participou deste momento, retransmitindo suas experiências e impressões. 5
  • 6. Inúmeros estudiosos seguiram-se, buscando recolher notas e construções acadêmicas pessoais acerca do Oriente. Destacam-se, para o autor, os esforços de Burton, que, desenvolvendo um trabalho intermediário entre o intenso subjetivismo e a imparcialidade extrema, que eram características marcantes em seus antecessores, trouxe documentação farta e gerou uma produção bem fundamentada e rica em detalhes. O terceiro capítulo, cognomizado “O orientalismo hoje”, inicia-se com um retorno às explanações iniciais, tendo por objeto reiterar o desígnio indicado pelos capítulos anteriores. O autor explica que, pela utilização de obras dos grandes escritores, filósofos e poetas que usaram o Oriente como referencial, construiu uma caricata figura, que representa o Orientalismo em suas vertentes, conquanto direcionamento científico. E, sobre a forma com que foi concebido, aduz: O Oriente que aparece no orientalismo, portanto, é um sistema de representações enquadrado por todo um conjunto de forças que introduziram o Oriente na cultura ocidental, na consciência ocidental e, mais tarde, no império ocidenta1. Se esta definição do orientalismo parece mais política que outra coisa, isso acontece apenas porque acredito que o próprio orientalismo foi um produto de certas forcas e atividades políticas. O orientalismo é urna escola de interpretação cujo material, por acaso, o Oriente, suas civilizações, seus povos e suas localidades. (p. 209) Por tal expediente, o autor traz que o orientalismo não é apenas doutrina positiva, mas uma realidade de caráter multifacetário, servindo-se conquanto orientação acadêmica e área de interesse para curiosos e interessados dos mais diversos campos de atuação. Conclui que, no século XIX, o europeu tinha visão puramente racista do Oriente, por enxergar o mundo de forma etnocêntrica. Foram precisos esforços e pressões de cultura geral para que, diferenciando-se corretamente Leste e Oeste, se pudesse construir uma ciência despida dos preconceitos anteriormente vigentes. O autor distingue o orientalismo latente, formado por concepções inconscientes e intangíveis do Oriente, do orientalismo manifesto, que é este conjunto de visões e idéias que se encontram declaradas, impressas, transmitidas. Explica que o interesse europeu, e depois o americano, pelo Ocidente, principiou-se por motivação de ordem histórica (pelas lutas e conquistas territoriais, por exemplo), mas que a cultura foi quem, de fato, intensificou o interesse, ainda que agindo em conjunto com as fundamentações políticas, econômicas e militares. Assim, misturando-se no cenário aquilo que é manifesto àquilo que é puramente insinuado, o autor indica que o orientalismo foi se descortinando em todas as suas ramificações, erros e acertos. 6
  • 7. E, no entanto, apesar dos seus fracassos, da sua lamentável linguagem especializada, do seu mal ocultado racismo e da fragilidade do seu aparato intelectual, o orientalismo floresce hoje nas formas que tentei descrever. De fato, há urna razáo para alarme no fato de a sua influência ter se estendido ao próprio Oriente; as páginas dos lívros e jornais em língua árabe (e sem dúvída ern japones, em diversos dialetos indianos e em outras línguas orientais) estáo cheias de análíses de segunda categoria feitas por árabes sobre "a mente árabe", "o islã” e outros mitos. (p. 326) Ao final, aludindo ao deslocamento da hegemonia dos países europeus à América, e mais intensamente aos Estados Unidos, conquanto potência altamente influenciadora, volta-se para as realidades intelectuais e sociais do orientalismo predominantes no “Novo Mundo”. Ressurgem, ainda que de forma disfarçada, o dirigismo intelectual, a supremacia auto-proclamada e muitos preconceitos velados. O autor explicita que os americanos mantém sob constante vigilância, e até mesmo sob sua dominação, a economia do Oriente – e cita, além da questão do petróleo, o crescente consumismo dos povos orientais, que digerem os produtos da nova cultura de forma ávida. Há uma desvalorização, pouco percebida, da própria cultura. E tais considerações são explicitadas quando o autor diz que Há todo tipo de outras indicações de como é mantida a dominação cultural, tanto por consentimento oriental quanto por pressões econômicas diretas e grosseiras por parte dos Estados Unidos. Faz-nos mais moderados descobrir, por exemplo, que, ao passo que existem dúzias de organizações nos Estados Unidos para estudar o árabe e o Oriente islâmico, não existe nenhuma no próprio Oriente para estudar os Estados Unidos, de longe a maior influencia econômica e política na região. Pior, mal existem quaisquer instituições, até mesmo de estatura modesta, no Oriente, devotadas ao estudo do Oriente. (p. 328) O autor aponta, assim, soluções a serem consideradas para a compensação, e a transmutação, destes fenômenos. Indica a possibilidade de uma “descolonização”, lançando-se mão, igualmente, da individualização das culturas, postura passível de trazer, como conseqüência, o fim do “narcisismo” e das hostilidades em relação ao outro. Embora acredite que a erudição nos discursos, e a maneira sempre intelectual, ideológica, fantasiosa e política com que o orientalismo se propaga, não possam ser de todo sanadas, Said acredita que, amoldando-se às vivências e sendo estas iluminadas pelo estudo, será possível atingir patamares mais elevados de consciência. E, por conseguinte, lançar mão de todas as construções equivocas que até então se fizeram, a fim de produzir uma nova realidade. Encerra, sob tal interesse, indicando que, se porventura “(...) o conhecimento do orientalismo tem qualquer sentido, é como um lembrete da sedutora 7
  • 8. degradação do conhecimento, qualquer conhecimento, em qualquer lugar, a qualquer momento. Hoje em dia talvez mais que antes”. (p. 332) Fato é que são evidentes os esforços do autor no sentido de decompor o orientalismo sob todas as figuras que se impõe a título de conceito, e analisar, de maneira pormenorizada, os erros e acertos que o construíram, ao longo do tempo, até adquirir a forma que possuía quando da produção de sua obra. Embora de forma repetitiva e, por vezes, até confusa, no tocante à (des)construção histórica que antecede suas considerações críticas, o autor denota franca insatisfação com a realidade intelectual e doutrinária propagada à sua época, mas esperanças de transformação, ainda que vagarosa. No intróito da obra, o autor salienta sua vontade de realizar um “desaprendizado”, ou seja, um trabalho inverso, visando limpar do “sendo comum” tudo o que se divulgou, ensinou e propagou acerca do Oriente quando fundado em proposições que não possuíam o necessário embasamento fático. É visível que, quando propaga seus maiores temores voltados às imprecisões e distorções, o autor quer reforçar este desejo de encontrar caminhos para corrigir as falhas, ou ao menos sanar seus efeitos. O problema é encontrar um ponto de equilíbrio. Ou, mais corretamente, uma fórmula suficiente para, correndo contra o tempo ao apagar todas as impressões errôneas até então construída, não se omitissem as novas concepções, sendo possível, igualmente, corrigi-las antes mesmo de se propagarem. A verdade é que, num mundo globalizado, o conhecimento é transmitido em proporções inimagináveis, e velocidade vertiginosa. Não é apenas o ambiente que sofre alterações, mas a visão que dele se têm. A “moda” surge como termo e sentido para explicar tamanha maleabilidade nos pensamentos e vontades humanas; porém, não é capaz de descrever por qual motivo surgem e somem tão rapidamente ídolos, arquétipos e, também, opiniões. Em seu prefácio à edição de 2003, o autor declara que permanecem surgindo mudanças, conflitos e controvérsias no Oriente. E de fato, estas é que tornam sua obra, ainda que pautada muito mais em fenômenos históricos que num “futurismo” ficcional, sempre atualizada e utilizável. Por certo que, ao encerrar o estudo já prenunciando uma visão oriental burlesca - que padeceria dos vícios da teatralidade e da comicidade com que os americanos desenham as outras sociedades - o autor sequer vislumbrava realidade tão difusa 8
  • 9. e completamente distante das propostas que trouxera, em que o modo de vida do “outro” seria analisado por óticas pessoais e a cultura alheia termina como objeto de depreciação. Os muitos conflitos no Oriente Médio; o surgimento de líderes religiosos e políticos que, de certa forma, ameaçaram a “invasão cultural” americana; as ações de grupos terroristas radicais e, com muito maior propriedade, o ataque às Torres Gêmeas, no fatídico 11 de setembro, inegavelmente fizeram ressurgir, com maior intensidade, os preconceitos ocidentais atribuídos ao século XVIII. O oriental deixou de ser um factóide e tornou-se uma ameaça. Do dia para noite, indivíduos de origem islâmica se viram alvos de perseguições das mais diversas searas. Prisões infundadas, agressões, tudo era meio para externar a intolerância, que, sob a justificativa do medo, talvez escondesse pretensões muito mais densas. Transcorridos tantos anos, e já com o anúncio do novo presidente americano da saída progressiva de suas tropas do território oriental, poderia um perfeito otimista imaginar que o pensamento “dominante” ocidental estaria prestes a dar uma trégua ao oriental. A verdade é que, ainda que não hajam mais perseguições, o preconceito continua, sempre velado, subentendido, maquiado. Talvez, ao analisar com maior acuidade todas as progressivas edificações históricas da obra de Edward W. Said, e transportá-las à nossa realidade, o leitor fique com a impressão de que, no fundo, não houve uma “evolução”, mas apenas o surgimento de novos pontos de vista que não excluíram, em momento algum, aqueles crendices dos colonizadores. Não foi o colonialismo quem criou, sozinho, a idéia imperativa de Oriente. Antes mesmo de ir ao seu encontro, o Ocidente já havia se apropriado, intelectualmente, do Oriente, por suas produções ideológicas e míticas. E a própria sociedade moderna, mesmo possuindo meios para obter conhecimento adequado, limita-se a aceitar e fazer reviver estes ideais, tão imprecisos quanto os vigentes no século XVIII. Mesmo pertencendo a um país dito “terceiro mundo”, somos convidados, diariamente, pela TV, pelos filmes, pela internet, e por todos os demais meios de comunicação, a desbravar um Oriente que ainda é visto como fonte de exotismo, imoralidade e primitivismo. Sua cultura, seus costumes, suas vestimentas, sua religião, não nos são mostrados de maneira respeitosa, parcial, equânime. Somos convidados a não apenas julgar, como também a condenar, arbitrariamente, os povos ali instalados. E estes cedem, cada vez mais, espaço aos “ocidentalismos”. 9
  • 10. O que falta à obra de Said quiçá seja a presença de discurso mais acessível – embora não lhe falte atualidade. Porque, embora tão divulgada, traduzida e propagada, sofre do mesmo mal que grandes produções literárias universais: a impossibilidade de atingir, fundamentalmente, o público a que se destina. Seu discurso, por vezes recaindo em preciosismos e circunlóquios filosóficos, embora recheado de boas intenções, por vezes chega muito próximo à erudição que tanto condena ao longo da obra. Claro que, alterar-lhe a forma ou o conteúdo, inda mais sem a presença física do autor e, portanto, sem o seu expresso consentimento, poderia implicar em empobrecê-la. A solução seria, talvez, acrescer-lhe novos exemplos práticos, dentro das sociedades para onde o livro é traduzido, possibilitando sua utilização até mesmo fora dos meios acadêmicos, fazendo com que se tornasse representação viva daquilo que apregoa. E se, a título de ideação, optamos por tal proposição, é justamente por acreditar, sinceramente, que obra de tão grande valor merece lugar de destaque não apenas nas bibliotecas, mas também nas livrarias. Se a cultura de massa orienta que todos adquiram, leiam e apliquem em sua vivência produções voltadas ao enriquecimento subjetivo, sob o tema da “auto-ajuda”, porque não seria possível propagar obras de interesse continental, mundial? Deste modo, poderia a leitura trazer perspectivas ponderadas sobre o Oriente mesmo ao indivíduo desprovido de recursos, que não poderia jamais se deslocar às suas expensas e, partindo rumo ao Oriente como estudioso e não como breve turista, “ver para crer”. Este indíviduo é quem, hoje, vem sendo o grande alvo da contracultura, e seu maior divulgador. Fornecendo-lhe novas visões poderia abandonar aqueles conceitos errôneos, e, quem sabe, substituir os juízos de valor até então construídos. Seria lícito, deste modo, não apenas ao erudito, mas a qualquer pessoa, construir concepções modernas e seguras sobre as fronteiras geográficas a separar tão díspares, e tão idênticas, porções da Humanidade. E, permitindo que o conhecimento fosse semeado, o Oriente não seria mais objeto de temores, nem de confabulações infundadas, mas, ao menos, de respeito. No fundo, cremos ser esta a pretensão de Said, em suas inúmeras tentativas de chamar a atenção do leitor, ao longo de toda a discussão, para a injustiça que se perfazia não tanto dos comportamentos ocidentais, mas com maior gravidade de seus pensamentos. Considerando-se as recentes produções artísticas voltadas ao Oriente, e divulgada nos meios de massa, temos que este escopo, embora implícito, não poderia ser mais apropriado. 10