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POEMAS DE MANOEL FILIPE DE SOUSA
Protesto
Na garras da doença, já quase a finar,
N’um leito de dores jazia o marido,
Que havendo co’a esposa bem mal convivido,
Nenhumas saudades iria deixas.
E ella, sequiosa por vel-o expirar,
Exclama, ás ocultas, ao ronco da chuva :
“ Cincoenta ou mais vezes que eu fique viúva,
Ninguém mais me pilha, não torno a casar !”
Sem fala (?)
N’uma rêde descuidosa,
A menina se embalava,
Sorria e cantarolava,
Folgazona e preguiçosa.
Mas quem cuidados não tem,
Faz mesmo o que Ella fazia :
Cada vez mais impellia
A rêde no seu vai-vem.
Mas eis que a corda estalando,
Vai Ella veloz rolando
Pelo chão duro da sala.
Quer levantar-se e não póde,
E grita : “Mamãe, me acode !
Me acode, que estou sem fala !”
O que é que Deus não sabe?
E’ negocio sem questão
Que Deus vê e sabe tudo,
E’ exacto, mas comtudo
Ha mais de uma excepção.
Não me chamem Maganão,
Idiota ou abelhudo,
Libertino sobretudo,
Pois de fato sou christão.
“O que é que Deus ignora?”
Pensará o leitor agora,
Todo patusco e a rir.
Ignora, digo eu :
Não sabe, nunca aprendeu
A conta repartir.
Um sonho
No cimo de um monte de enorme fundura,
Pequeno, acanhado, comprido, sem fim,
Um vulto avistei, gentil, hediondo,
Voltado de costas, olhando p’ra mim.
Tomado de susto, sem medo sem nada,
Corri pra elle com todo o vagar.
Meus pés de tão leves no chão se enterravam,
Até que bem longe fui nelle esbarrar.
Era uma deidade de oitenta janeiros,
De rosto tão lindo, qual feia coruja.
Na rica toilette, formada de andrajos,
Brilhava a brancura da roupa mais suja.
Assim que me viu, deu uma risada
Tão alta, estridente, que mal percebi.
Seu corpo alongou-se, ficando tão grande,
Que a custo e de perto no chão distingui.
Depois, inclinando-se, e’ os braços abertos,
Com gestos ridentes, chorosos até,
Tentou abraçar-me com meiga ternura,
E ao longe atirou-me com um pontapé.
Então, acordei, o sonho esvaiu-se,
Tirando-me das costas o peso de um fardo.
Era meia-noite e o sol, já bem alto,
Batia de chapa na testa do bardo.
Quinau
_ Que você, sor sachristão,
Nada sabe, está bem visto,
Si não quer que eu fale n’isto,
Responda a esta questão :
Durante a sua paixão,
Em que logar Jesus Christo
Foi encontrado ou visto
Por sua mãe?... Responde ou não?
_Isso é cousa tão sabida
Que póde ser respondida
Até por um papagaio :
Jesus, na sua agonia,
Encontrou-se com Maria
Lá no Becco do Sampaio.
Chromo
Envolto em denso negrume,
O astro-rei se escondia ;
Ao sinal da Ave Maria
Desprende o sino um queixume.
Nuvem de immenso volume
Negra procella annuncia,
Já os espaços fendia
D’igneas espadas o gume.
Raios, coriscos, trovões,
Tempestades, furacões,
Por toda parte é o que vejo !...
Tudo afinal vai cessando,
E o sol, no ocaso tombando,
Despede um último lampejo.
Receita
Fui pedir a um pharmaceutico
Um remédio pra callo :
“Espere que eu já lhe fallo...”
E pegou n’um formulário.
Depois, c’o livro na mão,
Me disse com ar de tédio :
“P’ra callo, o único remédio
E’ andar c’o pé no chão.
_ Que receita vem me dar !
Ora andar c’o pé no chão !
Si assim fosse, eu estava são ;
Nunca andei c’o ele no ar !
Qvantvm Mvtatvs...
I
Um gigante dormia áquem do mar,
Dormia no seu solio soberano.
Cerúlea immensidade do oceano
Velava o seu tranquilo resomnar.
Sem cuidados, sem sonho e sem scismar,
Sem vexame, sem jugo, sem tyranno,
Via o tempo ir rolando de anno em anno,
Dos sec’los o continuo desfilar.
Amethystas, topazios e diamantes,
Metaes e pedrarias offuscantes
Soberba e rica flora mal encobre.
Este immenso thesouro inexplorado
Com desdem era visto e despresado
Por inc’las semi-nús e côr de cobre.
II
Mas um dia mudou-se seus futuro :
Elle viu-se de xofre despertado,
Apenas seu dorso foi pisado
Por Colombo, o valente palinuro.
O índio côr de cobre e pello duro,
Surpreso, descontente, intimidado,
Vai procurando o bosque mais cerrado
Entre pragas, protestos e esconjuros.
E desta sorte tudo se transforma,
O costume europeu impoe a norma
Ao gigante que acaba de accordar.
A taba pouco a pouco despovoa
O indio que ao deserto corre, voa,
Como estatuas de bronze a desfilar.
III
Correndo com as feras dos covis,
Perplexas da feroz hilaridade,
O gentio demanda a liberdade
No denso coração de seu paiz.
E lá onde da selva a imperatriz
Se embalava em serena ociosidade
Brancas divas, princezas da cidade,
Arrastam lindas sedas de Paris.
Vem depois do cocar o chapelinho,
Teteias de filós e brando arminho
E outras que minha Penna mal define.
Em vez da inubia tosca do selvagem
Repete o perpassar da branda aragem
As doces partituras de Bellini.
Musa ingrata!
Os dois empresarios do nosso Almanach
P’ra mil novecentos e quatro pediram
Que eu desse umas linhas direitas ou tortas.
Mas olha ! não faltas ! por fim repetiram.
E eu tencionava mandar uns versinhos.
Lancei mão da Penna, papel para a frente,
Escrevo, rabisco, cancello, corrijo,
E os versos não saem, mas zombam da gente !
Tentei muitos dias e a musa garota
Com duro cynismo negou-me bafejos,
Até que afinal não quis mais saber
Si as musas dão coices, abraços ou beijos.
Fez bem, amigo, eu lhe disse
O verso, manjar do nobre,
Não é feijão com torresmo
Da mesa da gente pobre.
Flagellamos o bestunto
E no fim a goiabada
Não tem poesia nem estro,
Não tem escola nem nada.
Disctracção
A penna quase sem dono
Vai fazendo garatuja;
Aqui risca, acolá suja,
Deixada assim no abandono.
Mas vendo o escriptor que aquillo
Não ha mesmo quem intenda,
Recomeça, erra, emenda
Depois de cada cochilo.
P’ra não ter que repetir
E não mais se distrahir,
Toma sentido e cautela...
E, assumindo um ar bizarro,
Na tinta accende o cigarro
E a penna molha na vela.

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  • 1. POEMAS DE MANOEL FILIPE DE SOUSA Protesto Na garras da doença, já quase a finar, N’um leito de dores jazia o marido, Que havendo co’a esposa bem mal convivido, Nenhumas saudades iria deixas. E ella, sequiosa por vel-o expirar, Exclama, ás ocultas, ao ronco da chuva : “ Cincoenta ou mais vezes que eu fique viúva, Ninguém mais me pilha, não torno a casar !” Sem fala (?) N’uma rêde descuidosa, A menina se embalava, Sorria e cantarolava, Folgazona e preguiçosa. Mas quem cuidados não tem, Faz mesmo o que Ella fazia : Cada vez mais impellia A rêde no seu vai-vem. Mas eis que a corda estalando, Vai Ella veloz rolando Pelo chão duro da sala. Quer levantar-se e não póde, E grita : “Mamãe, me acode ! Me acode, que estou sem fala !” O que é que Deus não sabe? E’ negocio sem questão Que Deus vê e sabe tudo, E’ exacto, mas comtudo Ha mais de uma excepção. Não me chamem Maganão, Idiota ou abelhudo, Libertino sobretudo, Pois de fato sou christão. “O que é que Deus ignora?” Pensará o leitor agora, Todo patusco e a rir.
  • 2. Ignora, digo eu : Não sabe, nunca aprendeu A conta repartir. Um sonho No cimo de um monte de enorme fundura, Pequeno, acanhado, comprido, sem fim, Um vulto avistei, gentil, hediondo, Voltado de costas, olhando p’ra mim. Tomado de susto, sem medo sem nada, Corri pra elle com todo o vagar. Meus pés de tão leves no chão se enterravam, Até que bem longe fui nelle esbarrar. Era uma deidade de oitenta janeiros, De rosto tão lindo, qual feia coruja. Na rica toilette, formada de andrajos, Brilhava a brancura da roupa mais suja. Assim que me viu, deu uma risada Tão alta, estridente, que mal percebi. Seu corpo alongou-se, ficando tão grande, Que a custo e de perto no chão distingui. Depois, inclinando-se, e’ os braços abertos, Com gestos ridentes, chorosos até, Tentou abraçar-me com meiga ternura, E ao longe atirou-me com um pontapé. Então, acordei, o sonho esvaiu-se, Tirando-me das costas o peso de um fardo. Era meia-noite e o sol, já bem alto, Batia de chapa na testa do bardo. Quinau _ Que você, sor sachristão, Nada sabe, está bem visto, Si não quer que eu fale n’isto, Responda a esta questão : Durante a sua paixão, Em que logar Jesus Christo Foi encontrado ou visto Por sua mãe?... Responde ou não? _Isso é cousa tão sabida Que póde ser respondida Até por um papagaio :
  • 3. Jesus, na sua agonia, Encontrou-se com Maria Lá no Becco do Sampaio. Chromo Envolto em denso negrume, O astro-rei se escondia ; Ao sinal da Ave Maria Desprende o sino um queixume. Nuvem de immenso volume Negra procella annuncia, Já os espaços fendia D’igneas espadas o gume. Raios, coriscos, trovões, Tempestades, furacões, Por toda parte é o que vejo !... Tudo afinal vai cessando, E o sol, no ocaso tombando, Despede um último lampejo. Receita Fui pedir a um pharmaceutico Um remédio pra callo : “Espere que eu já lhe fallo...” E pegou n’um formulário. Depois, c’o livro na mão, Me disse com ar de tédio : “P’ra callo, o único remédio E’ andar c’o pé no chão. _ Que receita vem me dar ! Ora andar c’o pé no chão ! Si assim fosse, eu estava são ; Nunca andei c’o ele no ar ! Qvantvm Mvtatvs... I Um gigante dormia áquem do mar, Dormia no seu solio soberano. Cerúlea immensidade do oceano Velava o seu tranquilo resomnar.
  • 4. Sem cuidados, sem sonho e sem scismar, Sem vexame, sem jugo, sem tyranno, Via o tempo ir rolando de anno em anno, Dos sec’los o continuo desfilar. Amethystas, topazios e diamantes, Metaes e pedrarias offuscantes Soberba e rica flora mal encobre. Este immenso thesouro inexplorado Com desdem era visto e despresado Por inc’las semi-nús e côr de cobre. II Mas um dia mudou-se seus futuro : Elle viu-se de xofre despertado, Apenas seu dorso foi pisado Por Colombo, o valente palinuro. O índio côr de cobre e pello duro, Surpreso, descontente, intimidado, Vai procurando o bosque mais cerrado Entre pragas, protestos e esconjuros. E desta sorte tudo se transforma, O costume europeu impoe a norma Ao gigante que acaba de accordar. A taba pouco a pouco despovoa O indio que ao deserto corre, voa, Como estatuas de bronze a desfilar. III Correndo com as feras dos covis, Perplexas da feroz hilaridade, O gentio demanda a liberdade No denso coração de seu paiz. E lá onde da selva a imperatriz Se embalava em serena ociosidade Brancas divas, princezas da cidade, Arrastam lindas sedas de Paris. Vem depois do cocar o chapelinho, Teteias de filós e brando arminho E outras que minha Penna mal define. Em vez da inubia tosca do selvagem Repete o perpassar da branda aragem
  • 5. As doces partituras de Bellini. Musa ingrata! Os dois empresarios do nosso Almanach P’ra mil novecentos e quatro pediram Que eu desse umas linhas direitas ou tortas. Mas olha ! não faltas ! por fim repetiram. E eu tencionava mandar uns versinhos. Lancei mão da Penna, papel para a frente, Escrevo, rabisco, cancello, corrijo, E os versos não saem, mas zombam da gente ! Tentei muitos dias e a musa garota Com duro cynismo negou-me bafejos, Até que afinal não quis mais saber Si as musas dão coices, abraços ou beijos. Fez bem, amigo, eu lhe disse O verso, manjar do nobre, Não é feijão com torresmo Da mesa da gente pobre. Flagellamos o bestunto E no fim a goiabada Não tem poesia nem estro, Não tem escola nem nada. Disctracção A penna quase sem dono Vai fazendo garatuja; Aqui risca, acolá suja, Deixada assim no abandono. Mas vendo o escriptor que aquillo Não ha mesmo quem intenda, Recomeça, erra, emenda Depois de cada cochilo. P’ra não ter que repetir E não mais se distrahir, Toma sentido e cautela... E, assumindo um ar bizarro, Na tinta accende o cigarro E a penna molha na vela.