Este estudo analisa o lugar social do fisioterapeuta brasileiro através de entrevistas e dados censitários. Os resultados mostram que a prática dos fisioterapeutas está fortemente ligada ao modelo curativo e privado de saúde, com formação concentrada no sudeste. Há evidências de práticas fragmentadas estimuladas pelo modelo hegemônico, porém também sinais de superação visando a integralidade preconizada pelo SUS.
1. Fisioterapia e Pesquisa, São Paulo, v.16, n.1, p.82-8, jan./mar. 2009 ISSN 1809-2950
O lugar social do fisioterapeuta brasileiro
The social place of Brazilian physical therapists
Ana Lúcia de Jesus Almeida1, Raul Borges Guimarães2
Estudo desenvolvido na FCT/ RESUMO: Este estudo visa compreender a produção do lugar social do fisioterapeuta
Unesp – Faculdade de Ciências brasileiro por meio de suas práticas. O material empírico utilizado foram 89
e Tecnologias da Universidade entrevistas, dados do I Censo de Fisioterapeutas do Estado de São Paulo e
Estadual Paulista, campus de informações sobre os cursos de graduação em Fisioterapia no Brasil. A análise dos
Presidente Prudente, SP, Brasil dados mostrou que o lugar social do fisioterapeuta está fortemente ligado ao modelo
1 curativo, identificado com o ideário liberal-privatista, com instituições formadoras
Profa. Dra. do Depto. de predominantemente privadas e concentradas na região Sudeste. Os resultados
Fisioterapia da FCT/Unesp sustentam evidências de uma prática profissional fragmentada, estimulada pelo
2
Prof. Livre-docente do Depto. modelo hegemônico, mas também apresenta marcas de superação, mostrando a
de Geografia da FCT/Unesp disputa de dois modelos na atenção à saúde: hegemônico e contra-hegemônico.
O primeiro toma a parte pelo todo, fragmenta o conhecimento e o corpo, identifica-
ENDEREÇO PARA se com o liberalismo e tem a saúde como mercadoria; a organização dos serviços
CORRESPONDÊNCIA é centrada na doença e na especialização. O segundo, sem negar a importância
do conhecimento técnico, valoriza as dimensões sociais e humanas na prática
R. Felipe Carnevale 110 profissional, está centrado na pessoa e busca a integralidade e a
Jardim das Rosas interdisciplinaridade. Esse modelo permite ampliar a prática do fisioterapeuta para
19060-220 Presidente além da clínica, em direção a um lugar social mais humano e solidário, identificado
Prudente SP com os princípios do Sistema Único de Saúde. Também permite repensar o atual
e-mail: analu@fct.unesp.br lugar social, oferecendo parâmetros para a reorientação dos caminhos da profissão.
Artigo extraído da tese de DESCRITORES: Fisioterapia (Especialidade); Papel profissional; Sistemas de saúde/
doutorado defendida pela tendências
autora 1 no Programa de Pós-
Graduação em Geografia da ABSTRACT: This study aimed at understanding the social role played by Brazilian physical
FCT em dezembro de 2008. therapists by drawing on their practices. Empirical data included the recordings of
89 interviews with physical therapists, data from the Sao Paulo State First Census of
Physical Therapists, and information on physical therapy undergraduate courses.
The analysis showed that mainstream physical therapy is strongly linked to the
healing model, of liberal ideology; training courses are mostly private and
concentrated in the country’s Southeast, richest region. Results sustain evidence of
a fragmented professional practice, encouraged by the hegemonic model, but also
of signs of conflict between two opposing concepts of health care. The hegemonic
model takes the part for the whole, fragments body and knowledge, bears on
liberalism, where health is taken as a commodity; health care services focus on
illness and value specialization. The counter-hegemonic principles, while not
denying the relevance of technical knowledge, value social and human dimensions
of professional practice, focus on the person, aim at integration of services and
support interdisciplinarity. The counter-hegemonic model tends to widen physical
therapy practice beyond the clinic toward a humanized social role, in accordance
APRESENTAÇÃO with the national health system guidelines. It also allows for rethinking therapists
dez. 2008 current social place, offering parameters for reorientating the profession course of
ACEITO PARA PUBLICAÇÃO action.
mar. 2009 KEY WORDS: Health systems/trends; Physical therapy (Specialty); Professional role
82 Fisioter Pesq. 2009;16(1)
2009;16(1):82-8
2. Almeida & Guimarães O lugar social do fisioterapeuta brasileiro
INTRODUÇÃO tando o lugar social do fisioterapeuta. e Terapeutas Ocupacionais do Estado de
São Paulo17 e uma publicação do Minis-
O lugar social é construído pelos
O objeto de estudo do presente artigo tério da Educação sobre o curso de Fisio-
fisioterapeutas por suas práticas, que car-
é o lugar social dos fisioterapeutas, pro- terapia no Brasil18.
regam significados relacionados com a
duzido por suas práticas. Conforme ire- forma de compreender a sociedade, com
mos argumentar, as práticas tradicionais
dos fisioterapeutas, muitas vezes, resul-
sua visão de saúde, com as relações de
poder estabelecidas no seu espaço. O
RESULTADOS
tam em ações fragmentadas e distantes conceito de lugar enquanto espaço A Fisioterapia teve o auge do seu re-
do conceito de integralidade na saúde1-4. relacional oferece elementos da repro- conhecimento em meados da década de
Essa característica é fruto de um mode- dução da vida social15, portanto, da re- 1990, o que aumentou a procura pelo
lo hegemônico que tende a fazer do produção da fisioterapia na sociedade. curso. Na ocasião, muitas instituições de
exercício profissional a reunião de ações Compreender e refletir sobre esse lugar ensino superior passaram a oferecer gran-
isoladas, individualizadas, descon- social é fundamental como parâmetro des números de vagas em Fisioterapia,
textualizadas4-7. Por outro lado, contra- de reorientação dos caminhos da pro- principalmente as instituições privadas,
ditoriamente, os pacientes ao apresen- fissão. carregando consigo uma prática peda-
tarem suas demandas solicitam do pro-
gógica da Medicina influenciada pelo
fissional uma postura mais global, o que
paradigma newtoniano-cartesiano14. O
exige a superação da condição acima
com ações potencialmente integradoras.
METODOLOGIA crescimento foi grande e o número total
de fisioterapeutas registrados no Coffito
Para caracterizar o lugar social do fi-
Por várias razões o fisioterapeuta4,6,7, – Conselho Federal de Fisioterapia e Te-
sioterapeuta, foram analisados dados de
bem como outros profissionais da saú- rapia Ocupacional – em 1995 era
89 entrevistas feitas por 45 alunos do 1o
de5,8, caminharam para a definição de 16.068; em 2005, os dados apontam
ano do Curso de Fisioterapia do campus
uma forma de atuar com uma lógica de para 79.382 profissionais, mostrando um
de Presidente Prudente da Unesp, no
valorização excessiva da doença, asso- crescimento absoluto de 394% em ape-
primeiro semestre de 2008. As entrevis-
ciando a profissão com a visão curativa, nas dez anos18.
tas foram realizadas tendo como refe-
além de desenvolver práticas distantes
rência um roteiro predefinido (Quadro Esses números estão desigualmente
da interlocução com outras profissões.
1). Foram digitadas sínteses de cada uma distribuídos pelo país. A Figura 1 permite
Na clínica, é comum observar a escassa
das 89 entrevistas realizadas pelos alu- melhor visualizar as diferenças de tama-
existência de equipe multiprofissional e
nos em planilhas, para facilitar a associ- nho de cada Crefito em 2005. As repre-
a dificuldade de encaminhar o paciente
ação de informações comuns, fazendo sentações geométricas são proporcionais
para outras especialidades, porque es-
o exercício, de acordo com Minayo16, ao total de fisioterapeutas de cada Con-
tas não se comunicam. Também se ob-
de partir de uma leitura de primeiro pla- selho, refletindo as grandes diferenças
servam oportunidades restritas para a
no para atingir um nível mais aprofun- existentes: a maioria estão concentrados
pessoa com deficiência, no mercado de
dado, que ultrapassa os significados nos estados de São Paulo (Crefito-3), Rio
trabalho, na escola, na sociedade. Estes
manifestos. de Janeiro e Espírito Santo (Crefito-2), e
são alguns exemplos que limitam a prá-
Minas Gerais (Crefito-4), todos na região
tica profissional e tornam o trabalho da Uma parte dos temas abordados nas
Sudeste18.
fisioterapia fragmentado e incompleto. entrevistas foi aqui utilizada, associada
a dados disponibilizados pelo Crefito-3 O processo de formação tem grande
Acreditamos que se uma visão multi-
– Conselho Regional de Fisioterapia e responsabilidade por essa situação. Em
dimensional da saúde9-11 estivesse mais
Terapia Ocupacional da 3a Região – 1969, existiam 6 cursos de graduação
presente na prática dos fisioterapeutas e
oriundos do I Censo dos Fisioterapeutas em Fisioterapia; em 1981, esse número
de outros profissionais, poderíamos ob-
servar uma maior freqüência de ações
que fossem ao encontro da superação Quadro 1 Roteiro de entrevista com fisioterapeutas
das dificuldades acima. O debate sobre 1 Tempo de atuação profissional
o conceito de promoção e vigilância à 2 Facilidades e adversidades encontradas assim que se formou
saúde enquanto elementos multidi- 3 Área de maior atuação
mensionais e interdisciplinares aproxima- 4 Motivo da escolha da área
se desse desafio, levando-nos a pensar o
5 Principais conquistas alcançadas nessa área pela Fisioterapia
indivíduo e a coletividade de uma ma- 6 Principais dificuldades nessa área
neira social e relacional1,5,9,12-14. Entretan-
7 Aspectos financeiros: valor aproximado da sessão; número de pacientes
to, verificamos que a maioria dos fisio- que atende por dia e em quantas horas de trabalho; salário mensal
terapeutas tendem a acreditar que os aproximado
problemas de saúde se resolvem apenas 8 Que recomendações daria para alunos que estão no 1o ano do Curso de Ft
por meio do setor saúde, o que diminui 9 Cidade onde o entrevistado reside e trabalha
seu campo de intervenção e participação, 10 Comentários
reforçando a manutenção do modelo
hegemônico em saúde, bem como limi- Fonte: Brasil, 200618
Fisioter Pesq. 2009;16(1) :82-8 83
3. 10,0% em instituições filantrópicas17. É
notável a reduzida proporção de fisio-
terapeutas no setor público (15%) com-
parado aos demais, evidenciando uma
tímida presença do fisioterapeuta no ser-
viço público, o que contribui para de-
marcar seu lugar social.
Uma das questões da entrevista refe-
riu-se às facilidades encontradas pelos
entrevistados no início da carreira, ten-
do dois aspectos sido mais citados. O
primeiro refere-se à importância dada
pelos entrevistados à especialização.
Para eles, ao especializar-se adquirem
maior segurança profissional, principal-
mente no momento da conquista de uma
vaga no mercado de trabalho. Essa ne-
cessidade de especializar-se também foi
Fonte: Inep/MEC18,19 observada entre os fisioterapeutas que
responderam ao Censo do Crefito-3, em
Figura 1 Distribuição dos fisioterapeutas pelos Conselhos Regionais (Crefitos), que, dos 24.844 fisioterapeutas que res-
Brasil, 2005 ponderam essa questão, 18.299 (73.7%)
cresceu para 20 e, em 1991, havia 48. do atual lugar social do fisioterapeuta. relataram ter realizado algum tipo de
A partir daí o crescimento foi muito rá- curso de pós-graduação, seja lato sensu
A inserção dos fisioterapeutas no (71%), stricto sensu (10%) ou outros17.
pido, até atingir o total de 457 cursos
mercado de trabalho mostra uma pre-
em 200718,19 (Figura 2). O segundo aspecto tido como um
dominância no setor privado. Dos 89 fi-
O número de vagas disponíveis au- sioterapeutas entrevistados pelos alunos, facilitador para a conquista do primeiro
mentou rapidamente, bem como o nú- 53 (59,6%) trabalhavam no setor priva- emprego pelos fisioterapeutas entrevista-
mero de formandos a cada ano. Se em do ou dedicavam a maior parte do tem- dos foi a realização de estágios extracur-
1991 formavam-se 1.951 fisioterapeutas, po a esse setor; os demais 36 atuavam riculares durante a graduação, ou logo
em 2004 esse número cresceu para ou no setor público ou em ambos. Essa em seguida, como estágio voluntário. De
13.63118 e, em 2007, foram 14.162 no- característica também está presente nos acordo com os entrevistados, o estágio
vos fisioterapeutas20. Ao associar o nú- dados do Censo realizado pelo Crefito- extracurricular, além de proporcionar
mero de vagas ao local em que as vagas 3, em que dos 13.712 fisioterapeutas que experiência prática, pode ser a oportu-
são oferecidas, reconhecem-se as insti- responderam ao questionário, 70,5% tra- nidade de garantir uma vaga no merca-
tuições privadas de ensino superior balhavam no setor privado, 15,2% em do de trabalho pelo vínculo criado, pela
como importantes agentes na definição instituições públicas, 4,3% em mistas e chance de mostrar a capacidade de tra-
balho.
Quanto às dificuldades encontradas
500 457 no mercado de trabalho, os aspectos
450 420 mais apontados foram o baixo salário,
400 379 seguido por mercado de trabalho satu-
339 rado e com grande concorrência e sen-
350
Número de cursos
297 sação de pouco reconhecimento social.
300
256
Sobre o salário, dentre os entrevistados
250 211
observam-se salários variando de 700
200 176
146 reais até 8.000 reais, com valores da ses-
150 115 são que variam de R$ 3,00 a R$ 150,00.
100 68 80 Há fisioterapeutas que atendem um pa-
52 52 59 63
48
50 ciente em uma hora de sessão até os que
0 atendem a 14 pessoas em uma hora –
são os que recebem os mais baixos sa-
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
lários. A análise dos rendimentos de to-
Ano dos os fisioterapeutas entrevistados mos-
Fonte: Crefito-3 17 tra que mais de 40, do total de 89, rela-
taram ganhar menos que R$ 2.000,00.
Figura 2 Evolução do número de cursos de Fisioterapia no Brasil, 1991- 2007
Os dados do Censo do Crefito-3 confir-
84 Fisioter Pesq. 2009;16(1)
2009;16(1):82-8
4. Almeida & Guimarães O lugar social do fisioterapeuta brasileiro
Sobre a qualidade do atendimento
mais de R$ 10.001,00 2,1%
fisioterapêutico, ao constatar profissio-
R$5.001,00 a R$10.000,00 3,4% nais atendendo 14 pacientes em uma
hora, pode-se inferir o uso acentuado de
R$3.001,00 a R$5.000,00 3,8%
recursos tecnológicos terapêuticos, o
R$2.001,00 a R$3.000,00 13,4% que dificilmente é compatível com a
resolutividade do cuidado. Para Merhy23,
R$1.001,00 a R$2.000,00 34,8%
a organização do trabalho em saúde
até R$1.000,00 42,5% deveria contemplar três tipos de tecno-
Fonte: Crefito-3 17
logias: tecnologias leves, caracterizadas
como a forma de agir entre sujeitos tra-
Figura 3 Pirâmide de renda dos fisioterapeutas do Estado de São Paulo, 2007
balhadores e usuários, individuais e co-
mam essa tendência, apontando que a mais complexos e mais distantes da aten- letivos, implicados com a produção do
maior parte dos fisioterapeutas tem ren- ção primária à saúde. Essa característi- cuidado; tecnologias duras, que estão
da inferior a R$ 2.000,00 por mês17, ca justifica a ânsia pela especialização inscritas nos instrumentos já estruturados
como mostra a Figura 3. presente entre os entrevistados e nos para elaborar produtos da saúde; e as
dados do Censo, indo na contramão das tecnologias leves-duras, caracterizadas
Sobre o reconhecimento social, os pelos saberes estruturados que operam
novas diretrizes curriculares21, segundo
profissionais entrevistados relataram esses processos. Portanto, seria possível
as quais o profissional deve ter uma vi-
como um aspecto dificultador o desco- identificar uma parte dura, estruturada
são generalista.
nhecimento por parte dos profissionais e outra leve, relacionada com o modo
da saúde, e mesmo por usuários do ser- Reforçando esse aspecto, a literatura como cada profissional aplica o conhe-
viço, sobre o fazer do fisioterapeuta. aponta para a formação no campo da cimento no momento da produção do
Sobre esse aspecto é preciso também saúde consistindo em processos de en- cuidado.
contrapor que, quando os fisioterapeu- sino-aprendizagem que enfatizam a área
tas foram solicitados a apontar as con- técnica, a especialidade, a intervenção Observando o cotidiano de um tra-
quistas da Fisioterapia, o item mais cita- curativa. Também aponta para um cres- balhador da saúde, Merhy e Franco24
do foi “o maior reconhecimento soci- cimento quantitativo de cursos em de- argumentam que, ao prover o cuidado,
al”, mostrando que, apesar de desafios trimento da qualidade22. Na Fisioterapia o trabalhador opera um núcleo tecno-
a serem superados, vários profissionais esse crescimento se materializa num es- lógico composto de “trabalho morto”
percebem que muito já foi conquista- paço concentrado na região Sudeste, (TM) e “trabalho vivo” (TV). TM são ins-
do. Outros fisioterapeutas apresentaram principalmente no Estado de São Paulo e trumentos e é assim definido porque
como conquista “o reconhecimento e a predominantemente vinculado ao ensi- sobre eles já se aplicou um trabalho pre-
valorização por parte dos profissionais no privado, como mostram os resultados. gresso no momento de sua elaboração;
da saúde, principalmente, pelo médico”, Ao priorizar quantidade no ensino, há TV é o trabalho em ato, campo próprio
ou seja, há um sentimento de que a pro- uma desqualificação do processo de for- das tecnologias leves. Por fim, a relação
fissão passou por um período de reco- mação que pode estar estimulando ain- entre TM e TV no interior do processo
nhecimento e consolidação social, tanto da mais a necessidade de busca imedia- de trabalho reflete uma correlação cha-
na relação com os colegas profissionais ta por especialização. Também, o pro- mada pelos autores de composição téc-
da saúde quanto por parte da sociedade. fissional despreparado pode estar visua- nica do trabalho (CTT). A CTT estando
lizando no estágio não-obrigatório e no favorável ao TM reflete predominância
trabalho voluntário uma possibilidade de de tecnologias duras, direcionadas à uti-
DISCUSSÃO melhorar sua qualificação, não se im- lização de procedimentos; e quando, ao
portando em ser explorado como mão contrário, predominar TV, o provimento
A origem da Fisioterapia direcionou do cuidado está centrado nas tecnologias
de obra não-remunerada.
sua prática para o processo de recupe- leves. Uma análise qualitativa das
rar as condições de saúde das pessoas Nota-se que os entrevistados não per- tecnologias de cuidado presentes no pro-
para níveis anteriores a um episódio de cebem a contradição aí presente, pois o cesso de trabalho permite também pensar
doença ou incapacidade. Foi nesse es- fato de alunos de graduação atenderem que, no atual modo de produzir saúde –
paço que a profissão se solidificou, de- em clínicas não-vinculadas a instituições modelo hegemônico – a razão entre TM
marcando seu reconhecimento social no de nível superior, ou profissionais for-
e TV faz prevalecer o TM. Portanto, se
campo das ações curativas, tema apon- mados se submeterem a fazer estágios
queremos alterar o modo de produzir
tado e debatido por Rebelato e Botomé6. voluntários, significa redução das opor-
saúde, temos de alterar essa correlação,
Por sua vez, os fisioterapeutas Schmidt4 tunidades de trabalho para aqueles que
produzindo mudanças no núcleo tecno-
e Freitas7 mostram que pouco se vê a já estão no mercado. Não são poucas as
lógico do cuidado, compondo uma
fisioterapia atuando na atenção básica instituições que se aproveitam dessa con-
hegemonia do TV24.
em saúde. Neste estudo, pôde-se inferir dição e deixam de contratar profissionais
uma identidade forte do lugar social do para oferecer estágios e explorar a força Esse modelo hegemônico na saúde
fisioterapeuta com níveis de atenção de trabalho de graduandos. toma a parte pelo todo e, com isso, frag-
Fisioter Pesq. 2009;16(1) :82-8 85
5. menta o conhecimento e também o cor- ções e de suas interações, distanciando humanas por falta de resolutividade, por
po, supervalorizando as especialidades, a prática da realidade, fragmentando o distanciamento da vida e das necessi-
o uso indiscriminado de recursos tecno- conhecimento e o corpo humano. dades das pessoas. Isso desmotiva, desi-
lógicos e se identificando com uma di- lude, pois os resultados não promovem
mensão política favorável ao liberalismo. No modelo contra-hegemônico o satisfação profissional.
Nesse modelo, os serviços de fisiotera- profissional da saúde, ao lidar com o
usuário do serviço de saúde, preocupa-se A resposta do SUS para a superação
pia estão organizados com base em
com o sujeito e não apenas com a en- do modelo hegemônico está no fortale-
ações curativas e individualizadas, cen-
fermidade. Lida com a singularidade de cimento da atenção básica, concentra-
tradas na doença e não na pessoa, valo-
cada um, sem abrir mão da ontologia da atualmente nas Estratégias de Saúde
rizando a especialização, as tecnologias
das doenças e suas possibilidades, mostran- da Família (ESF), visando edificar um
e, portanto, o trabalho morto. Em contra-
do competência em lidar com pessoas13. novo modelo de atenção à saúde. A res-
partida, o modelo contra-hegemônico,
Os dois modelos apresentam concep- posta dos Ministérios da Educação e da
sem negar a importância do conheci-
ções distintas caracterizadas por ações, Saúde para mudar a formação dos pro-
mento técnico, valoriza as dimensões
muitas vezes, opostas e presentes na prá- fissionais da saúde está nas novas dire-
sociais e humanas. É um modelo que tem
tica dos profissionais da saúde. São duas trizes curriculares, construídas a partir
a dimensão do todo, está centrado no
grandes linhas em disputa em torno da da necessidade de pensar a formação
usuário do serviço, por isso busca a inte-
política de saúde: uma vinculada ao pro- dos profissionais como uma estratégia
gralidade, valorizando a interdisciplina-
jeto empresarial neoliberal médico- importante para o fortalecimento do
ridade, a intersetorialidade e a continui-
hegemônico, que vê a saúde como uma SUS4,21.
dade da atenção, ficando evidente a pri-
oridade ao trabalho vivo5,7,14,24. mercadoria, e outro, que defende o for- Portanto, cabe às instituições forma-
talecimento do Sistema Único de Saúde doras, aos docentes, aos alunos e aos
A Figura 4 apresenta uma sistemati- (SUS), regulado pelo Estado e compro- profissionais fisioterapeutas observar o
zação dos dois modelos que represen- missado com a saúde como direito de quanto suas práticas têm se direcionado
tam a prática profissional do fisiotera- todos, não como bem de mercado. para uma atuação centrada na promo-
peuta. No modelo contra-hegemônico,
ção da saúde, na prevenção, que valori-
o método dialético permite ao fisiotera- O debate até agora desenvolvido
ze mais as condições sociais e humanas
peuta observar o processo pelo qual está mostra que o modelo de atuação hege-
na manifestação dos desequilíbrios or-
submetido o objeto de intervenção, pre- mônico leva o profissional da saúde a
gânicos, uma atenção à saúde centrada
servando sua totalidade e reconhecen- ações parceladas, não dando conta de
no sujeito e de forma integral.
do as contradições inerentes ao objeto. mudar a realidade e responder às de-
Por outro lado, o método metafísico se- mandas individuais e sociais de grande
para o sujeito do objeto e define os se-
res e as idéias separadas de suas rela-
parte da população brasileira. Ele per-
cebe que não responde às necessidades
CONCLUSÃO
Como exposto, não são poucos os
desafios para que a Fisioterapia amplie
PRÁTICA PROFISSIONAL DO FISIOTERAPEUTA EM DISPUTA seu papel social. Para avançar nessa di-
Dimensão Dimensão reção, é necessário que nas ações dos
epistemológica Dimensão técnica epistemológica fisioterapeutas estejam presentes a aten-
Metafísica Dialética ção integral, a resolutividade do cuida-
do, o acolhimento, a formação de vín-
Definida no Tem a culo, potencializando a capacidade que
Toma a
parte pelo processo de tocar o visão do o fisioterapeuta tem de produzir saúde
todo corpo do outro todo
e não apenas recuperar. Nessa direção,
o SUS tem se fortalecido e vem sendo
construído a cada dia como uma alter-
PROCESSO DE TRABALHO
MODELO nativa possível frente ao modelo hege-
MODELO HEGEMÕNICO CONTRA-HEGEMÕNICO mônico e com muito mais possibilida-
Dimensão política Dimensão política des para a Fisioterapia ampliar seu lu-
LIBERALISMO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL gar social.
• trata da doença • cuida do sujeito
• modelo hospitalocêntrico • modelo da promoção Para isso, é preciso substituir ações
• demanda espontânea • busca ativa reprodutoras por ações que busquem a
• medicina curativa • vigilância em saúde produção de um conhecimento tal que
• especialidades • integralidade venha a melhorar a qualidade de vida
das pessoas que acorrem aos serviços de
saúde. É preciso construir caminhos que
Figura 4 Modelos de atuação profissional do fisioterapeuta: hegemônico e contra- possibilitem a percepção cada vez me-
hegemônico nos segmentada da realidade e do sa-
86 Fisioter Pesq. 2009;16(1)
2009;16(1):82-8
6. Almeida & Guimarães O lugar social do fisioterapeuta brasileiro
ber, mais crítica e mais social. Produzir A prática centrada na doença provo- to da população de ser assistida em to-
conhecimentos e ações mais contextua- ca o obscurecimento de grande parte das das as suas necessidades. Diante destas,
lizados, portanto mais próximos da vida possibilidades de atuação, crescimento a Fisioterapia pode contribuir muito
das pessoas atendidas, e com maior po- e reconhecimento profissional do fisio- mais. Para isso, entretanto, é preciso re-
tencial para levá-las a perceber sua co- terapeuta, alimentando a manutenção de ver e ampliar seu lugar social. Acreditan-
responsabilidade pela manutenção de muitas das dificuldades apontadas nes- do que a gestão do novo se desenvolve
sua saúde, compreendendo-a como um te estudo. Ao fixar seu lugar social na no que já está estabelecido25, uma Fisi-
recurso que se conquista no dia-a-dia, atuação curativa, no modelo privatista, oterapia crítico-social está se desenvol-
conferindo aos usuários dos serviços na especialização, entre outras, os pro- vendo a partir do confronto e da dispu-
mais independência em relação ao mo- fissionais da saúde ferem o princípio da ta desses dois modelos, para além da
delo hegemônico. integralidade que deve garantir o direi- clínica e em direção ao social.
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