1. 1 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA
ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT
CAMUS
Diego Henrique de Lima1
Resumo
Senhor Mersault, personagem central do romance O estrangeiro, de Albert Camus, constitui-se
como um dos principais representantes da literatura dita existencialista, tanto pelo seu caráter
cético quanto pela sua atitude impessoal, o que provoca uma sensação de que, a todo tempo, ele
tenta abster-se, por meio de uma postura indiferente, de sua liberdade, negligenciando, dessa
forma, o seu direito de escolher. Mas é realmente possível não escolher? Como viver sem optar?
A questão da escolha surge, no romance em questão, como um problema que merece uma
reflexão. Essa é a proposta do presente trabalho: discorrer sobre o problema da escolha no
romance O estrangeiro, a partir de conceitos como: escolha, angústia, engajamento e desamparo
presentes na filosofia existencialista de Jean Paul-Sartre; refletindo também sobre o caráter de
absurdo da obra de Camus, bem como sua relação intertextual com outro romance: Crime e
castigo, de Fiodor Dostoievski, para estabelecer, dessa forma, um paralelo de correspondências
dialógicas entre os protagonistas de ambas as obras: Mersault e Raskolnikoff.
Palavras-chave: O estrangeiro; Albert Camus; Existencialismo; Escolha;
INTRODUÇÃO
Com O estrangeiro, Albert Camus construiu um romance que pode ser considerado o
próprio registro literário da alienação de um indivíduo a si mesmo. Através do S. Mersault,
personagem central da obra, Camus traça, com aspereza e fluência, a trajetória de um homem
cuja própria vida parece-lhe ser o seu bem que mais merece ser ignorado, tornando seu cotidiano
em uma sucessão de acontecimentos graves que serão neutralizados por essa atitude
negligenciadora. Mas qual o real motivo dessa conduta? O que faz com que este homem abra
mão do direito de interferir em seu próprio destino? Poderia ser realmente rotulado como
alienado o comportamento do S. Mersault? Até que ponto é possível prescindir do direito de
1
Diego Henrique de Lima é greaduado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia. Atualmente
cursa o mestrado na mesma universidade: Diegohenri22@hotmail.com
2. 2 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
escolha? Mas ao prescindir deste direito, já não se está escolhendo? Esses são alguns
questionamentos que motivam a realização desse trabalho sobre o primeiro romance de Albert
Camus, que, com este livro, pretendia concluir uma trilogia sobre a temática do absurdo, mas,
devido à sua morte precoce, não conseguiu finalizar tal projeto.
Já nas primeiras linhas d‟O estrangeiro, tem-se o início de uma narrativa cujo
personagem central choca pelo aparente descaso em relação aos fatos e eventos que compõem a
sua rotina, assim como pelo seu pragmatismo e automatismo frente às situações difíceis. É
justamente essa postura do S. Mersault que instiga a reflexão sobre este personagem: a clara
indiferença, uma certa impessoalidade com que ele encara momentos tensos, como por exemplo,
a morte da mãe. Isso seria resultado de uma personalidade alienada, ou seria, pelo contrário, a
conduta racional de um homem altamente consciente de suas impossibilidades e limitações
diante da vida? Aqui surge o questionamento central da nossa reflexão: o S. Mersault é
fatidicamente indiferente a sua vida ou escolhe sê-lo? E se escolhe ser assim, então talvez tal
posicionamento aparentemente neutro seja, na verdade, uma escolha consciente de encarar a
realidade, como mais uma forma de interagir com o mundo, conduta esta que provoca um
estranhamento no leitor do romance.
Para discorrer sobre a questão da escolha, assim como sobre o problema do engajamento
e do desamparo, serão consideradas as formulações teóricas de Jean-Paul Sartre, visto que estes
conceitos estão todos compreendidos na filosofia existencialista do Nobel francês. Deste modo,
tomaremos como ponto de partida para nossa reflexão sobre O estrangeiro, a elaboração desses
conceitos presentes na obra O existencialismo é um humanismo (1987), livro com o qual Sartre
introduz sua teoria existencialista e discorre sobre seus principais pontos. A escolha da
contribuição filosófica de Sartre para desenvolvimento da nossa reflexão deve-se ao fato de esta
dialogar, em diversos aspectos, com a narrativa de Albert Camus aqui estudada. Já ao refletirmos
sobre a questão da angústia, outro ponto da nossa pesquisa, destacaremos as formulações teóricas
de Sören Kierkegaard (2001), uma vez que seu pensamento tem grande afinidade com a
abordagem da temática em foco.
Desta forma, espera-se como presente artigo contribuir com a fortuna crítica sobre o
romance O estrangeiro, enriquecendo a gama de estudos que tomam este livro como objeto de
análise, bem como divulgá-lo e incentivar ainda mais a sua leitura para futuros trabalhos, já que
este parece ser o real sentido da produção acadêmica: refletir sobre as contribuições já existentes
a fim de proporcionar novas leituras.
3. 3 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
1. A ESCOLHA DE MERSAULT OU SOBRE A INEVITABILIDADE DE SE ESCOLHER
O estrangeiro, publicado pela primeira vez em 1942, foi a estreia de Albert Camus no
campo da literatura, conseguindo chamar a atenção de Sartre, que declarou publicamente o
desejo de conhecer o seu autor. Ao falar do romance, ele chama a atenção para a sua
originalidade: “Cada frase é um presente [...] Entre cada frase e a seguinte, o mundo aniquila-se
e renasce; a palavra, desde que se eleva, é uma criação ex-nihilo, uma frase de O estrangeiro é
uma ilha.” (SARTRE, 1942, p.34-25). Daí pode-se ter uma ideia do impacto causado pelo livro
que compunha o ciclo do absurdo, idealizado pelo escritor argelino, do qual faz parte O mito de
Sísifo, também de autoria de Camus. Este, um ensaio filosófico sobre o problema do suicídio.
Trata-se de um ensaio de leitura áspera e extremamente seca, elaborado a partir de um raciocínio
que engendra uma formulação lógica sobre o problema filosófico do ato suicida. A ideia presente
é a de que o sofrimento humano pode encontrar na morte um alívio. O sofrimento de viver, nessa
perspectiva, pode ser um mal evitável, já que possuímos sempre a escolha de viver ou não. Ideia
esta que perpassa todo o romance em questão, acentuando-se ainda mais na segunda parte d‟O
estrangeiro, quando a presença da morte torna-se iminente.
A primeira parte do romance inicia-se com a já consagrada passagem em que o
personagem central da história, e também seu narrador, recebe a notícia da morte de sua mãe por
meio de um telegrama: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama
do asilo: „Mãe falecida. Enterro amanhã. Nossos pêsames‟. Isso não quer dizer nada. Talvez
tenha sido ontem.” (CAMUS, 2009, p.9). Ou “No momento, é como se mamãe não estivesse
morta. Depois do enterro, ao contrário, sua morte será um caso encerrado e tudo terá tomado
uma aparência mais oficial.” (CAMUS, 2009, p. 10). A partir de tais passagens já é possível
perceber a frieza e indiferença que irão compor durante todo o livro a personalidade de seu
narrador e que só ficará mais evidente com o desenrolar do enredo. Também percebemos uma
racionalidade aguda e cética, que diante das convenções sociais tão hipócritas quanto
desnecessárias, faz com que Mersault reaja com uma perplexidade muda.
Após a leitura desses fragmentos, surge a impressão de que Mersault tende, por meio de
sua atitude evasiva, abrir mão de seu direito de escolha, sendo conduzido pelo acaso ou por
fatores externos como ele próprio faz questão de repetir: “À noite, Marie veio me procurar e me
perguntou se eu queria me casar com ela. Eu disse que isso não fazia diferença e que nós nos
casaríamos se ela assim quisesse.” (CAMUS, 2009, p.67). E aqui começamos, de fato, a refletir
sobre a questão da escolha. Quem escolhe por Mersault?
4. 4 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
Para Sartre (1987, p.6), o homem é senhor de si, dono de suas ações, é ele quem se
constrói como ser humano. Essa é uma visão muito presente na obra desse filósofo, o homem
tomando nas suas próprias mãos o controle de seu destino, sendo o único responsável por suas
escolhas, por suas vitórias e fracassos: “A teoria sartreana do ser-para-si conduz a uma teoria da
liberdade. O ser-para-si define-se como ação e a primeira condição da ação é a liberdade.”
(CHAUÍ, 1987, p. 11). Há, portanto, uma relação de interdependência entre a liberdade e o agir,
toda ação pressupõe o direito de optar, o livre-arbítrio. “A liberdade provém do nada que obriga
o homem a fazer-se, em lugar de apenas ser.” (CHAUÍ, 1987, p. 11). O ser humano tem a tarefa
de constituir-se como tal a partir de suas escolhas, qualquer noção essencialista é desconsiderada
pelo existencialismo sartreano.
Essa noção de autonomia fica evidente quando este filósofo diz que a existência precede
a essência: “[…] Em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e
só posteriormente se define.” (SARTRE, 1987, p.6), ou “[…] O primeiro passo do
existencialismo é o de por todo homem na posse do que ele é, de submetê-lo à responsabilidade
total de sua existência.” (SARTRE, 1987, p.6). Ou seja, concepções como a ideia de Deus, de
essência, de sorte, ou de forças externas ao homem interferindo e moldando a sua vida parecem
absurdas ao existencialismo de Sartre. Nesse sentido, somos frutos de um processo de definição
engendrado por nós mesmos, por nossa subjetividade. Aqui, mais uma vez, a responsabilidade do
homem por sua vida lhe pertence, é um direito, ou um carma, que não lhe pode ser negado, e do
qual nenhum indivíduo pode prescindir. Sendo assim, somos os únicos a poder escolher por nós
mesmos. Nossa conduta, nossas decisões, nossa forma de lidar com o mundo, sejam elas quais
forem, sempre serão escolhas nossas:
A escolha é possível, em certo sentido, porém o que não é possível é não
escolher. Eu posso sempre escolher mas devo estar ciente de que se não
escolher, assim mesmo estarei escolhendo. Isso, se bem que pareça estritamente
formal, tem suma importância, pois limita a fantasia e o capricho (SARTRE,
1987, p.17).
Portanto, ao não escolher, Mersault ainda assim escolhe, já que não é possível privar-se
da condição de sujeito impelido a optar. Ao ser indiferente à morte de sua mãe, ao deixar nas
mãos de Marie a decisão do casamento, ao se deixar conduzir pelo sol ou pela brisa até
adormecer, ou ao encarar a existência como uma força diante da qual é preciso conformar-se;
Mersault está escolhendo a apatia como um modo de reposta à vida, quando poderia optar por
outro tipo de comportamento. A resignação, sob essa perspectiva, deve ser interpretada como um
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engajamento, pois é através dela que ele interfere em sua realidade, mesmo que seja pela
aparente negação de conduzi-la. Sobre o conceito de engajamento, Sartre exemplifica:
Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser
comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo,
a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra,
não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e,
portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade (SARTRE, 1987, p.7).
Assim, o escolher é tão inevitável quanto o engajar-se, e por mais que ambos os atos
pareçam decisões individuais, quando nos engajamos, ou seja, quando escolhemos, fazemos isso
por nós e pelo outro. Ao escolhermos o casamento, reafirmamos a necessidade de união entre um
homem e uma mulher; ao aceitarmos uma religião consolidamos o sentido da fé entre os homens;
ao optarmos pelo silêncio estamos dizendo a todos que ele é a única resposta possível. Quando
Mersault escolhe a abstenção ele engaja a si e ao mundo através da sua resignação. De qualquer
forma, ele está interferindo no seu próprio destino ao ser-lhe indiferente ou ao deixá-lo em mãos
alheias. Isso fica claro quando o narrador deixa a cargo de Marie decidir se eles deveriam se
casar ou não, pois dizendo não, ele estaria se negando, dizendo sim ele estaria aceitando, assim
como, ao deixar a cargo de outrem a decisão, ele está optando pela escolha de Marie. Logo, não
há como não escolher.
O ato de escolher sempre acarreta uma responsabilidade pois, ao escolhermos, nos
engajamos, e nenhuma decisão ou posicionamento, ainda que aparentemente neutros, são
gratuitos ou inócuos. Ao tomar consciência dessa responsabilidade, o homem descobre que junto
com cada decisão feita, vem a responsabilidade de engajar-se e engajar o mundo (SARTRE,
1987 p.9). Cada atitude tomada traz consigo o peso de ser fruto da nossa própria vontade, suas
consequências, sejam elas boas ou ruins, serão o resultado de nossas escolhas primeiras. Logo,
não podemos escapar à responsabilidade de tê-las escolhido. Tomamos noção dessa
responsabilidade a partir do sentimento de culpa causado por uma decisão equivocada, que
provoque arrependimento; ou mesmo, pela alegre certeza de ter feito a “escolha certa”. É dessa
noção ou consciência de que podemos e devemos escolher, que surge um dos sentimentos mais
inquietantes: a angústia. “De fato, na minha opinião, a angústia é a ausência total de justificativas
e simultaneamente, a responsabilidade perante todos.” (SARTRE, 1987, p.19). Ao percebermos
que não possuímos justificativa para nossas escolhas e que somos os únicos responsáveis por
elas, sentimos aquilo que nomeamos como angústia. O homem precisa se justificar o tempo todo
pelo que faz; ao sentir-se sem resposta, ele cai em desespero, esse cruel estado quase que
inevitável no qual o homem angustiado pode mergulhar. Sobre a desesperança total: “Quem
6. 6 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
desespera não pode morrer. Dessa maneira, como um punhal não serve para matar pensamentos,
também o desespero, verme mortal, fogo inextinguível, não devora a eternidade do eu, que é seu
próprio sustentáculo.” (KIERKEGAARD, 2001, p.24). Angústia e desespero andam juntos,
ambos nascem da perplexidade do homem diante de si mesmo. Quando nos encaramos de
verdade, percebemos o quão sós estamos. A citação é sobre o desespero mas bem pode se aplicar
também ao conceito de angústia, pois tanto um quanto o outro necessitam do eu vivo e sensível
para se manifestarem, têm como sustentáculo o homem consciente de si mesmo; pois só pode se
angustiar ou desabar em desespero enquanto vivo, pois ainda que não tome ciência de sua
angústia, se vive, não está livre de desesperar-se.
Tomando Mersault como exemplo, podemos dizer que há nele uma angústia perene, que
o acompanha durante o trecho de sua vida que nos é narrada, e que torna-se muito mais latente
nos seus últimos dias de vida, fazendo-o desesperar-se e enfim tomar consciência do desespero
para o qual desperta, já que acaba por ver-se impelido a encarar acontecimentos que o obrigam a
sair de uma zona de conforto mórbido, sua vida e cotidiano antigos. A cada página que
conhecemos de sua trajetória, podemos sentir um homem angustiado em busca de tranquilidade e
repouso. Mas trata-se aqui de uma angústia fria, silenciosa, não evidente no olhar de Mersault
que, assim como seu comportamento, apenas deixam transparecer uma estranheza ignorável. Sua
postura acomodada, sua economia verbal, assim como as emoções contidas que ele sente,
camuflam um homem por vezes inquieto e inseguro de si: “Estar confiado e calmo pode
significar que o somos [desesperados]. Esta calma, esta segurança podem ser desespero. A
ausência de desespero não equivale à ausência de um mal […]. Nunca o ter sentido, eis
precisamente o desespero.” (KIERKEGAARD, 2001, p.29). O fato de Mersault ir tomando
conhecimento de sua angústia e consequentemente, seu desespero, faz dele um ser cada vez mais
lógico e racional. Consequentemente, ele passa a conhecer-se por completo através de seu
sofrimento. Essa consciência plena de si, do próprio estado de desespero é, para Kierkegaard
(2001), o caminho mais sábio para enfrentarmos a nós mesmos: “Juntamente com o desesperado
consciente, o desesperado que se ignora só está afastado da salvação por mais um passo
negativo. O próprio desespero é uma negação, e a ignorância do desespero é outra. Todavia, o
caminho da verdade passa por todas elas (KIERKEGAARD, 2001, p.45). Ao aceitar e entender
seu estado, Mersault atinge também uma autonomia para ser quem é, pois ao não tentar omitir
seu desespero para si mesmo, ele pode encará-lo completamente: “ […] O desesperado que se
ignora está realmente mais distante da verdade e da salvação do que o desesperado consciente,
que se obstina em sê-lo. […] Aquele que permanece conscientemente no desespero está mais
distante da salvação, porque seu desespero é mais intenso.” (KIERKEGAARD, 2001, p. 46).
7. 7 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
Para o filósofo dinamarquês, o homem está fadado ao desespero assim como, para Sartre,
ele é invariavelmente impelido a escolher. Ambas as visões transmitem um determinismo por
vezes interpretado como pessimista, principalmente o existencialismo ateu representado por
Sartre. Uma filosofia que exclui a ideia de Deus e entrega ao homem todo peso de sua existência,
pode ser facilmente vista por muitos como desesperadora. Pois como tirar do homem a crença no
divino? Como tentar privá-lo da jubilosa ideia de poder receber bênçãos e milagres? Por que
razão fazê-lo desacreditar de uma vida mais feliz após a morte, impelindo-o a viver a sua como
sendo a primeira e última? Não há alento maior para o homem que a esperança, mesmo que esta
repouse no sobrenatural, que dependa do poder de um ser distante e externo a nós. O próprio
Sartre sai em defesa do existencialismo, afirmando ser esta a filosofia mais otimista, já que ela
relega ao homem, e somente a ele, o comando dos fios que tecerão sua vida, imbuindo-lhe de
toda autoridade sobre si mesmo. O destino, nesse sentido, nada mais é que resultado da soma de
todos os nossos atos. Aqui, a noção de destino como fardo inevitável perde todo seu valor, como
já reiteramos antes: “O homem é tão-somente como ele se concebe, mas também como ele se
quer; como ele se concebe após a existência.” (SARTRE, 1987, p. 4).
2. O SILÊNCIO ENTRE MERSAULT E RASKOLNIKOFF: UM PARALELO DE
INTERTEXTUALIDADES
O silêncio inquieto de Mersault nos remete a outro grande personagem da literatura
universal: Rodion Amanovitch Raskolnikoff, o estudante assassino de Crime e castigo, um dos
livros mais conhecidos de Dostoievsky. Então desiludido com o meio em que vive, assim como
Mersault, Raskolnikoff acaba encontrando no silêncio e isolamento pessoal, uma maneira de
protesto sutil contra os que o cercam. Ambos travam diálogos internos que denunciam o estado
de permanente angústia em que viviam, sua preocupações e anseios não são partilhados com os
outros personagens, só o leitor pode ter acesso a eles; seja por meio da narração em primeira
pessoa de tom confessional, no caso de Mersault; seja pela voz do narrador que nos guia pela
trajetória e promenades de Raskolnikoff. É certo que há várias diferenças entre as duas
personagens, já que são obras distintas, com propostas e temáticas próprias. Uma dessas
diferenças é a condição social de cada um. Enquanto Mersault consegue, até certo ponto,
integrar-se à sociedade, já que possui um emprego e partilha de um espaço profissional com
outras pessoas; Raskolnikoff é o que a sociedade comumente chama de monstro social:
A misantropia de Raskolnikoff não se faz ausente nem mesmo em seu
quarto imundo, que é também seu refúgio. Rostos humanos são tão e
8. 8 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
cada vez mais desprezíveis para ele, que apenas a presença da criada,
cuja tarefa é limpar a hospedaria, causava-lhe exasperação. A que
condição podem chegar os monomaníacos ao criarem uma fixação em
certa ideia. (DOSTOIEVSKI, 1997, p. 23).
Sempre fechado em um estado de confusão mental e prisão interna mórbidos, que o
torturam de forma cíclica. Seus pensamentos o massacram, os temores que sente se generalizam
e seu desespero o submerge em um sofrimento cada vez mais potente. O leitor se depara com um
homem em pleno processo de autodestruição psicológica e degradação física: “ […] Nesse
momento, [Raskolnikoff] percebeu que suas ideias tornaram-se confusas e que estava muito
fraco. Não comia praticamente nada há dois dias.” Devastado por uma depressão quase que
febril, que lhe consome em sofrimento e aniquila toda e qualquer possibilidade de beleza ou
prazer, apenas lhe resta suportar a ignomínia imposta pelas circunstâncias. Suas vestes também
deixam evidente a falta de recursos financeiros e a difícil condição social: “Suas vestes eram tão
miseráveis que qualquer um hesitaria em usá-las em público […] Entretanto, o desdém furioso
do jovem alcançara tal nível que, apesar de sua extrema sensibilidade, não sentia vergonha em
exibir seus trajes desgastados na rua.” (DOSTOIEVSKI, 1997, p.2).
Aqui é importante ressaltar que, em Crime e castigo, a questão social surge como um dos
eixos principais em torno dos quais gira a narrativa. A pobreza é uma força opressora com
indiscutível poder de persuasão mental, o indivíduo preso a essa condição social desfavorável,
imerge em um complexo de inferioridade que parece sem volta. Desiludido quanto a uma
possibilidade de ascensão e convencido de seu estado de marginalidade, Raskolnikoff encontra
na revolta e rebeldia contra as regras vigentes, a única forma de impor-se perante aqueles que o
oprimem.
Em uma das muitas caminhadas que ele faz de maneira solitária, seus pensamentos, - ao
refletir em como pagaria os aluguéis atrasados da hospedaria terrível em que morava, e na reação
da proprietária devido ao dinheiro que não recebia - deixam claro o quão perdido de si mesmo
ele está, sua solidão parece incliná-lo para um estado paradoxal de racionalidade e loucura.
Justamente por essa desorganização psicológica, faz-se necessária a presença de um
narrador em terceira pessoa, visto que seria impossível para o enfermo Raskolnikoff mostrar-se
para nós, dirigindo-se a nós de forma direta. Essa é outra diferença entre as duas personagens,
Mersault recorre ao narratário para expor suas angústias, ele encontra no leitor um confidente.
Raskolnikoff, por sua vez, encontra-se em total desamparo, pois não encontra quem escute e
entenda suas aflições, não dispõe de um meio pelo qual possa canalizar suas aflições de forma a
amenizá-las. Sentindo-se cada vez mais humilhado por sua condição social, e sempre mais
acometido por seus males nervosos, ele é, ao mesmo tempo, aquele que fala e quem escuta, tem
9. 9 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
apenas a si mesmo como seu principal ouvinte: “Por um instante, ele mergulhou em um
profundo devaneio, ou em algum tipo de torpor mental. Caminhava sem perceber, ou tentando
notar, por onde passava.” Ou ainda: “Ocasionalmente proferia algumas palavras para si mesmo,
como se, como ele mesmo acabou percebendo, tivesse adquirido esse hábito.” (DOSTOIEVSKI,
1997, p.2). Falar consigo mesmo, uma mania fruto de sua solidão, é apenas um dos
comportamentos perturbados de Raskolnikoff. Alternando, quase sempre, entre estados de
delírios e lucidez, ele parece refugiar-se no conturbado espaço de sua mente. Mas ao invés de
uma suposta paz, depara-se com seu inferno particular, que se apresenta através de delírios e
sonhos.
Os crimes são divisores de água nos romances. Em crime e castigo, Raskolnikoff
mergulha em um processo de purgação e auto-punição pelo ato cometido. Sem levantar qualquer
suspeita sobre a autoria do delito, ele se torna seu maior algoz, pois, apesar de defender seu ato
com uma elaborada teoria de legitimação do mesmo, a lembrança do episódio e a certeza de que
foi capaz de matar, inevitavelmente causam-lhe uma alternância entre um sentimento de repulsa
a si mesmo e indiferença. E como atesta o próprio nome do romance, o castigo procede o crime.
O castigo de Raskolnikoff será perceber que, mesmo depois de ter matado a agiota e ter-lhe
roubado o dinheiro, sua vida permanece a mesma de sempre, já que se sente incapaz de usufruir
do valor roubado, pois fazê-lo seria igualar-se a qualquer marginal que comete um latrocínio. Os
sentimentos de incapacidade e impotência diante de sua penosa condição social só se
intensificam, fazendo-o perceber que mesmo sua coragem de atingir extremos, não o livrou da
inquietude que habita seu espírito. Sua purgação será um gradual, complexo e penoso processo
de transformação pessoal, no qual sentimentos contraditórios, como um misto de culpa e anistia,
convicção e dúvida, transformarão a mente já enferma de Raskolnikoff em um espaço para
tempestades e batalhas travadas por ele consigo mesmo.
O que nos preocupa nesse paralelo que acabamos de estabelecer, é entender que as várias
semelhanças entre as duas obras, a faculdade da escolha, o direito de optar, são o gatilho do que
se sucede com os dois jovens. Tanto a arma segurada pelas mãos trêmulas e inseguras de
Mersault, quanto a machadinha suspensa pelos braços decididos de Raskolnikoff são movidas
pela vontade dos dois de movê-las. Sem o impulso volitivo não haveria causas nem
consequências.
10. 10 A LIBERDADE DE MERSAULT: A QUESTÃO DA ESCOLHA EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O narrador de O estrangeiro escolheu aceitar. Aceitou a fatalidade da vida e a
imutabilidade das coisas. Encarou os outros homens com a indiferença com que encarava a si
mesmo, e dispensou ao mundo a mesma impessoalidade com que este nos trata, a partir do
momento em que somos impelidos a viver. Foi através de sua resignação que Mersault
demonstrou, de forma crua, toda a perplexidade possível diante do absurdo de sua existência, e
ajudou a traçar seu breve percurso entre os homens. A trajetória do personagem começa com a
ida ao enterro de sua mãe e termina com a sua condenação: ter a cabeça decepada em praça
pública em nome do povo francês, entretanto, em nenhum momento da narrativa, ele parece
inconformado com a situação em que se encontra ou com a série de infortúnios que estão
presentes em seu caminho. Ao contrário, ele recebe a sentença com segurança e tranquilidade,
como ele afirma logo após uma discussão com o padre da prisão, o qual fora designado para uma
possível última confissão ou arrependimento: “Mas eu estava seguro de mim, seguro de tudo,
mais seguro que ele, seguro de minha vida, e da morte que estava prestes a vir” (CAMUS, 2009,
p.181).
Mersault encontra o valor de se viver uma verdade e aceitá-la: “Mas pelo menos, eu
possuía essa verdade do mesmo modo como ela me possuía. Eu tive razão, eu ainda tive razão,
eu sempre tive razão. Eu vivi de tal modo e poderia ter vivido de um outro” (CAMUS, 2009,
p.181). Essa fala de Mersault afirma e resume o que o presente trabalho procurou apresentar por
meio das citações de teóricos, da nossa reflexão sobre as questões propostas, e dos excertos
retirados do próprio romance. Diante disso, dessa afirmação, podemos dizer que os objetivos da
nossa pesquisa foram alcançados, pois os questionamentos norteadores que nos motivaram a
realizá-la e que estão descritos na introdução, foram claramente considerados. E como essas
questões não exigem respostas definitivas, mas reflexão aberta, já que tratamos de demandas
filosóficas e abstratas; foram abordadas ao longo do corpo do texto de forma a concretizar o
estudo proposto por nós: tomar o romance O estrangeiro, para, a partir dessa referência literária,
podermos discutir temas como: a questão da escolha como um direito impreterível, que por sua
vez gera angústia, esta levando ao desespero. Indagações estas, que foram trabalhadas a partir
dos conceitos elaborados por Sartre, filósofo cuja leitura inspirou em maior parte a elaboração
deste texto acadêmico. Sem a colaboração sartreana, tão rica em diálogos e correspondências
com o romance em questão, certamente não teríamos um ponto de partida de onde pudéssemos
iniciar nossa análise. O conjunto de obra de Sartre e O estrangeiro, evocam uma troca de ideias
que não pudemos deixar de considerar.
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REFERÊNCIAS
CAMUS, Albert. L’étranger. Paris: Gallimard, 2009.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Sartre. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
DOSTOYEVSKY, Fyodor. Crime and punishment. London: Penguin Books, 1997.
KIERKEGAARD, Sören. O desespero Humano. Tradução de Fransmar Costa Lima. São Paulo:
Martin Claret, 2001.
SARTRE, Jean-Paul. Introdução ao estrangeiro. In: CAMUS, O estrangeiro. Tradução de
Rogério Fernandes. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1942.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Rita Correia Guedes. 3
ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.