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A
          A JUSTIÇA
          AGONIZA
JUSTIÇA               AGONIZA
A JUSTIÇA
A JUSTI




AGONIZA
       AGONIZA
A JUSTIÇA



            Um quarto de século na
            magistratura não produz
            nenhuma realizaヘo pífia na
            vida burocrática; não produz a
            consternaヘo pelo tempo de
            silêncio, ou de gritos roucos,
            para ouvidos moucos; esse
            tempo não sepulta senão a
            quem no passar dele construiu
            a sua sepultura.


            Não é necessário que o tema
            de A Morte de Ivan Ilitch         se
            reproduza como se fosse a
            maldiヘo de Leon Tolstoi para
            cada um e para todos os juízes.


            Este é um livro para aqueles
            que se recusam a encontrar no
            trabalho pela busca da justiça
            o delírio da morte.
Luiz Fernando Cabeda




 A JUSTI Ç A AGONZA
                I
 E n i o so br e a p er da do vigor, da função
   sa
e do s nt ido da just iça no Pod er J udi c á r io
       e                                     i
© Copyright : Luiz Fernando Cabeda, 1999

Ediヘo : Gilberto Mariot e Mauricio Barreto
Revisão : Marcia Benjamim
Editoraヘo eletrônica      : Wander Camargo Silva
Capa : Paulo Manzi


 Dados Internacionais de Cataloga ヘ o na Publica ヘ o
 (CIP)      (Câmara Brasileira do Livro, SP,
            Brasil)

Cabeda, Luiz Fernando
          A Justiça Agoniza: ensaios sobre a perda do vigor, da
funヘo e do sentido da justiça no poder judiciário / Luiz Fern            an-
do Cabeda. - São Paulo: Editora Esfera, 1998.

            1. Justiça - Administraヘo - Brasil 2. Justiça e política -
Brasil 3. Poder judiciário - Brasil
I. Título.II. Título: Ensaios sobre a perda do vigor, da funヘo e do
sentido da justiça no poder judiciário.




99-4560 CDU-342.56(81)

                  Índices para catálogo sistemático:
    1. Brasil : Justiça : Poder judiciário : Direito constitucional
                                  342.56(81)
      2. Brasil : Reforma do judiciário :Direito constitucional
                                  342.56(81)




ISBN 85-87293-10-9


Todos os direitos reservados à
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Travessa Dona Paula, 113
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www.editoraesfera.com.b
r
Conheço o meu destino. Sei que algum dia o
       meu nome se aliará, em recordaヘo, a algo
     de terrível, a uma crise como nunca ocorreu,
 à mais tremenda colisão de consciências, a uma
   sentença definitiva, pronunciada contra tudo
aquilo em que se acreditava, exigia e santificava
até então. Eu não sou um homem; sou dinamite.

                           Friedrich Nietzsche
ÍNDIC
                           E


 Apresentaヘo                                                                            6
                    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
                    . . . . . .

 I. Os Juriscidas      . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9
                       . . . . . .

II. O Reverso da Crise                                                             17
                                    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
                                    . . . . .

III. O Controle Externo pelo General                               . . . . . . .   27
                                                                   . .

IV. A Outra Morte de Herzog                                                        41
                                                 . . . . . . . . . . . . . . . . . .
                                                 . . .

 V. A Justiça Agoniza                                                              67
                               . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
                               . . . . .
APRESENTA‚
                     O

      Com o presente texto feito manifesto, Luiz Fernando
Cabeda, um ins id er que não perdeu a faculdade do olhar
estranhado, acode em boa hora para informar sobre um
debate confuso, não raramente preso a objetivos políticos
de moldar o Estado, mas necessário sobre a reforma do Ju-
diciário brasileiro. Perspectivas e níveis de abstração suc e-
dem-se c om rapidez e desenvoltura que desnorteiam ape-
nas na primeira leitura, revelando-se, posteriormente,
como estratégia adequada para expor de múltiplas formas
uma ferida aberta da nossa sociedade: um Judiciário ago-
nizante que faz entrever a agonia da própria justiça.
      A constatação dessa agonia é a idéia central a confe-
rir unidade aos cinco ensaios . O leitor em busca de expli-
caヘes sistemáticas irá diretamente ao ensaio mais longo,
cujo título foi estendido ao livro. Os exemplos de “destro-
çamento da carreira”, “deterioração da atividade judican-
te”, “formaヘo do magistrado”, “decadência da literatura
jurídica”, “corrupção da linguagem jurídic a”, “nepotismo”
e do brasileiríssimo contraste de “espírito conservador” e
“proclamaヘes libertárias”, seguidas vezes apresentados
em estilo de qualidade literária, falam por si.
      Erra quem pensa que a agonia deve ser apenas credi-
tada ao Judiciário e às suas instituiヘes pouco ajustadas à
AP R ESE NT A‚ O                                                      7


justiça. Concorrem para tal a própria sociedade e seu uso
do Judiciário (“falsa cultura da litigância”), concorrem ain-
da os “juriscidas” e o “controle externo pelo general”. Este
último foi exposto no ensaio homônimo, uma instigante
análise da “Lei Orgânica da Magistratura Nacional” (LO-
MAN), de 1979, na qual o general Ernesto Geisel atentou
duradouramente contra a construção de um Judiciário
que se possa afirmar como expressão do Estado Demo-
crático de Direito.
       O ensaio “A outra morte de Herzog” merece um re-
gistro especial como radiografia de uma ignominiosa “fle-
xão do Poder Judiciário”, manifesta no julgamento da sen-
tença do juiz Márcio José de Moraes pelo Tribunal Federal
de Recurs os. O caso é didátic o e recente. Não se pode dis-
cutir seriamente a reforma do Judiciário sem arrancá-lo
do esquecimento.
                                                      Peter Naumann
I
OS JU R S
      I CID A
            S
OS    JU RISC ID                                                 11
 AS




       Das tantas coisas de que se fala ou especula a propósi-
to do final do milênio, uma há que encerra mesmo toda a
noção de perplexidade própria da idéia de fim, mas de
um fim sem recomeço. Trata-se da resignaヘo vaga com a
idéia de morte ligada a situações humanas que sempre fo-
ram tidas como fontes de revivescência, porque nelas se
amparavam as aヘes para que a vida recobrasse seu vigor,
e os homens direcionassem seu destino, estabelecendo
um pouco, na medida precária de suas forças, as caracte-
rísticas de um mundo em que queriam viver.
       De um lado, o lado da morte, houve um recrudesci-
mento de c rimes raciais, com uma diversificaヘo de perse-
guidos que nunca foi imaginada, e não são mais necessá-
rias as certezas a respeito de inferioridade, perigo ou
nocividade pública, sempre inventadas como pretexto pe-
los totalitarismos, para que a repressão por ódio se instale.
O genocídio bate de novo à porta da civilizada Europa
Ocidental, e a guerra dos Balcãs mostrou isso nos julga-
mentos — poucos, para a proporção dos fatos, — já reali-
zados na Corte Internacional de Haia. Não bastassem es-
ses crimes de grande envergadura, mata-se sem motivo, no
cotidiano, por morte cruel e absurda, e há mesmo uma
banalizaヘo do homicídio no ato continuado, aqui no
Brasil, de colocar fogo em notívagos e ébrios por diversão,
como no de jogar recém nascidos no lixo. As notícias sem-
pre dramáticas, sobre isso, vêm como espasmos , de temp          os
12                                                 A JU STIÇ A AGO N IZ A



em tempos, e dão até a impressão de que têm efeito multi-
p li c a or, pois geram um surto e depois cessam, mas o si-
       d
lêncio que cai parece que apenas esconde um drama que
continua. Até ecoar de novo.
       Do lado da vida, as instituiヘes que o homem criou
— escolas, hospitais, penitenciárias, Judiciário — não con-
seguem dar resposta a problemas que só mais recente-
mente ganharam proporヘes de avalancha ou de enxurra-
da, como o das drogas, da prostituição infantil e do crime
organizado. O Código Penal está em vias de ser ampla-
mente modificado e, sem dúvida, o será para pior. Indício
disso é a gama de crimes que, na esteira da tortura que
traumatizou os brasileiros durante o regime imposto pelos
militares, passaram a ser classificados como hediondos.
Trata-se de uma qualificaヘo legal que abandona a idéia
de sistema jurídico, assim definido por conter uma har-
monia de princ ípios e definiヘes normativas. Cria-se uma
espécie de exílio da regra punitiva, e ela passa a incidir co-
mo se estivesse fora do sis tema, convertendo-s e numa am-
pla exceヘo. A possibilidade de erro judiciário aumentou,
desde que se raciocine com base em situações absoluta-
mente plausíveis de ser alguém acusado injustamente do
crime hediondo de racismo, estupro ou seqüestro. A pró-
pria definiヘo legal — hediondo — contém a carga absur-
da de imputação que torna o acusado quas e indefensável.
Além disso, e por exemplo, o que é racismo? Os juízes não
sabem responder, porque também desconhecem os con-
ceitos básicos da sociologia e da antropologia que o dife-
rencia do preconceito racial, da segregação racial e da dis-
criminaヘo racial. Os magistrados, e os juristas em geral,
não encontram em seu saber metodologia suficientemen-
te apta para distinguir todas essas figuras, cujo traço dis-
tintivo é tão marcante, mas que o Direito confunde com
suas disposiヘes de caráter meramente normativo.
       A par da falta de respostas, que deveriam advir do la-
do da vida, há uma segunda morte a ser lamentada. É o
OS    JUR ISC ID                                                       13
 AS



particular fenecimento no âmbito do conhecimento jurí-
dic o da capacidade para captar os fatos pela via do seu re-
lato, isto é, de fazer dos autos judiciais um documento fiel,
pertinente, profundo em seu conteúdo, do acontecimen-
to efetivamente havido.
       Palavras novas precisam ser criadas para descrever
realidades que se impuseram antes que pudessem ser no-
meadas por composição dos termos correntes, e exigiram
síntese que remetesse imediatamente ao sentido recém
des coberto. A segunda morte fez surgir um novo assassino.
A palavra ju iscid a se impõe para reconhecimento daquele
               r
que opera essa morte do Direito, daquele que o mata a ca-
da dia, sistematicamente, porque não sabe reconhecê-lo,
nem dele extrai nenhum valor, e também o banaliza com
outras formas fatais que já não suscitam revolta e dor a
quem assiste. O        j ur sc id entupiu o Judiciário com ações
                            i a
despropositadas, transformando-o numa grande catedral
de papel, onde as palavras que sempre tiveram sentido, e
foram inspiradoras da difícil construção de um poder po-
lítico independente incumbido dos julgamentos, ficaram
ocas, e hoje se ntim ento de justiça, lealdade processual, lógica
n orma tiva e outras expressões fundamentais para entendi-
mento e aplicaヘo do Direito são palavras ao vento. Pa-
lavras, palavras, palavras... que os         jur iscid a sa s s
                                                              assi na ra m
com a vulgaridade de seu trabalho aquém e além dos can-
celos judiciais, sob togas, batas, becas, arminhos debrua-
dos... Eis aí praticado, sem piedade, o crime com pompa,
o crime arrogante.
       Hoje, a pretexto de reparar situaヘes supostamente
iníquas, os jur iscid a sjogam, a rodo, aヘes, denúncias, re-
clamaヘes aonde quer que exista um protocolo judiciário
e, por sua vez, obtêm a resposta necessariamente tardia na
forma de julgados disparatados, oriundos de processos
treslidos. A justiça assim praticada mata todo o esforço pa-
ra elevá-la ao sentido próprio do termo. Pedir qualquer
coisa, repetir fórmulas pré-impressas em computador, te-
14                                                     A JUST IÇ A AG ON IZ A



nham elas ou não pertinência com o caso em exame, é a
prática que se mostra eficiente para assassinar o Direito.
Diria o incauto que, se a injustiça está nas ruas, ela teria
que fluir para os tribunais. Não se trata disso; trata-se do
contrário: de uma injustiça que está mal descrita ou carac-
terizada, ou que não aconteceu, ou que não é injustiça em
si mesma (pois deriva de uma circunstância que não foi
percebida por quem a denuncia sem base) ou, pior ainda,
trata-se de uma injustiça nova, aquela que é exatamente
buscada pelos mesmos caminhos que só poderiam ser tri-
lhados por quem procura a justiça... Essa injustiça em si
mesma é o fruto do trabalho do juriscida.
      Há uma falsa cultura da litigância que faz com que,
por exemplo, a Alemanha (que tem a metade da popula-
ção e uma estrutura do Judiciário Trabalhista muito seme-
lhante à do Brasil) registrasse cerca de 4.500 aヘes recla-
matórias em 1998, enquanto que aqui foram interpostas
aproximadamente 2.5000.000 no mesmo ano. O argumen-
to a respeito de que faltam entre nós instâncias intermediá-
rias não dá nenhuma resposta para essa desproporヘo e so-
mente serve para expor mais nosso gradativo e inexorável
perecimento institucional.
      Os tribunais brasileiros, e não foge a isso o Supremo
Tribunal Federal, procuram dar resposta à torrente de
aヘes efetivando julgamentos em massa (não menos de
dez mil por ano naquela corte, compos ta por apenas onze
ministros). O Tribunal Superior do Trabalho, no final de
1998, provocou a ediヘo mais volumosa de um jornal no
mundo, ao publicar as intimaヘes dos processos ali julga-
dos, no Diário da Justiça. Trata-se de uma lógic a da multi-
plicaヘo que ganhou o automatismo dos resultados acei-
tos como se prescindissem de causa. Pelo absurdo, que ao
menos se repetisse Unamuno:           Contra el dolor, más dolor .
      O que há de novo, como atitude, é a aceitaヘo resig-
nada dessa gross eira e brutal forma de morte. A noヘo de
finalidade da Justiça deve ser acessível a qualquer um,
OS    JUR ISC ID                                                     15
 AS



mesmo ao rústico e ao analfabeto, desde que os letrados
entendam a necessidade dela, e usem as palavras que co-
nhecem para alcanヘ-la concretamente, não para produ-
zir seu engodo bem remunerado, nas catedrais de papel
transformadas em sucata, em regurgitamento e tédio da
civilizaヘo. Es pec ialmente, não as us em em cumplic idade
com a mais letal dentre todas as formas de morte do D             i rei-
to, que — esmagada pelo entulho — hoje é uma palavra
lançada ao degredo, corrompida pelo nada, desonrada
pelo seu emprego.
       Os brasileiros numerosos que têm sua vida compro-
metida pelos milhões de processos iníquos que tramitam,
em aヘes de trânsito, de família, fiscais, trabalhistas, e que
morrem um pouco a cada vez que os atos processuais
transtornam suas existências, pois não querem formar um
povo conduzido pela aposta ou pelas transações menores
e sempre frustrantes , têm agora o nome de um novo               seria l
killer, o ju iscid a . Sabem, sofridamente, que é preciso, e ur-
           r
gente, exterminá-lo antes de morrer em suas mãos.
II
O   REVERSO   DA
CRISE
O   R EVE RSO DA C R                                              19
    ISE




I – ARÍTICA SISTEMATIZADA
      C


       Aqueles que falam tão seguidamente sobre a crise do
Direito, ou sobre a crise da Justiça, têm um débito para
com a sua própria memória, e o gosto pela repetiヘo. Esse
tema já foi desenvolvido no país, com abordagens radicais
e célebres. Retomá-lo é como buscar o efeito repristinató-
rio das leis e, honestamente, não se pode mais falar em
crise, mas nos resultados dela, nos diagnósticos que foram
feitos. A análise que se impõe é outra, é a que busca mos-
trar o reverso. É a que quer encontrar os marcos da crítica
dessa crise.
       Os anos ‘50 assinalam no Brasil a revisão teórica dos
postulados do Direito        que não haviam dado cert o e que, em
outras palavras, continham-se nos limites de princípios
co n servadores. Todas as questões estavam postas de novo
e os motivos justificadores dos institutos, fórmulas jurídi-
cas e — especialmente — resultados obtidos pela jurisdi-
ヘo passavam pelo crivo de críticas abrangentes, que repu-
nham ou retiravam significados. Foi então que surgiu a
obra-prima “A Crise do Direito” (São Paulo, Ed. Max
Limonad, 1955), raridade bibliográfica que nem mesmo
costuma constar no extenso rol de publicações de seu au-
tor, Orlando Gomes, e não foi reeditada.
      Questionava-se então, e sobretudo, o Direito positivo e a
relaヘo com a       real idade social efetiv a , sua elaboraヘo e sua
aplicação frente a es ta. Foi esse o tempo de “A Crise do Di-
reito”. Orlando Gomes revisou o quadro de insuficiência e
de descrença na legislaヘo. Levantando a tese da decadên-
cia do jurista francês Ripert, — e mais especialmente a ano-
mia denunciada por Léon Duguit —, ele questionou ponto
20                                                      A JUST IÇ A AGO N IZA



a ponto os temas da forç a geradora dos direitos; o declínio
da interpretaヘo imanente das normas (que sempre lhes
atribuiu um certo sentido anímico e, assim, de fetiche); a
formaç ão de regras heterônomas em relaヘo ao Estado,
cuja efetividade era crescente; a fals a noヘo dos silogismos
p erfeitos e, por fim, mas principalmente, a desmoralizaヘo
da teoria da autonomia da vontade, diante do molde do
contrato de adesão (ou de outras formas em que a manifes-
taヘo de vontade é aces sória e não substantiva), de largo
emprego. Questionamento tão amplo recolocou historica-
mente o estudo do Direito, superando uma espécie de clas-
sificação p aleontológica que dele o posi tivismo fazia.
      A elaboraヘo dogmática do Direito recuperou corres-
pondência com uma realidade histórica e podia ser tecni-
camente considerada a existência de um Direito burguês,
mas também que a expressão deste engendrava realidades
divers as, e foi a partir destas, do fim para o começo, que o
questionamento da dogmática ganhou corpo. Finalmente,
sem ser cientificamente blasfemo, podiam ser lembradas as
mais amargas, candentes e radicais imputaヘ es a um Dire-
ito insuficiente, dando-se curso a isso na própria elabora-
ヘo da crítica, s em abandono da abordagem jurídica.
      O mesmo Orlando Gomes havia tratado de forma
pioneira a questão dos direitos gerados pelas convenções
coletivas do trabalho. Identific ava nelas a força da produ-
ヘo de normas jurídicas paralelamente ao Estado, “como
um dos aspectos da transposiヘo da luta de classes para o
plano jurídico”, uma vez que tal normativismo produzia
um d ireito objetivo, à margem do         d ireito estatal. Quarenta e
quatro anos depois, ao retomar de certa forma o tema de
“A Crise do Direito” no livro “Transformaヘes Gerais do
Direito das Obrigaヘes”, mas agora numa reflexão nada
irruptiva, Orlando Gomes confessou o cometimento de
equívoco e, fundado principalmente na teoria do negócio
jurídico de Emílio Betti, proclamou que a convenヘo cole-
O   R EVE RSO DA C RISE                                               21


tiva, como negócio jurídico privado, não poderia fazer
surtir direito objetivo.
      A questão das convenヘes coletivas era cara àqueles
que pretendiam desenvolver um estudo crítico do Direito,
desde que sabido ter o Estado Novo antecipado conquistas
sociais como fruto da outorga estatal, sobrepondo-se ao
aproveitamento delas como bandeira pelos movimentos
revolucionários dos anos ‘20 e ‘30. Evaristo de Moares
(pai), que havia colaborado na implantaヘo de um sistema
de proteç ão ao trabalho de caráter corporativo, trazido no
bojo da Revoluヘo da Aliança Liberal, escreveu em seus
“Apontamentos de Direito Operário” a observaヘo de Gi-
anturco de que “a questão social reside no Código Civil”.
      Eis aí um ponto de difícil encaminhamento, pois se a
autonomia da vontade não construía uma ordem social
harmônica, e mostrava-se seguidamente como um mito,
por outro lado havia uma legislação protetiva abundante,
que supostamente equalizava interesses. Acreditar, portan-
to, que as convenヘes coletivas conteriam os elementos
que a legislação estatal não suportava, equivalia a deduzir
de esquemas interpretativos que, quanto ao Direito, como
quanto à Economia, à Filosofia e à Política, eram precá-
rios como teoria, e negavam a verdade histórica tantas ve-
zes buscada.
      Foi o próprio Orlando Gomes que, por essa mesma
época (1959), publicou “Marx e Kelsen”, texto curto em
que expôs — em nível descritivo — a interpretação mar-
xista do Direito, de acordo com as versões de Stuchka,
Pashukanis e Vic hinsky, em contraposição à visão kelsenia-
na da norma jurídica pura, vinculada unicamente ao Di-
reito Positivo e analisada sem qualquer causaç ão, configu-
rando-se como a quintessência do Direito burguês. Na
verdade, Stuchka encerrava as normas jurídicas dentro
das relaヘes sociais, enquanto Pashukanis apresentava
uma variaヘo dessas relações que, estabelecidas com base
no interesse econômico, ganhavam              f o a específica, so-
                                                 rm
22                                                      A JU STIÇ A AGO N IZ A



brevalorizada na sociedade burguesa, mas tendente a de-
saparecer com a construヘo do socialismo e a implantação
de mecanismos sociais, de inspiração técnico-econômica,
sobrevenientes ao “perecimento da superestrutura jurídi-
ca em geral”. Andrei Vichinsky sustentou que as teorias
antecedentes impediam o desenvolvimento do estudo ju-
rídico no mundo socialista e defendeu a idéia de aprovei-
tamento do arcabouço jurídico burguês, como forma de
representaヘo útil, mas desmitificada. Tratou da verdade
judiciária, fruto da consideração pelo juiz das implicaヘes
do ato examinado, tendo em vista as instituiヘes do Esta-
do e da sociedade, de modo a não ficar fixado numa ver-
dade só dos fatos, de caráter absoluto. Por exemplo, em
matéria de Direito Penal, isso queria dizer que as provas
circunstanciais precediam as materiais em sua valoraヘo, e
por isso não havia a necessidade de definiヘo anterior do
crime e da pena. Como bem esclareceu Umberto Cerroni,
a partir de 1954 (ano em que morreu Vichinsky), essas
teorias entraram em desconcerto e a manifestação de ou-
tros juristas, com apoio em decisões do Tribunal Supremo
da URSS, indicava sua lógica de irrecusável ilegismo. Além
disso, em especial a partir das denúncias de Khrustchev
em 1956, a figura de Vichinsky ficou irremediavelmente li-
gada aos chamados Processos de Moscou, em que atuou
como Procurador-Geral da União Soviética, e sua teoria
jurídica é, por ironia da representação que ele tanto c aus-
ticou no Direito burguês, expressão rala do stalinismo e
de seus crimes.
      Não fosse pelo esquematismo, seria difícil entender
porque Orlando Gomes, em 1959, apresentou idéias de
Vichinsky como representativas do marxismo. Ocorre que
havia um espírito de questionamento na época, e, como
se sabe, as críticas prescindem de paternidade, valem pelo
que instabilizam.
      O Estado Novo também havia construído um estigma
para a Velha República, que recaiu sobre Wa                  sh in gt o n
O   R EVE RSO DA C RIS                                        23
    E



Luis. Coube por ironia a Evaristo de Moares Filho, não ce-
dendo à tentaヘo de celebrar a corrente a que se filiou seu
pai, demonstrar que o ideário reformista da Revoluç ão de
‘30, realizado no Estado Novo, serviu-se da tese de que “a
questão social é um caso de polícia”. A frase foi produzida
pelo DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda. O
governo de Washington Luis teria primado pela solução
negociada dos conflitos sociais, criando mesmo câmaras
de conciliaヘo especial para reger os dissídios na área ru-
ral. Todavia, é também verdade que as greves da década
de ‘20 foram encaradas como arruaças e a tônica naquele
tempo foi a repressão e o desterro de trabalhadores imi-
grantes. A frase fabricada pelo DIP está de acordo com os
pronunciamentos que eram então corriqueiros, e serv i         u
àquele tempo como representativa dele, independente da
intenção de um ou outro governante, pois a sociedade
que estava presa a um patriarcado patrimonialista não
conseguia gerar Direito reformador.
      Conquanto as críticas esbarrassem em verdades e
mentiras, como na confusão de umas com as outras, o es-
sencial é que, a partir dos anos ‘50, principalmente, elas
puderam obter um grau de sistematizaヘo que não havia
sido produzido antes. Há uma homenagem a prestar aos
que erraram, mas criticaram. Dentre eles, com destaque,
Orlando Gomes.
24                                                       A JUST IÇ A AG ON IZ A




II    –   AJ
          USTIÇA DA CRISE

      Embora isso possa ser tido como uma interpretaヘo
meramente funcionalista, a verdade é que o enfoque da
crise não está mais centrado no Direito, mas es pecialmen-
te na J ustiça. Há uma pródiga legislaヘo que permite ao
seu intérprete e aplic ador plena desenvoltura para não fi-
car prisioneiro da regra.
      Erram os que supõem que o Judiciário passa por uma
crise. O que há é a ausência de um efetivo poder organiza-
do a partir dos elementos que lhe dão fisionomia, é uma
Justiça da crise . Não é possível dizer que chegou-se a um
ponto de paroxismo porque a crítica do Direito não con-
seguiu consumar uma síntese, ou seja, porque ela não ge-
rou um Direito novo. Não há esse Direito novo. O Direito
novo é o Direito velho que foi reinterpretado por homens
que viveram (ou vislumbraram) novos tempos.
      A Justiça da crise é aquela do Judiciário precário em
estado permanente, e se realiza e expressa no pequeno
engajamento e no parco comando que os magistrados al-
cançam nos atos de seu ofício. Não é por acaso que s e fala
em “crise de identidade que afeta aos operadores jurídi-
cos e aos papéis de mediaヘo institucional” (Pietro Barcel-
lona e Giuseppe Cotturri). Segundo esses juristas italia-
nos, “não se trata (...) de construir um novo                     modelo,
definido e acabado, de relaヘes sociais, uma nova teoria
geral do Direito ou um sistema de conceitos; tampouco de
configurar os instrumentos adequados para garantir uma
abstrata justificabilidade dos        int eresses excluídos; trata-se de
definir as condiç ões práticas e de elaborar os pressupostos
teóricos necessários para eliminar os            d esvalores im p lí cit os
O   R EVE RSO D A C R                                                25
    ISE



nos critérios de qualificação jurídica comumente empre-
gados pela doutrina e a jurisprudência.”
      Em res umo, o juiz não mais responde pelo Poder que
integra para justificá-lo. Deveria fazê-lo, em tese, pois é da
essência desse Poder produzir a justificação; intervir nos
interesses e liberdades e expor o porquê, gerar os funda-
mentos; divulgar a      rat io como um saber iluminista. Porém,
o juiz integra o Poder para realizá-lo independente — e se-
guidamente contra — os enunciados formais que dão con-
torno à sua funç ão. Para não ser segregado em seu ofício,
em um compartimento do Estado, tem de reviver o que há
de sábio no espírito humano, de integrador e de igualitá-
rio. Todavia, é preciso saber distinguir essa ordem judican-
te sempre libertária da ordem jurídica que nem sempre o
é. Há práticas emancipatórias que têm de ser juridicamen-
te desenvolvidas, e há um papel a ser assumido de garantir
o Direito “frente a todas as contingências”. Porque abordar
conflitos é proceder análise das relaヘes existentes e das
possíveis, o juiz tem de viver sua liberdade ainda que não
seja por escolha sua, pois não há outro modo de definir a
respeito desses conflitos alguma aヘo concreta.
      Estes são os princípios. Este é o tema desenvolvido
até o ponto em que a crítica produz o seu reverso na for-
ma de outro conhecimento. Os juízes têm sido realizado-
res de uma Justiça da crise, oriunda desta e fabricada no
seu bojo, e — na suposiヘo errada de que se trata de uma
crise da Justiça — não têm sabido superá-la. Para isso é
fundamental a eliminação de procedimentos que consa-
gram uma motorização alienada e disfuncional e, sobretu-
do, embaraçam a retomada do saber heurístico, da desco-
berta do significado dos preceitos, e da revelaヘo da
norma jurídica em sua aplicação mais efetiva. Quando for
restabelecida a noヘo da         ars inveniendi , proposta por Karl
Engisch, em lugar da       ars judicandi apenas, será a hora de
não só aceitar as premissas, mas também de inventá-las.
II
      I
O        CONTROLE
EXTERNO
   PELO
   GENERAL
O C O N TR O LE EX TE RN O P ELO G E NE RAL                          29




 I      –     DOUTRINA                          E
 JUSTIFICAÇÃO

      Nã o há doutrina jurídi ca q ue não seja transformadora.
Muitas vezes, sob o nome de doutrina, trata-se da aplicaヘo
das normas jurídicas. A análise que então se faz é a da juris-
diç ão. Vale dizer, da jurisprudência que dela resulta. Mas
se, o enfoque for a respeito do modo como os prec eitos le-
gais se justificam ou fundamentam, trata-se da interpreta-
ヘo. Isto é, da exegese do Direito. Em nenhum desses casos
há autêntica doutrina e, se os outros caminhos indicados,
quer o da aplicaヘo, quer o da interpretaヘo das normas
jurídicas, mostram-se acaso transformadores, trata-se aí de
uma mudança que se realiza no plano dos fatos, na histó-
ria, portanto que se     reifica e se encerra. Já a doutrina é con-
ceptiva por excelência, e as transformaヘes que transporta
não se concluem sem a sua s uperação por outra doutrina.
      Por isso não há doutrinador que não perpasse sua              wel-
ta nsch au u n g (concepヘo de mundo), ou que suprima o ca-
ráter atributivo às normas legais com que aquela sua con-
cepção procura entendê-las. Assim também não existe
jurisprudência que prescinda da força identificadora de tais
normas ao celebrar o julgamento como resultado delas.
       Embora a palavra doutrina tenha a raiz etimológica
que aponte para a opinião dos doutores, ou dos doutos,
ela é ao mesmo tempo uma ortodoxia e uma heterodoxia.
Isso porque o Direito se transforma, como se aplica de va-
riadas maneiras ao caso examinado, quando este se repete,
e assim é um ramo do conhecimento sob teste permanen-
te, sob verificaヘo, e a doutrina não serviria para estabilizá-
lo se não fosse direcionada para fins que superam o fato
30                                                      A JUST IÇ A AG ON IZ A



concreto apresentado, se não se pos icionasse mais adiante,
na hipótese abstrata da sua incidência.
        A doutrina é, fundamentalmente, dirigida para o Di-
reito que se nega, daí porque ela o complementa com a
idéia de que há uma possibilidade lógica, sistemática, dog-
mática, de que ele venha a ser superado. O Direito que se
aplica não compõe o inventário da doutrina, mas o da his-
tória. Por isso, uma boa dose de humildade é exigida ao
d o u t rin a d o r, que não vê na sua vontade uma força inspira-
dora de novas regras, mas sabe que ela é apenas seletiva
de fatos que, regidos sob novas circunstâncias, terão senti-
do e efeitos que melhor se compadecem com a idéia de
Direito. Não é por acaso que o mais célebre dos doutrina-
dores bras ileiros, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda,
encerrou a última de suas numerosas obras (Comentários
ao Código de Proc esso Civil de 1973) invocando a inspira-
ção de Konrad Hellwig, a quem tributou a mais marcante
influência no Direito moderno:              pectus facit iurisconsultus .
Se o coraヘo faz o jurista, o desvio do Direito, a perda de
sua justificaヘo, se apresenta também como um sentido.
Um sentido morto.
O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G EN ER AL                        31




 II –         AOUT R A NÃO
               D    IN                        PODE   IGNORAR
                                                           OS
                       FAT

       Há temas que têm de ser colhidos na história do Direi-
to, como outros que precis am s er desalojados do catálog            o
de jurisprudência, para receber enfoque doutrinário, por-
que continuam a produzir efeitos, ou conseqŸncia de
seus efeitos, e a eles não se pode dar o que seria uma espé-
cie de automatismo de resultado, vale dizer, não se lhes po-
de atribuir uma influência inevitável, boa ou nefasta, so-
mente porque foram gerados em um tempo já passado, e
seu surgimento está consumado. Só a doutrina pode con-
ceber uma transformação que abjure origens ou finalida-
des que antes se perderam naquele tempo e verificar se de-
veriam ter perecido nele. O trabalho doutrinário é, por
natureza, de jure condendo ou de lege fere da , e é iss o o que se
                                               n
busca aqui: e nc   ontrar no tempo passado, mas nele isolar, a força
justificadora de um Direito que hoje não se sustenta, mas que —
infelizmente — continua a gerar efeitos re pressivos intoleráveis, e
que a lei da inércia mental perpetua.
32                                                     A JUST IÇ A AGO N IZ A




III – A J U
          STIÇA NO MEIO DO CAMINHO DA
      DISTEN SÃO


       O General Ernesto Geisel estava convencido em 1977
de que seu projeto de        di st e nsão lenta, g radual e segura n-i
cluía a internalizaヘo das funções repressivas no âmbito
do Judiciário. Por isso, quando a Câmara dos Deputados
rejeitou a reforma da Justiça que ele havia proposto, não
hesitou em fechar o Congresso Nacional, decretando o
seu recesso e editando na mesma data a Emenda Constitu-
cional nº 7, com base no Ato Institucional nº 5/68.
       O AI-5 já vigorava por nove anos e foi o mais longo e
contundente controle externo operado sobre o Judiciário,
pois suspendia as garantias da magistratura, retirando o
poder e a independência inerentes ao cargo para preser-
var apenas as suas funções. O plano do General Geisel con-
sistia em instituir um auto-regime para o Judiciário, trans-
ferindo-lhe as atividades repressivas para a contenヘo do
seu corpo funcional, o que dis pensaria a aplicação das me-
didas rev ol cion árias. Segundo o programa da
             u                                           di stensão len-
ta, gradual e segura aquelas medidas perduravam como uma
pena virtual, como a espada de Dâmocles, e era preciso re-
mover a necessidade da sua permanência, para que o refe-
rido programa prosseguisse. Isso só era possível na medi-
da em que a Justiça assumisse um papel de censor, de
autocensor.
       A reforma do Poder Judiciário foi completada em 14
de março de 1979 (véspera da transmissão do cargo para o
general João Figueiredo), quando o General Ernesto
Geisel publicou o último diploma legal de seu governo, a
Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Lei Complemen-
tar nº 35/79, conhecida por LOMAN.
O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G EN ER AL                       33




 IV  –  O PENSAMENTO DA ESG —
 ESCOLA RIOR DE GUERRA “SORBON NE
     SUPE            A
     (
     BRA S LEIRA” )
           I


       Pela Reforma Geisel, os juízes deixaram de ser vitalí-
cios em virtude da investidura através de concurso públi-
co, passando a adquirir tal garantia só ao cabo de dois
anos de exercício. Desde então, e durante todo esse tem-
po, podem ser desligados por decisão administrativa dos
tribunais. Até 1988, quando foi editada a Constituição vi-
gente, a deliberaヘo nem mesmo precisava ser explicita-
mente motivada.
       Os magistrados recrutados no Ministério Público e
na advocac ia perdiam sua origem, vale dizer, depois de in-
tegrarem a magistratura poderiam ocupar vagas em ou-
tros tribunais como se fossem juízes de carreira. Isso criou
sérios embaraços em Estados que tinham dois tribunais de
segunda instância, o Tribunal de Alçada e o de Justiça, co-
mo também desfigurou a complexa composição do Tr                   i-
bunal Federal de Recursos, hoje Superior Tribunal de
Justiça. Simplesmente, o quinto constitucional dos chama-
dos juízes forâneos (provindos da advocacia e do Minis-
tério Público) foi superado muitas vezes, em detrimento
dos magistrados de carreira.
       Os mandados de segurança (independente da matéria
sob exame) passaram à competênc ia dos Tribunais no âm-
bito dos quais foi praticado o ato imputado de abusivo a
eles próprios, com o desaparec imento do j uízo isento. Em
matéria disciplinar, os juízes tornaram-se os únicos serv       id o-
res do Estado submetidos a julgamentos administrativos ir-
recorríveis. Primeiro, porque a LOMAN não previu recur-
34                                                    A JU STIÇ A AGO N IZ A



so. Segundo, porque os mandados de seguranç a em busca
de garantias legais teriam de ser interpostos perante os ór-
gãos coatores. Terceiro, porque haveria o empecilho legal
de incabimento desse tip o de ação diante de ato d isciplinar.
      O que se viu a partir de então guarda analogia com a
clássic a narrativa de Peter Gay sobre a        débâcle da República
de Weimar: o des file do opróbrio, da perseguiヘo rasteira
por motivos pessoais, da bajulaヘo, das fidelidades maçô-
nicas e do despropósito de toda a ordem, sob o comando
dos arrivistas de sempre. Criaram-se tribunais de exceヘo
com funções censórias (um dos quais foi dissolvido pelo
Supremo Tribunal Federal). Surgiram órgãos especiais
com amplas atribuiヘes administrativas, para concentrar
poder e exercê-lo arbitrariamente, mesmo em tribunais
pequenos que não tinham sequer vinte e cinco juízes
( qu orum mínimo fixado como condiヘo pela LOMAN pa-
ra que fossem criados os referidos órgãos). A cúpula do
Judiciário passou a contar c om um número ínfimo de ma-
gistrados de carreira, tendo em vista que os juízes forâ-
neos perdiam a sua origem na classe onde haviam sido re-
crutados, e passavam a ser também considerados como
oriundos da mesma carreira.
      É verdade que para essa         débâc le concorreu o fato de
que muitos juízes, que eram contrários aos princípios in-
formadores da LOMAN, se aposentaram massivamente
quando ela entrou em vigor. Seu silêncio, infelizmente,
não deixou memória, mas uma situação de abandono da
resistência altiva que traz sua marca aos dias de hoje.
      Esses últimos tópicos, que parecem ser apenas os de
uma crônica, na verdade reapresentam um tema irresolvi-
do, e é preciso buscar mais passado para esclarecê-lo.
O C O N TR O LE EX TE RN O P ELO G E NE RAL                       35




 V   –      AS                                DEFORMA‚ES
 CIRÚRGICAS

       A crise institucional do Judiciário provém principal-
mente do movimento militar da Revolução de 64, porque
se caracterizou como uma insurreição a meio do cami-
nho. Trouxe elementos reformistas do Estado, segundo
um programa liberal-autoritário preconizado principal-
mente pela União Democrática Nacional. Também teve
componentes nitidamente fascistas, como as peregrina-
ヘes por Deus, a família e a propriedade. Houve ainda o
militarismo ressentido que se frustrara com a impossibili-
dade do desfecho no golpe em 1954, em face do suicídio
de Getúlio Vargas e, mais recentemente, com a              camp anh a
da legalidade , que forçou a sucessão presidencial regular
em 1961, quando renunciou Jânio Quadros. Como este
não é o momento para examinar todas as implicaヘes ins-
titucionais do movimento militar, basta repetir a inscriヘo
lapidar que encerra os vinte e seis anos vividos no Brasil
de regime de exceção, atribuída a Tancredo Neves: “a Re-
voluヘo de 64 foi o Estado Novo da UDN”.
      Ao tempo dos atos institucionais revolucionários juí-
zes intimoratos chegaram a questionar a impossibilidade
de realizar eleições ou des apropriações, pois as leis que re-
gem essas matérias prevêem a atuação de magistrados ga-
rantidos, e as garantias estavam suspensas. Os tribunais,
onde o adesismo já se fazia convenientemente sentir, en-
tenderam que aqueles atos jurisdicionais deveriam ser
praticados, apesar das medidas de exceção, dando vez à
pantomimas conhecidas. Em razão do colaboracionismo
crescente, as situaヘes de cruel tortura e de infraヘo às
36                                                   A JU STIÇ A AGO N IZ A



próprias regras legais autoritárias que o movimento mili-
tar impusera dificilmente foram impedidas ou reparadas.
      Conquanto isso ocorresse, havia uma aura de último
reduto cercando o Judiciário. O Marechal Castelo Branco
adotou as providências de controle que bem quis, quer
por via de medidas de exceヘo, de lei e, mais adiante, da
Constituiヘo outorgada em 1967. Refundou a Justiça Fe-
deral, provendo-lhe todos os cargos de juiz por indicaヘes
políticas, sem concurso. Introduziu na Justiça do Tr           ab alh o
a participação do Ministério Público e dos advogados, por
sobre a representaヘo clas sis ta leiga, que permaneceu. Os
juízes adventícios, para preencher as novas vagas, também
eram nomeados sem concurso ou indicaヘo de suas clas-
ses ou dos próprios tribunais. Aumentou a composiヘo do
Supremo Tribunal Federal de onze para quinze membros.
Transferiu a competência para julgamento dos crimes
contra o Estado e dos chamados delitos políticos para a
Justiça Militar.
      Após a ediヘo do Ato Institucional nº 5/68, o Mare-
chal Costa e Silva aposentou compulsoriamente três Mi-
nistros do Supremo Tribunal Federal em 16 de janeiro de
1969 (Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e
Silva), além de outros do Superior Tribunal Militar. Dias
depois, pelo AI-6, reduziu novamente a composiヘo do
STF para onze juízes.
O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G E NER AL                     37




 VI – O LEGADO IRREMOVIDO


      Realizada toda a liturgia de uma missa negra nos mais
de onze anos em que vigorou o Ato Institucional nº 5, para
o que interessa aqui, é bem de ver que ao tempo do gene-
ral Geisel todas essas medidas estavam esgotadas como for-
ma de controle. Havia uma espécie de recalcitrância com a
qual os militares, parece, não sabiam lidar, de modo que
suas intervenções institucionais eram marcadas por idas e
vindas, e eles desfaziam e refaziam os seus atos. Definitiva-
mente, era preciso que o Judiciário fosse o seu próprio
gendarme. Eis aí o nó Górdio cortado.
      É surpreendente que ainda hoje se faça o debate sobre
controle interno ou externo da Justiça sem atentar para es-
ses episódios tão marcantes e, com muito mais percepヘo,
para o fato de que os constituintes de 1988 conservaram in-
teiramente a estrutura do Poder Judic iário que o general
Geisel idealizou. A pequena modificaヘo feita, mais a título
de contornar a grande confusão jurídica criada, residiu na
fixaヘo da origem dos elementos forâneos, de modo a que
integrantes do Ministério Público e advogados ocupem ape-
nas as vagas a eles destinadas e sejam selecionados em listas
de suas corporaヘes. Quanto ao mais, a Constituiヘo vigen-
te preservou esse cadáver insepulto que é o de uma Justiça
organicamente autoritária, guardando-o no armário. Há si-
nais iniludíveis d e d ecompo sição.
      Onde estão os problemas do Judiciário? Estão na cú-
pula que o administra dispondo sobre o orçamento, sem
contudo prover os meios que eliminariam a pletora e a de-
mora. Quem pratica o nepotismo, quem destina verbas
38                                                    A JUST IÇ A AG ON IZ A



para obras suntuosas, quem promove a classificação de
funcionários em níveis incompatíveis com seus limitados
encargos legais, elevando os gastos à estratosfera?
      Muitos tribunais adotaram um sistema de controle e
verificaヘo para o vitaliciamento de magistrados que não
completaram ainda dois anos de serviço. Eis uma prova de
que a ideologia da distensão continua a produzir seus efei-
tos nefastos. A LOMAN prevê que a vitaliciedade seja ad-
quirida ex facto temporis , isto é, em virtude exclusivamente
do decurso do tempo. Não há nenhum sistema de teste;
não há nenhuma verificaヘo, como se fora um estágio pro-
batório. Via de regra, o juiz não vitalício exerce a mesma
competência do juiz vitalício, observadas as exc eヘes já re-
feridas dos casos de desapropriaヘo e da legislação eleito-
ral. A aberraヘo que os tribunais criaram com o processo
de vitaliciamento é o último suspiro de um sistema de con-
trole morto, porque é exercido da cúpula para baixo, com
o propósito do mando vazio.
      Estas são as questões verdadeiramente importantes
que se apresentam. Respondê-las significa controlar sim
os desmandos, mas por um sistema que não é esse vigen-
te, concebido para cumprir a ideologia da distensão, e
que tem como destinatários somente os integrantes da
carreira judicial. Aos juízes preocupados com o bom fun-
cionamento do Poder que integram, pouco importa se o
controle será interno ou externo, conquanto ele seja efe-
tivo e responsabilize todas as instâncias igualmente. Essa
é a obra de defesa da cidadania, não a do corporativismo
resse n t id o .
       É aqui, afinal, que se propõe a questão plantada no
início: sem a construç ão de uma doutrina que recupere o
significado da existência de estruturas operativas do Di-
reito, como habilitação do Judiciário para alcançá-lo, aca-
ba subsistindo uma situaヘo de iniqüidade que foge a to-
O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G EN ER AL                          39


do esforço compreensivo. É preciso fazer as perguntas
certas para apontar respostas aceitáveis, e isso não s e con-
segue sem enfrentar as mazelas da Justiça. Embora vul-
garmente se designe como kafkiana tal situação de iniqüi-
dade, na verdade o mundo sugerido por Kafka defronta o
absurdo como       uma outra feição do sentido , antes que a falta
deste, e ela é espessa, contundente, irremediável, exata-
mente porque nenhuma doutrina desafiou o mistério da
sua persistênc ia.
IV
A OUTRA MORT
E DE HERZOG
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                           43




I   –                          PORQUE
LEMBRAR
      Quando Graciliano Ramos resolveu escrever as Me-
mórias do Cárcere disse que o fazia por um só motivo: ha-
viam passado cerca de vinte anos desde sua prisão em
1935, as pessoas envolvidas no episódio em sua maioria es-
tavam mortas e os fatos podiam ser revisitados com objeti-
vidade, como se sua realidade só fosse revelada agora, es-
tando porém perdidos no tempo. Tratou de fazer uma
invenヘo do passado, e não de voltar a ele. O velho Graça
venceu a amargura que a lembrança trazia, pois não quis
fazer um livro de recordaヘes, como aquelas da Casa dos
Mortos, que martirizaram Dostoiewski. A c omparação en-
tre essas duas obras é inevitável. Porém, deve s er reconhe-
cida a Graciliano essa vitória sobre o sofrimento, que an-
tes resulta da compreensão dele, ainda quando sua falta
de sentido seja uma espécie de mergulho, pois a gratuida-
de e fortuidade de suas causas parecem comprometer em
definitivo a ilusão de organizar e entender o mundo. Mas
quem diria que o mundo pode ser org anizado e entendi-
do, perguntaria Nelson Rodrigues aos “idiotas da objetivi-
dade” pretensiosos que lidam com o conhecimento nor-
mativo, seja ele a Gramática ou o Direito.
      A descida ao inferno que é a repressão do Estado en-
louquecido, desvairado, tem um episódio marcante em que
constam todos os ingredientes de sangue e sofrimento, e
não poderia ser lembrado impunemente. Porém, também
deste outro fato passaram já mais de vinte anos e aqui não
se busca nenhuma expiaヘo. É possível que todos os seus
personagens possam ser tidos como inventados, segundo a
liヘo de Graciliano, e disso resulte um pouco do precário
entend imento que é tu do o que nos o ferece o absurdo.
44                                                     A JU STIÇ A AGO N IZ A



       Pois absurda era a existência nos anos ‘70 do Depar-
tamento de Operaヘes e Informaヘes (DOI) do Centro
de Operaヘes de Defesa Interna (CODI), órgãos repressi-
vos de um Estado possesso que havia perdido completa-
mente o senso de justificaヘo de seus atos. No pórtico da
sede operativa principal do DOI/CODI, em São Paulo,
poderia ser escrita a divisa que ainda consta no campo de
concentraヘo de Buchenw ald:            Jedem das Seine! (A cada um
o que merece!). Ao contrário dos outros campos de exter-
mínio nazistas, onde costumava ser ins crita a exaltaç ão          A r-
beit macht frei (O trabalho torna livre.), um verdadeiro de-
boche à escravidão que era ali praticada, no campo de
Buchenwald havia sido encontrada uma fórmula mais refi-
nada, e mais sinistra, de dizer que a morte e o sofrimento
programados decorriam de um merecimento,                 a cada um a
vida que lhe cabe , numa transcriヘo mais literal,        a cada um o
s e . Dentre as frases de anúncio, sem dúvida essa é a mais
  u
cruel, pois vincula-se a um destino que, como tal, não po-
de ou deve ser recusado. Para que se imagine aproximada-
mente a idéia de desatinaヘo irremediável, de imposiヘo
absoluta, basta comparar com o que Dante escreveu na
entrada do Inferno:       Qui se convien lasciare ogni sospetto / Og-
ni viltà convien che sia mort a , e que Karl Marx propôs que fi-
gurasse num imaginário pórtico de ingresso no mundo da
Ciência, pois na verdade se constitui em um desafio. Ou
seja, o poeta italiano não foi além de desafiar o homem
mesmo nos seus tormentos finais do castigo divino.
       Porém, em Buchenwald, nas cercanias da culta We                i-
m ar, cidade que emprestou seu nome à República alemã,
escolha de vida e túmulo de G oethe e Schiller, foi inscrita
uma verdade absoluta, sem desafio algum, pois ali estava o
fim do fim, não se buscava mais nada. Nem o escárnio da
redenヘo pelo trabalho tinha sentido como impostura sá-
dica. Era apenas a proclamaヘo do destino inexorável que
cabia a cada um.
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                                 45


      No texto mais minucioso sobre a história de Buchen-
wald (O Relatório Buchenwald, David Hackett) há uma es-
peculação plausível de que a inscrição do pórtico fosse
apenas uma transcriヘo, pelos incultos nazistas, de um dos
conhecidos princípios de Ulpiano             cu ique suum tribuere ( a
cada um o que é seu), que — ao lado de            alterum non laedere
(não fazer mal aos outros)         e h oneste vivere (viver honesta-
mente) — dava conformaヘo ao Direito como                 ars boni et ae-
qu i (a arte do bom e do eqüitativo). Não há porque incur-
sionar pelo tema da traduヘo, tarefa de especialistas, mas
exis te uma certa inadequaヘo no acento da frase, que em
latim recai sobre o     su u m, como o que é próprio a cada um,
inalienável como seu. A maior inadequaヘo, obviamente, é
a do lugar, a do sentido, a da advertência, conotaヘes que
têm significado histórico e não lingüístico.
      Essa digressão foi feita porque       Jedem das Seine! p o d er ia
estar escrito no prédio do DOI/CODI, e certamente estava
gravado na mente dos que ali trabalhavam, quer com o es-
pírito de fazedores do destino alheio, quer com o da mais
absoluta impunidade pelo exercício de seus papéis. O es-
critor espanhol Jorge Semprun, que sobreviveu em
Buchenwald, escrevendo dois livros a respeito (A Longa
Viagem, A Escrita e a Vida), e teve o título de um terceiro
colhido como inspiraヘo para o deste ensaio (A Segunda
Morte de Ramón Mercader) não aprovaria a comparação
aqui feita, mas apenas porque no DOI/CODI não havia o
grande sacrifício, a morte não era uma instituiヘo, mas o
acidente no ato de infundir o medo. Ele teria razão, pois
morrer solitário num calabouço não tem a dimensão bes-
tial de um holocausto; por outro lado não teria, uma vez
que a comparaヘo está sendo feita entre assassinos. Eles
formam uma confraria em que todas as analogias são possí-
veis, mesmo para que não se estabeleçam distinヘes con-
formistas, não obstante brutais, entre a pequena morte e a
grande morte.
46                                                    A JU STIÇ A AGO N IZ A




II  –    O              QUE
REDIVIVE

      Em 25 de outubro de 1975, pela manhã, o jornalista
Vladimir Herzog, funcionário da TV Cultura, apresen-
tou-se na sede do DOI/CODI na rua Tomás Carvalhal, nº
1.030 , em São Paulo. Na tarde do mesmo dia f oi distri-
buída nota oficial: estava morto. Na véspera ele havia si-
do procurado por agentes no local de trabalho para ser
conduzido, o que só não aconteceu por interf                  e rê n cia
dos diretores da TV Cultura, mas resultou no compro-
misso de apresentaç ão na manhã seguinte.
       O Comandante do II Exército determinou a abertura
de inquérito policial-militar para determinar as circuns-
tâncias do su ic íd o, pré-definindo assim a aヘo que deu
                       i
causa à morte. O laudo de necroscopia foi firmado pelos
médicos Arildo Viana e Harry Shibata, atestando a inexis-
tência de sinais de tortura, bem como o óbito por enforca-
mento, em virtude de suspensão parcial do corpo por um
cinto igual ao do macacão usado por Herzog. Foi ainda sa-
lientado pelos peritos (mostrando que havia uma preocu-
paヘo prévia com isso) que as simulaヘes são sempre pre-
paradas com a suspensão total do corpo.
       O inquérito foi arquivado pela Justiça Militar tendo
em vista a conclusão pelo cometimento de suicídio.
       Em abril de 1976, a viúva e os filhos de Vladimir Her-
zog ingressaram com aヘo civil declaratória da responsabi-
lidade da União pela morte do jornalista. Minuciosa-
mente processada, com a participaヘo de profissionais e
in te rveniência de pessoas realmente honoráveis, ela foi
julgada em outubro de 1978. Constituiu-se numa espécie
de marco, numa superação da lei da inércia, que omitia
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                            47


respostas institucionais a situações notórias de quebra de
garantias, por um regime de exceヘo que não mais con-
trolava as regras que havia imposto para o seu próprio
funcionamento. Isso porque a União foi declarada res-
ponsável pela morte de Herzog, com o reconhecimento
de uma relaヘo jurídica entre ela e os autores da aヘo (a
viúva e os dois filhos), consistindo na obrigaヘo da primei-
ra indenizar os últimos por danos materiais e morais de-
correntes do óbito. Embora o dispositivo da sentença não
contenha a palavra crime, sua fundamentaヘo exclui a hi-
pótese de suicídio e reconhece a prática do abuso de auto-
ridade na forma de torturas em presos políticos.
       Todas as informações relevantes estão transcritas no
livro “Caso Herzog — A Sentença” (Íntegra do Processo
Movido por Clarice, Ivo e André Herzog contra a União,
1978). Afora as informaヘes do processo, existe um rico
ac ervo de dados que poderiam ser trazidos, não fosse o
objeto específico deste ensaio, que é exatamente o de ana-
lisar com minúcia a flexão do Poder Judiciário, que se ex-
pressará adiante no exame do julgamento proferido em
segundo grau.
       É importante registrar apenas que outra morte ocor-
reu nas dependências do DOI/CODI pouco depois, em ja-
neiro de 1976, do metalúrgico Manuel Fiel Filho, desenca-
deando uma crise de autoridade no Governo Geisel, que
resultou na exoneração do Comandante do II Exército di-
retamente pelo Presidente da República. Houve uma reor-
denaヘo do esquema militar que se havia afirmado desde a
ediヘo do Ato Institucional nº 5/68, ganhando des envoltu-
ra durante o Governo Medici. A candidatura do general
Sylvio Frota, Ministro do Exército, para o período presi-
dencial seguinte, foi esvaziada e a “distensão lenta, gradual
e segura” ganhou vigor, cumprindo-a o general Geis el até
o final de seu mandato, quando foi revogado o AI-5. Isso
não se fez suficiente para afastar recidivas do período de
exceção, como mostra o episódio da bomba do Riocentro,
48                                                    A JUST IÇ A AGO N IZA



já no período do general Figueiredo, também vergonhosa-
mente mal resolvido pela Justiça Militar.
       Esses dados todos tiveram uma importância crucial
no Brasil, que se encontrava estagnado numa espécie de
indignação paralisada de alguns, e o ceticismo que a onis-
ciência das ditaduras duradouras provocam em muitos.
Por isso foi dito que a sentença de primeiro grau no Caso
Herzog foi um marco, sendo mesmo a primeira resposta
institucional havida depois da ediヘo do AI-5 que, dentre
muitas restriヘes, suspendeu as garantias da magistratura.
Ela de fato instituiu uma sede para o “não”, dito sob a es-
trutura do regime então vigente, pelas regras que o pró-
prio regime havia estabelecido. Por exemplo, a lei que de-
fine crimes de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65) foi
sancionada pelo marechal Castelo Branco (homem que
vetara a regulamentaヘo da profissão de sociólogo por
considerá-la subversiva...), obviamente sem a previsão de
que viesse a ser direcionada contra torturadores.
      Antes de ser analisada a continuidade do proces so ju-
dicial do Caso Herzog, deve ser dito que a sentença do
Juiz Márcio José de Moraes é contida no que poderiam ser
os seus enunciados afirmativos. A tortura era praticada de
forma sistemática nas prisões políticas. Existiam órgãos pa-
ramilitares atuando s oltos, sem controle da autoridade de
Estado, mas agindo como personificaヘo dela. As verbas
destinadas à informação e repressão não continham espe-
cificaヘo no orçamento, tendo sido dado o caráter secreto
ao seu uso. O texto da sentença, contudo, não ultrapassa a
metodologia usualmente empregada nos julgamentos,
sendo pleno de referências doutrinárias, e foi escrito com
a linguagem a que é afeito o mundo jurídico, que parece-
rá engomada para os que não gostam de ler “outrossim”
(palavra que Graciliano Ramos não admitia que pudesse
ser usada). Nada, porém, que comprometa a firme deter-
minação de fazer incidir a ação da Justiça sobre o caso. Es-
sa vontade está bem express a exatamente em uma das pri-
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                          49


meiras citaヘes ali feitas, de Roberto Lyra: “Extrair a sen-
tença da própria c abeça com a lei e a prova — eis o que se
chama julgar, para realidade e autenticidade da prestaç ão
jurisdicional.” Já no exame dos fatos, o julgamento profe-
rido pelo Juiz Márcio José de Moraes é brilhante, nada lhe
escapou, ele estabeleceu todas as conexões. Não há situa-
ヘes soltas ou indefinidas na análise do que foi colhido na
instruヘo, e não se deve ignorar que realizar provas plenas
em uma situaヘo de franca adversidade, dissimulaヘo e
medo, não constitui tarefa fácil.
       Talvez o jovem magistrado de então tenha optado
por um texto que não pudesse sofrer ataque formal, pois
afinal s eguia o entendimento de grandes tratadistas, mui-
tos deles figuras ilustres do Supremo Tribunal Federal em
várias épocas (inclusive na época do regime de exceヘo,
como é o caso do Ministro Cordeiro G uerra, oriundo exa-
tamente da promotoria junto à Justiça Militar). Se foi as-
sim, ele teve a percepヘo aguda de que era preciso salva-
guardar o conteúdo firmemente escolhido de rechaçar o
arbítrio convertido em crime. Todavia, se o próprio texto
fosse denunciativo, e as bases de seu conhecimento esti-
vessem também inspiradas em autores e obras que melhor
dão referência à humanidade, possivelmente não tería-
mos hoje, vendo em retrospectiva, um marco daqueles
anos de chumbo, mas também um selo dessas alianças que
se estabelecem de tempos em tempos, e resistem como si-
nais para todos o tempo inteiro, como o julgamento de
Georgi Dimitrov pelo incêndio do Reichstag.
      Não é o caso de lamentar ocasiões perdidas; haverá
mais pelo que chorar, como o desfecho final do Caso Her-
zog. Há uma tênue esperanç a de que a reversão perpetra-
da no âmbito do Tribunal Federal de Recursos não seria
tão acintosa se o vigor do texto de primeiro grau fosse de
tal modo irruptivo que não pudesse ser abafado sem es-
cândalo. Possivelmente, porém, trata-se de uma ilusão.
50                                                     A JUST IÇ A AG ON IZ A




III – O QUE MORRE


       O julgamento em segundo grau, de dois recursos in-
terpostos pela União, não recebeu divulgaヘo alguma. É
difícil mesmo conseguir acessá-lo. O texto do julgamento
foi publicado apenas por uma revista de circulação dirigi-
da em janeiro de 1984, omitindo o nome de Herzog. Lon-
gas transcrições têm de ser feitas, pois o acórdão é o obje-
to principal do exame aqui proposto. A dificuldade de
acesso, como as transcriヘes, encontram explicação no fa-
to de que se trata de um julgamento a um só tempo pre-
potente e envergonhado. Consta que o resultado final da
aヘo movida pela família de Herzog foi obra do Ministro
Leitão de Abreu, que havia exercido a chefia da Casa Civil
no Governo Medici, depois integrou o Supremo Tr               ib u n a l
Federal e, por fim, retornou nos anos ‘80 à Casa Civil, no
Governo Figueiredo. Ele havia sido uma espécie de apaga-
dor de incêndios durante o mandato ufanista do General
Medici, negociando — por exemplo — a maioria dos ca-
sos de seqüestro de agentes diplomáticos ou de passagei-
ros de aviões, encontrando a fórmula do banimento dos
presos políticos por quem eram trocados os reféns. Não
poderia, é natural, ter êxito em tudo. Quando retornou
ao governo, certamente Leitão de Abreu sabia que não se
atravessa o mesmo rio duas vezes, e não pôde encontrar
uma fórmula mais conseqüente para o atentado do Rio-
centro, quando morreu um sargento e ficou ferido um ca-
pitão do Exército surpreendidos pela explosão de uma
bomba. Não havia como negar que se tratava de um ato
terrorista. A detonaヘo ocorreu dentro do carro em que
estavam os militares. Foi feito um inquérito policial-militar
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                                51


em bases demasiado inverossímeis, concluindo o coronel
Job Lorena de Sant’Anna, seu presidente, que os militares
haviam na verdade sofrido ataque do terrorismo, disso re-
sultando o arquivamento. Esse recrudescimento das aヘes
autônomas de forças repressivas que haviam vicejado du-
rante o Governo Medici e na primeira parte do Governo
Geisel (até que as mortes de Vladimir Herzog e Manuel
Fiel Filho no DOI/CODI causaram um enfrentamento
dentro do poder, com a vitória do projeto de distensão)
foi a causa do afastamento do General Golbery do Couto e
Silva da Casa Civil, sendo substituído por Leitão de Abreu.
       Talvez este último tenha tentado retomar sua influên-
cia como jurista, que sempre foi grande, especialmente
nos governos dos militares, para ao menos por um ponto
final no Caso Herzog, já que melhor soluヘo não encon-
trou para o episódio do Riocentro, até hoje jacente, tendo
em vista a completa desmoralizaヘo da tese anêmica do
agora general Job, autor da pantomima que, sem exagero,
merece talvez o epíteto de ser uma das maiores que já se
documentou no Brasil.
      Todavia, é comum que nos governos plenipotenciá-
rios haja uma atribuiヘo última de todas as decisões a uma
eminência parda. Neste século que finda, o país pareceu
sempre estar em busca de um João das Regras, tendo-o en-
contrado, com excelência, em Francisco Campos. Outros
houveram: Carlos Medeiros Silva, Vicente Rao, Adroaldo
Mesquita da Costa. Até mesmo, embora mais como uma
imitação, o rancoroso e arrivis ta redator do AI-5, Luis An-
tonio da Gama e Silva, o “Gaminha”, que também redigiu
o decreto da pena de morte por fuzilamento em 1969
(Vide: 1968, O Ano que Não Acabou, de Zuenir Ve              n tu ra) .
Dada essa longa tradiヘo, talvez, consta que Leitão de
Abreu haveria dado o ponto final ao Caso Herzog. Não há
como demonstrar isso, trata-se de um comentário insisten-
te que perdurou, mas o prolator do voto no Tribunal Fe-
deral de Recursos era seu parente.
52                                                       A JU STIÇ A AGO N IZ A



       Ainda aqui é possível especular sobre esse ponto final
e a “soluヘo final” que assim foi chamada no curso do regi-
me nazista, organizando o último           pogrom, orientado massi-
vamente para o extermínio. Como mostram as transcriヘes
a seguir, o julgamento de segundo grau no Caso Herzog es-
tá pontuado de afirmaヘes que até parecem anti-semitas,
disfarçadas é verdade como compreensão e benevolência
farisaicas, pois atribuem ao morto fraquezas ignóbeis e o
mergulho final num sentimento de c ulpa inexpiável. Não
houve, portanto, despropósito em vincular o dístico na en-
trada de Buchenwald à regra imaginária que jazia incrusta-
da na testa dos que praticaram a tortura no DOI/CODI,
como na de todos os que a acobertaram.
       Seja inspirado por Leitão de Abreu ou não, o julga-
mento do ponto final ao Caso Herzog fez primeiro uma
construヘo doutrinária de Direito, mais especialmente de
teoria do processo, no sentido de que os autores da aヘo
traziam embutida nela uma pretensão condenatória, e
não somente declaratória de relação jurídica, esta no sen-
tido de obter apenas o reconhecimento do encargo da
União de indenizar. O Ministro Relator aproveitou as difi-
culdades práticas defrontadas pelos requerentes, como o
temor subjacente de represálias e os testemunhos apenas
indiciários. Afinal, tratava-s e de uma reconstruヘo de fatos
que eram de conhecimento notório, as torturas praticadas
nos órgãos de repressão, mas cuja demonstraヘo em am-
biente institucional era paradoxalmente (ou talvez muito
propriamente, em se tratando de regime de exc eção hos-
til) difícil. Com isso, o Ministro Relator transformou a
ação declaratória em aヘo ordinária condenatória, apa-
rentemente dando alcance maior do que o pretendido pe-
los requerentes, o que seria uma extensão em seu favor.
Logo se verá com que finalidade. A análise foi feita como
mostram os seguintes excertos:

             “Na peça inaugural, arrimada em depoimento presta-
             do em escritório de advocacia por... (Rodolfo Osval-
A   O UT R A MO R TE D E H E RZ O G                                               53


                     do Konder)... é dito que ‘nas dependências do DOI,
                     submeteram...(Vladimir Herzog)... a torturas, que
                     lhe foram infligidas, visando à colheita de informa-
                     ヘes acerca de suas supostas atividades no Partido
                     Comunista Brasileiro. Apenas depois de cruelmente
                     torturado, Vladimir redigiu a declaraヘo, referida no
                     ite m ...’( fls.11 )
                     E mais adiante: ‘Desgraçadamente não puderam os su-
                     plicantes, até agora (o que não significa não possam
                     fazê-lo, no futuro), produz ir prova hábil a levar V. Exª.
                     a compartilhar de sua convicção inabalável de que seu
                     marido e pai não se suicidou, tendo, isto sim, sido as-
                     sassinado por seus algozes, ou, pelo menos, morrido,
                     em conseqüência das torturas de que foi vítima’(fls. 11
                     e 12)
                     Passa a inicial a dar os fundamentos de direito em
                     que entendem os autores encontrar assento o pedido
                     e arrematam (fls. 17): ‘Diante do exposto, os supli-
                     cantes propõem esta aヘo, para que V. Exª. declare a
                     responsabilidade da União Federal pela prisão arbi-
                     trária de...(Vladimir Herzog)..., pelas torturas a que
                     foi submetido e por sua morte e a conseqüente          obriga-
                     ヘo de indenizá-los , em decorrência dos danos morais e
                     material que esses fatos lhes causaram.’
                     Chego à conclusão de que a ação proposta não foi de-
                     claratória, mas sim de natureza condenatória. E isso
                     resulta dos termos do pedido, como dos termos da
                     erudita sentença recorrida.”

       Aqui cabe uma pequena observaヘo a propósito do
formato dado à sentença de primeiro grau. Foi dito atrás
que referências mais gerais àqueles que são os elementa-
res direitos humanos, e à rica doutrina sobre suas garan-
tias, agregaria expressivo vigor ao exame dos fatos, este
feito com técnica e lucidez já reconhecidos. Talvez tenha
parecido ao leitor atendo uma censura injustificada. Sa-
bem porém os profissionais da área que a erudição c entra-
da só no enfoque jurídico, em sentido estrito, é descartá-
54                                                           A JU STIÇ A AGO N IZ A



vel quando se sobrepõe uma concepção igual, firmada em
outras escolhas. Foi o que aconteceu. O trabalho de ouri-
ves na coleta de elementos de convicヘo junto a uma ga-
ma extremamente variada de juristas fragilizou a sentença
revisanda, ao contrário do que foi pretendido, obviamen-
te fortalecê-la e dificultar sua reforma. Tudo foi descarta-
do em uma frase. Os termos do julgado de primeiro grau
foram mesmo invocados como fonte demonstrativa da te-
se — completamente diversa — produzida em instância
superior.
      Assim sendo, concluiu o acórdão do TFR:

              “Propuseram-se os autores provar fatos, no que dizem
              com sevícias, torturas e até assassinato. Ora, tais fatos
              jamais poderiam ser objeto de aヘo declaratória, nos
              precisos termos da lei processual: ‘O interesse do au-
              tor pode limitar-se à     decl aração:......II — da autentici-
              dade ou falsidade de documento.’
              Os mestres na matéria, a uma voz, reconhecem que o
              único fato suscetível de apreciaヘo em ação declarató-
              ria consiste na autenticidade ou falsidade de um do-
              cumento. E na presente ação argúem-se fatos os mais
              diversos, todos inapreciáveis em aヘo declaratória, a
              qual, de resto, seria totalmente incabível no caso.”


      Outro comentário é imprescindível, agora porque o
acórdão é evidentemente capcioso na última passagem
transcrita. O pedido dos familiares de Herzog havia sido
feito com base no inciso I do artigo 4º, do Código de Pro-
cesso Civil, que legitima a parte para obter declaraヘo “da
existência ou da inexistência de relação jurídica”, bem co-
mo no parágrafo único que diz ser “admissível a aヘo de-
claratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito”.
Portanto, o acórdão incorreu em distorção grosseira do
fundamento legal, para apresentar a aヘo como mal pro-
posta e, em s eguida, afirmar que a inépcia somente é rejei-
A   O UT R A MO R TE D E H E RZ O G                                                 55


tada porque dos fatos narrados se depreende a pretensão
condenatória. Com a condenação desde logo da União se-
ria alcançado prontamente o ponto final. E foi isso o que
aconteceu, como se vê a seguir:

                     “Por tudo isso, e seria fastidioso trazer à colação mais
                     pronunciamentos de juristas e de tribunais, é eviden-
                     te que a declaratória é incabível, o que poderia levar a
                     decisão de que são os autores carecedores de aヘo,
                     como pretendido pela ré.
                     Entretanto, não chego a essa conclusão, à vista dos
                     motivos que passo a expor.
                     Os autores foram bem explícitos no pedido. Articu-
                     laram os fatos que se propunham provar e deram os
                     motivos pelos quais pretendiam responsabilizar a ré,
                     dando remate à peça pedindo ‘a             re sp ns abi id ad e da
                                                                      o
                     União Federal pela prisão arbitrária de...(Vladimir l
                     Herzog)..., pelas torturas a que foi submetido e por
                     sua morte e a conseqüente         obrigaヘo de indenizá-los , em
                     decorrência dos danos morais e materiais que esses fa-
                     tos lhes causaram.
                     Pouco importa, para deslinde da questão, o apelido
                     que tenham dado à ação. Batizaram-na de declaratória,
                     mas na realidade a ação proposta foi de natureza con-
                     denatória. E como tal, embora com outro epíteto, foi
                     julgada, ao que se vê das conclusões da respeitável sen-
                     tença recorrida: ‘Pelo exposto, julgo a presente aヘo
                     PROCEDENTE e o faço para, nos termos do art. 4º, in-
                     ciso I, do Código de Processo Civil, declarar a existên-
                     cia de relação jurídica entre os AA. e a R., consistente
                     na obrigação desta indenizar aqueles pelos danos materiais e
                     morais decorrentes da morte do jornalista...’(fls. 621).
                     (...)
                     Todos os elementos integradores de uma aヘo conde-
                     natória estão presentes, quer na inicial, quer no de-
                     senvolvimento do pleito, quer na síntese judicial que
                     se lhes seguiu.
56                                                         A JUST IÇ A AGO N IZA



             Tirando os fatos, inapreciáveis em aヘo declaratória,
             onde a incerteza? Na relação jurídica? Declarar o
             que? O óbvio, isto é, o dispositivo constitucional que
             estabelece que ‘as pessoas jurídicas de direito público
             responderão pelos danos que seus funcionários, nessa
             qualidade, causaram a terceiros’?
             É evidente que se trata de aヘo condenatória e, como
             tal, deve ser apreciada pela Egrégia Turma.”


      Diante dessas conclusões, o recurso foi julgado em
seu mérito, resultando c ondenada a União ao pagamento
de indenização aos familiares de Herzog, com base na res-
ponsabilidade objetiva do Estado pela guarda de preso,
em valores a apurar na liquidaヘo da sentença.
      Perpassa dos trechos transcritos que havia um firme
determinaヘo no sentido de colocar um ponto final. Ela
era tão inabalável que se fez revelar até mesmo diante da
circunstância desse tópico:

             “Dizem os autores que ‘não pretenderam qualquer
             condenação, salvo no tocante às verbas inerentes à
             sucumbência’. Não é tal. O que não pediram foi
             quantia certa. Tive oportunidade de ler nos periódi-
             cos declaraヘes da primeira dos autores, pelas quais
             disse não lhe interessar indenizaヘo alguma, mas ape-
             nas a declaração judicial dos responsáveis pela morte
             de seu marido. Desvaliosa tal atitude, pois há interes-
             ses indisponíveis em jogo, quais sejam os dois filhos
             menores.”


      Há duas heresias cometidas nessa passagem.
Primeiro, o julgador não pode trazer para os autos o co-
nhecimento de fatos que obteve como cidadão, lendo jor-
nais ou até observando pessoalmente algo de relevante. Se
o faz, erradamente, não pode extrair conseqüência proces-
sual contrária ao que o interessado disse nos autos. Segun-
do, não pode ignorar a vontade manifesta, expressa con-
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                            57


forme a lei, por supor indisponibilidade de direitos que
não foram articulados por quem representa os titulares de-
les. Não houve qualquer manifestação de renúncia. Ocor-
reu apenas expressão volitiva de fazer e de não fazer, o que
não permite ao Estado adonar-se de uma vontade que en-
tende coarcta, para satisfazê-la... como bem entende. De-
mais disso, a representaヘo do interesse de incapazes,
quando imperfeita por parte de quem detém o pátrio po-
d e r, cabe ao Ministério Público, e não consta que este haja
requerido qualquer providência.
       Como quer que s eja, o desfecho foi condenatório da
União. Com isso, veio o almejado ponto final. Caso enc er-
rado. Sem culpas, sem responsabilidades pessoais.
58                                                        A JUST IÇ A AG ON IZ A




IV – O QUE MATA


      A apreciação do pedido em fase recursal, já determi-
nado que a aヘo continha pretensão de conteúdo conde-
natório, consiste num exercício pródigo em voluntarismo
e preconceito, este completamente indissimulado. A pri-
meira investida desconstitutiva da sentença de primeiro
grau se expressa na desqualificaヘo dos testemunhos:

             “São mentirosas, segundo eles” (os autores) “as decla-
             rações prestadas em inquérito presidido por um oficial
             general e em presença de um membro do Ministério
             Público, pessoas contra cuja idoneidade nada foi argüi-
             do. Entretanto, são tomadas como verdadeiras e consti-
             tuem mesmo peça acusatória centra as declarações for-
             muladas por Konder num escritório particular.
             As acusações de Konder, Markum, Anthony e Wejs, sen-
             do que as três últimas prestaram depoimento em juízo,
             não afirmam que...(Herzog)... tenha sido torturado,
             embora t al afirmem relativamente a outras pessoas. A
             única testemunha que declara t er sido...(Herzog)... ví-
             tima de maus tratos é a testemunha... (fls. 420), o qual
             narra as torturas que ele próprio teria sofrido, afirman-
             do que ‘não viu, mas ouviu os gritos de...(Herzog)... na
             ocasião em que o mesmo estava sendo torturado; que o
             depoente só t eve certeza de que se tratava dos gritos
             de...(Herzog)... após o conhecimento de sua parte de
             sua morte...’(f ls. 420,v). Já pelos próprios termos, tal
             testemunho não merece crédito, pois teria imaginado
             se tratasse de...(Herzog)...
             É evidente o facciosismo que transparece nos depoi-
             mentos das já mencionadas testemunhas, todas elas
             irmanadas pelas mesmas idéias.”
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                                           59


                    (...)
                    “As declarações das já mencionadas testemunhas são
                    de molde a provar as afirmativas feitas no pedido ini-
                    cial. Konder não se submet eu ao crivo do contraditó-
                    rio. Markum, depois de detido, foi liberado por vinte
                    e quatro horas (f ls. 418); Wejs disse que foi ameaçado
                    de violências, mas que não as sofreu (fls. 430); Ant ho-
                    ny nada esclarece e, quando prestou declarações no
                    inquérito, se encontrava em liberdade (fls. 416).
                    Estrada também nada esclarece, em relação a...(Her-
                    zog)... (fls. 410/412). Isto sem falar que três dessas
                    testemunhas, pelos menos, como...(Herzog)... se sub-
                    metiam ou haviam se submetido a tratamento com
                    psicanalistas.
                    Podem, tais t estemunhos, prevalecer sobre a afirmati-
                    va de médicos legistas idôneos, que não constataram
                    sinais de maus tratos? Sobre depoimento de..., que
                    declarou no inquérito (fls. 165) que ‘passou a proce-
                    d e r, com mais dois auxiliares e um amigo da família
                    do morto à ‘tahara’, que ao proceder à ‘tahara’ —
                    ‘pôde verificar que o corpo de...(Herzog)... estava
                    isento de qualquer marca, equimose, que revelassem
                    sinais de violência...?’
                    Registre-se que esta testemunha é israelita, como o
                    era...(Herzog)... Tais declaraヘes são confirmadas pe-
                    la testemunha Léo, contraparente de..., amigo da fa-
                    mília (fls. 176).”


       A desqualific ação das testemunhas não toma os fatos
por ela informados em confronto com outros, parte das
narrativas para encontrar uma        cond ição que comprometa o
seu teor. Essa condiヘo é verificada sob três primas: (a) to-
dos os envolvidos estavam irmanados das mesma crença:
eram comunistas; (b) três das testemunhas arroladas pelos
autores haviam-se submetido à psicanálise, o que também
havia ocorrido com Herzog, e nenhum esclarecimento é
feito sobre o que o acórdão chama de           trat am ent o; (c) o rito
60                                                        A JU STIÇ A AGO N IZ A



judaico legitimaria a tese da inexistência de crime porque,
sendo tão específica a situação do judeu, supostamente
ele teria um poder verificador e revelador das mentiras
atribuídas às testemunhas. A leviandade disso tudo não
precisa ser salientada.
      Em s eguida, o acórdão envereda pela desqualificação
do próprio morto, por suas fraquezas, temores exagerados
e sentimento de culpa.
      Houve a reconstituiヘo de uma folha rasgada em que
perícia grafotécnic a identificou a letra de Herzog. O texto
recuperado, não obstante, dá mostra de ter sido encomen-
dado, copiado ou até ditado. Não há nexo entre ele e a
condiヘo do preso. Por coincidência, o escrito, que até
poderia existir como uma mensagem de suicida, provi-
dencialmente contém referência aos outros presos, que
vieram a testemunhar. Na verdade, essas contradiヘes são
exploradas contra a integridade de caráter do morto:

             “Ao que se v ê das declaraヘes escritas pelo infort una-
             do...(Herzog)..., as quais rasgou e foram reconstituí-
             das, documento que não mereceu contest ação, escre-
             veu ele: ‘admito ser militante do PCB desde 1971 ou
             1972, tendo sido      alic iad o p or..., meus contatos com o
             PCB eram feitos através de meus colegas...’. E entre
             outros arrola também os nomes das testemunhas
             Markum, Anthony e Wejs (fls. 70 dos autos do inqué-
             rito). E t ermina seu escrito com as seguintes palavras:
             ‘Relutei em admitir neste órgão minha militância,
             mas após acareações e diante das evidências, confes-
             sei todo o meu envolvimento e afirmo não estar inte-
             ressado mais em participar de qualquer militância po-
             lítico-partidária.’
             Do ref erido documento se conclui, como aliás das de-
             clarações das próprias testemunhas já referidas, que
             foram elas, a primeira pelo aliciamento e outras por
             terem apontado... (Herzog)... como componente do
A   O UT RA MO R TE D E   H E RZ O G                                              61


                    grupo, os responsáveis pela situaヘo em que se encon-
                    trava o desafortunado jornalista. Naquelas declara-
                    ヘes há um ressaibo de desencanto.
                    (...)
                    Enfim, muitos elementos exist em que levam à convic-
                    ヘo de que...(Herzog)... não foi maltratado e que, efe-
                    tivamente, praticou o suicídio.
                    Aliás, nem havia predisposiヘo contra...(Herzog)..,
                    tanto que, quando procurado, teve sua oitiva adiada,
                    a pedido de um colega, tendo comparecido à sede do
                    DOI-CODI no dia seguinte, acompanhado somente
                    de..., seu companheiro de trabalho (fls. 133 e 429).
                    Todos os elementos sérios apurados levam à conclusão
                    de que...(Herzog)... pôs termo à vida. Que motivos o
                    teriam levado a esse gesto de desespero? Torna-se difí-
                    cil a resposta, mas não se pode esquecer que o desafor-
                    tunado jornalist a, em tenra idade ainda, sofrera, com
                    sua família, o trauma da perseguição nazista. Subme-
                    tia-se, certamente por ser um neurótico, a tratamento
                    médico. Deve ter-se sentido profundamente abalado
                    por ter sido delatado por quem o aliciou e por seus
                    companheiros de credo polít ico. Além disso, ficou de-
                    tido por mais tempo do que, certamente, pensara. To-
                    das essas circunstâncias, aliadas, podem per f       e itam e nte
                    explicar seu extremo e lamentável gesto.
                    (...)
                    De culpa exclusiva da vítima não se pode cogitar no
                    caso. Tratava-se de pessoa neurótica. Ficou detido por
                    largas horas, o que estabelece nexo entre essa deten-
                    ヘo e o desenlace fatal.”


     Há uma apreciação pastosa, entre uma moral aus tera
que perdoa e lamenta, e um veredito sóbrio, que vê na
morte de Herzog a expressão de sua fraqueza e culpa,
quanto a si próprio e quanto à sua militância.
     Em primeiro lugar, nenhum participante de qual-
quer movimento político declara que foi         a l icad o. Esse é
                                                     i
62                                                           A JUST IÇ A AG ON IZ A



um termo apreciativo, com conotaヘo de juízo de valor e
autoria, que somente pode ser formulado depois do levan-
tamento de um fato, por quem o relata, e não por quem
participa dele. Em segundo lugar, se Herzog foi acareado
com alguém, nada seria mais fácil do que identificar e ou-
vir o outro acareado sobre as condiヘes que apresentava o
preso, e aquelas em que se deu a acareaヘo. Não consta
nos textos reproduzidos dos autos que isso tenha aconteci-
do. Logo, Herzog teria produzido uma mentira escrita,
sem nenhum nexo com a realidade, ou sob coaヘo sofri-
da, ou para obter uma pausa nela (ao afirmar no bilhete
que resolveu confessar em virtude das acareações). Em
terceiro lugar, o acórdão aponta o fato de que Herzog te-
ria inculpado alguns conhecidos (entre os quais três teste-
munhas), atribuindo-lhe veladamente um surto de arre-
pendimento e autocastigo. Entretanto, deduz daí que ele
é quem havia sido delatado por militantes do s eu partido,
o que gerou seu desencanto. Eis desmontada toda a lógica
argumentativa do julgamento.
      Por fim, o acórdão se firma no terceiro elemento de
análise da prova, o laudo pericial:

             “Procuram os autores tornar imprestável o laudo que
             concluiu pelo enforcamento, inclusive atacando rude-
             mente o perito doutor Shibata.
             A propósito dessa peça, buscam inutilizá-la diante da
             afirmativa daquele técnico de que não procedeu a
             exame no cadáver, o que foi feito por outro colega.
             Assim, o laudo não teria valor porque o exame fora
             feito por um só perito, quando são indispensáveis, pe-
             lo menos, dois expertos.
             Não procede a alegação. A invocada Súmula 361 diz
             respeito a peritos não oficiais. É inaplicável a mencio-
             nada Súmula quando se trata de perito oficial (...).
             Improcedentes também os ataques à honorabilidade
             do perito doutor Shibata. Este dissera (fls. 414), lisa-
             mente, que o segundo perito, quando atua na assina-
A   O UT R A MO RT E D E H E RZ O G                                              63


                     tura de um laudo, não participa necessariamente do
                     exame do corpo de delito; entretanto, há obrigatorie-
                     dade de rev er o relatório, analisar e discutir e se nada
                     tiver a objetar ao que est á escrito, subscreve, como se-
                     gundo perito.
                     Nada há de censurável no procedimento do doutor
                     Shibata. É sabido que tais laudos resultam de exames
                     externo e interno, sendo registrados os elementos
                     materiais encontrados. Após, seguem-se a discussão e
                     a conclusão.
                     O doutor Shibata, pois, em face das constataヘes fei-
                     tas no cadáver por seu colega, chegou à mesma con-
                     clusão do último. E nada há de errado nisso. Não foi
                     trazido um argumento sério contra a lisura do pro-
                     nunciamento dos peritos.”


      Não há exagero em dizer que o acórdão do TFR ma-
tou Vladimir Herzog uma outra vez. O mundo do morto
era ignominioso. Como extrair dele um gesto reto, de re-
sistência política até o perecimento? Como infirmar atos
investigados por um general de exército perante membro
do Ministério Público, e atacar ilibado legista?
64                                                    A JUST IÇ A AG ON IZ A




V   –   PORQUE                      NÃO
ESQUECER

       É muito difícil pretender avaliar as razões de um si-
lêncio sepulcral sobre o julgamento definitivo do Caso
Herzog. O que poderiam fazer os autores da ação, sem ex-
por ainda mais a memória do desaparecido a juízos de va-
lor, de que foi tão pródigo o acórdão?
       Hoje se sabe, certeza documentada com nomes e de-
talhes, que houve a tortura do jornalis ta (pois até um dos
seus algozes foi identificado e entrevistado pela revista Ve-
ja) e que ela está relacionada diretamente à morte. É uma
certeza que atende apenas aos incréus, pois atesta o que
sempre foi sabido pelas pes soas de espírito aberto. Herzog
envergava um macacão recém vestido, ainda com as mar-
cas da dobra, o que aparece na foto tirada pelas próprias
autoridades. O cinto que amarrava seu pescoço não era
dado aos presos, os quais eram despojados mesmo dos
cordões de seus sapatos. O legista Harry Shibata chegou a
perder seu registro de médico e enfrentou repetidas acu-
sações de coonestar atos de lesão e morte de presos políti-
cos. De que adiantou a Justiça ignorar fatos tão evidentes
e, como de um pedestal, tentar despojar o morto de uma
memória digna a que tinha direito?
       Ainda que Vladimir Herzog houvesse praticado o sui-
cídio não determinado por fatores externos, e se sobre is-
so não houvesse qualquer dúvida possível, não mereceria
ser vitimado de novo pelo preconceito acintoso que, con-
tra ele, se expressou como uma indissimulada defesa do
regime de exceヘo.
       É de ser lembrado que suicídios como o de Salvador
Allende e, no Brasil, de Getúlio Vargas, foram atos políti-
A   O UT R A MO R TE D E H E RZ O G                             65


cos em que o sacrifício individual foi pontuado por aconte-
cimentos mais amplos, como reaヘo a eles. Por muito tem-
po vigorou uma interpretação rústica de que suicidar-           se
corresponde a um tipo de abdicação. Não é por acaso que,
contra todas as evidências, divulgou-se por muitos anos
que Allende havia caído na luta. Imagem romântica de
uma América Latina ainda primitiva em seus mitos. Na ver-
dade, o presidente do Chile havia anunciado, e isto consta
em entrevista a Régis Debray, que repetiria o ato do almi-
rante Balmaceda, que havia ocupado o mesmo cargo no
início deste século, no caso de uma deposiヘo. No Brasil,
Getúlio Vargas retardou por dez anos o movimento militar
que por fim veio a ser vitorioso em 1964, pois seu gesto ex-
tremo paralisou o golpe que então já havia triunfado.
      Contudo, Vladimir Herzog não se irmanou em gesto
com esses grandes mortos. A morte que lhe foi infligida
num calabouço esteve seguida de outra, astuciosa e igual-
mente cruel, de oficializar para sempre seu suicídio como
limite de fraqueza e desespero. A verdade já foi sufic iente-
mente restabelecida no âmbito da sociedade civil. A
Justiça será caudatária, para sempre, guardando-a em seus
arquivos seculares, da mentira.
V
A         JUSTIÇA
AGONIZA
A   JUST IÇ A AG O NIZ A                                               69




                           “J’ai vous aimé vraiment quand vous étiez
                           vivants...”

                           (Pers onagem do ator Jean Marais no filme
                           Beleza Roubada , de Bernardo Bertolucci)
A   JUST IÇ A AG O NIZ A                                               71




I                          –
INTRODUÇÃO

      O tema da crise aqui é recorrente. Na verdade, não
existe crise acerca da     i déia de justiça, que transcende o as-
sunto jurídico, pois ela própria se constrói em torno da
crise do homem, suas limitaヘes, destino errático, serv                 i-
dão às suas paixões e obscurecimento de seus sentidos.
Não se pode dizer que tal idéia resulte do aperf           e iço am e n-
to da razão, pois a própria razão pode obcecar o espírito e
t ra nsfo rm ar-se em objeto de culto e, com isso, produzir a
noヘo de justiç a redentorista, c omo se fosse a certeza pos-
sível ao homem de saber incerto.
       Há uma indagaヘo da filosofia, portanto, que prece-
de sempre es se tema. Demócrito de Abdera, por exemplo,
propôs que      fazer justiça é fazer o que é pre ciso. Situou desde
logo essa idéia num plano de devir contínuo, que é o fa-
zer, e estabeleceu o motivo do reconhecimento incessan-
te, que é a necessidade. Apenas isso serviria para derrubar
séculos de glosa acadêmica puramente retórica acerca de
formalidades, idealismos, visões místicas da natureza do
homem e preceitos sociais que se confinam em progra-
mas, ora inspirados nas religiões de Deus, ora em religião
do próprio homem. O jusnaturalismo e o positivismo, in-
corporando a esc olástica, tornaram-se abordagens de con-
trole, não de exsurgência da idéia de justiça.
       É indispensável um grande esforço de humildade aos
juristas que desejam preservar o saber heurístico (da des-
coberta), pois têm de reconhecer que a justiça não se
compreende apenas no Direito, nem mesmo forma o ob-
jeto principal de seu saber. A construヘo do Direito signifi-
ca a sistematização de vários temas: assim como o da justi-
72                                                         A JUS TIÇ A AGO N IZ A



ça, também o da liberdade, o das regras de convivência e
controle da força, com o seu uso para preservar bens e re-
lações sociais. Portanto, para que houvesse a busca e a
aplicação da justiça, e se obtivesse o seu reconhecimento,
fez-se necessário erigir regras operativas para codificar
seus sinais e eleger seus cânones lógicos.
      Quem apreendeu bem e sintetizou essa dispersão foi
ainda um filósofo, Miguel de Unamuno, que cunhou a ex-
pressão t e ol ia a b og esca p ara expressar os limites da
               og          ad
epistemologia jurídica nestes termos, em resumo perfeito:

              Una falacia lógica puede expresarse            m ore scholastico
              con este silogismo: Yo no comprendo este hecho sino
              dándole esta explicación; es así que tengo que com-
              prenderlo, luego esta tiene que ser su explicación. O
              me quedo sin comprenderlo. La verdadera ciencia
              enseña, ante todo, a dudar y a ignorar; la abogacia no
              duda ni cree que ignora. Necesita de una solución.
              (Del Sentimiento Trágico de la Vida)

       Não se pode falar em crise na concepヘo da justiça
porque ela própria é uma concepヘo crítica. As idéias ini-
ciais do faz er e da n ece ssdad e têm de enfrentar, exatamente
                              i
no campo do Direito, onde o conhecimento sistematizado
procurou instrumentalizar aquela concepヘo, os limites da
te ol gia abogadesca. A ciência jurídica é a expressão da crise
    o
de insuficiência de seu método para reconhecer o que é
necessário fazer. Por isso, o mais conhecido juiz america-
no, Oliver Wendel Holmes, cunhou a célebre frase (um
pouco presa à idéia já viciada de linguagem elegante):
quem conhece só o Direito, nem Direito conhece . O glosador Bár-
tolo, na rudeza medieval, havia sido mais duro:            I meri leggis-
ti sono puri asini.
       Este texto trata, portanto, de uma outra face da justi-
ça, aquela que é escrita com letra maiúscula, por ser o no-
me de um corpo institucional, e este sim amarga uma do-
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A agonia dos juristas

  • 1. A A JUSTIÇA AGONIZA JUSTIÇA AGONIZA
  • 2. A JUSTIÇA A JUSTI AGONIZA AGONIZA A JUSTIÇA Um quarto de século na magistratura não produz nenhuma realizaヘo pífia na vida burocrática; não produz a consternaヘo pelo tempo de silêncio, ou de gritos roucos, para ouvidos moucos; esse tempo não sepulta senão a quem no passar dele construiu a sua sepultura. Não é necessário que o tema de A Morte de Ivan Ilitch se reproduza como se fosse a maldiヘo de Leon Tolstoi para cada um e para todos os juízes. Este é um livro para aqueles que se recusam a encontrar no trabalho pela busca da justiça o delírio da morte.
  • 3. Luiz Fernando Cabeda A JUSTI Ç A AGONZA I E n i o so br e a p er da do vigor, da função sa e do s nt ido da just iça no Pod er J udi c á r io e i
  • 4. © Copyright : Luiz Fernando Cabeda, 1999 Ediヘo : Gilberto Mariot e Mauricio Barreto Revisão : Marcia Benjamim Editoraヘo eletrônica : Wander Camargo Silva Capa : Paulo Manzi Dados Internacionais de Cataloga ヘ o na Publica ヘ o (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cabeda, Luiz Fernando A Justiça Agoniza: ensaios sobre a perda do vigor, da funヘo e do sentido da justiça no poder judiciário / Luiz Fern an- do Cabeda. - São Paulo: Editora Esfera, 1998. 1. Justiça - Administraヘo - Brasil 2. Justiça e política - Brasil 3. Poder judiciário - Brasil I. Título.II. Título: Ensaios sobre a perda do vigor, da funヘo e do sentido da justiça no poder judiciário. 99-4560 CDU-342.56(81) Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Justiça : Poder judiciário : Direito constitucional 342.56(81) 2. Brasil : Reforma do judiciário :Direito constitucional 342.56(81) ISBN 85-87293-10-9 Todos os direitos reservados à Editora Esfera Ltda. Travessa Dona Paula, 113 01239-050 – São Paulo – SP Fone: (0XX11) 3120-4766 www.editoraesfera.com.b r
  • 5. Conheço o meu destino. Sei que algum dia o meu nome se aliará, em recordaヘo, a algo de terrível, a uma crise como nunca ocorreu, à mais tremenda colisão de consciências, a uma sentença definitiva, pronunciada contra tudo aquilo em que se acreditava, exigia e santificava até então. Eu não sou um homem; sou dinamite. Friedrich Nietzsche
  • 6.
  • 7. ÍNDIC E Apresentaヘo 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I. Os Juriscidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9 . . . . . . II. O Reverso da Crise 17 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III. O Controle Externo pelo General . . . . . . . 27 . . IV. A Outra Morte de Herzog 41 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V. A Justiça Agoniza 67 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
  • 8. APRESENTA‚ O Com o presente texto feito manifesto, Luiz Fernando Cabeda, um ins id er que não perdeu a faculdade do olhar estranhado, acode em boa hora para informar sobre um debate confuso, não raramente preso a objetivos políticos de moldar o Estado, mas necessário sobre a reforma do Ju- diciário brasileiro. Perspectivas e níveis de abstração suc e- dem-se c om rapidez e desenvoltura que desnorteiam ape- nas na primeira leitura, revelando-se, posteriormente, como estratégia adequada para expor de múltiplas formas uma ferida aberta da nossa sociedade: um Judiciário ago- nizante que faz entrever a agonia da própria justiça. A constatação dessa agonia é a idéia central a confe- rir unidade aos cinco ensaios . O leitor em busca de expli- caヘes sistemáticas irá diretamente ao ensaio mais longo, cujo título foi estendido ao livro. Os exemplos de “destro- çamento da carreira”, “deterioração da atividade judican- te”, “formaヘo do magistrado”, “decadência da literatura jurídica”, “corrupção da linguagem jurídic a”, “nepotismo” e do brasileiríssimo contraste de “espírito conservador” e “proclamaヘes libertárias”, seguidas vezes apresentados em estilo de qualidade literária, falam por si. Erra quem pensa que a agonia deve ser apenas credi- tada ao Judiciário e às suas instituiヘes pouco ajustadas à
  • 9. AP R ESE NT A‚ O 7 justiça. Concorrem para tal a própria sociedade e seu uso do Judiciário (“falsa cultura da litigância”), concorrem ain- da os “juriscidas” e o “controle externo pelo general”. Este último foi exposto no ensaio homônimo, uma instigante análise da “Lei Orgânica da Magistratura Nacional” (LO- MAN), de 1979, na qual o general Ernesto Geisel atentou duradouramente contra a construção de um Judiciário que se possa afirmar como expressão do Estado Demo- crático de Direito. O ensaio “A outra morte de Herzog” merece um re- gistro especial como radiografia de uma ignominiosa “fle- xão do Poder Judiciário”, manifesta no julgamento da sen- tença do juiz Márcio José de Moraes pelo Tribunal Federal de Recurs os. O caso é didátic o e recente. Não se pode dis- cutir seriamente a reforma do Judiciário sem arrancá-lo do esquecimento. Peter Naumann
  • 10.
  • 11. I OS JU R S I CID A S
  • 12.
  • 13. OS JU RISC ID 11 AS Das tantas coisas de que se fala ou especula a propósi- to do final do milênio, uma há que encerra mesmo toda a noção de perplexidade própria da idéia de fim, mas de um fim sem recomeço. Trata-se da resignaヘo vaga com a idéia de morte ligada a situações humanas que sempre fo- ram tidas como fontes de revivescência, porque nelas se amparavam as aヘes para que a vida recobrasse seu vigor, e os homens direcionassem seu destino, estabelecendo um pouco, na medida precária de suas forças, as caracte- rísticas de um mundo em que queriam viver. De um lado, o lado da morte, houve um recrudesci- mento de c rimes raciais, com uma diversificaヘo de perse- guidos que nunca foi imaginada, e não são mais necessá- rias as certezas a respeito de inferioridade, perigo ou nocividade pública, sempre inventadas como pretexto pe- los totalitarismos, para que a repressão por ódio se instale. O genocídio bate de novo à porta da civilizada Europa Ocidental, e a guerra dos Balcãs mostrou isso nos julga- mentos — poucos, para a proporção dos fatos, — já reali- zados na Corte Internacional de Haia. Não bastassem es- ses crimes de grande envergadura, mata-se sem motivo, no cotidiano, por morte cruel e absurda, e há mesmo uma banalizaヘo do homicídio no ato continuado, aqui no Brasil, de colocar fogo em notívagos e ébrios por diversão, como no de jogar recém nascidos no lixo. As notícias sem- pre dramáticas, sobre isso, vêm como espasmos , de temp os
  • 14. 12 A JU STIÇ A AGO N IZ A em tempos, e dão até a impressão de que têm efeito multi- p li c a or, pois geram um surto e depois cessam, mas o si- d lêncio que cai parece que apenas esconde um drama que continua. Até ecoar de novo. Do lado da vida, as instituiヘes que o homem criou — escolas, hospitais, penitenciárias, Judiciário — não con- seguem dar resposta a problemas que só mais recente- mente ganharam proporヘes de avalancha ou de enxurra- da, como o das drogas, da prostituição infantil e do crime organizado. O Código Penal está em vias de ser ampla- mente modificado e, sem dúvida, o será para pior. Indício disso é a gama de crimes que, na esteira da tortura que traumatizou os brasileiros durante o regime imposto pelos militares, passaram a ser classificados como hediondos. Trata-se de uma qualificaヘo legal que abandona a idéia de sistema jurídico, assim definido por conter uma har- monia de princ ípios e definiヘes normativas. Cria-se uma espécie de exílio da regra punitiva, e ela passa a incidir co- mo se estivesse fora do sis tema, convertendo-s e numa am- pla exceヘo. A possibilidade de erro judiciário aumentou, desde que se raciocine com base em situações absoluta- mente plausíveis de ser alguém acusado injustamente do crime hediondo de racismo, estupro ou seqüestro. A pró- pria definiヘo legal — hediondo — contém a carga absur- da de imputação que torna o acusado quas e indefensável. Além disso, e por exemplo, o que é racismo? Os juízes não sabem responder, porque também desconhecem os con- ceitos básicos da sociologia e da antropologia que o dife- rencia do preconceito racial, da segregação racial e da dis- criminaヘo racial. Os magistrados, e os juristas em geral, não encontram em seu saber metodologia suficientemen- te apta para distinguir todas essas figuras, cujo traço dis- tintivo é tão marcante, mas que o Direito confunde com suas disposiヘes de caráter meramente normativo. A par da falta de respostas, que deveriam advir do la- do da vida, há uma segunda morte a ser lamentada. É o
  • 15. OS JUR ISC ID 13 AS particular fenecimento no âmbito do conhecimento jurí- dic o da capacidade para captar os fatos pela via do seu re- lato, isto é, de fazer dos autos judiciais um documento fiel, pertinente, profundo em seu conteúdo, do acontecimen- to efetivamente havido. Palavras novas precisam ser criadas para descrever realidades que se impuseram antes que pudessem ser no- meadas por composição dos termos correntes, e exigiram síntese que remetesse imediatamente ao sentido recém des coberto. A segunda morte fez surgir um novo assassino. A palavra ju iscid a se impõe para reconhecimento daquele r que opera essa morte do Direito, daquele que o mata a ca- da dia, sistematicamente, porque não sabe reconhecê-lo, nem dele extrai nenhum valor, e também o banaliza com outras formas fatais que já não suscitam revolta e dor a quem assiste. O j ur sc id entupiu o Judiciário com ações i a despropositadas, transformando-o numa grande catedral de papel, onde as palavras que sempre tiveram sentido, e foram inspiradoras da difícil construção de um poder po- lítico independente incumbido dos julgamentos, ficaram ocas, e hoje se ntim ento de justiça, lealdade processual, lógica n orma tiva e outras expressões fundamentais para entendi- mento e aplicaヘo do Direito são palavras ao vento. Pa- lavras, palavras, palavras... que os jur iscid a sa s s assi na ra m com a vulgaridade de seu trabalho aquém e além dos can- celos judiciais, sob togas, batas, becas, arminhos debrua- dos... Eis aí praticado, sem piedade, o crime com pompa, o crime arrogante. Hoje, a pretexto de reparar situaヘes supostamente iníquas, os jur iscid a sjogam, a rodo, aヘes, denúncias, re- clamaヘes aonde quer que exista um protocolo judiciário e, por sua vez, obtêm a resposta necessariamente tardia na forma de julgados disparatados, oriundos de processos treslidos. A justiça assim praticada mata todo o esforço pa- ra elevá-la ao sentido próprio do termo. Pedir qualquer coisa, repetir fórmulas pré-impressas em computador, te-
  • 16. 14 A JUST IÇ A AG ON IZ A nham elas ou não pertinência com o caso em exame, é a prática que se mostra eficiente para assassinar o Direito. Diria o incauto que, se a injustiça está nas ruas, ela teria que fluir para os tribunais. Não se trata disso; trata-se do contrário: de uma injustiça que está mal descrita ou carac- terizada, ou que não aconteceu, ou que não é injustiça em si mesma (pois deriva de uma circunstância que não foi percebida por quem a denuncia sem base) ou, pior ainda, trata-se de uma injustiça nova, aquela que é exatamente buscada pelos mesmos caminhos que só poderiam ser tri- lhados por quem procura a justiça... Essa injustiça em si mesma é o fruto do trabalho do juriscida. Há uma falsa cultura da litigância que faz com que, por exemplo, a Alemanha (que tem a metade da popula- ção e uma estrutura do Judiciário Trabalhista muito seme- lhante à do Brasil) registrasse cerca de 4.500 aヘes recla- matórias em 1998, enquanto que aqui foram interpostas aproximadamente 2.5000.000 no mesmo ano. O argumen- to a respeito de que faltam entre nós instâncias intermediá- rias não dá nenhuma resposta para essa desproporヘo e so- mente serve para expor mais nosso gradativo e inexorável perecimento institucional. Os tribunais brasileiros, e não foge a isso o Supremo Tribunal Federal, procuram dar resposta à torrente de aヘes efetivando julgamentos em massa (não menos de dez mil por ano naquela corte, compos ta por apenas onze ministros). O Tribunal Superior do Trabalho, no final de 1998, provocou a ediヘo mais volumosa de um jornal no mundo, ao publicar as intimaヘes dos processos ali julga- dos, no Diário da Justiça. Trata-se de uma lógic a da multi- plicaヘo que ganhou o automatismo dos resultados acei- tos como se prescindissem de causa. Pelo absurdo, que ao menos se repetisse Unamuno: Contra el dolor, más dolor . O que há de novo, como atitude, é a aceitaヘo resig- nada dessa gross eira e brutal forma de morte. A noヘo de finalidade da Justiça deve ser acessível a qualquer um,
  • 17. OS JUR ISC ID 15 AS mesmo ao rústico e ao analfabeto, desde que os letrados entendam a necessidade dela, e usem as palavras que co- nhecem para alcanヘ-la concretamente, não para produ- zir seu engodo bem remunerado, nas catedrais de papel transformadas em sucata, em regurgitamento e tédio da civilizaヘo. Es pec ialmente, não as us em em cumplic idade com a mais letal dentre todas as formas de morte do D i rei- to, que — esmagada pelo entulho — hoje é uma palavra lançada ao degredo, corrompida pelo nada, desonrada pelo seu emprego. Os brasileiros numerosos que têm sua vida compro- metida pelos milhões de processos iníquos que tramitam, em aヘes de trânsito, de família, fiscais, trabalhistas, e que morrem um pouco a cada vez que os atos processuais transtornam suas existências, pois não querem formar um povo conduzido pela aposta ou pelas transações menores e sempre frustrantes , têm agora o nome de um novo seria l killer, o ju iscid a . Sabem, sofridamente, que é preciso, e ur- r gente, exterminá-lo antes de morrer em suas mãos.
  • 18.
  • 19. II O REVERSO DA CRISE
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  • 21. O R EVE RSO DA C R 19 ISE I – ARÍTICA SISTEMATIZADA C Aqueles que falam tão seguidamente sobre a crise do Direito, ou sobre a crise da Justiça, têm um débito para com a sua própria memória, e o gosto pela repetiヘo. Esse tema já foi desenvolvido no país, com abordagens radicais e célebres. Retomá-lo é como buscar o efeito repristinató- rio das leis e, honestamente, não se pode mais falar em crise, mas nos resultados dela, nos diagnósticos que foram feitos. A análise que se impõe é outra, é a que busca mos- trar o reverso. É a que quer encontrar os marcos da crítica dessa crise. Os anos ‘50 assinalam no Brasil a revisão teórica dos postulados do Direito que não haviam dado cert o e que, em outras palavras, continham-se nos limites de princípios co n servadores. Todas as questões estavam postas de novo e os motivos justificadores dos institutos, fórmulas jurídi- cas e — especialmente — resultados obtidos pela jurisdi- ヘo passavam pelo crivo de críticas abrangentes, que repu- nham ou retiravam significados. Foi então que surgiu a obra-prima “A Crise do Direito” (São Paulo, Ed. Max Limonad, 1955), raridade bibliográfica que nem mesmo costuma constar no extenso rol de publicações de seu au- tor, Orlando Gomes, e não foi reeditada. Questionava-se então, e sobretudo, o Direito positivo e a relaヘo com a real idade social efetiv a , sua elaboraヘo e sua aplicação frente a es ta. Foi esse o tempo de “A Crise do Di- reito”. Orlando Gomes revisou o quadro de insuficiência e de descrença na legislaヘo. Levantando a tese da decadên- cia do jurista francês Ripert, — e mais especialmente a ano- mia denunciada por Léon Duguit —, ele questionou ponto
  • 22. 20 A JUST IÇ A AGO N IZA a ponto os temas da forç a geradora dos direitos; o declínio da interpretaヘo imanente das normas (que sempre lhes atribuiu um certo sentido anímico e, assim, de fetiche); a formaç ão de regras heterônomas em relaヘo ao Estado, cuja efetividade era crescente; a fals a noヘo dos silogismos p erfeitos e, por fim, mas principalmente, a desmoralizaヘo da teoria da autonomia da vontade, diante do molde do contrato de adesão (ou de outras formas em que a manifes- taヘo de vontade é aces sória e não substantiva), de largo emprego. Questionamento tão amplo recolocou historica- mente o estudo do Direito, superando uma espécie de clas- sificação p aleontológica que dele o posi tivismo fazia. A elaboraヘo dogmática do Direito recuperou corres- pondência com uma realidade histórica e podia ser tecni- camente considerada a existência de um Direito burguês, mas também que a expressão deste engendrava realidades divers as, e foi a partir destas, do fim para o começo, que o questionamento da dogmática ganhou corpo. Finalmente, sem ser cientificamente blasfemo, podiam ser lembradas as mais amargas, candentes e radicais imputaヘ es a um Dire- ito insuficiente, dando-se curso a isso na própria elabora- ヘo da crítica, s em abandono da abordagem jurídica. O mesmo Orlando Gomes havia tratado de forma pioneira a questão dos direitos gerados pelas convenções coletivas do trabalho. Identific ava nelas a força da produ- ヘo de normas jurídicas paralelamente ao Estado, “como um dos aspectos da transposiヘo da luta de classes para o plano jurídico”, uma vez que tal normativismo produzia um d ireito objetivo, à margem do d ireito estatal. Quarenta e quatro anos depois, ao retomar de certa forma o tema de “A Crise do Direito” no livro “Transformaヘes Gerais do Direito das Obrigaヘes”, mas agora numa reflexão nada irruptiva, Orlando Gomes confessou o cometimento de equívoco e, fundado principalmente na teoria do negócio jurídico de Emílio Betti, proclamou que a convenヘo cole-
  • 23. O R EVE RSO DA C RISE 21 tiva, como negócio jurídico privado, não poderia fazer surtir direito objetivo. A questão das convenヘes coletivas era cara àqueles que pretendiam desenvolver um estudo crítico do Direito, desde que sabido ter o Estado Novo antecipado conquistas sociais como fruto da outorga estatal, sobrepondo-se ao aproveitamento delas como bandeira pelos movimentos revolucionários dos anos ‘20 e ‘30. Evaristo de Moares (pai), que havia colaborado na implantaヘo de um sistema de proteç ão ao trabalho de caráter corporativo, trazido no bojo da Revoluヘo da Aliança Liberal, escreveu em seus “Apontamentos de Direito Operário” a observaヘo de Gi- anturco de que “a questão social reside no Código Civil”. Eis aí um ponto de difícil encaminhamento, pois se a autonomia da vontade não construía uma ordem social harmônica, e mostrava-se seguidamente como um mito, por outro lado havia uma legislação protetiva abundante, que supostamente equalizava interesses. Acreditar, portan- to, que as convenヘes coletivas conteriam os elementos que a legislação estatal não suportava, equivalia a deduzir de esquemas interpretativos que, quanto ao Direito, como quanto à Economia, à Filosofia e à Política, eram precá- rios como teoria, e negavam a verdade histórica tantas ve- zes buscada. Foi o próprio Orlando Gomes que, por essa mesma época (1959), publicou “Marx e Kelsen”, texto curto em que expôs — em nível descritivo — a interpretação mar- xista do Direito, de acordo com as versões de Stuchka, Pashukanis e Vic hinsky, em contraposição à visão kelsenia- na da norma jurídica pura, vinculada unicamente ao Di- reito Positivo e analisada sem qualquer causaç ão, configu- rando-se como a quintessência do Direito burguês. Na verdade, Stuchka encerrava as normas jurídicas dentro das relaヘes sociais, enquanto Pashukanis apresentava uma variaヘo dessas relações que, estabelecidas com base no interesse econômico, ganhavam f o a específica, so- rm
  • 24. 22 A JU STIÇ A AGO N IZ A brevalorizada na sociedade burguesa, mas tendente a de- saparecer com a construヘo do socialismo e a implantação de mecanismos sociais, de inspiração técnico-econômica, sobrevenientes ao “perecimento da superestrutura jurídi- ca em geral”. Andrei Vichinsky sustentou que as teorias antecedentes impediam o desenvolvimento do estudo ju- rídico no mundo socialista e defendeu a idéia de aprovei- tamento do arcabouço jurídico burguês, como forma de representaヘo útil, mas desmitificada. Tratou da verdade judiciária, fruto da consideração pelo juiz das implicaヘes do ato examinado, tendo em vista as instituiヘes do Esta- do e da sociedade, de modo a não ficar fixado numa ver- dade só dos fatos, de caráter absoluto. Por exemplo, em matéria de Direito Penal, isso queria dizer que as provas circunstanciais precediam as materiais em sua valoraヘo, e por isso não havia a necessidade de definiヘo anterior do crime e da pena. Como bem esclareceu Umberto Cerroni, a partir de 1954 (ano em que morreu Vichinsky), essas teorias entraram em desconcerto e a manifestação de ou- tros juristas, com apoio em decisões do Tribunal Supremo da URSS, indicava sua lógica de irrecusável ilegismo. Além disso, em especial a partir das denúncias de Khrustchev em 1956, a figura de Vichinsky ficou irremediavelmente li- gada aos chamados Processos de Moscou, em que atuou como Procurador-Geral da União Soviética, e sua teoria jurídica é, por ironia da representação que ele tanto c aus- ticou no Direito burguês, expressão rala do stalinismo e de seus crimes. Não fosse pelo esquematismo, seria difícil entender porque Orlando Gomes, em 1959, apresentou idéias de Vichinsky como representativas do marxismo. Ocorre que havia um espírito de questionamento na época, e, como se sabe, as críticas prescindem de paternidade, valem pelo que instabilizam. O Estado Novo também havia construído um estigma para a Velha República, que recaiu sobre Wa sh in gt o n
  • 25. O R EVE RSO DA C RIS 23 E Luis. Coube por ironia a Evaristo de Moares Filho, não ce- dendo à tentaヘo de celebrar a corrente a que se filiou seu pai, demonstrar que o ideário reformista da Revoluç ão de ‘30, realizado no Estado Novo, serviu-se da tese de que “a questão social é um caso de polícia”. A frase foi produzida pelo DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda. O governo de Washington Luis teria primado pela solução negociada dos conflitos sociais, criando mesmo câmaras de conciliaヘo especial para reger os dissídios na área ru- ral. Todavia, é também verdade que as greves da década de ‘20 foram encaradas como arruaças e a tônica naquele tempo foi a repressão e o desterro de trabalhadores imi- grantes. A frase fabricada pelo DIP está de acordo com os pronunciamentos que eram então corriqueiros, e serv i u àquele tempo como representativa dele, independente da intenção de um ou outro governante, pois a sociedade que estava presa a um patriarcado patrimonialista não conseguia gerar Direito reformador. Conquanto as críticas esbarrassem em verdades e mentiras, como na confusão de umas com as outras, o es- sencial é que, a partir dos anos ‘50, principalmente, elas puderam obter um grau de sistematizaヘo que não havia sido produzido antes. Há uma homenagem a prestar aos que erraram, mas criticaram. Dentre eles, com destaque, Orlando Gomes.
  • 26. 24 A JUST IÇ A AG ON IZ A II – AJ USTIÇA DA CRISE Embora isso possa ser tido como uma interpretaヘo meramente funcionalista, a verdade é que o enfoque da crise não está mais centrado no Direito, mas es pecialmen- te na J ustiça. Há uma pródiga legislaヘo que permite ao seu intérprete e aplic ador plena desenvoltura para não fi- car prisioneiro da regra. Erram os que supõem que o Judiciário passa por uma crise. O que há é a ausência de um efetivo poder organiza- do a partir dos elementos que lhe dão fisionomia, é uma Justiça da crise . Não é possível dizer que chegou-se a um ponto de paroxismo porque a crítica do Direito não con- seguiu consumar uma síntese, ou seja, porque ela não ge- rou um Direito novo. Não há esse Direito novo. O Direito novo é o Direito velho que foi reinterpretado por homens que viveram (ou vislumbraram) novos tempos. A Justiça da crise é aquela do Judiciário precário em estado permanente, e se realiza e expressa no pequeno engajamento e no parco comando que os magistrados al- cançam nos atos de seu ofício. Não é por acaso que s e fala em “crise de identidade que afeta aos operadores jurídi- cos e aos papéis de mediaヘo institucional” (Pietro Barcel- lona e Giuseppe Cotturri). Segundo esses juristas italia- nos, “não se trata (...) de construir um novo modelo, definido e acabado, de relaヘes sociais, uma nova teoria geral do Direito ou um sistema de conceitos; tampouco de configurar os instrumentos adequados para garantir uma abstrata justificabilidade dos int eresses excluídos; trata-se de definir as condiç ões práticas e de elaborar os pressupostos teóricos necessários para eliminar os d esvalores im p lí cit os
  • 27. O R EVE RSO D A C R 25 ISE nos critérios de qualificação jurídica comumente empre- gados pela doutrina e a jurisprudência.” Em res umo, o juiz não mais responde pelo Poder que integra para justificá-lo. Deveria fazê-lo, em tese, pois é da essência desse Poder produzir a justificação; intervir nos interesses e liberdades e expor o porquê, gerar os funda- mentos; divulgar a rat io como um saber iluminista. Porém, o juiz integra o Poder para realizá-lo independente — e se- guidamente contra — os enunciados formais que dão con- torno à sua funç ão. Para não ser segregado em seu ofício, em um compartimento do Estado, tem de reviver o que há de sábio no espírito humano, de integrador e de igualitá- rio. Todavia, é preciso saber distinguir essa ordem judican- te sempre libertária da ordem jurídica que nem sempre o é. Há práticas emancipatórias que têm de ser juridicamen- te desenvolvidas, e há um papel a ser assumido de garantir o Direito “frente a todas as contingências”. Porque abordar conflitos é proceder análise das relaヘes existentes e das possíveis, o juiz tem de viver sua liberdade ainda que não seja por escolha sua, pois não há outro modo de definir a respeito desses conflitos alguma aヘo concreta. Estes são os princípios. Este é o tema desenvolvido até o ponto em que a crítica produz o seu reverso na for- ma de outro conhecimento. Os juízes têm sido realizado- res de uma Justiça da crise, oriunda desta e fabricada no seu bojo, e — na suposiヘo errada de que se trata de uma crise da Justiça — não têm sabido superá-la. Para isso é fundamental a eliminação de procedimentos que consa- gram uma motorização alienada e disfuncional e, sobretu- do, embaraçam a retomada do saber heurístico, da desco- berta do significado dos preceitos, e da revelaヘo da norma jurídica em sua aplicação mais efetiva. Quando for restabelecida a noヘo da ars inveniendi , proposta por Karl Engisch, em lugar da ars judicandi apenas, será a hora de não só aceitar as premissas, mas também de inventá-las.
  • 28.
  • 29. II I O CONTROLE EXTERNO PELO GENERAL
  • 30.
  • 31. O C O N TR O LE EX TE RN O P ELO G E NE RAL 29 I – DOUTRINA E JUSTIFICAÇÃO Nã o há doutrina jurídi ca q ue não seja transformadora. Muitas vezes, sob o nome de doutrina, trata-se da aplicaヘo das normas jurídicas. A análise que então se faz é a da juris- diç ão. Vale dizer, da jurisprudência que dela resulta. Mas se, o enfoque for a respeito do modo como os prec eitos le- gais se justificam ou fundamentam, trata-se da interpreta- ヘo. Isto é, da exegese do Direito. Em nenhum desses casos há autêntica doutrina e, se os outros caminhos indicados, quer o da aplicaヘo, quer o da interpretaヘo das normas jurídicas, mostram-se acaso transformadores, trata-se aí de uma mudança que se realiza no plano dos fatos, na histó- ria, portanto que se reifica e se encerra. Já a doutrina é con- ceptiva por excelência, e as transformaヘes que transporta não se concluem sem a sua s uperação por outra doutrina. Por isso não há doutrinador que não perpasse sua wel- ta nsch au u n g (concepヘo de mundo), ou que suprima o ca- ráter atributivo às normas legais com que aquela sua con- cepção procura entendê-las. Assim também não existe jurisprudência que prescinda da força identificadora de tais normas ao celebrar o julgamento como resultado delas. Embora a palavra doutrina tenha a raiz etimológica que aponte para a opinião dos doutores, ou dos doutos, ela é ao mesmo tempo uma ortodoxia e uma heterodoxia. Isso porque o Direito se transforma, como se aplica de va- riadas maneiras ao caso examinado, quando este se repete, e assim é um ramo do conhecimento sob teste permanen- te, sob verificaヘo, e a doutrina não serviria para estabilizá- lo se não fosse direcionada para fins que superam o fato
  • 32. 30 A JUST IÇ A AG ON IZ A concreto apresentado, se não se pos icionasse mais adiante, na hipótese abstrata da sua incidência. A doutrina é, fundamentalmente, dirigida para o Di- reito que se nega, daí porque ela o complementa com a idéia de que há uma possibilidade lógica, sistemática, dog- mática, de que ele venha a ser superado. O Direito que se aplica não compõe o inventário da doutrina, mas o da his- tória. Por isso, uma boa dose de humildade é exigida ao d o u t rin a d o r, que não vê na sua vontade uma força inspira- dora de novas regras, mas sabe que ela é apenas seletiva de fatos que, regidos sob novas circunstâncias, terão senti- do e efeitos que melhor se compadecem com a idéia de Direito. Não é por acaso que o mais célebre dos doutrina- dores bras ileiros, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, encerrou a última de suas numerosas obras (Comentários ao Código de Proc esso Civil de 1973) invocando a inspira- ção de Konrad Hellwig, a quem tributou a mais marcante influência no Direito moderno: pectus facit iurisconsultus . Se o coraヘo faz o jurista, o desvio do Direito, a perda de sua justificaヘo, se apresenta também como um sentido. Um sentido morto.
  • 33. O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G EN ER AL 31 II – AOUT R A NÃO D IN PODE IGNORAR OS FAT Há temas que têm de ser colhidos na história do Direi- to, como outros que precis am s er desalojados do catálog o de jurisprudência, para receber enfoque doutrinário, por- que continuam a produzir efeitos, ou conseqŸncia de seus efeitos, e a eles não se pode dar o que seria uma espé- cie de automatismo de resultado, vale dizer, não se lhes po- de atribuir uma influência inevitável, boa ou nefasta, so- mente porque foram gerados em um tempo já passado, e seu surgimento está consumado. Só a doutrina pode con- ceber uma transformação que abjure origens ou finalida- des que antes se perderam naquele tempo e verificar se de- veriam ter perecido nele. O trabalho doutrinário é, por natureza, de jure condendo ou de lege fere da , e é iss o o que se n busca aqui: e nc ontrar no tempo passado, mas nele isolar, a força justificadora de um Direito que hoje não se sustenta, mas que — infelizmente — continua a gerar efeitos re pressivos intoleráveis, e que a lei da inércia mental perpetua.
  • 34. 32 A JUST IÇ A AGO N IZ A III – A J U STIÇA NO MEIO DO CAMINHO DA DISTEN SÃO O General Ernesto Geisel estava convencido em 1977 de que seu projeto de di st e nsão lenta, g radual e segura n-i cluía a internalizaヘo das funções repressivas no âmbito do Judiciário. Por isso, quando a Câmara dos Deputados rejeitou a reforma da Justiça que ele havia proposto, não hesitou em fechar o Congresso Nacional, decretando o seu recesso e editando na mesma data a Emenda Constitu- cional nº 7, com base no Ato Institucional nº 5/68. O AI-5 já vigorava por nove anos e foi o mais longo e contundente controle externo operado sobre o Judiciário, pois suspendia as garantias da magistratura, retirando o poder e a independência inerentes ao cargo para preser- var apenas as suas funções. O plano do General Geisel con- sistia em instituir um auto-regime para o Judiciário, trans- ferindo-lhe as atividades repressivas para a contenヘo do seu corpo funcional, o que dis pensaria a aplicação das me- didas rev ol cion árias. Segundo o programa da u di stensão len- ta, gradual e segura aquelas medidas perduravam como uma pena virtual, como a espada de Dâmocles, e era preciso re- mover a necessidade da sua permanência, para que o refe- rido programa prosseguisse. Isso só era possível na medi- da em que a Justiça assumisse um papel de censor, de autocensor. A reforma do Poder Judiciário foi completada em 14 de março de 1979 (véspera da transmissão do cargo para o general João Figueiredo), quando o General Ernesto Geisel publicou o último diploma legal de seu governo, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Lei Complemen- tar nº 35/79, conhecida por LOMAN.
  • 35. O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G EN ER AL 33 IV – O PENSAMENTO DA ESG — ESCOLA RIOR DE GUERRA “SORBON NE SUPE A ( BRA S LEIRA” ) I Pela Reforma Geisel, os juízes deixaram de ser vitalí- cios em virtude da investidura através de concurso públi- co, passando a adquirir tal garantia só ao cabo de dois anos de exercício. Desde então, e durante todo esse tem- po, podem ser desligados por decisão administrativa dos tribunais. Até 1988, quando foi editada a Constituição vi- gente, a deliberaヘo nem mesmo precisava ser explicita- mente motivada. Os magistrados recrutados no Ministério Público e na advocac ia perdiam sua origem, vale dizer, depois de in- tegrarem a magistratura poderiam ocupar vagas em ou- tros tribunais como se fossem juízes de carreira. Isso criou sérios embaraços em Estados que tinham dois tribunais de segunda instância, o Tribunal de Alçada e o de Justiça, co- mo também desfigurou a complexa composição do Tr i- bunal Federal de Recursos, hoje Superior Tribunal de Justiça. Simplesmente, o quinto constitucional dos chama- dos juízes forâneos (provindos da advocacia e do Minis- tério Público) foi superado muitas vezes, em detrimento dos magistrados de carreira. Os mandados de segurança (independente da matéria sob exame) passaram à competênc ia dos Tribunais no âm- bito dos quais foi praticado o ato imputado de abusivo a eles próprios, com o desaparec imento do j uízo isento. Em matéria disciplinar, os juízes tornaram-se os únicos serv id o- res do Estado submetidos a julgamentos administrativos ir- recorríveis. Primeiro, porque a LOMAN não previu recur-
  • 36. 34 A JU STIÇ A AGO N IZ A so. Segundo, porque os mandados de seguranç a em busca de garantias legais teriam de ser interpostos perante os ór- gãos coatores. Terceiro, porque haveria o empecilho legal de incabimento desse tip o de ação diante de ato d isciplinar. O que se viu a partir de então guarda analogia com a clássic a narrativa de Peter Gay sobre a débâcle da República de Weimar: o des file do opróbrio, da perseguiヘo rasteira por motivos pessoais, da bajulaヘo, das fidelidades maçô- nicas e do despropósito de toda a ordem, sob o comando dos arrivistas de sempre. Criaram-se tribunais de exceヘo com funções censórias (um dos quais foi dissolvido pelo Supremo Tribunal Federal). Surgiram órgãos especiais com amplas atribuiヘes administrativas, para concentrar poder e exercê-lo arbitrariamente, mesmo em tribunais pequenos que não tinham sequer vinte e cinco juízes ( qu orum mínimo fixado como condiヘo pela LOMAN pa- ra que fossem criados os referidos órgãos). A cúpula do Judiciário passou a contar c om um número ínfimo de ma- gistrados de carreira, tendo em vista que os juízes forâ- neos perdiam a sua origem na classe onde haviam sido re- crutados, e passavam a ser também considerados como oriundos da mesma carreira. É verdade que para essa débâc le concorreu o fato de que muitos juízes, que eram contrários aos princípios in- formadores da LOMAN, se aposentaram massivamente quando ela entrou em vigor. Seu silêncio, infelizmente, não deixou memória, mas uma situação de abandono da resistência altiva que traz sua marca aos dias de hoje. Esses últimos tópicos, que parecem ser apenas os de uma crônica, na verdade reapresentam um tema irresolvi- do, e é preciso buscar mais passado para esclarecê-lo.
  • 37. O C O N TR O LE EX TE RN O P ELO G E NE RAL 35 V – AS DEFORMA‚ES CIRÚRGICAS A crise institucional do Judiciário provém principal- mente do movimento militar da Revolução de 64, porque se caracterizou como uma insurreição a meio do cami- nho. Trouxe elementos reformistas do Estado, segundo um programa liberal-autoritário preconizado principal- mente pela União Democrática Nacional. Também teve componentes nitidamente fascistas, como as peregrina- ヘes por Deus, a família e a propriedade. Houve ainda o militarismo ressentido que se frustrara com a impossibili- dade do desfecho no golpe em 1954, em face do suicídio de Getúlio Vargas e, mais recentemente, com a camp anh a da legalidade , que forçou a sucessão presidencial regular em 1961, quando renunciou Jânio Quadros. Como este não é o momento para examinar todas as implicaヘes ins- titucionais do movimento militar, basta repetir a inscriヘo lapidar que encerra os vinte e seis anos vividos no Brasil de regime de exceção, atribuída a Tancredo Neves: “a Re- voluヘo de 64 foi o Estado Novo da UDN”. Ao tempo dos atos institucionais revolucionários juí- zes intimoratos chegaram a questionar a impossibilidade de realizar eleições ou des apropriações, pois as leis que re- gem essas matérias prevêem a atuação de magistrados ga- rantidos, e as garantias estavam suspensas. Os tribunais, onde o adesismo já se fazia convenientemente sentir, en- tenderam que aqueles atos jurisdicionais deveriam ser praticados, apesar das medidas de exceção, dando vez à pantomimas conhecidas. Em razão do colaboracionismo crescente, as situaヘes de cruel tortura e de infraヘo às
  • 38. 36 A JU STIÇ A AGO N IZ A próprias regras legais autoritárias que o movimento mili- tar impusera dificilmente foram impedidas ou reparadas. Conquanto isso ocorresse, havia uma aura de último reduto cercando o Judiciário. O Marechal Castelo Branco adotou as providências de controle que bem quis, quer por via de medidas de exceヘo, de lei e, mais adiante, da Constituiヘo outorgada em 1967. Refundou a Justiça Fe- deral, provendo-lhe todos os cargos de juiz por indicaヘes políticas, sem concurso. Introduziu na Justiça do Tr ab alh o a participação do Ministério Público e dos advogados, por sobre a representaヘo clas sis ta leiga, que permaneceu. Os juízes adventícios, para preencher as novas vagas, também eram nomeados sem concurso ou indicaヘo de suas clas- ses ou dos próprios tribunais. Aumentou a composiヘo do Supremo Tribunal Federal de onze para quinze membros. Transferiu a competência para julgamento dos crimes contra o Estado e dos chamados delitos políticos para a Justiça Militar. Após a ediヘo do Ato Institucional nº 5/68, o Mare- chal Costa e Silva aposentou compulsoriamente três Mi- nistros do Supremo Tribunal Federal em 16 de janeiro de 1969 (Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), além de outros do Superior Tribunal Militar. Dias depois, pelo AI-6, reduziu novamente a composiヘo do STF para onze juízes.
  • 39. O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G E NER AL 37 VI – O LEGADO IRREMOVIDO Realizada toda a liturgia de uma missa negra nos mais de onze anos em que vigorou o Ato Institucional nº 5, para o que interessa aqui, é bem de ver que ao tempo do gene- ral Geisel todas essas medidas estavam esgotadas como for- ma de controle. Havia uma espécie de recalcitrância com a qual os militares, parece, não sabiam lidar, de modo que suas intervenções institucionais eram marcadas por idas e vindas, e eles desfaziam e refaziam os seus atos. Definitiva- mente, era preciso que o Judiciário fosse o seu próprio gendarme. Eis aí o nó Górdio cortado. É surpreendente que ainda hoje se faça o debate sobre controle interno ou externo da Justiça sem atentar para es- ses episódios tão marcantes e, com muito mais percepヘo, para o fato de que os constituintes de 1988 conservaram in- teiramente a estrutura do Poder Judic iário que o general Geisel idealizou. A pequena modificaヘo feita, mais a título de contornar a grande confusão jurídica criada, residiu na fixaヘo da origem dos elementos forâneos, de modo a que integrantes do Ministério Público e advogados ocupem ape- nas as vagas a eles destinadas e sejam selecionados em listas de suas corporaヘes. Quanto ao mais, a Constituiヘo vigen- te preservou esse cadáver insepulto que é o de uma Justiça organicamente autoritária, guardando-o no armário. Há si- nais iniludíveis d e d ecompo sição. Onde estão os problemas do Judiciário? Estão na cú- pula que o administra dispondo sobre o orçamento, sem contudo prover os meios que eliminariam a pletora e a de- mora. Quem pratica o nepotismo, quem destina verbas
  • 40. 38 A JUST IÇ A AG ON IZ A para obras suntuosas, quem promove a classificação de funcionários em níveis incompatíveis com seus limitados encargos legais, elevando os gastos à estratosfera? Muitos tribunais adotaram um sistema de controle e verificaヘo para o vitaliciamento de magistrados que não completaram ainda dois anos de serviço. Eis uma prova de que a ideologia da distensão continua a produzir seus efei- tos nefastos. A LOMAN prevê que a vitaliciedade seja ad- quirida ex facto temporis , isto é, em virtude exclusivamente do decurso do tempo. Não há nenhum sistema de teste; não há nenhuma verificaヘo, como se fora um estágio pro- batório. Via de regra, o juiz não vitalício exerce a mesma competência do juiz vitalício, observadas as exc eヘes já re- feridas dos casos de desapropriaヘo e da legislação eleito- ral. A aberraヘo que os tribunais criaram com o processo de vitaliciamento é o último suspiro de um sistema de con- trole morto, porque é exercido da cúpula para baixo, com o propósito do mando vazio. Estas são as questões verdadeiramente importantes que se apresentam. Respondê-las significa controlar sim os desmandos, mas por um sistema que não é esse vigen- te, concebido para cumprir a ideologia da distensão, e que tem como destinatários somente os integrantes da carreira judicial. Aos juízes preocupados com o bom fun- cionamento do Poder que integram, pouco importa se o controle será interno ou externo, conquanto ele seja efe- tivo e responsabilize todas as instâncias igualmente. Essa é a obra de defesa da cidadania, não a do corporativismo resse n t id o . É aqui, afinal, que se propõe a questão plantada no início: sem a construç ão de uma doutrina que recupere o significado da existência de estruturas operativas do Di- reito, como habilitação do Judiciário para alcançá-lo, aca- ba subsistindo uma situaヘo de iniqüidade que foge a to-
  • 41. O C O N TR O LE EXT E RN O P ELO G EN ER AL 39 do esforço compreensivo. É preciso fazer as perguntas certas para apontar respostas aceitáveis, e isso não s e con- segue sem enfrentar as mazelas da Justiça. Embora vul- garmente se designe como kafkiana tal situação de iniqüi- dade, na verdade o mundo sugerido por Kafka defronta o absurdo como uma outra feição do sentido , antes que a falta deste, e ela é espessa, contundente, irremediável, exata- mente porque nenhuma doutrina desafiou o mistério da sua persistênc ia.
  • 42.
  • 43. IV A OUTRA MORT E DE HERZOG
  • 44.
  • 45. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 43 I – PORQUE LEMBRAR Quando Graciliano Ramos resolveu escrever as Me- mórias do Cárcere disse que o fazia por um só motivo: ha- viam passado cerca de vinte anos desde sua prisão em 1935, as pessoas envolvidas no episódio em sua maioria es- tavam mortas e os fatos podiam ser revisitados com objeti- vidade, como se sua realidade só fosse revelada agora, es- tando porém perdidos no tempo. Tratou de fazer uma invenヘo do passado, e não de voltar a ele. O velho Graça venceu a amargura que a lembrança trazia, pois não quis fazer um livro de recordaヘes, como aquelas da Casa dos Mortos, que martirizaram Dostoiewski. A c omparação en- tre essas duas obras é inevitável. Porém, deve s er reconhe- cida a Graciliano essa vitória sobre o sofrimento, que an- tes resulta da compreensão dele, ainda quando sua falta de sentido seja uma espécie de mergulho, pois a gratuida- de e fortuidade de suas causas parecem comprometer em definitivo a ilusão de organizar e entender o mundo. Mas quem diria que o mundo pode ser org anizado e entendi- do, perguntaria Nelson Rodrigues aos “idiotas da objetivi- dade” pretensiosos que lidam com o conhecimento nor- mativo, seja ele a Gramática ou o Direito. A descida ao inferno que é a repressão do Estado en- louquecido, desvairado, tem um episódio marcante em que constam todos os ingredientes de sangue e sofrimento, e não poderia ser lembrado impunemente. Porém, também deste outro fato passaram já mais de vinte anos e aqui não se busca nenhuma expiaヘo. É possível que todos os seus personagens possam ser tidos como inventados, segundo a liヘo de Graciliano, e disso resulte um pouco do precário entend imento que é tu do o que nos o ferece o absurdo.
  • 46. 44 A JU STIÇ A AGO N IZ A Pois absurda era a existência nos anos ‘70 do Depar- tamento de Operaヘes e Informaヘes (DOI) do Centro de Operaヘes de Defesa Interna (CODI), órgãos repressi- vos de um Estado possesso que havia perdido completa- mente o senso de justificaヘo de seus atos. No pórtico da sede operativa principal do DOI/CODI, em São Paulo, poderia ser escrita a divisa que ainda consta no campo de concentraヘo de Buchenw ald: Jedem das Seine! (A cada um o que merece!). Ao contrário dos outros campos de exter- mínio nazistas, onde costumava ser ins crita a exaltaç ão A r- beit macht frei (O trabalho torna livre.), um verdadeiro de- boche à escravidão que era ali praticada, no campo de Buchenwald havia sido encontrada uma fórmula mais refi- nada, e mais sinistra, de dizer que a morte e o sofrimento programados decorriam de um merecimento, a cada um a vida que lhe cabe , numa transcriヘo mais literal, a cada um o s e . Dentre as frases de anúncio, sem dúvida essa é a mais u cruel, pois vincula-se a um destino que, como tal, não po- de ou deve ser recusado. Para que se imagine aproximada- mente a idéia de desatinaヘo irremediável, de imposiヘo absoluta, basta comparar com o que Dante escreveu na entrada do Inferno: Qui se convien lasciare ogni sospetto / Og- ni viltà convien che sia mort a , e que Karl Marx propôs que fi- gurasse num imaginário pórtico de ingresso no mundo da Ciência, pois na verdade se constitui em um desafio. Ou seja, o poeta italiano não foi além de desafiar o homem mesmo nos seus tormentos finais do castigo divino. Porém, em Buchenwald, nas cercanias da culta We i- m ar, cidade que emprestou seu nome à República alemã, escolha de vida e túmulo de G oethe e Schiller, foi inscrita uma verdade absoluta, sem desafio algum, pois ali estava o fim do fim, não se buscava mais nada. Nem o escárnio da redenヘo pelo trabalho tinha sentido como impostura sá- dica. Era apenas a proclamaヘo do destino inexorável que cabia a cada um.
  • 47. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 45 No texto mais minucioso sobre a história de Buchen- wald (O Relatório Buchenwald, David Hackett) há uma es- peculação plausível de que a inscrição do pórtico fosse apenas uma transcriヘo, pelos incultos nazistas, de um dos conhecidos princípios de Ulpiano cu ique suum tribuere ( a cada um o que é seu), que — ao lado de alterum non laedere (não fazer mal aos outros) e h oneste vivere (viver honesta- mente) — dava conformaヘo ao Direito como ars boni et ae- qu i (a arte do bom e do eqüitativo). Não há porque incur- sionar pelo tema da traduヘo, tarefa de especialistas, mas exis te uma certa inadequaヘo no acento da frase, que em latim recai sobre o su u m, como o que é próprio a cada um, inalienável como seu. A maior inadequaヘo, obviamente, é a do lugar, a do sentido, a da advertência, conotaヘes que têm significado histórico e não lingüístico. Essa digressão foi feita porque Jedem das Seine! p o d er ia estar escrito no prédio do DOI/CODI, e certamente estava gravado na mente dos que ali trabalhavam, quer com o es- pírito de fazedores do destino alheio, quer com o da mais absoluta impunidade pelo exercício de seus papéis. O es- critor espanhol Jorge Semprun, que sobreviveu em Buchenwald, escrevendo dois livros a respeito (A Longa Viagem, A Escrita e a Vida), e teve o título de um terceiro colhido como inspiraヘo para o deste ensaio (A Segunda Morte de Ramón Mercader) não aprovaria a comparação aqui feita, mas apenas porque no DOI/CODI não havia o grande sacrifício, a morte não era uma instituiヘo, mas o acidente no ato de infundir o medo. Ele teria razão, pois morrer solitário num calabouço não tem a dimensão bes- tial de um holocausto; por outro lado não teria, uma vez que a comparaヘo está sendo feita entre assassinos. Eles formam uma confraria em que todas as analogias são possí- veis, mesmo para que não se estabeleçam distinヘes con- formistas, não obstante brutais, entre a pequena morte e a grande morte.
  • 48. 46 A JU STIÇ A AGO N IZ A II – O QUE REDIVIVE Em 25 de outubro de 1975, pela manhã, o jornalista Vladimir Herzog, funcionário da TV Cultura, apresen- tou-se na sede do DOI/CODI na rua Tomás Carvalhal, nº 1.030 , em São Paulo. Na tarde do mesmo dia f oi distri- buída nota oficial: estava morto. Na véspera ele havia si- do procurado por agentes no local de trabalho para ser conduzido, o que só não aconteceu por interf e rê n cia dos diretores da TV Cultura, mas resultou no compro- misso de apresentaç ão na manhã seguinte. O Comandante do II Exército determinou a abertura de inquérito policial-militar para determinar as circuns- tâncias do su ic íd o, pré-definindo assim a aヘo que deu i causa à morte. O laudo de necroscopia foi firmado pelos médicos Arildo Viana e Harry Shibata, atestando a inexis- tência de sinais de tortura, bem como o óbito por enforca- mento, em virtude de suspensão parcial do corpo por um cinto igual ao do macacão usado por Herzog. Foi ainda sa- lientado pelos peritos (mostrando que havia uma preocu- paヘo prévia com isso) que as simulaヘes são sempre pre- paradas com a suspensão total do corpo. O inquérito foi arquivado pela Justiça Militar tendo em vista a conclusão pelo cometimento de suicídio. Em abril de 1976, a viúva e os filhos de Vladimir Her- zog ingressaram com aヘo civil declaratória da responsabi- lidade da União pela morte do jornalista. Minuciosa- mente processada, com a participaヘo de profissionais e in te rveniência de pessoas realmente honoráveis, ela foi julgada em outubro de 1978. Constituiu-se numa espécie de marco, numa superação da lei da inércia, que omitia
  • 49. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 47 respostas institucionais a situações notórias de quebra de garantias, por um regime de exceヘo que não mais con- trolava as regras que havia imposto para o seu próprio funcionamento. Isso porque a União foi declarada res- ponsável pela morte de Herzog, com o reconhecimento de uma relaヘo jurídica entre ela e os autores da aヘo (a viúva e os dois filhos), consistindo na obrigaヘo da primei- ra indenizar os últimos por danos materiais e morais de- correntes do óbito. Embora o dispositivo da sentença não contenha a palavra crime, sua fundamentaヘo exclui a hi- pótese de suicídio e reconhece a prática do abuso de auto- ridade na forma de torturas em presos políticos. Todas as informações relevantes estão transcritas no livro “Caso Herzog — A Sentença” (Íntegra do Processo Movido por Clarice, Ivo e André Herzog contra a União, 1978). Afora as informaヘes do processo, existe um rico ac ervo de dados que poderiam ser trazidos, não fosse o objeto específico deste ensaio, que é exatamente o de ana- lisar com minúcia a flexão do Poder Judiciário, que se ex- pressará adiante no exame do julgamento proferido em segundo grau. É importante registrar apenas que outra morte ocor- reu nas dependências do DOI/CODI pouco depois, em ja- neiro de 1976, do metalúrgico Manuel Fiel Filho, desenca- deando uma crise de autoridade no Governo Geisel, que resultou na exoneração do Comandante do II Exército di- retamente pelo Presidente da República. Houve uma reor- denaヘo do esquema militar que se havia afirmado desde a ediヘo do Ato Institucional nº 5/68, ganhando des envoltu- ra durante o Governo Medici. A candidatura do general Sylvio Frota, Ministro do Exército, para o período presi- dencial seguinte, foi esvaziada e a “distensão lenta, gradual e segura” ganhou vigor, cumprindo-a o general Geis el até o final de seu mandato, quando foi revogado o AI-5. Isso não se fez suficiente para afastar recidivas do período de exceção, como mostra o episódio da bomba do Riocentro,
  • 50. 48 A JUST IÇ A AGO N IZA já no período do general Figueiredo, também vergonhosa- mente mal resolvido pela Justiça Militar. Esses dados todos tiveram uma importância crucial no Brasil, que se encontrava estagnado numa espécie de indignação paralisada de alguns, e o ceticismo que a onis- ciência das ditaduras duradouras provocam em muitos. Por isso foi dito que a sentença de primeiro grau no Caso Herzog foi um marco, sendo mesmo a primeira resposta institucional havida depois da ediヘo do AI-5 que, dentre muitas restriヘes, suspendeu as garantias da magistratura. Ela de fato instituiu uma sede para o “não”, dito sob a es- trutura do regime então vigente, pelas regras que o pró- prio regime havia estabelecido. Por exemplo, a lei que de- fine crimes de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65) foi sancionada pelo marechal Castelo Branco (homem que vetara a regulamentaヘo da profissão de sociólogo por considerá-la subversiva...), obviamente sem a previsão de que viesse a ser direcionada contra torturadores. Antes de ser analisada a continuidade do proces so ju- dicial do Caso Herzog, deve ser dito que a sentença do Juiz Márcio José de Moraes é contida no que poderiam ser os seus enunciados afirmativos. A tortura era praticada de forma sistemática nas prisões políticas. Existiam órgãos pa- ramilitares atuando s oltos, sem controle da autoridade de Estado, mas agindo como personificaヘo dela. As verbas destinadas à informação e repressão não continham espe- cificaヘo no orçamento, tendo sido dado o caráter secreto ao seu uso. O texto da sentença, contudo, não ultrapassa a metodologia usualmente empregada nos julgamentos, sendo pleno de referências doutrinárias, e foi escrito com a linguagem a que é afeito o mundo jurídico, que parece- rá engomada para os que não gostam de ler “outrossim” (palavra que Graciliano Ramos não admitia que pudesse ser usada). Nada, porém, que comprometa a firme deter- minação de fazer incidir a ação da Justiça sobre o caso. Es- sa vontade está bem express a exatamente em uma das pri-
  • 51. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 49 meiras citaヘes ali feitas, de Roberto Lyra: “Extrair a sen- tença da própria c abeça com a lei e a prova — eis o que se chama julgar, para realidade e autenticidade da prestaç ão jurisdicional.” Já no exame dos fatos, o julgamento profe- rido pelo Juiz Márcio José de Moraes é brilhante, nada lhe escapou, ele estabeleceu todas as conexões. Não há situa- ヘes soltas ou indefinidas na análise do que foi colhido na instruヘo, e não se deve ignorar que realizar provas plenas em uma situaヘo de franca adversidade, dissimulaヘo e medo, não constitui tarefa fácil. Talvez o jovem magistrado de então tenha optado por um texto que não pudesse sofrer ataque formal, pois afinal s eguia o entendimento de grandes tratadistas, mui- tos deles figuras ilustres do Supremo Tribunal Federal em várias épocas (inclusive na época do regime de exceヘo, como é o caso do Ministro Cordeiro G uerra, oriundo exa- tamente da promotoria junto à Justiça Militar). Se foi as- sim, ele teve a percepヘo aguda de que era preciso salva- guardar o conteúdo firmemente escolhido de rechaçar o arbítrio convertido em crime. Todavia, se o próprio texto fosse denunciativo, e as bases de seu conhecimento esti- vessem também inspiradas em autores e obras que melhor dão referência à humanidade, possivelmente não tería- mos hoje, vendo em retrospectiva, um marco daqueles anos de chumbo, mas também um selo dessas alianças que se estabelecem de tempos em tempos, e resistem como si- nais para todos o tempo inteiro, como o julgamento de Georgi Dimitrov pelo incêndio do Reichstag. Não é o caso de lamentar ocasiões perdidas; haverá mais pelo que chorar, como o desfecho final do Caso Her- zog. Há uma tênue esperanç a de que a reversão perpetra- da no âmbito do Tribunal Federal de Recursos não seria tão acintosa se o vigor do texto de primeiro grau fosse de tal modo irruptivo que não pudesse ser abafado sem es- cândalo. Possivelmente, porém, trata-se de uma ilusão.
  • 52. 50 A JUST IÇ A AG ON IZ A III – O QUE MORRE O julgamento em segundo grau, de dois recursos in- terpostos pela União, não recebeu divulgaヘo alguma. É difícil mesmo conseguir acessá-lo. O texto do julgamento foi publicado apenas por uma revista de circulação dirigi- da em janeiro de 1984, omitindo o nome de Herzog. Lon- gas transcrições têm de ser feitas, pois o acórdão é o obje- to principal do exame aqui proposto. A dificuldade de acesso, como as transcriヘes, encontram explicação no fa- to de que se trata de um julgamento a um só tempo pre- potente e envergonhado. Consta que o resultado final da aヘo movida pela família de Herzog foi obra do Ministro Leitão de Abreu, que havia exercido a chefia da Casa Civil no Governo Medici, depois integrou o Supremo Tr ib u n a l Federal e, por fim, retornou nos anos ‘80 à Casa Civil, no Governo Figueiredo. Ele havia sido uma espécie de apaga- dor de incêndios durante o mandato ufanista do General Medici, negociando — por exemplo — a maioria dos ca- sos de seqüestro de agentes diplomáticos ou de passagei- ros de aviões, encontrando a fórmula do banimento dos presos políticos por quem eram trocados os reféns. Não poderia, é natural, ter êxito em tudo. Quando retornou ao governo, certamente Leitão de Abreu sabia que não se atravessa o mesmo rio duas vezes, e não pôde encontrar uma fórmula mais conseqüente para o atentado do Rio- centro, quando morreu um sargento e ficou ferido um ca- pitão do Exército surpreendidos pela explosão de uma bomba. Não havia como negar que se tratava de um ato terrorista. A detonaヘo ocorreu dentro do carro em que estavam os militares. Foi feito um inquérito policial-militar
  • 53. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 51 em bases demasiado inverossímeis, concluindo o coronel Job Lorena de Sant’Anna, seu presidente, que os militares haviam na verdade sofrido ataque do terrorismo, disso re- sultando o arquivamento. Esse recrudescimento das aヘes autônomas de forças repressivas que haviam vicejado du- rante o Governo Medici e na primeira parte do Governo Geisel (até que as mortes de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho no DOI/CODI causaram um enfrentamento dentro do poder, com a vitória do projeto de distensão) foi a causa do afastamento do General Golbery do Couto e Silva da Casa Civil, sendo substituído por Leitão de Abreu. Talvez este último tenha tentado retomar sua influên- cia como jurista, que sempre foi grande, especialmente nos governos dos militares, para ao menos por um ponto final no Caso Herzog, já que melhor soluヘo não encon- trou para o episódio do Riocentro, até hoje jacente, tendo em vista a completa desmoralizaヘo da tese anêmica do agora general Job, autor da pantomima que, sem exagero, merece talvez o epíteto de ser uma das maiores que já se documentou no Brasil. Todavia, é comum que nos governos plenipotenciá- rios haja uma atribuiヘo última de todas as decisões a uma eminência parda. Neste século que finda, o país pareceu sempre estar em busca de um João das Regras, tendo-o en- contrado, com excelência, em Francisco Campos. Outros houveram: Carlos Medeiros Silva, Vicente Rao, Adroaldo Mesquita da Costa. Até mesmo, embora mais como uma imitação, o rancoroso e arrivis ta redator do AI-5, Luis An- tonio da Gama e Silva, o “Gaminha”, que também redigiu o decreto da pena de morte por fuzilamento em 1969 (Vide: 1968, O Ano que Não Acabou, de Zuenir Ve n tu ra) . Dada essa longa tradiヘo, talvez, consta que Leitão de Abreu haveria dado o ponto final ao Caso Herzog. Não há como demonstrar isso, trata-se de um comentário insisten- te que perdurou, mas o prolator do voto no Tribunal Fe- deral de Recursos era seu parente.
  • 54. 52 A JU STIÇ A AGO N IZ A Ainda aqui é possível especular sobre esse ponto final e a “soluヘo final” que assim foi chamada no curso do regi- me nazista, organizando o último pogrom, orientado massi- vamente para o extermínio. Como mostram as transcriヘes a seguir, o julgamento de segundo grau no Caso Herzog es- tá pontuado de afirmaヘes que até parecem anti-semitas, disfarçadas é verdade como compreensão e benevolência farisaicas, pois atribuem ao morto fraquezas ignóbeis e o mergulho final num sentimento de c ulpa inexpiável. Não houve, portanto, despropósito em vincular o dístico na en- trada de Buchenwald à regra imaginária que jazia incrusta- da na testa dos que praticaram a tortura no DOI/CODI, como na de todos os que a acobertaram. Seja inspirado por Leitão de Abreu ou não, o julga- mento do ponto final ao Caso Herzog fez primeiro uma construヘo doutrinária de Direito, mais especialmente de teoria do processo, no sentido de que os autores da aヘo traziam embutida nela uma pretensão condenatória, e não somente declaratória de relação jurídica, esta no sen- tido de obter apenas o reconhecimento do encargo da União de indenizar. O Ministro Relator aproveitou as difi- culdades práticas defrontadas pelos requerentes, como o temor subjacente de represálias e os testemunhos apenas indiciários. Afinal, tratava-s e de uma reconstruヘo de fatos que eram de conhecimento notório, as torturas praticadas nos órgãos de repressão, mas cuja demonstraヘo em am- biente institucional era paradoxalmente (ou talvez muito propriamente, em se tratando de regime de exc eção hos- til) difícil. Com isso, o Ministro Relator transformou a ação declaratória em aヘo ordinária condenatória, apa- rentemente dando alcance maior do que o pretendido pe- los requerentes, o que seria uma extensão em seu favor. Logo se verá com que finalidade. A análise foi feita como mostram os seguintes excertos: “Na peça inaugural, arrimada em depoimento presta- do em escritório de advocacia por... (Rodolfo Osval-
  • 55. A O UT R A MO R TE D E H E RZ O G 53 do Konder)... é dito que ‘nas dependências do DOI, submeteram...(Vladimir Herzog)... a torturas, que lhe foram infligidas, visando à colheita de informa- ヘes acerca de suas supostas atividades no Partido Comunista Brasileiro. Apenas depois de cruelmente torturado, Vladimir redigiu a declaraヘo, referida no ite m ...’( fls.11 ) E mais adiante: ‘Desgraçadamente não puderam os su- plicantes, até agora (o que não significa não possam fazê-lo, no futuro), produz ir prova hábil a levar V. Exª. a compartilhar de sua convicção inabalável de que seu marido e pai não se suicidou, tendo, isto sim, sido as- sassinado por seus algozes, ou, pelo menos, morrido, em conseqüência das torturas de que foi vítima’(fls. 11 e 12) Passa a inicial a dar os fundamentos de direito em que entendem os autores encontrar assento o pedido e arrematam (fls. 17): ‘Diante do exposto, os supli- cantes propõem esta aヘo, para que V. Exª. declare a responsabilidade da União Federal pela prisão arbi- trária de...(Vladimir Herzog)..., pelas torturas a que foi submetido e por sua morte e a conseqüente obriga- ヘo de indenizá-los , em decorrência dos danos morais e material que esses fatos lhes causaram.’ Chego à conclusão de que a ação proposta não foi de- claratória, mas sim de natureza condenatória. E isso resulta dos termos do pedido, como dos termos da erudita sentença recorrida.” Aqui cabe uma pequena observaヘo a propósito do formato dado à sentença de primeiro grau. Foi dito atrás que referências mais gerais àqueles que são os elementa- res direitos humanos, e à rica doutrina sobre suas garan- tias, agregaria expressivo vigor ao exame dos fatos, este feito com técnica e lucidez já reconhecidos. Talvez tenha parecido ao leitor atendo uma censura injustificada. Sa- bem porém os profissionais da área que a erudição c entra- da só no enfoque jurídico, em sentido estrito, é descartá-
  • 56. 54 A JU STIÇ A AGO N IZ A vel quando se sobrepõe uma concepção igual, firmada em outras escolhas. Foi o que aconteceu. O trabalho de ouri- ves na coleta de elementos de convicヘo junto a uma ga- ma extremamente variada de juristas fragilizou a sentença revisanda, ao contrário do que foi pretendido, obviamen- te fortalecê-la e dificultar sua reforma. Tudo foi descarta- do em uma frase. Os termos do julgado de primeiro grau foram mesmo invocados como fonte demonstrativa da te- se — completamente diversa — produzida em instância superior. Assim sendo, concluiu o acórdão do TFR: “Propuseram-se os autores provar fatos, no que dizem com sevícias, torturas e até assassinato. Ora, tais fatos jamais poderiam ser objeto de aヘo declaratória, nos precisos termos da lei processual: ‘O interesse do au- tor pode limitar-se à decl aração:......II — da autentici- dade ou falsidade de documento.’ Os mestres na matéria, a uma voz, reconhecem que o único fato suscetível de apreciaヘo em ação declarató- ria consiste na autenticidade ou falsidade de um do- cumento. E na presente ação argúem-se fatos os mais diversos, todos inapreciáveis em aヘo declaratória, a qual, de resto, seria totalmente incabível no caso.” Outro comentário é imprescindível, agora porque o acórdão é evidentemente capcioso na última passagem transcrita. O pedido dos familiares de Herzog havia sido feito com base no inciso I do artigo 4º, do Código de Pro- cesso Civil, que legitima a parte para obter declaraヘo “da existência ou da inexistência de relação jurídica”, bem co- mo no parágrafo único que diz ser “admissível a aヘo de- claratória, ainda que tenha ocorrido a violação do direito”. Portanto, o acórdão incorreu em distorção grosseira do fundamento legal, para apresentar a aヘo como mal pro- posta e, em s eguida, afirmar que a inépcia somente é rejei-
  • 57. A O UT R A MO R TE D E H E RZ O G 55 tada porque dos fatos narrados se depreende a pretensão condenatória. Com a condenação desde logo da União se- ria alcançado prontamente o ponto final. E foi isso o que aconteceu, como se vê a seguir: “Por tudo isso, e seria fastidioso trazer à colação mais pronunciamentos de juristas e de tribunais, é eviden- te que a declaratória é incabível, o que poderia levar a decisão de que são os autores carecedores de aヘo, como pretendido pela ré. Entretanto, não chego a essa conclusão, à vista dos motivos que passo a expor. Os autores foram bem explícitos no pedido. Articu- laram os fatos que se propunham provar e deram os motivos pelos quais pretendiam responsabilizar a ré, dando remate à peça pedindo ‘a re sp ns abi id ad e da o União Federal pela prisão arbitrária de...(Vladimir l Herzog)..., pelas torturas a que foi submetido e por sua morte e a conseqüente obrigaヘo de indenizá-los , em decorrência dos danos morais e materiais que esses fa- tos lhes causaram. Pouco importa, para deslinde da questão, o apelido que tenham dado à ação. Batizaram-na de declaratória, mas na realidade a ação proposta foi de natureza con- denatória. E como tal, embora com outro epíteto, foi julgada, ao que se vê das conclusões da respeitável sen- tença recorrida: ‘Pelo exposto, julgo a presente aヘo PROCEDENTE e o faço para, nos termos do art. 4º, in- ciso I, do Código de Processo Civil, declarar a existên- cia de relação jurídica entre os AA. e a R., consistente na obrigação desta indenizar aqueles pelos danos materiais e morais decorrentes da morte do jornalista...’(fls. 621). (...) Todos os elementos integradores de uma aヘo conde- natória estão presentes, quer na inicial, quer no de- senvolvimento do pleito, quer na síntese judicial que se lhes seguiu.
  • 58. 56 A JUST IÇ A AGO N IZA Tirando os fatos, inapreciáveis em aヘo declaratória, onde a incerteza? Na relação jurídica? Declarar o que? O óbvio, isto é, o dispositivo constitucional que estabelece que ‘as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causaram a terceiros’? É evidente que se trata de aヘo condenatória e, como tal, deve ser apreciada pela Egrégia Turma.” Diante dessas conclusões, o recurso foi julgado em seu mérito, resultando c ondenada a União ao pagamento de indenização aos familiares de Herzog, com base na res- ponsabilidade objetiva do Estado pela guarda de preso, em valores a apurar na liquidaヘo da sentença. Perpassa dos trechos transcritos que havia um firme determinaヘo no sentido de colocar um ponto final. Ela era tão inabalável que se fez revelar até mesmo diante da circunstância desse tópico: “Dizem os autores que ‘não pretenderam qualquer condenação, salvo no tocante às verbas inerentes à sucumbência’. Não é tal. O que não pediram foi quantia certa. Tive oportunidade de ler nos periódi- cos declaraヘes da primeira dos autores, pelas quais disse não lhe interessar indenizaヘo alguma, mas ape- nas a declaração judicial dos responsáveis pela morte de seu marido. Desvaliosa tal atitude, pois há interes- ses indisponíveis em jogo, quais sejam os dois filhos menores.” Há duas heresias cometidas nessa passagem. Primeiro, o julgador não pode trazer para os autos o co- nhecimento de fatos que obteve como cidadão, lendo jor- nais ou até observando pessoalmente algo de relevante. Se o faz, erradamente, não pode extrair conseqüência proces- sual contrária ao que o interessado disse nos autos. Segun- do, não pode ignorar a vontade manifesta, expressa con-
  • 59. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 57 forme a lei, por supor indisponibilidade de direitos que não foram articulados por quem representa os titulares de- les. Não houve qualquer manifestação de renúncia. Ocor- reu apenas expressão volitiva de fazer e de não fazer, o que não permite ao Estado adonar-se de uma vontade que en- tende coarcta, para satisfazê-la... como bem entende. De- mais disso, a representaヘo do interesse de incapazes, quando imperfeita por parte de quem detém o pátrio po- d e r, cabe ao Ministério Público, e não consta que este haja requerido qualquer providência. Como quer que s eja, o desfecho foi condenatório da União. Com isso, veio o almejado ponto final. Caso enc er- rado. Sem culpas, sem responsabilidades pessoais.
  • 60. 58 A JUST IÇ A AG ON IZ A IV – O QUE MATA A apreciação do pedido em fase recursal, já determi- nado que a aヘo continha pretensão de conteúdo conde- natório, consiste num exercício pródigo em voluntarismo e preconceito, este completamente indissimulado. A pri- meira investida desconstitutiva da sentença de primeiro grau se expressa na desqualificaヘo dos testemunhos: “São mentirosas, segundo eles” (os autores) “as decla- rações prestadas em inquérito presidido por um oficial general e em presença de um membro do Ministério Público, pessoas contra cuja idoneidade nada foi argüi- do. Entretanto, são tomadas como verdadeiras e consti- tuem mesmo peça acusatória centra as declarações for- muladas por Konder num escritório particular. As acusações de Konder, Markum, Anthony e Wejs, sen- do que as três últimas prestaram depoimento em juízo, não afirmam que...(Herzog)... tenha sido torturado, embora t al afirmem relativamente a outras pessoas. A única testemunha que declara t er sido...(Herzog)... ví- tima de maus tratos é a testemunha... (fls. 420), o qual narra as torturas que ele próprio teria sofrido, afirman- do que ‘não viu, mas ouviu os gritos de...(Herzog)... na ocasião em que o mesmo estava sendo torturado; que o depoente só t eve certeza de que se tratava dos gritos de...(Herzog)... após o conhecimento de sua parte de sua morte...’(f ls. 420,v). Já pelos próprios termos, tal testemunho não merece crédito, pois teria imaginado se tratasse de...(Herzog)... É evidente o facciosismo que transparece nos depoi- mentos das já mencionadas testemunhas, todas elas irmanadas pelas mesmas idéias.”
  • 61. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 59 (...) “As declarações das já mencionadas testemunhas são de molde a provar as afirmativas feitas no pedido ini- cial. Konder não se submet eu ao crivo do contraditó- rio. Markum, depois de detido, foi liberado por vinte e quatro horas (f ls. 418); Wejs disse que foi ameaçado de violências, mas que não as sofreu (fls. 430); Ant ho- ny nada esclarece e, quando prestou declarações no inquérito, se encontrava em liberdade (fls. 416). Estrada também nada esclarece, em relação a...(Her- zog)... (fls. 410/412). Isto sem falar que três dessas testemunhas, pelos menos, como...(Herzog)... se sub- metiam ou haviam se submetido a tratamento com psicanalistas. Podem, tais t estemunhos, prevalecer sobre a afirmati- va de médicos legistas idôneos, que não constataram sinais de maus tratos? Sobre depoimento de..., que declarou no inquérito (fls. 165) que ‘passou a proce- d e r, com mais dois auxiliares e um amigo da família do morto à ‘tahara’, que ao proceder à ‘tahara’ — ‘pôde verificar que o corpo de...(Herzog)... estava isento de qualquer marca, equimose, que revelassem sinais de violência...?’ Registre-se que esta testemunha é israelita, como o era...(Herzog)... Tais declaraヘes são confirmadas pe- la testemunha Léo, contraparente de..., amigo da fa- mília (fls. 176).” A desqualific ação das testemunhas não toma os fatos por ela informados em confronto com outros, parte das narrativas para encontrar uma cond ição que comprometa o seu teor. Essa condiヘo é verificada sob três primas: (a) to- dos os envolvidos estavam irmanados das mesma crença: eram comunistas; (b) três das testemunhas arroladas pelos autores haviam-se submetido à psicanálise, o que também havia ocorrido com Herzog, e nenhum esclarecimento é feito sobre o que o acórdão chama de trat am ent o; (c) o rito
  • 62. 60 A JU STIÇ A AGO N IZ A judaico legitimaria a tese da inexistência de crime porque, sendo tão específica a situação do judeu, supostamente ele teria um poder verificador e revelador das mentiras atribuídas às testemunhas. A leviandade disso tudo não precisa ser salientada. Em s eguida, o acórdão envereda pela desqualificação do próprio morto, por suas fraquezas, temores exagerados e sentimento de culpa. Houve a reconstituiヘo de uma folha rasgada em que perícia grafotécnic a identificou a letra de Herzog. O texto recuperado, não obstante, dá mostra de ter sido encomen- dado, copiado ou até ditado. Não há nexo entre ele e a condiヘo do preso. Por coincidência, o escrito, que até poderia existir como uma mensagem de suicida, provi- dencialmente contém referência aos outros presos, que vieram a testemunhar. Na verdade, essas contradiヘes são exploradas contra a integridade de caráter do morto: “Ao que se v ê das declaraヘes escritas pelo infort una- do...(Herzog)..., as quais rasgou e foram reconstituí- das, documento que não mereceu contest ação, escre- veu ele: ‘admito ser militante do PCB desde 1971 ou 1972, tendo sido alic iad o p or..., meus contatos com o PCB eram feitos através de meus colegas...’. E entre outros arrola também os nomes das testemunhas Markum, Anthony e Wejs (fls. 70 dos autos do inqué- rito). E t ermina seu escrito com as seguintes palavras: ‘Relutei em admitir neste órgão minha militância, mas após acareações e diante das evidências, confes- sei todo o meu envolvimento e afirmo não estar inte- ressado mais em participar de qualquer militância po- lítico-partidária.’ Do ref erido documento se conclui, como aliás das de- clarações das próprias testemunhas já referidas, que foram elas, a primeira pelo aliciamento e outras por terem apontado... (Herzog)... como componente do
  • 63. A O UT RA MO R TE D E H E RZ O G 61 grupo, os responsáveis pela situaヘo em que se encon- trava o desafortunado jornalista. Naquelas declara- ヘes há um ressaibo de desencanto. (...) Enfim, muitos elementos exist em que levam à convic- ヘo de que...(Herzog)... não foi maltratado e que, efe- tivamente, praticou o suicídio. Aliás, nem havia predisposiヘo contra...(Herzog).., tanto que, quando procurado, teve sua oitiva adiada, a pedido de um colega, tendo comparecido à sede do DOI-CODI no dia seguinte, acompanhado somente de..., seu companheiro de trabalho (fls. 133 e 429). Todos os elementos sérios apurados levam à conclusão de que...(Herzog)... pôs termo à vida. Que motivos o teriam levado a esse gesto de desespero? Torna-se difí- cil a resposta, mas não se pode esquecer que o desafor- tunado jornalist a, em tenra idade ainda, sofrera, com sua família, o trauma da perseguição nazista. Subme- tia-se, certamente por ser um neurótico, a tratamento médico. Deve ter-se sentido profundamente abalado por ter sido delatado por quem o aliciou e por seus companheiros de credo polít ico. Além disso, ficou de- tido por mais tempo do que, certamente, pensara. To- das essas circunstâncias, aliadas, podem per f e itam e nte explicar seu extremo e lamentável gesto. (...) De culpa exclusiva da vítima não se pode cogitar no caso. Tratava-se de pessoa neurótica. Ficou detido por largas horas, o que estabelece nexo entre essa deten- ヘo e o desenlace fatal.” Há uma apreciação pastosa, entre uma moral aus tera que perdoa e lamenta, e um veredito sóbrio, que vê na morte de Herzog a expressão de sua fraqueza e culpa, quanto a si próprio e quanto à sua militância. Em primeiro lugar, nenhum participante de qual- quer movimento político declara que foi a l icad o. Esse é i
  • 64. 62 A JUST IÇ A AG ON IZ A um termo apreciativo, com conotaヘo de juízo de valor e autoria, que somente pode ser formulado depois do levan- tamento de um fato, por quem o relata, e não por quem participa dele. Em segundo lugar, se Herzog foi acareado com alguém, nada seria mais fácil do que identificar e ou- vir o outro acareado sobre as condiヘes que apresentava o preso, e aquelas em que se deu a acareaヘo. Não consta nos textos reproduzidos dos autos que isso tenha aconteci- do. Logo, Herzog teria produzido uma mentira escrita, sem nenhum nexo com a realidade, ou sob coaヘo sofri- da, ou para obter uma pausa nela (ao afirmar no bilhete que resolveu confessar em virtude das acareações). Em terceiro lugar, o acórdão aponta o fato de que Herzog te- ria inculpado alguns conhecidos (entre os quais três teste- munhas), atribuindo-lhe veladamente um surto de arre- pendimento e autocastigo. Entretanto, deduz daí que ele é quem havia sido delatado por militantes do s eu partido, o que gerou seu desencanto. Eis desmontada toda a lógica argumentativa do julgamento. Por fim, o acórdão se firma no terceiro elemento de análise da prova, o laudo pericial: “Procuram os autores tornar imprestável o laudo que concluiu pelo enforcamento, inclusive atacando rude- mente o perito doutor Shibata. A propósito dessa peça, buscam inutilizá-la diante da afirmativa daquele técnico de que não procedeu a exame no cadáver, o que foi feito por outro colega. Assim, o laudo não teria valor porque o exame fora feito por um só perito, quando são indispensáveis, pe- lo menos, dois expertos. Não procede a alegação. A invocada Súmula 361 diz respeito a peritos não oficiais. É inaplicável a mencio- nada Súmula quando se trata de perito oficial (...). Improcedentes também os ataques à honorabilidade do perito doutor Shibata. Este dissera (fls. 414), lisa- mente, que o segundo perito, quando atua na assina-
  • 65. A O UT R A MO RT E D E H E RZ O G 63 tura de um laudo, não participa necessariamente do exame do corpo de delito; entretanto, há obrigatorie- dade de rev er o relatório, analisar e discutir e se nada tiver a objetar ao que est á escrito, subscreve, como se- gundo perito. Nada há de censurável no procedimento do doutor Shibata. É sabido que tais laudos resultam de exames externo e interno, sendo registrados os elementos materiais encontrados. Após, seguem-se a discussão e a conclusão. O doutor Shibata, pois, em face das constataヘes fei- tas no cadáver por seu colega, chegou à mesma con- clusão do último. E nada há de errado nisso. Não foi trazido um argumento sério contra a lisura do pro- nunciamento dos peritos.” Não há exagero em dizer que o acórdão do TFR ma- tou Vladimir Herzog uma outra vez. O mundo do morto era ignominioso. Como extrair dele um gesto reto, de re- sistência política até o perecimento? Como infirmar atos investigados por um general de exército perante membro do Ministério Público, e atacar ilibado legista?
  • 66. 64 A JUST IÇ A AG ON IZ A V – PORQUE NÃO ESQUECER É muito difícil pretender avaliar as razões de um si- lêncio sepulcral sobre o julgamento definitivo do Caso Herzog. O que poderiam fazer os autores da ação, sem ex- por ainda mais a memória do desaparecido a juízos de va- lor, de que foi tão pródigo o acórdão? Hoje se sabe, certeza documentada com nomes e de- talhes, que houve a tortura do jornalis ta (pois até um dos seus algozes foi identificado e entrevistado pela revista Ve- ja) e que ela está relacionada diretamente à morte. É uma certeza que atende apenas aos incréus, pois atesta o que sempre foi sabido pelas pes soas de espírito aberto. Herzog envergava um macacão recém vestido, ainda com as mar- cas da dobra, o que aparece na foto tirada pelas próprias autoridades. O cinto que amarrava seu pescoço não era dado aos presos, os quais eram despojados mesmo dos cordões de seus sapatos. O legista Harry Shibata chegou a perder seu registro de médico e enfrentou repetidas acu- sações de coonestar atos de lesão e morte de presos políti- cos. De que adiantou a Justiça ignorar fatos tão evidentes e, como de um pedestal, tentar despojar o morto de uma memória digna a que tinha direito? Ainda que Vladimir Herzog houvesse praticado o sui- cídio não determinado por fatores externos, e se sobre is- so não houvesse qualquer dúvida possível, não mereceria ser vitimado de novo pelo preconceito acintoso que, con- tra ele, se expressou como uma indissimulada defesa do regime de exceヘo. É de ser lembrado que suicídios como o de Salvador Allende e, no Brasil, de Getúlio Vargas, foram atos políti-
  • 67. A O UT R A MO R TE D E H E RZ O G 65 cos em que o sacrifício individual foi pontuado por aconte- cimentos mais amplos, como reaヘo a eles. Por muito tem- po vigorou uma interpretação rústica de que suicidar- se corresponde a um tipo de abdicação. Não é por acaso que, contra todas as evidências, divulgou-se por muitos anos que Allende havia caído na luta. Imagem romântica de uma América Latina ainda primitiva em seus mitos. Na ver- dade, o presidente do Chile havia anunciado, e isto consta em entrevista a Régis Debray, que repetiria o ato do almi- rante Balmaceda, que havia ocupado o mesmo cargo no início deste século, no caso de uma deposiヘo. No Brasil, Getúlio Vargas retardou por dez anos o movimento militar que por fim veio a ser vitorioso em 1964, pois seu gesto ex- tremo paralisou o golpe que então já havia triunfado. Contudo, Vladimir Herzog não se irmanou em gesto com esses grandes mortos. A morte que lhe foi infligida num calabouço esteve seguida de outra, astuciosa e igual- mente cruel, de oficializar para sempre seu suicídio como limite de fraqueza e desespero. A verdade já foi sufic iente- mente restabelecida no âmbito da sociedade civil. A Justiça será caudatária, para sempre, guardando-a em seus arquivos seculares, da mentira.
  • 68.
  • 69. V A JUSTIÇA AGONIZA
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  • 71. A JUST IÇ A AG O NIZ A 69 “J’ai vous aimé vraiment quand vous étiez vivants...” (Pers onagem do ator Jean Marais no filme Beleza Roubada , de Bernardo Bertolucci)
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  • 73. A JUST IÇ A AG O NIZ A 71 I – INTRODUÇÃO O tema da crise aqui é recorrente. Na verdade, não existe crise acerca da i déia de justiça, que transcende o as- sunto jurídico, pois ela própria se constrói em torno da crise do homem, suas limitaヘes, destino errático, serv i- dão às suas paixões e obscurecimento de seus sentidos. Não se pode dizer que tal idéia resulte do aperf e iço am e n- to da razão, pois a própria razão pode obcecar o espírito e t ra nsfo rm ar-se em objeto de culto e, com isso, produzir a noヘo de justiç a redentorista, c omo se fosse a certeza pos- sível ao homem de saber incerto. Há uma indagaヘo da filosofia, portanto, que prece- de sempre es se tema. Demócrito de Abdera, por exemplo, propôs que fazer justiça é fazer o que é pre ciso. Situou desde logo essa idéia num plano de devir contínuo, que é o fa- zer, e estabeleceu o motivo do reconhecimento incessan- te, que é a necessidade. Apenas isso serviria para derrubar séculos de glosa acadêmica puramente retórica acerca de formalidades, idealismos, visões místicas da natureza do homem e preceitos sociais que se confinam em progra- mas, ora inspirados nas religiões de Deus, ora em religião do próprio homem. O jusnaturalismo e o positivismo, in- corporando a esc olástica, tornaram-se abordagens de con- trole, não de exsurgência da idéia de justiça. É indispensável um grande esforço de humildade aos juristas que desejam preservar o saber heurístico (da des- coberta), pois têm de reconhecer que a justiça não se compreende apenas no Direito, nem mesmo forma o ob- jeto principal de seu saber. A construヘo do Direito signifi- ca a sistematização de vários temas: assim como o da justi-
  • 74. 72 A JUS TIÇ A AGO N IZ A ça, também o da liberdade, o das regras de convivência e controle da força, com o seu uso para preservar bens e re- lações sociais. Portanto, para que houvesse a busca e a aplicação da justiça, e se obtivesse o seu reconhecimento, fez-se necessário erigir regras operativas para codificar seus sinais e eleger seus cânones lógicos. Quem apreendeu bem e sintetizou essa dispersão foi ainda um filósofo, Miguel de Unamuno, que cunhou a ex- pressão t e ol ia a b og esca p ara expressar os limites da og ad epistemologia jurídica nestes termos, em resumo perfeito: Una falacia lógica puede expresarse m ore scholastico con este silogismo: Yo no comprendo este hecho sino dándole esta explicación; es así que tengo que com- prenderlo, luego esta tiene que ser su explicación. O me quedo sin comprenderlo. La verdadera ciencia enseña, ante todo, a dudar y a ignorar; la abogacia no duda ni cree que ignora. Necesita de una solución. (Del Sentimiento Trágico de la Vida) Não se pode falar em crise na concepヘo da justiça porque ela própria é uma concepヘo crítica. As idéias ini- ciais do faz er e da n ece ssdad e têm de enfrentar, exatamente i no campo do Direito, onde o conhecimento sistematizado procurou instrumentalizar aquela concepヘo, os limites da te ol gia abogadesca. A ciência jurídica é a expressão da crise o de insuficiência de seu método para reconhecer o que é necessário fazer. Por isso, o mais conhecido juiz america- no, Oliver Wendel Holmes, cunhou a célebre frase (um pouco presa à idéia já viciada de linguagem elegante): quem conhece só o Direito, nem Direito conhece . O glosador Bár- tolo, na rudeza medieval, havia sido mais duro: I meri leggis- ti sono puri asini. Este texto trata, portanto, de uma outra face da justi- ça, aquela que é escrita com letra maiúscula, por ser o no- me de um corpo institucional, e este sim amarga uma do-