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OS FAVORES
                     DO BORDA
                       D'ÁGUA


   Fazer anos é bom. Há festa, há presentes e há a família
e os amigos todos à volta de nós e do bolo, a cantar,
afinados ou desafinados, os "Parabéns a Você". Sopram-se
as velas, ouvem-se as palmas e tocam-se os copos, "tchim-
tchim!", à saúde do aniversariante.
  Mas por que estou eu aqui a contar o que toda a gente
sabe? Sim, porquê? Porque o Mário só tem direito a esta
festa de quatro em quatro anos, precisamente no dia 29 de
Fevereiro de cada ano bissexto. Nasceu num dia desses de
um ano desses, que se há-de fazer?
  O Joca, amigo e vizinho do Mário, já que ambos moram
no mesmo prédio, o Joca é que não se conforma:
  – Tu devias receber as prendas vezes quatro. Um montão
delas, a contar com os anos em que não tiveste festa.
                            1
– E recebo – explicou o Mário. – Na Páscoa, os meus
pais e os meus avós dão-me sempre mais prendinhas e
dizem-me que são as dos meus anos.
   Assim sendo, o Joca já não sentia tanta pena do seu
amigo Mário. À noite, à hora da deita, pôs-se a matutar que
as pessoas deviam fazer anos sempre que quisessem. Já em
vale de lençóis, apurou a ideia.
   Imagine-se um senhor que, por ter tido uma infância sem
carinhos nem festas, decidia, chegado a adulto, feliz e bem
instalado na vida, comemorar todos os aniversários que a
miséria dos primeiros anos lhe tinham roubado? Festas e
mais festas, prendas e mais prendas... Devia ser giro.
   Ele próprio, Joca, sentia ganas de pedir ao Senhor Borda
d'Água, cavalheiro de cartola a labita que gere os negócios
do tempo e o calendário do mesmo nome, se lhe concedia
um favor. Via-se, diante do Borda d'Água, a formular o
seguinte pedido:
   – O senhor podia dar-me mais do que uma festa de anos
por ano?
   – Quantas?
   O Joca hesitava:
   – Se não lhe custasse muito, duas. Ou três... Ou quatro...
Ou cinco...
   – As que quiseres – decidiu o Borda d'Água, um
mãos-largas nisto de dar à manivela do tempo.
   E assim passou a acontecer. Corriam os dias, corriam as
festas de anos. Os convidados já nem saíam de casa do
Joca, sempre a atafulharem-se em novos bolos de
aniversário, a que iam crescendo as velas. Nem tempo
havia para desembrulhar todas as prendas. Sensacional!


                             2
O Joca andava delirante. Aquilo é que era vida. Podia
achar os pais mais velhos e mais cansados, com aquela
continuada responsabilidade de atender a tantos
aniversários seguidos. Podia sentir que algumas prendas já
eram descabidas para a sua idade. Podia já estar enjoado do
bolo de anos e da cerimónia dos "Parabéns a Você". Mas
ainda rejubilava com aquele ambiente de festa
interminável, como se o tempo nunca passasse.
   O pior foi quando, uma vez, ao chegar-se a um espelho,
não ter reconhecido o seu próprio rosto. Ele, de barba e já
com algumas brancas? E com o cabelo a fugir-lhe? E as
olheiras, a cavarem-lhe os olhos?
   Percebeu, então. Cada festa era um ano que mudava.
Naquele corrupio de aniversários, esquecera-se desse
pormenor.
   Tinha de voltar atrás. Tinha de pedir ao Borda d'Água
que suspendesse a roda do tempo, se não, se não as últimas
velas da vida apagavam-se num sopro.
   Respondeu-lhe o Borda d'Água:
   – Como estás no meio de um sonho, posso satisfazer o
que me pedes. Mal acordares, voltas a ter a idade com que
adormeceste, ainda que com umas horitas a mais. Nada de
importância.
   E assim aconteceu. Quando o Joca se viu ao espelho, na
manhã seguinte, e encontrou de novo o seu rosto de
menino, não podem calcular o alívio que o Joca sentiu.
   Festas de aniversário uma vez por ano e chega. Ou de
quatro em quatro...


  FIM

                            3

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  • 1. OS FAVORES DO BORDA D'ÁGUA Fazer anos é bom. Há festa, há presentes e há a família e os amigos todos à volta de nós e do bolo, a cantar, afinados ou desafinados, os "Parabéns a Você". Sopram-se as velas, ouvem-se as palmas e tocam-se os copos, "tchim- tchim!", à saúde do aniversariante. Mas por que estou eu aqui a contar o que toda a gente sabe? Sim, porquê? Porque o Mário só tem direito a esta festa de quatro em quatro anos, precisamente no dia 29 de Fevereiro de cada ano bissexto. Nasceu num dia desses de um ano desses, que se há-de fazer? O Joca, amigo e vizinho do Mário, já que ambos moram no mesmo prédio, o Joca é que não se conforma: – Tu devias receber as prendas vezes quatro. Um montão delas, a contar com os anos em que não tiveste festa. 1
  • 2. – E recebo – explicou o Mário. – Na Páscoa, os meus pais e os meus avós dão-me sempre mais prendinhas e dizem-me que são as dos meus anos. Assim sendo, o Joca já não sentia tanta pena do seu amigo Mário. À noite, à hora da deita, pôs-se a matutar que as pessoas deviam fazer anos sempre que quisessem. Já em vale de lençóis, apurou a ideia. Imagine-se um senhor que, por ter tido uma infância sem carinhos nem festas, decidia, chegado a adulto, feliz e bem instalado na vida, comemorar todos os aniversários que a miséria dos primeiros anos lhe tinham roubado? Festas e mais festas, prendas e mais prendas... Devia ser giro. Ele próprio, Joca, sentia ganas de pedir ao Senhor Borda d'Água, cavalheiro de cartola a labita que gere os negócios do tempo e o calendário do mesmo nome, se lhe concedia um favor. Via-se, diante do Borda d'Água, a formular o seguinte pedido: – O senhor podia dar-me mais do que uma festa de anos por ano? – Quantas? O Joca hesitava: – Se não lhe custasse muito, duas. Ou três... Ou quatro... Ou cinco... – As que quiseres – decidiu o Borda d'Água, um mãos-largas nisto de dar à manivela do tempo. E assim passou a acontecer. Corriam os dias, corriam as festas de anos. Os convidados já nem saíam de casa do Joca, sempre a atafulharem-se em novos bolos de aniversário, a que iam crescendo as velas. Nem tempo havia para desembrulhar todas as prendas. Sensacional! 2
  • 3. O Joca andava delirante. Aquilo é que era vida. Podia achar os pais mais velhos e mais cansados, com aquela continuada responsabilidade de atender a tantos aniversários seguidos. Podia sentir que algumas prendas já eram descabidas para a sua idade. Podia já estar enjoado do bolo de anos e da cerimónia dos "Parabéns a Você". Mas ainda rejubilava com aquele ambiente de festa interminável, como se o tempo nunca passasse. O pior foi quando, uma vez, ao chegar-se a um espelho, não ter reconhecido o seu próprio rosto. Ele, de barba e já com algumas brancas? E com o cabelo a fugir-lhe? E as olheiras, a cavarem-lhe os olhos? Percebeu, então. Cada festa era um ano que mudava. Naquele corrupio de aniversários, esquecera-se desse pormenor. Tinha de voltar atrás. Tinha de pedir ao Borda d'Água que suspendesse a roda do tempo, se não, se não as últimas velas da vida apagavam-se num sopro. Respondeu-lhe o Borda d'Água: – Como estás no meio de um sonho, posso satisfazer o que me pedes. Mal acordares, voltas a ter a idade com que adormeceste, ainda que com umas horitas a mais. Nada de importância. E assim aconteceu. Quando o Joca se viu ao espelho, na manhã seguinte, e encontrou de novo o seu rosto de menino, não podem calcular o alívio que o Joca sentiu. Festas de aniversário uma vez por ano e chega. Ou de quatro em quatro... FIM 3