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Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto

                    O NEGRINHO DO PASTOREIO

       Naquele tempo os campos ainda eram abertos, não haviaentre eles nem
divisas nem cercas; somente nas volteadas seapanhava a gadaria xucra e os
veados e as avestruzes corriam semempecilhos...
       Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrõescheios de
onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém eramuito cauíla e muito
mau, muito.
       Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a umandante;
no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadase o minuano podiam
entanguir gente, que a sua porta não se abria;no verão a sombra dos seus
umbus só abrigava os cachorros; eninguém de fora bebia água das suas
cacimbas.
       Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha
devontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostavade
conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comerum churrasco de
tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nemum naco de fumo… e tudo,
debaixo de tanta somiticaria echoradeira, que parecia que era o seu próprio
couro que ele estavalonqueando...
       Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho,menino
cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros,que era o seu
parelheiro de confiança, e para um escravo, pequenoainda, muito bonitinho e
preto como carvão e a quem todoschamavam somente o— Negrinho.
       A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho sedizia
afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha dequem não a tem.
       Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio;depois
conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que
o judiava e se ria.

***

        Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um
seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; ooutro que não,
que não! que a parada devia ser do dono do cavaloque ganhasse. E trataram:
o tiro era trinta quadras, a parada, milonças de ouro.
        No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festade
santo grande.
        Entre os dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tãoperfeito
era e bem lançado cada um dos animais. Do baio erafama que quando corria,
corria tanto, que o vento assobiava-lhenas crinas; tanto, que só se ouvia o
barulho, mas não lhe viam aspatas baterem no chão... E do mouro era voz que
quanto maiscancha, mais agüente e que desde a largada ele ia ser como um
laço que se arrebenta...
        As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavamaperos
contra rebanhos e redomões contra lenços.
        —Pelo baio! Luz e doble!…
        —Pelo mouro! Doble e luz!...
Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois asobrigadas;
e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e seconvidaram. E
amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, osparelheiros meneando
cascos, que parecia uma tormenta...
        — Empate! Empate! — gritavam os aficionados ao longo dacancha por
onde passava a parelha veloz, compassada como numacolhera.
        — Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! — gemia oNegrinho.
        — Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip!hip! hip!...
        E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.
        — Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!... retrucava ooutro
corredor. Hip! hip!
        E cerrava as esporas no mouro.
        Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera, Quandofoi na
última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinhaaos tirões… mas
sempre juntos, sempre emparelhados.
        E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentoude
supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que deu aomouro tempo
mais que preciso para passar, ganhando de luzaberta! E o Negrinho, de em
pêlo, agarrou-se como um ginetaço.
        — Foi mau jogo! — gritava o estancieiro.
        — Mau jogo! — secundavam os outros da sua parceria.
        A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais deum torena
coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou apistola, mais de um virou
as esporas para o peito do pé... Mas ojuiz, que era um velho do tempo da
guerra de Sepé-Tíaraju, eraum juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo.
Abanando acabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:
        — Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio,ganhou
o cavalo mouro, Quem perdeu, que pague. Eu perdi cemgateadas; quem as
ganhou venha buscá-las. Foi na lei!
        Não havia o que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagoua
parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre oponcho do seu
contrário, estendido no chão.
        E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhadormandou
distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta ehaguais e deu o resto, de
mota, ao pobrerio. Depois as carreirasseguiram com os changueiritos que
havia.

***

       O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando,
pensandocalado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o
coraçãovinha corcoveando como touro de banhado laçado a meiaespalda… O
trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado aalma.
       E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar oNegrinho
pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surrade relho.
       Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilhafalou
assim:
       — Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trintadias
ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhosnegros... O baio fica
de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.Veio
o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho,varado de fome e já
sem força nas mãos, enleou a soga num pulsoe deitou-se encostado a um
cupim.
       Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, etodas
olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos naescuridão. E uma piou e
todas piaram, como rindo-se dele,paradas no ar, sem barulho nas asas.
       O Negrinho tremia, de medo... porém de repente pensou na
suamadrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.
       E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; oCruzeiro
apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: aestrela-d’alva subiu...
Então vieram os guaraxains ladrões efarejaram o Negrinho e cortaram a
guasca da soga. O baiosentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com
ele,escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
       O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dandoberros de
escárnio.
       Os galos estavam cantando, mas nem o céu, nem as barras do diase
enxergava: era a cerração que tapava tudo.
       E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.

***

        O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos nãoestavam.
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinhopelos pulsos a um
palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
        E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear operdido.
Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensouna sua madrinha Nossa
Senhora e foi ao oratório da casa, tomou ocoto de vela acesa em frente da
imagem e saiu para o campo.
        Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros enas
restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta iapingando cera no
chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e jáeram tantas que clareavam
tudo. O gado ficou deitado, os tourosnão escarvaram a terra e as manadas
xucras não dispararam...
        Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os
cavalosrelincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou pordiante
a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara.
        E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu...
        Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim eno
mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com aVirgem, sua
madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceramnem as corujas agoureiras
nem os guaraxains ladrões; porém piordo que os bichos maus, ao clarear o dia
veio o menino, filho doestancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram,
disparandocampo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
        O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seupai que
os cavalos não estavam lá...
        E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou...

***
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos,a um
palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe atéele não mais chorar
nem bulir, com as carnes recortadas, o sanguevivo escorrendo do corpo… O
Negrinho chamou pela Virgem suamadrinha e Senhora Nossa, deu uni suspiro
triste, que chorou noar como uma música, e pareceu que morreu...
        E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer umacova, o
estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panelade um formigueiro,
que era para as formigas devorarem-lhe acarne e o sangue e os ossos... E
assanhou bem as formigas, equando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do
Negrinho ecomeçaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar
para trás.
        Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezese que
tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e milvezes mil onças de
ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro deum formigueiro pequeno...
        Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dospássaros e
a casca das frutas.
        Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E trêsdias
houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmosonho.

***

       A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e
nemrastro.
       Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava docorpo do
escravo.
       Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto, viu naboca
do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita,sacudindo de si as
formigas que o cobriam ainda!... O Negrinho,de pé, e ali ao lado, o cavalo baio
e ali junto a tropilha dos trintatordilhos... efazendo-lhe frente, de guarda ao
mesquinho, oestancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a
Virgem,Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando
queestava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante doescravo.
       E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo esem rédeas;no
baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.
       E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não chorou, e
nem se riu.

***

       Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte doNegrinho,
devorado na panela do formigueiro.
       Porém logo, de. perto e de longe, de todos os rumos do
vento,começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagrenovo...
       E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob aspalhas
dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, oschasques que
cortavam por atalhos e os tropeiros que vinhampelas estradas, mascates e
carreteiros, todos davam notícia — damesma hora — de ter visto passar, como
levada em pastoreio,uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho,
gineteando deem pêlo, em um cavalo baio!…
Então, muitos acenderam velas e rezaram o Pai-nosso pela almado
judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia umacousa, o que fosse,
pela noite velha o Negrinho campeava eachava, mas só entregava a quem
acendesse uma vela, cuja luz elelevava para pagar a do altar da sua madrinha,
a Virgem, NossaSenhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que
eleconduz e pastoreia, sem ninguém ver.

***

       Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: estámetido
em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas,suas amigas; a sua
tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá,os seus cavalos retouçam nas
manadas das estâncias. Mas aonascer do sol do terceiro dia, o baio relincha.
perto do seu ginete;o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando
nasestâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha,olha, e não
vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra.

***

       Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, oNegrinho,
sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais,bandeia as restingas,
desponta os banhados, vara os arroios, sobeas coxilhas e desce às canhadas.
       O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondoosde
jeito a serem achados pelos seus donos, quando estesacendem um coto de
vela, cuja luz ele leva para o altar da VirgemSenhora Nossa, madrinha dos que
não a têm.
       Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto dealgum
moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela parao Negrinho do
pastoreio e vá lhe dizendo —Foi por aí que euperdi... Foi por aí que eu perdi...
Foi por ai que eu perdi!...
       Se ele não achar… ninguém mais.



Fonte:
LOPES NETO, J. Simões. Contos gauchescos e lendas do sul. 3 ed. Porto
Alegre : Globo, 1965.

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A lenda do Negrinho do Pastoreio

  • 1. Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto O NEGRINHO DO PASTOREIO Naquele tempo os campos ainda eram abertos, não haviaentre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas seapanhava a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam semempecilhos... Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrõescheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém eramuito cauíla e muito mau, muito. Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a umandante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadase o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria;no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; eninguém de fora bebia água das suas cacimbas. Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha devontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostavade conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comerum churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nemum naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria echoradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estavalonqueando... Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho,menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros,que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequenoainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todoschamavam somente o— Negrinho. A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho sedizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha dequem não a tem. Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio;depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o judiava e se ria. *** Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; ooutro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavaloque ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, milonças de ouro. No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festade santo grande. Entre os dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tãoperfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio erafama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhenas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não lhe viam aspatas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto maiscancha, mais agüente e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta... As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavamaperos contra rebanhos e redomões contra lenços. —Pelo baio! Luz e doble!… —Pelo mouro! Doble e luz!...
  • 2. Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois asobrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e seconvidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, osparelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta... — Empate! Empate! — gritavam os aficionados ao longo dacancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numacolhera. — Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! — gemia oNegrinho. — Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip!hip! hip!... E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio. — Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!... retrucava ooutro corredor. Hip! hip! E cerrava as esporas no mouro. Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera, Quandofoi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinhaaos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados. E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentoude supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que deu aomouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luzaberta! E o Negrinho, de em pêlo, agarrou-se como um ginetaço. — Foi mau jogo! — gritava o estancieiro. — Mau jogo! — secundavam os outros da sua parceria. A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais deum torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou apistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé... Mas ojuiz, que era um velho do tempo da guerra de Sepé-Tíaraju, eraum juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanando acabeça branca sentenciou, para todos ouvirem: — Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio,ganhou o cavalo mouro, Quem perdeu, que pague. Eu perdi cemgateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei! Não havia o que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagoua parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre oponcho do seu contrário, estendido no chão. E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhadormandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta ehaguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreirasseguiram com os changueiritos que havia. *** O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensandocalado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coraçãovinha corcoveando como touro de banhado laçado a meiaespalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado aalma. E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar oNegrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surrade relho. Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilhafalou assim: — Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trintadias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhosnegros... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
  • 3. O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho,varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num pulsoe deitou-se encostado a um cupim. Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, etodas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos naescuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele,paradas no ar, sem barulho nas asas. O Negrinho tremia, de medo... porém de repente pensou na suamadrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu. E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; oCruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: aestrela-d’alva subiu... Então vieram os guaraxains ladrões efarejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga. O baiosentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele,escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas. O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dandoberros de escárnio. Os galos estavam cantando, mas nem o céu, nem as barras do diase enxergava: era a cerração que tapava tudo. E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou. *** O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos nãoestavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinhopelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho. E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear operdido. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensouna sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou ocoto de vela acesa em frente da imagem e saiu para o campo. Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros enas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta iapingando cera no chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e jáeram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado, os tourosnão escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam... Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalosrelincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou pordiante a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara. E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu... Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim eno mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com aVirgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceramnem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém piordo que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho doestancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparandocampo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas. O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seupai que os cavalos não estavam lá... E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou... ***
  • 4. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos,a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe atéele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sanguevivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem suamadrinha e Senhora Nossa, deu uni suspiro triste, que chorou noar como uma música, e pareceu que morreu... E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer umacova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panelade um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe acarne e o sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas, equando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho ecomeçaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás. Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezese que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e milvezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro deum formigueiro pequeno... Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dospássaros e a casca das frutas. Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E trêsdias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmosonho. *** A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e nemrastro. Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava docorpo do escravo. Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto, viu naboca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita,sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!... O Negrinho,de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trintatordilhos... efazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, oestancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem,Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando queestava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante doescravo. E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo esem rédeas;no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope. E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não chorou, e nem se riu. *** Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte doNegrinho, devorado na panela do formigueiro. Porém logo, de. perto e de longe, de todos os rumos do vento,começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagrenovo... E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob aspalhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, oschasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinhampelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia — damesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio,uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando deem pêlo, em um cavalo baio!…
  • 5. Então, muitos acenderam velas e rezaram o Pai-nosso pela almado judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia umacousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava eachava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz elelevava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, NossaSenhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que eleconduz e pastoreia, sem ninguém ver. *** Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: estámetido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas,suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá,os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas aonascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do seu ginete;o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nasestâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha,olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra. *** Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, oNegrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais,bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobeas coxilhas e desce às canhadas. O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondoosde jeito a serem achados pelos seus donos, quando estesacendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da VirgemSenhora Nossa, madrinha dos que não a têm. Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto dealgum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela parao Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo —Foi por aí que euperdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por ai que eu perdi!... Se ele não achar… ninguém mais. Fonte: LOPES NETO, J. Simões. Contos gauchescos e lendas do sul. 3 ed. Porto Alegre : Globo, 1965.