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001922_Impulso_34.book Page 41 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM

Religião e Tecnologia
RELIGION AND TECHNOLOGY
Resumo Em certos círculos acadêmicos, desenvolveu-se a idéia da obsolescência da
religião em face do avanço extraordinário e inexorável da tecnologia. Por essa razão,
ainda se atribui uma superioridade à tecnologia em comparação à religião. No entanto, ambas são fatores igualmente determinantes no processo da evolução cultural do
ser humano. Tanto uma quanto a outra atuam na natureza humana, insuflando os desejos que constroem nossa história e nosso cotidiano. Estão ligadas uma à outra por
laços mais estreitos do que costumamos imaginar. Embora sejam construções autônomas, guardam entre si relações que vão desde o estabelecimento das primeiras condições fundamentais de vida da espécie à criação dos mitos que permeiam nosso imaginário ainda nos dias de hoje. Além disso, ambas atuam nas pessoas, inspirando o desejo de transcendência, conjugação, descoberta sobre o mistério, prazer e sedução.
Palavras-chave TECNOLOGIA – RELIGIÃO – TRANSCENDÊNCIA – CONSCIÊNCIA –
SER HUMANO – DEUSES.
Abstract The obsolescence of religion in the face of technology progress is an idea developed around some academic circles. For that reason, to technology is attributed a
great superiority over religion. However, both technology and religion have been decisive agents on the human being’s process of cultural evolution. They both operate
in the human nature exciting those desires that daily build our history and life. They
are attached to each other through ties that are closer than we usually imagine. Although they are independent cultural constructions, they keep between themselves
some relationships that extend from the establishment of the first basic life conditions to the creation of myths which permeate our imaginary world. Moreover, they
both act on the human being awakening the desires of transcendence, union, the discovery of mystery, pleasure, and seduction.
Keywords TECHNOLOGY – RELIGION – TRANSCENDENCE – CONSCIENCE –
HUMAN BEING – GODS.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

41

NABOR NUNES FILHO
Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
nanfilho@unimep.br
001922_Impulso_34.book Page 42 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM

C

omo nasceram e se desenvolveram a religião e a tecnologia? Haverá alguma precedência de uma em relação
à outra? São antagônicas entre si?
A irrupção do racionalismo na modernidade contribuiu para que herdássemos uma visão bipartida a respeito das coisas que nos cercam. A oposição cartesiana
entre a razão, res cogitans, e o corpo, res extensa, trouxe
à reflexão sobre a realidade uma exacerbação do dualismo inaugurado por Platão e corroborado pela teologia cristã, tornando
difícil uma análise do mundo sem dividi-lo em pares de opostos excludentes: bem e mal, certo e errado, vida e morte etc. Diante disso, desenvolve-se uma visão da realidade segundo a qual tudo gira em torno de eixos contrários e inconciliáveis. Tal visão é transportada do universo do
pensamento ao contexto das ações e atitudes do cotidiano, e até das decisões políticas em nível internacional. Ainda hoje, em algumas rodas de
cientistas e pensadores, a religião e a ciência são consideradas forças essencialmente antagônicas. Não deixando por menos, o positivismo de
Augusto Comte, no século XIX, valendo-se de sua hierarquização dos
três estados evolutivos do conhecimento, preconizou a derrocada do estado religioso, substituído pelo estado positivo. Inaugura-se, dessa forma,
a concepção de superioridade da tecnologia (atributo do último estado)
sobre a religião, situação ainda firmemente sustentada por alguns cientistas e duramente atacada por religiosos que apregoam o inverso.
O propósito do presente texto é mostrar que, conquanto estejam
em lados diversos e empreguem diferentes métodos, religião e tecnologia
são partes integrantes do desenvolvimento humano como elementos essenciais, indispensáveis e complementares da nossa aventura histórica.

O PASSAPORTE PARA A TRANSCENDÊNCIA
Uma das marcas dos seres humanos, talvez a razão intrínseca de sua
peculiaridade, é o que se pode chamar de transcendência. Trata-se da capacidade de ir além dos limites estabelecidos e impostos. A sobrevivência
da espécie humana deve-se à sua capacidade de transcender as fronteiras
da realidade perceptível. Essa transcendência manifesta-se em vários aspectos da aventura humana. A primeira estrofe do poema de Augusto
dos Anjos, intitulado “Eu”, pode nos ajudar a refletir sobre esses aspectos.
Sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias.1
1

ANJOS, 1982, p. 12.

42

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
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Sem fazer uso da palavra, o poeta vale-se de
uma afirmação eloqüente dessa transcendência
humana sob, pelo menos, três aspectos. O primeiro é o espacial. Nós não ocupamos os espaços
senão em razão de espaços transcendentes a eles.
Em outras palavras, os motivos de estarmos em
determinado lugar são resultado da nossa necessidade de ocupar um espaço situado sempre além
daquele ocupado. Não desejamos estar apenas
em um determinado lugar, mas em outros, ao
mesmo tempo. Nossos espaços reais são, via de
regra, menores do que os queremos. Com a expressão Do cosmopolitismo das moneras, o poeta
sugere que são muitos nossos lugares de origem
e dos nossos desejos de estar. Na realidade, nós
nascemos e renascemos em muitos lugares, ou
seja, em cada lugar em que, por exemplo, estivemos com alguém, quer na presença, quer na espera, quer na lembrança. Dessa forma constata-se
a grandeza da vida humana, no fato de penetrarmos e permanecermos em muitos e diferentes lugares, e de a eles passarmos a pertencer. Nossa
vida não se deixa caber dentro de quaisquer limites geográficos. Nosso coração está atado, como
por uma espécie de fio elástico, a muitas cidades,
ruas, praças, bosques e jardins pelos quais transitaram nossos desejos, e em que foram vividos
momentos de grande significação. Nosso mundo
é do tamanho desse elástico, que se alonga indefinidamente sem jamais partir-se.
O segundo aspecto dessa transcendência é
o cronológico. Nosso tempo não é o agora. O
instante que estamos passando, ou que está passando por nós, não nos contém. Ele depende do
que vivemos em instantes anteriores e do que
projetamos para os vindouros, próximos ou distantes. Podemos até dizer que o instante que passa é uma síntese de todos os instantes, passados e
futuros. Na verdade, o tempo presente é uma ilusão. A luz do sol que ilumina o ambiente onde
trabalho é de dez minutos atrás. Hoje se descobre a existência de corpos celestes com um atraso
de milhões de anos. Isso também se dá nas dimensões menores. Há um ínfimo lapso de tempo
até que eu consiga enxergar aquela foto na minha
parede. Nosso hoje é um tempo passado, e não

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

apenas no aspecto físico, mas no seu contexto
pessoal. Escrevo agora este texto porque decidi
fazê-lo antes desse momento, que passa a ser a
cumulação de um passado próximo. Portanto, o
meu instante não é o agora, mas o de há pouco
até agora. Por sua vez, tudo o que fazemos desse
presente é transformá-lo numa plataforma para
outros tempos que virão. O que nos move em
nosso hoje é sempre um hoje que ainda não aconteceu.
Há também o aspecto histórico da
transcendência. Não somos produtos desse momento histórico que passa. Venho de outras eras,
ou seja, o que sou é um resultado do que foi se
formando ao longo dos muitos séculos da história humana, e até da pré-história. Sou a cumulação de processos há muitos séculos iniciados. O
que vivo hoje foi criado antes de mim. Isso não
só do ponto de vista de uma evolução natural,
como ocorre com os demais seres vivos, mas mediante o complexo processo a que chamamos de
história. Ao lado das injunções de caráter biológico que a espécie humana sofreu igualmente
com os outros organismos, ela mesma produziu,
por seus próprios atributos, um conjunto de
transformações de natureza mais complexa que, a
cada era e em cada diferente lugar, foram aos poucos plasmando o que somos hoje. Isso também,
não apenas do ponto de vista do passado. A história não é somente o registro do que foi, mas é
a projeção do que será, mediante a análise do que
foi e do que está sendo. Ela também se precipita
no futuro, embora nem sempre assim seja entendida. O valor da história reside na sua capacidade
de nos fornecer dados para nossos posicionamentos hoje e nossa preparação para o que virá
amanhã.
A religião e a tecnologia são instrumentos
dessa transcendência. Elas surgem no contexto
da humanidade para atender aos anseios dos seres
humanos de verem ultrapassadas as condições
impostas pela natureza. Enquanto a máquina nos
torna mais rápidos e fortes do que fisicamente
somos, transcendendo, dessa forma, os limites
que a natureza nos instituiu, a fé religiosa nos
transporta para universos mágicos onde as lógi-

43
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cas e as leis naturais são transpostas. Ambas proporcionam ao ser humano, cada uma ao seu próprio modo e dentro de suas peculiaridades, o
mergulho nas realidades incomensuráveis do universo. Assim, por meio de sofisticados telescópios, a tecnologia nos permite hoje penetrar os
segredos das galáxias, em busca da revelação dos
mistérios do cosmo. Enquanto isso, a religião,
através de mitos e rituais, procura trazer esses
mistérios para dentro de nós, a ponto de fazê-los
parecer estar sempre ao nosso alcance. A observação dos céus nos permite entrar em contato direto com o passado até de milhões de anos, ao
mesmo tempo em que faz precisas previsões de
futuros fenômenos estelares, enquanto pela religião redescobrimos as influências de nossos ancestrais e projetamos o tempo da vida para depois
da vida.

A DIMENSÃO HUMANA
A espécie humana surgiu no cenário do planeta, estimam os estudiosos, há cerca de quatro
milhões de anos. Durante todo esse tempo desenvolveu-se o processo complexo a que se chamou
de hominização. As mais atualizadas teorias dão
conta de que essa hominização se deu a partir da
era terciária, com a crescente diminuição das áreas
florestais, onde os primatas dividiam e competiam
entre si os cada vez menores recursos das árvores.
Aos poucos, as savanas foram engolindo as florestas, obrigando alguns desses primatas a se aventurar nas planícies emergentes. Ao descerem das árvores, entretanto, esses primeiros hominídeos passaram a enfrentar problemas vários, entre os quais,
a escassez de alimentos e a ameaça de poderosos
predadores. É dessa época que datam os primeiros
vestígios do Homo faber, há aproximadamente um
milhão de anos. Há cerca de oitocentos mil anos,
os hominídeos dominaram o fogo. Nascem, assim, os primeiros indícios de uma tecnologia rudimentar, representada pela confecção e manipulação de utensílios e instrumentos de caça. A crescente utilização das mãos proporcionou um menor esforço nas mandíbulas, de modo a redesenhar
as configurações do crânio, abrindo espaço para a
expansão da massa cerebral. Destarte, durante

44

todo esse processo de hominização, foi emergindo
uma função complexa denominada consciência.
Nos últimos cem mil anos, o ser humano dominaria os metais e, nos últimos dez mil, esboçam-se
as primeiras manifestações da escrita organizada e,
conseqüentemente, da cultura. A formação da
consciência atinge um nível próximo do que temos hoje.
Há, no entanto, uma dimensão da consciência que talvez não possa ser detectada pelos métodos científicos. O desenvolvimento da cultura
deve-se a dois elementos fundamentais de que a
consciência dotou os hominídeos. O primeiro refere-se à descoberta de sua fragilidade, face aos
novos desafios do mundo ao redor, e o segundo,
à recusa a aceitar essa fragilidade. Albert Camus
afirma que “o homem é a única criatura que se recusa a ser o que ela é”.2 Imaginemos uma cena,
que pode ter durado algumas dezenas, e até centenas, de milhares de anos, em que um dos nossos ancestrais precisa remover uma pedra que
bloqueia a entrada de uma caverna. Ele usa seu
corpo e toda sua força muscular em vão. Descobre, então, que é frágil. Porém, não desiste e põese a observar o problema de outra maneira. Tempos depois, percebe que há nas imediações uma
pedra menor e um tronco de árvore caído. De repente (esse de repente pode ter durado alguns séculos), surge-lhe uma idéia: coloca a pedra menor
mais próxima da maior, enfia uma das extremidades do tronco ao pé desta e, usando como base a
menor, faz um movimento para baixo, pressionando a outra extremidade do tronco. Aos poucos, a pedra maior vai se movendo, até ser totalmente removida da entrada da caverna. Assim
surgiu, de acordo com essa imagem, a alavanca
que, nesse contexto, representa a tecnologia.
Ninguém sabe se foi exatamente dessa maneira
que aconteceu, porém, poderia ter sido. Também
sabemos que Ícaro não foi um personagem historicamente verídico, mas sua estória é uma excelente metáfora do surgimento dos artefatos voadores.
2

ALVES, 1983, p. 14.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
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Vemos aí, em ação, dois momentos fundamentais da consciência. O primeiro é a constatação da fragilidade: o indivíduo humano não pode
mover a pedra, nem alçar vôo, usando seus próprios recursos físicos. O segundo é a recusa: ele
não aceita ser frágil, nem ser condenado ao aprisionamento sobre a Terra, e cria os mecanismos
para superar seus limites.
Mas o processo da consciência não se limita
ao contexto do universo biofísico. Ela abrange o
universo existencial por meio de uma constatação
mais preocupante, ligada à contingência extrema
da morte. O ser humano sabe que vai morrer.
Ocorre que ele se recusa também a se submeter
a mais essa contingência. Precisa resolver mais
esse problema e cria as diversas soluções vinculadas à perspectiva da imortalidade. O poeta Fernando Pessoa se expressa de uma maneira eloqüente quando afirma: “Todos nós sabemos que
morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a
morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito
com as entranhas, que repudia”.3 Nasce, assim, a
religião, que é um conjunto de mediações culturais destinadas a ajudar o gênero humano a lidar
com a morte e a encontrar uma expressão para
sua recusa a morrer. Todos os povos e civilizações
que se desenvolveram, na história oficial ou fora
dela, organizaram sua vida social e política, sua
economia, sua ética de acordo com alguma perspectiva de imortalidade.
Diante disso, podemos afirmar que a religião e a tecnologia possuem uma origem comum,
ou seja, o desenvolvimento da consciência humana. É significativo o fato de os arqueólogos descobrirem que os mais antigos indícios de utensílios e instrumentos de caça encontrados são do
mesmo período dos vestígios de sepulturas. A
construção de sepultura denuncia a existência de
alguma maneira pela qual uma comunidade lida
com a morte. Desde então, tanto a religião como
a tecnologia têm contribuído de forma eqüitativa
no desenvolvimento cultural da espécie humana

até os nossos dias. Não é possível privilegiar uma
em detrimento da outra sem correr o risco de cometer sérios equívocos conceituais. E nem se
pode dizer que elas surgiram dentro de um contexto de franca oposição, como até pretendem alguns, porém, numa situação de complexa interação.

3

4

PESSOA, 1986, p. 179.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

O ASPECTO MÍSTICO DA TECNOLOGIA
Não há aqui nenhuma intenção de transformar a tecnologia em categoria religiosa. No
entanto, queremos mostrar alguns componentes
místicos que a cercam. Ordinariamente, se tem
pensado que a experiência mística é privilégio de
alguns escolhidos e acontece tão somente através
da linguagem religiosa. De acordo com Victor
Hellen, Henry Notaker e Jostein Gaarder, “a experiência mística pode ser caracterizada, resumidamente, como uma sensação direta de ser um só
com Deus ou com o espírito do universo. (...) O
místico experimenta, pelo menos por instantes, a
sensação de ser indivisível de um eu maior – não
importando que ele dê a isso o nome de Deus, espírito universal, o eu, o vazio, o universo ou qualquer outra coisa”.4
Segundo essa visão, a experiência mística
não está necessariamente ligada a alguma divindade formalmente estabelecida, mas configura-se
numa relação de intimidade com algo ou alguém
com quem a pessoa se sente uma. Assim, descobrir a beleza de um pôr-do-sol e sentindo-se parte desse fenômeno, e ele parte de nosso mundo,
é um momento de êxtase místico. Uma certa lenda conta que um monge saiu para dar uma volta
fora dos limites do mosteiro e, havendo se assentado num banco de jardim, pôs-se a contemplar
atentamente a cena de um passarinho cantando
num galho de árvore próximo. Passado algum
tempo, ele retornou ao mosteiro, mas percebeu
que o porteiro era desconhecido e não o reconheceu. Apresentou-se declinando seu nome, mas
este não constava no livro oficial da portaria da
instituição. Após muito se procurar, devido à sua
natural insistência, finalmente seu nome veio a
HELLERS; NOTAKER; GAARDER, 2000, p. 33-34.

45
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ser descoberto num livro muito antigo e empoeirado. Havia trezentos anos que ele saíra para
dar um simples passeio. Essa estória nos faz pensar na singular experiência dos místicos.
Mas e a tecnologia? Ela é capaz de facultar
esse tipo de experiência? Numa entrevista recente, o ex-piloto de Fórmula Um, Émerson Fittipaldi, afirmava algo dessa possibilidade ao dizer
que, às vezes, sentia-se como se ele e o seu automóvel fossem uma só pessoa. É bem verdade que
a máquina em si mesma não é nenhum deus. No
entanto, ela possui esse atributo de comunhão
com o ser humano. Os seres humanos criaram a
máquina como Deus criou os seres humanos,
ambos com a finalidade de manter uma comunhão com sua respectiva criação.
Além disso, a máquina nos ajuda a nos
aproximarmos dos deuses. Uma das razões disso
é que a máquina está muito ligada aos mitos. Joseph Campbell afirma:
os automóveis adentraram a mitologia.
Adentraram os sonhos. E as aeronaves estão a serviço da imaginação. O vôo da aeronave, por exemplo, atua na imaginação
como libertação da terra. É a mesma coisa
que os pássaros simbolizam, de certo modo. O pássaro é um símbolo da libertação
em relação ao aprisionamento à terra, assim como a serpente simboliza o aprisionamento à terra. A aeronave desempenha
esse papel hoje.5

namento da máquina, porém, se o dono dela surpreender o seu autor, será capaz de ir com ele às
vias de fato. Por outro lado, é impossível não sentir a emoção que a velocidade cria em nosso sistema nervoso ao pilotar um veículo possante e
dos mais velozes. Uma das causas prováveis de
acidentes automobilísticos pode ser a entrega total da pessoa a essa emoção, uma espécie de êxtase ao volante. A relação homem/máquina é capaz até de produzir sentimentos, como, por
exemplo, o ciúme, e até a saudade. Não seria essa
situação uma espécie de ensaio a uma experiência
mística?
Além da dimensão detectada pelos nossos
sentidos e os instrumentos tecnológicos mais sofisticados, existe uma espécie de mundo diferente, movido por leis absurdas que contrariam as
regras impostas pela experiência quotidiana. Refere-se isso ao mundo da magia. É nesse universo
mágico que existem lugares e acontecem fatos
fantásticos, como milagres, paraísos, infernos,
encarnações, nascimentos virginais etc., e onde
habitam seres maravilhosos, como mitos, deuses,
demônios, fadas, bruxas etc. Esse mundo dos sonhos e mistérios existe. Sua existência, porém,
possui natureza diferente da dos elementos detectáveis pelos sentidos e pelo método científico.
É uma existência extrafísica, que se manifesta na
dimensão do imaginário, coletivo ou individual, e
tem origem na nossa capacidade de sonhar. Segundo Gaston Bachelard,

Talvez não seja por acaso que os autódromos fiquem lotados e que os mezaninos dos aeroportos sejam os seus lugares mais freqüentados, pois, em ambos os espaços, as pessoas buscam ao menos testemunhar uma experiência
mística, ou algo próximo a ela. A máquina oferece ao homem essa chance de comunhão com algo
além de si mesmo, pois atua como uma espécie
de extensão do nosso corpo. Talvez também não
seja por acaso que o proprietário de um automóvel, de tão ligado ao seu veículo, perturbe-se ao
perceber um leve arranhão em sua pintura. Ora,
esse leve risco não interfere em nada no funcio-

antes da cultura o mundo sonhou muito.
Os mitos saíam da terra, abriam a Terra
para que, com o olho dos seus lagos, ela
contemplasse o céu. Um destino de alturas subia dos abismos. Os mitos encontravam assim, imediatamente, vozes de
homem, a voz do homem que sonha o
mundo dos seus sonhos. O homem exprimia a terra, o céu, as águas. O homem
era a palavra desse macroântropos que é o
corpo monstruoso da terra. Nos devaneios
cósmicos primitivos, o mundo é corpo
humano, olhar humano, sopro humano,
voz humana.6

5

CAMPBELL, 1992, p. 19.

46

6

BACHELARD, 1996, p. 180.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
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A tecnologia também está ligada a esse universo mágico. Primeiramente, porque constrói os
meios para o adentrarmos. O cinema, por meio
dos efeitos tecnológicos especiais, pode abrir o
Mar Vermelho de forma visível e incontestável
para todos os olhos, afundar várias vezes o Titanic e fazer o Superman voar a incríveis velocidades. Tudo isso é fruto da tecnologia aliada à imaginação humana. Através do computador podese hoje navegar pelo imenso mundo da virtualidade, o chamado ciberespaço. Aliás, falando sobre o interior de um computador, Joseph Campbell assim se expressa: “É um milagre o que
acontece naquela tela? Você já examinou por dentro uma dessas coisas? Não dá para acreditar. É
toda uma hierarquia de anjos... todos sobre as
placas. E aqueles pequenos tubos – aquilo são milagres”.7
Em segundo lugar, a máquina abre as perspectivas dos milagres que os seres humanos modernos esperam. Esses milagres estão, em geral,
vinculados ao fenômeno da velocidade. Um jato
supersônico, um carro de corrida, uma nave espacial são bons exemplos disso. Eles permitem à
pessoa humana a proeza de quase manipular o
tempo e o espaço, transformando-os em elementos dóceis aos seus comandos. Provavelmente
não cheguemos jamais a ponto de esse controle
ser total, uma vez que, para isso acontecer, teríamos de atingir a velocidade da luz. Ocorre que
todos sabemos que chegaremos a velocidades
cada vez maiores que a do som. Isso porque a tecnologia não pode prescindir da capacidade humana de sonhar, que é, em suma, a mesma causa e
efeito dos milagres.
Não está sendo aqui afirmado que a tecnologia faz milagres, mas apenas que ela abre as possibilidades para experimentar a sua influência, ao
menos no desejo das pessoas, o que é, sem dúvida, algo grandioso. Não é um milagre voar à velocidade do som, ou falar com alguém que está
do outro lado do mundo através de um aparelho
celular. O milagre reside no desejo de que isso
pudesse vir acontecer.

Milagre pode ser entendido como uma ruptura momentânea das leis físicas e biológicas,
provocada por forças extranaturais e mediante a
vontade soberana de um ser sobrenatural. Assim,
são milagres o andar por sobre as águas, a
ressurreição de um morto, a multiplicação de
pães etc. No vôo de um supersônico não está
presente uma força sobrenatural, nem a vontade
soberana de um deus. Além do mais, não se pode
dizer que exista aí uma ruptura dos processos da
natureza, porém, uma utilização diferenciada e
complexificada das próprias leis naturais. Todavia,
a máquina mexe com a área sensível da natureza
humana, suscitando emoções e expectativas bem
próximas da dimensão do milagre. Está claro que
tecnologia não produz os milagres. Entretanto,
ela é capaz de fazer emergir, de dentro da subjetividade humana, o desejo, que é a principal fonte
dos milagres. Também a religião não os opera,
mas atua na vida humana de maneira idêntica.
Ambas influem na nossa vida, provocando desejos de que a realidade seja ao menos diferente.

7

8

Ibid., p. 21.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

CONTATO COM O SAGRADO
Campbell faz alusão a uma anedota envolvendo um ex-presidente norte-americano. “Eisenhower entrou numa sala repleta de computadores e propôs às máquinas a seguinte questão: existe um Deus? Todas começam a funcionar, luzes
se acendem, carretéis giram e após algum tempo
uma diz: Agora existe”.8 Talvez seja essa uma maneira bem-humorada de falar sobre tal proximidade com o sagrado que a máquina nos proporciona, ou seja, a intimidade da tecnologia com as
divindades.
Os seres humanos são criadores de deuses,
que são criadores de seres humanos, que são criadores de deuses, formando, assim, um fantástico
ciclo vicioso que não se fecha e nem possui um
começo definido. Não se pode dizer quem criou
quem primeiro. Assim, os seres humanos têm
necessidade de serem criados para criar, e os deuses, necessidade de criar para serem criados e
vice-versa. Essa é a fórmula dialética que enconCAMPBELL, 1992, p. 20.

47
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tramos para expressar a relação entre o humano e
o divino. Nessa relação, porém, existem fronteiras bem claras, limites estabelecidos: o ser humano não pode ser deus e o deus não pode ser humano. Somente o cristianismo é que quebrou
esse segundo princípio, por meio da teologia da
encarnação do Verbo de Deus. Embora essa teologia represente uma espécie de ruptura com o
paradigma religioso, o cristianismo ainda preserva, inclusive na sua prática litúrgica, a consciência
dessa separação. Além do mais, a encarnação só
se manifesta numa única direção, ou seja, a humanização de Deus, porém, não a divinização do
homem.
Essa fronteira foi um dia estabelecida e as
várias tradições religiosas desenvolveram suas representações míticas para explicar como isso
aconteceu. A tradição judaica conta a estória da
quebra de um interdito divino de não se comer
do fruto que representava o conhecimento do
Bem e do Mal. O resultado foi a expulsão do jardim e a separação total entre a criatura humana e
Deus. Ocorre que, em virtude de uma necessidade mútua, há uma tentativa de religação. Essa religação só é possível em face da separação em que
ambas as partes buscam sinais da presença da outra. Dessa forma, os deuses revelam-se de várias
maneiras e os seres humanos respondem de maneiras várias e vice-versa. No entanto, tudo o que
podem conseguir é chegar o mais perto possível
da linha divisória, sem jamais atingi-la, menos
ainda ultrapassá-la. Assim, os seres humanos criaram os mais variados meios para chegar perto da
fronteira. Entre eles estão os rituais religiosos,
mas não só. Há também os meios criados e desenvolvidos pela tecnologia.
Entramos numa sala de projeções cinematográficas ou ligamos o aparelho de televisão e
vemos, nas respectivas telas, imagens de pessoas
comuns em variadas situações. Mas essas pessoas
deixam de ser comuns pelo fato de parecerem estar em muitos lugares ao mesmo tempo. A tecnologia é capaz de transformá-las em quase deuses, conferindo-lhes até o atributo da onipresença. Talvez seja por essa razão que milhares de pessoas procuram ver, tocar, abraçar as estrelas e os

48

astros da TV e do cinema, como se estivessem tocando e abraçando o próprio Deus, ou alguns dos
seus anjos. Essas estrelas e esses astros, embora
não se confundindo com deuses, são posicionados, pelos meios tecnológicos, numa zona mais
próxima da fronteira. São como sacerdotes que
quase chegaram lá.
Nosso alvo, no entanto, não é apenas chegar perto. É a ultrapassagem, a invasão dos espaços do segredo – sagrado, secreto, sacro – dos
deuses o que desejamos. Por pretender ultrapassar é que chegamos perto. Essa proximidade é perigosa, mas traz momentos de extrema emoção.
Tratando-se ainda da velocidade, podemos dizer
que não é apenas com a finalidade de chegar mais
cedo ao trabalho ou em casa que se pesquisa e se
investe em projetos de veículos mais rápidos. O
objetivo é atingir o limite que faz a diferença entre ser humano e ser divino. Daí, provavelmente,
vem a grande admiração popular pelos pilotos de
corrida. Eles chegam mais perto desses limites. E,
falando em tecnologia, não podemos omitir os
programas de exploração espacial, mediante os
quais essa aproximação toma uma forma mais
fascinante. Os astronautas passam a ser os sacerdotes de uma nova investida em busca das novas
dimensões do mistério, ou seja, os espaços da divindade, quer para confirmá-la quer mesmo para
negá-la. É significativo o fato de os chamados filmes de ficção científica carregarem uma forte dose
de misticismo. O clássico de Stanley Kubrick,
2001: uma odisséia no espaço, é um bom exemplo
disso. Em várias ocasiões do filme está presente
um objeto misterioso, uma espécie de paralelepípedo metálico. Sua primeira aparição se dá diante
dos primatas que, ao descobrirem-no numa certa
manhã, dele se aproximam hesitantes e excitados,
chegando até a tocá-lo. Segue-se a isso a cena
prodigiosa que retrata o despertar da consciência.
Em outra ocasião, esse mesmo objeto causa uma
série de transtornos numa base estabelecida num
planeta próximo, suscitando a necessidade de
uma investigação. Quando a expedição chega ao
local, e se posiciona para uma foto diante da coisa
desconhecida, seus membros são mortos, vitimados por um som tenebroso. No final do filme, o

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
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mesmo objeto está numa sala diante do leito de
um bebê, espécie de mutante de um ancião. Há
nesse filme, e em outros, uma nítida intenção de
mostrar a tecnologia como um instrumento de
aproximação com o sagrado.
A religião cumpre sua função, nesse sentido, através dos diversos gestos e ritos que cada
cultura desenvolve. A dança, a oração, os sacrifícios, as oferendas etc. são formas de uma espécie
de conspiração que representam caminhos e movimentos também em busca da invasão do espaço
sagrado. Ocorre, porém, que o religioso pretende, na realidade, que o sagrado o invada de volta.
Seus objetivos estão mais vinculados a uma necessidade de ser tomado, possuído, atingido pelo
sagrado, do que somente atingi-lo. Ora-se, dança-se, oferecem-se sacrifícios etc. para aplacar, ou
até despertar a nosso favor, a fúria dos deuses. Na
primeira hipótese, dizemo-lhes que nos deixem
em paz e, na segunda, que nos perturbem. Em
ambas, está também clara a necessidade divina de
invadir e ser invadido.

mundo. Precisam ser salientadas, nesse conceito,
pelo menos três implicações do jogo. A primeira
diz respeito ao aspecto do convite. Convite é algo
que pode ser ou não aceito. Não se trata de uma
imposição ou qualquer forma de chantagem,
como freqüentemente acontece nas estratégias
burguesas de persuasão. A pessoa verdadeiramente sedutora é capaz de lidar com a possibilidade concreta de sua sedução não resultar em sucesso. Seduzir não é reivindicar ou exigir alguma
coisa. Pelo contrário, a sedução é uma promessa
de dádiva de um objeto para cuja fruição se faz o
convite. Porém, o que é oferecido não pertence
ao universo físico, mas ao universo simbólico.
A segunda implicação é que o jogo da sedução pressupõe a absoluta igualdade de condições entre os parceiros. No processo de sedução
não se concebem as idéias da dominação e da
submissão. A sutileza desse jogo consiste em que
jamais se pode saber quem é que seduz ou quem
é o seduzido. Não é possível saber de onde surgiu
a iniciativa desse convite. Nesse sentido, Jean
Baudrillard nos dá uma significativa contribuição:

SEDUÇÃO
É nesse contexto que acontece um jogo de
sedução. Queremos tentar aqui salientar o aspecto erótico da religião, como também da tecnologia. Tirante a arte, nada é mais sedutor na cultura
humana do que a tecnologia e a religião.
Em geral, se pensa que o jogo da sedução é
um jogo apenas entre sexos diferentes. Para muitos, seduzir significa conseguir convencer alguém
do outro sexo a ser seu parceiro numa conjugação genital, efêmera ou permanente. Acontece
que a sedução independe da sexualidade. Ela pertence a uma ordem que desestrutura as ordens. A
palavra sedução tem origem latina – se-ducere:
afastar, desviar de seu caminho. Tem a ver, portanto, com uma certa dose de transgressão. Tratase do jogo mais fascinante a que somos levados
pela nossa sensualidade. Seduzir é fazer certa pessoa mudar de direção, é transviar, ou seja, tirar de
certo itinerário previamente determinado. Essa
mudança de rumo não é feita por força de alguma
ordem infligida, mas mediante um convite. Seduzir é convidar alguém a fazer parte do nosso

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

A lei da sedução é primeiro a de uma troca ritual ininterrupta, de um lance maior
onde os jogos nunca são feitos, de quem
seduz e de quem é seduzido e, em virtude
disso, a linha divisória que definiria a vitória de um e a derrota de outro é ilegível
– e não há outro limite para esse desafio
ao outro de ser ainda mais seduzido ou de
amar mais do que eu amo senão a morte.9

Uma terceira implicação é que a sedução
pressupõe uma promessa de prazer. O mundo
para o qual eu convido alguém a participar é um
mundo presumivelmente fascinante, do qual vale
a pena alguém especial também tomar parte. É
um mundo prazeroso. Portanto, o sedutor precisa formar um lastro de prazerosidade em seu corpo, e, só assim, adquire a prerrogativa de fazer um
convite a alguém para a doação de um prazer.
Quando isso ocorre, não é mais necessário recorrer aos subterfúgios econômicos e sociais das
chantagens, pois o próprio corpo se encarrega de
9

BAUDRILLARD, 1992, p. 29.

49
001922_Impulso_34.book Page 50 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM

emitir os signos dessa prazerosidade e irradiá-la
ao redor, tornando-se a pessoa uma pessoa atraente. É a isso que, em linguagem teológica, chama-se graça, palavra originada do termo grego káris. Assim se conhece o indivíduo carismático, ou
seja, aquele em cuja presença sentimos uma onda
de prazer a nos invadir.
Essas três implicações se aplicam à sedução
da religião e da tecnologia. Os deuses são pródigos em atrair; as máquinas igualmente. Há uma
espécie de carisma no mecanismo de uma máquina que nos chama e atrai. O autor deste texto se
recorda bem de sua infância, como os trens que
passavam em frente à sua casa exerciam sobre ele
uma fascinação até perigosa, pois ele queria se
aproximar o mais possível para ver de mais perto
o funcionamento das alavancas que moviam as
rodas das antigas locomotivas a vapor. São fascinantes tanto a decolagem de um Boeing quanto a
tela de uma televisão ou de um computador. Ao
indivíduo humano primitivo devem ter causado a
mesma fascinação as primeiras lanças atiradas e as
primeiras gravuras nas paredes das cavernas. São
convites a que participemos do seu mundo.
Os deuses são igualmente fascinantes, mas,
por uma razão inversa, nos seduzem porque não
se revelam. Ao contrário, eles se escondem. A sedução da religião implica a fascinação pelo distante e inalcançável. Tudo o que simboliza o inacessível pode se transformar num elemento de sedução. É assim que, na Idade Média, quando os cavaleiros e guerreiros deixavam suas esposas
protegidas nos famosos cintos de castidade, por
ocasião de sua participação em longas campanhas, dava-se o fenômeno da sedução àquelas
mulheres pelos desconhecidos trovadores. A paixão daqueles poetas pelas mulheres nobres estava
vinculada à sua condição de inacessíveis. Quem
sabe tenha daí nascido a prática da verdadeira sedução. E é essa a sedução cultivada pela religião
ao longo de todo esse tempo, da pré-história até
os dias de hoje.
Além disso, está embutida, tanto na religião
como na tecnologia, uma promessa de prazer.
Ambas estão a serviço da prazerosidade humana.
A religião aponta especialmente a perspectiva do

50

gozo eterno, mas não apenas isso. Há uma onda
de prazer que invade as pessoas participantes de
cerimônias religiosas, especialmente quando permeadas pelas manifestações corpóreas. Uma celebração religiosa é, portanto, a aceitação individual e coletiva de um convite dos deuses a que as
pessoas participem do seu mundo de prazer. Aí,
nesse momento, homem e deus são parceiros,
sem nenhuma espécie de dominação ou submissão de qualquer um deles.
Por sua vez, a tecnologia é igualmente um
instrumento de gozo. Há sempre uma perspectiva de prazer vinculada ao uso de uma máquina.
Certamente não se pode afirmar ser uma sensação dolorosa a experiência de pilotar um automóvel. Não se trata, entretanto, somente de uma
sensação física, sensitiva, como a de aspirar um
perfume, fazer ou receber uma carícia, ou mesmo
a da experiência do orgasmo. Trata-se de um prazer que se expressa mais simbolicamente na sensação de controlar um universo complexo de mecanismos engenhosos. É prazerosa, sem dúvida, a
sensação de voar em asa delta, não só pela exposição do corpo a novos estímulos sensitivos, mas
também pela perspectiva de estar acima da mera
condição de mortal.
Há outro aspecto no jogo da sedução que
não se pode omitir. Trata-se do processo de fragilização dos parceiros. Segundo Jean Baudrillard,
“Seduzir é fragilizar. Seduzir é desfalecer. É através da nossa fragilidade que seduzimos, jamais
por poderes ou signos fortes. É essa fragilidade
que pomos em jogo na sedução, e é isso que lhe
confere seu poder”.10
Não por acaso o próprio Baudrillard afirma
que a sedução reside no mundo feminino. Bachelard certamente diria que a ela pertence ao componente feminino anima, que reside nas profundezas da personalidade humana e representa,
contrariamente ao masculino animus, a sensibilidade, a ternura, a delicadeza. É bom observar que
não se está necessariamente referindo, ao falar em
masculino e feminino, ao aspecto da diferença
hormonal entre macho e fêmea. Feminino retrata
10

Ibid., p. 94.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
001922_Impulso_34.book Page 51 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM

uma força que atua tanto nas mulheres quanto
nos homens. Expressa tudo o que diz respeito à
delicadeza, à graça, à sensibilidade. Quando nos
invadem as necessidades de exercer carinho e afetividade, é o lado anima que está atuando. Isto
pode acontecer até aos mais arrogantes machões.
Uma pessoa que se permite ser seduzida é porque
se deixou domar pela anima. Esse é um dos grandes receios do ser humano nos dias de hoje, o de
ser seduzido, porque a sedução implica evidenciar
a fragilidade tanto do sedutor quanto do seduzido.
Permitir ser seduzido ou permitir-se seduzir é um exercício penoso a homens e mulheres
hodiernos, em geral movidos pelo animus, que se
consideram sérios e apostam no poder e na força.
Seduzir e ser seduzido significa depor as armas.
Os heróis clássicos sempre se entregam, fragilizados, aos braços de suas amadas. E esse é outro
efeito da religião e da tecnologia: elas nos fragilizam, desarmam nossas defesas e nos preparam
para a grande entrega. Não é possível não se sentir fragilizado quando da contemplação de um
fruto da tecnologia, como um moderno transatlântico ou um computador. Ocorre, por outro
lado, que a máquina possui suas limitações. Embora se apresente com uma manifestação de poder e infalibilidade, elas também falham. Seus mecanismos, para funcionar a contento, precisam de
cuidados meticulosos que se efetuam em escalas
milimétricas. Elas precisam do carinho cuidadoso
dos humanos, que, às vezes, as tratam como se
fossem crianças indefesas ou amantes carentes.
Por sua vez, os deuses só podem ser alcançados pelo caminho da fragilização da pessoa humana. Mas eles também são frágeis. Possuem
sentimentos e emoções. Na tradição cristã, temos um deus que se torna homem e chora, entregue totalmente à gama de sentimentos que
compõem a fragilidade humana. É bem verdade
que eles são poderosos e, muitas vezes, destruidores. No entanto, apresentam também um quadro de carência de afetividade, de ternura, de
atenção especial. É aqui, em essência, que tanto as
máquinas como os deuses são realmente sedutores.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

CONCLUINDO
Como é sabido, os primeiros hominídeos,
há cerca de três milhões de anos, já manejavam alguns objetos, como ossos de grandes animais, pedaços de troncos de árvores caídas, pedras etc.
como instrumentos de defesa e ataque. Era o
Homo habilis. Não se pode afirmar que já houvesse uma tecnologia. Mais tarde, aproximadamente um milhão e meio de anos, o Homo habilis
manufaturava seus instrumentos, desenvolvendo
a capacidade de dar uma forma mais anatômica
aos seus artefatos e até ensaiar um tratamento estético. Era o Homo faber. Até se pode dizer que
aí já se plantavam as primeiras sementes da tecnologia, como hoje a entendemos. Ainda não há,
nesse período, indícios de atividades de caráter
religioso, além da existência das sepulturas, porém, são dados os primeiros passos para a complexificação da sociedade e da linguagem, culminando no surgimento do Homo sapiens, que aparece há aproximadamente cem mil anos. Para a
sobrevivência de uma sociedade tão complexa,
são criadas as regras de controle social e os interditos. Com o objetivo de que esses últimos fossem gravados de maneira indelével nas mentes
dos indivíduos, entraram aos poucos em cena os
mitos, os espíritos e os deuses, que, por sua vez,
acumulavam as funções de provedores de meios
de sobrevivência e de proteção. Isso, no entanto,
não substituiu a técnica, mas representou um reforço a ela. Edgar Morin afirma que “mito, rito,
magia rematam a integração interna da sociedade,
envolvendo, precedendo, acompanhando as atividades práticas, as operações de funcionamento,
assim como o ciclo da vida individual, da nascença até a morte. Longe de eliminar os modos técnicos ou de se fazer eliminar por eles, os modos
mágicos completam-nos e protegem-nos”.11
Assim, a sociedade pré-histórica desenvolveu-se por meio do aprimoramento de uma nascente tecnologia e da criação de elementos de
onde surgem as grandes religiões. Da interação
desses elementos nasce essa complexa rede de
mediações a que chamamos de cultura.
11

MORIN, 1997, p. 163.

51
001922_Impulso_34.book Page 52 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM

Portanto, separar a religião e a tecnologia
em compartimentos fechados, dando-lhes caminhos opostos e estabelecendo uma hierarquização, é uma forma equivocada de pensar a cultura
e o próprio ser humano. Religião e tecnologia são
construções autônomas, é verdade, mas guardam
entre si mais semelhanças que diferenças, no contexto do desenvolvimento da humanidade. Uma
não fere a outra, nem se deixa pela outra ferir. Ao
contrário, ambas se reforçam, ou seja, contribuem
para um desenvolvimento mútuo. Cada uma
pode atuar exercendo uma forma de controle sobre as tendências de excesso da outra, restabelecendo-se o equilíbrio, sem o qual corremos reais
riscos de extinção como espécie.
Até mesmo quando fica em evidência o
lado cruel que ambas possuem, elas se complementam. Quando a religião assume a forma de
fanatismo, vale-se da tecnologia para a destruição

nas chamadas guerras religiosas e já foi até utilizada na criação dos instrumentos de torturas dos
inquisidores. E quantas vezes, por outro lado, a
tecnologia bélica, para se manifestar em seu poderio a serviço de conquistadores ou de déspotas,
tem necessitado dos argumentos oriundos da religião para a legitimação de uma hostilidade! Em
tempos normais, no entanto, a religião precisa da
tecnologia que lhe constrói os meios, como templos, instrumentos musicais, utensílios sagrados
etc., para sua atuação e comunicação no mundo
moderno. Por sua vez, a tecnologia precisa da religião, de cujo mundo mágico se alimenta, para
manter sobre nós seu carisma e sua fascinação.
Ambas têm estado igualmente presentes nos
mais decisivos momentos da vida humana e contribuído juntas, dialeticamente integradas, para o
encantamento dos seres humanos em relação à
vida e ao cosmo.

Referências Bibliográficas
ALVES, R. O Que é Religião. São Paulo: Brasiliense, 1983.
ANJOS, A. dos. Eu. São Paulo: Abril, 1982. (Literatura Comentada).
BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BAUDRILLARD, J. Da Sedução. Campinas: Papirus, 1992.
CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Atena, 1992.
HELLERS, V.; NOTAKER, H.; GAARDER, J. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MORIN, E. O Paradigma Perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1997.
PESSOA, F. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
______. O Livro do Desassossego. Lisboa: Europa-América, s/d.

Dados do autor
Teólogo, músico e poeta; mestre e doutor em
educação pela Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP), onde é compositor musical
no Núcleo Universitário de Cultura e professor na
Faculdade de Ciências da Religião.

Recebimento artigo: 31/mar./03
Consultoria: 1.º/abr./03 a 16/abr./03
Aprovado: 12/maio/03

52

Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003

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Religião e Tecnologia; Religion and technology

  • 1. 001922_Impulso_34.book Page 41 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Religião e Tecnologia RELIGION AND TECHNOLOGY Resumo Em certos círculos acadêmicos, desenvolveu-se a idéia da obsolescência da religião em face do avanço extraordinário e inexorável da tecnologia. Por essa razão, ainda se atribui uma superioridade à tecnologia em comparação à religião. No entanto, ambas são fatores igualmente determinantes no processo da evolução cultural do ser humano. Tanto uma quanto a outra atuam na natureza humana, insuflando os desejos que constroem nossa história e nosso cotidiano. Estão ligadas uma à outra por laços mais estreitos do que costumamos imaginar. Embora sejam construções autônomas, guardam entre si relações que vão desde o estabelecimento das primeiras condições fundamentais de vida da espécie à criação dos mitos que permeiam nosso imaginário ainda nos dias de hoje. Além disso, ambas atuam nas pessoas, inspirando o desejo de transcendência, conjugação, descoberta sobre o mistério, prazer e sedução. Palavras-chave TECNOLOGIA – RELIGIÃO – TRANSCENDÊNCIA – CONSCIÊNCIA – SER HUMANO – DEUSES. Abstract The obsolescence of religion in the face of technology progress is an idea developed around some academic circles. For that reason, to technology is attributed a great superiority over religion. However, both technology and religion have been decisive agents on the human being’s process of cultural evolution. They both operate in the human nature exciting those desires that daily build our history and life. They are attached to each other through ties that are closer than we usually imagine. Although they are independent cultural constructions, they keep between themselves some relationships that extend from the establishment of the first basic life conditions to the creation of myths which permeate our imaginary world. Moreover, they both act on the human being awakening the desires of transcendence, union, the discovery of mystery, pleasure, and seduction. Keywords TECHNOLOGY – RELIGION – TRANSCENDENCE – CONSCIENCE – HUMAN BEING – GODS. Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 41 NABOR NUNES FILHO Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP, Brasil) nanfilho@unimep.br
  • 2. 001922_Impulso_34.book Page 42 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM C omo nasceram e se desenvolveram a religião e a tecnologia? Haverá alguma precedência de uma em relação à outra? São antagônicas entre si? A irrupção do racionalismo na modernidade contribuiu para que herdássemos uma visão bipartida a respeito das coisas que nos cercam. A oposição cartesiana entre a razão, res cogitans, e o corpo, res extensa, trouxe à reflexão sobre a realidade uma exacerbação do dualismo inaugurado por Platão e corroborado pela teologia cristã, tornando difícil uma análise do mundo sem dividi-lo em pares de opostos excludentes: bem e mal, certo e errado, vida e morte etc. Diante disso, desenvolve-se uma visão da realidade segundo a qual tudo gira em torno de eixos contrários e inconciliáveis. Tal visão é transportada do universo do pensamento ao contexto das ações e atitudes do cotidiano, e até das decisões políticas em nível internacional. Ainda hoje, em algumas rodas de cientistas e pensadores, a religião e a ciência são consideradas forças essencialmente antagônicas. Não deixando por menos, o positivismo de Augusto Comte, no século XIX, valendo-se de sua hierarquização dos três estados evolutivos do conhecimento, preconizou a derrocada do estado religioso, substituído pelo estado positivo. Inaugura-se, dessa forma, a concepção de superioridade da tecnologia (atributo do último estado) sobre a religião, situação ainda firmemente sustentada por alguns cientistas e duramente atacada por religiosos que apregoam o inverso. O propósito do presente texto é mostrar que, conquanto estejam em lados diversos e empreguem diferentes métodos, religião e tecnologia são partes integrantes do desenvolvimento humano como elementos essenciais, indispensáveis e complementares da nossa aventura histórica. O PASSAPORTE PARA A TRANSCENDÊNCIA Uma das marcas dos seres humanos, talvez a razão intrínseca de sua peculiaridade, é o que se pode chamar de transcendência. Trata-se da capacidade de ir além dos limites estabelecidos e impostos. A sobrevivência da espécie humana deve-se à sua capacidade de transcender as fronteiras da realidade perceptível. Essa transcendência manifesta-se em vários aspectos da aventura humana. A primeira estrofe do poema de Augusto dos Anjos, intitulado “Eu”, pode nos ajudar a refletir sobre esses aspectos. Sou uma sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras... Polipo de recônditas reentrâncias, Larva do caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias.1 1 ANJOS, 1982, p. 12. 42 Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
  • 3. 001922_Impulso_34.book Page 43 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Sem fazer uso da palavra, o poeta vale-se de uma afirmação eloqüente dessa transcendência humana sob, pelo menos, três aspectos. O primeiro é o espacial. Nós não ocupamos os espaços senão em razão de espaços transcendentes a eles. Em outras palavras, os motivos de estarmos em determinado lugar são resultado da nossa necessidade de ocupar um espaço situado sempre além daquele ocupado. Não desejamos estar apenas em um determinado lugar, mas em outros, ao mesmo tempo. Nossos espaços reais são, via de regra, menores do que os queremos. Com a expressão Do cosmopolitismo das moneras, o poeta sugere que são muitos nossos lugares de origem e dos nossos desejos de estar. Na realidade, nós nascemos e renascemos em muitos lugares, ou seja, em cada lugar em que, por exemplo, estivemos com alguém, quer na presença, quer na espera, quer na lembrança. Dessa forma constata-se a grandeza da vida humana, no fato de penetrarmos e permanecermos em muitos e diferentes lugares, e de a eles passarmos a pertencer. Nossa vida não se deixa caber dentro de quaisquer limites geográficos. Nosso coração está atado, como por uma espécie de fio elástico, a muitas cidades, ruas, praças, bosques e jardins pelos quais transitaram nossos desejos, e em que foram vividos momentos de grande significação. Nosso mundo é do tamanho desse elástico, que se alonga indefinidamente sem jamais partir-se. O segundo aspecto dessa transcendência é o cronológico. Nosso tempo não é o agora. O instante que estamos passando, ou que está passando por nós, não nos contém. Ele depende do que vivemos em instantes anteriores e do que projetamos para os vindouros, próximos ou distantes. Podemos até dizer que o instante que passa é uma síntese de todos os instantes, passados e futuros. Na verdade, o tempo presente é uma ilusão. A luz do sol que ilumina o ambiente onde trabalho é de dez minutos atrás. Hoje se descobre a existência de corpos celestes com um atraso de milhões de anos. Isso também se dá nas dimensões menores. Há um ínfimo lapso de tempo até que eu consiga enxergar aquela foto na minha parede. Nosso hoje é um tempo passado, e não Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 apenas no aspecto físico, mas no seu contexto pessoal. Escrevo agora este texto porque decidi fazê-lo antes desse momento, que passa a ser a cumulação de um passado próximo. Portanto, o meu instante não é o agora, mas o de há pouco até agora. Por sua vez, tudo o que fazemos desse presente é transformá-lo numa plataforma para outros tempos que virão. O que nos move em nosso hoje é sempre um hoje que ainda não aconteceu. Há também o aspecto histórico da transcendência. Não somos produtos desse momento histórico que passa. Venho de outras eras, ou seja, o que sou é um resultado do que foi se formando ao longo dos muitos séculos da história humana, e até da pré-história. Sou a cumulação de processos há muitos séculos iniciados. O que vivo hoje foi criado antes de mim. Isso não só do ponto de vista de uma evolução natural, como ocorre com os demais seres vivos, mas mediante o complexo processo a que chamamos de história. Ao lado das injunções de caráter biológico que a espécie humana sofreu igualmente com os outros organismos, ela mesma produziu, por seus próprios atributos, um conjunto de transformações de natureza mais complexa que, a cada era e em cada diferente lugar, foram aos poucos plasmando o que somos hoje. Isso também, não apenas do ponto de vista do passado. A história não é somente o registro do que foi, mas é a projeção do que será, mediante a análise do que foi e do que está sendo. Ela também se precipita no futuro, embora nem sempre assim seja entendida. O valor da história reside na sua capacidade de nos fornecer dados para nossos posicionamentos hoje e nossa preparação para o que virá amanhã. A religião e a tecnologia são instrumentos dessa transcendência. Elas surgem no contexto da humanidade para atender aos anseios dos seres humanos de verem ultrapassadas as condições impostas pela natureza. Enquanto a máquina nos torna mais rápidos e fortes do que fisicamente somos, transcendendo, dessa forma, os limites que a natureza nos instituiu, a fé religiosa nos transporta para universos mágicos onde as lógi- 43
  • 4. 001922_Impulso_34.book Page 44 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM cas e as leis naturais são transpostas. Ambas proporcionam ao ser humano, cada uma ao seu próprio modo e dentro de suas peculiaridades, o mergulho nas realidades incomensuráveis do universo. Assim, por meio de sofisticados telescópios, a tecnologia nos permite hoje penetrar os segredos das galáxias, em busca da revelação dos mistérios do cosmo. Enquanto isso, a religião, através de mitos e rituais, procura trazer esses mistérios para dentro de nós, a ponto de fazê-los parecer estar sempre ao nosso alcance. A observação dos céus nos permite entrar em contato direto com o passado até de milhões de anos, ao mesmo tempo em que faz precisas previsões de futuros fenômenos estelares, enquanto pela religião redescobrimos as influências de nossos ancestrais e projetamos o tempo da vida para depois da vida. A DIMENSÃO HUMANA A espécie humana surgiu no cenário do planeta, estimam os estudiosos, há cerca de quatro milhões de anos. Durante todo esse tempo desenvolveu-se o processo complexo a que se chamou de hominização. As mais atualizadas teorias dão conta de que essa hominização se deu a partir da era terciária, com a crescente diminuição das áreas florestais, onde os primatas dividiam e competiam entre si os cada vez menores recursos das árvores. Aos poucos, as savanas foram engolindo as florestas, obrigando alguns desses primatas a se aventurar nas planícies emergentes. Ao descerem das árvores, entretanto, esses primeiros hominídeos passaram a enfrentar problemas vários, entre os quais, a escassez de alimentos e a ameaça de poderosos predadores. É dessa época que datam os primeiros vestígios do Homo faber, há aproximadamente um milhão de anos. Há cerca de oitocentos mil anos, os hominídeos dominaram o fogo. Nascem, assim, os primeiros indícios de uma tecnologia rudimentar, representada pela confecção e manipulação de utensílios e instrumentos de caça. A crescente utilização das mãos proporcionou um menor esforço nas mandíbulas, de modo a redesenhar as configurações do crânio, abrindo espaço para a expansão da massa cerebral. Destarte, durante 44 todo esse processo de hominização, foi emergindo uma função complexa denominada consciência. Nos últimos cem mil anos, o ser humano dominaria os metais e, nos últimos dez mil, esboçam-se as primeiras manifestações da escrita organizada e, conseqüentemente, da cultura. A formação da consciência atinge um nível próximo do que temos hoje. Há, no entanto, uma dimensão da consciência que talvez não possa ser detectada pelos métodos científicos. O desenvolvimento da cultura deve-se a dois elementos fundamentais de que a consciência dotou os hominídeos. O primeiro refere-se à descoberta de sua fragilidade, face aos novos desafios do mundo ao redor, e o segundo, à recusa a aceitar essa fragilidade. Albert Camus afirma que “o homem é a única criatura que se recusa a ser o que ela é”.2 Imaginemos uma cena, que pode ter durado algumas dezenas, e até centenas, de milhares de anos, em que um dos nossos ancestrais precisa remover uma pedra que bloqueia a entrada de uma caverna. Ele usa seu corpo e toda sua força muscular em vão. Descobre, então, que é frágil. Porém, não desiste e põese a observar o problema de outra maneira. Tempos depois, percebe que há nas imediações uma pedra menor e um tronco de árvore caído. De repente (esse de repente pode ter durado alguns séculos), surge-lhe uma idéia: coloca a pedra menor mais próxima da maior, enfia uma das extremidades do tronco ao pé desta e, usando como base a menor, faz um movimento para baixo, pressionando a outra extremidade do tronco. Aos poucos, a pedra maior vai se movendo, até ser totalmente removida da entrada da caverna. Assim surgiu, de acordo com essa imagem, a alavanca que, nesse contexto, representa a tecnologia. Ninguém sabe se foi exatamente dessa maneira que aconteceu, porém, poderia ter sido. Também sabemos que Ícaro não foi um personagem historicamente verídico, mas sua estória é uma excelente metáfora do surgimento dos artefatos voadores. 2 ALVES, 1983, p. 14. Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
  • 5. 001922_Impulso_34.book Page 45 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Vemos aí, em ação, dois momentos fundamentais da consciência. O primeiro é a constatação da fragilidade: o indivíduo humano não pode mover a pedra, nem alçar vôo, usando seus próprios recursos físicos. O segundo é a recusa: ele não aceita ser frágil, nem ser condenado ao aprisionamento sobre a Terra, e cria os mecanismos para superar seus limites. Mas o processo da consciência não se limita ao contexto do universo biofísico. Ela abrange o universo existencial por meio de uma constatação mais preocupante, ligada à contingência extrema da morte. O ser humano sabe que vai morrer. Ocorre que ele se recusa também a se submeter a mais essa contingência. Precisa resolver mais esse problema e cria as diversas soluções vinculadas à perspectiva da imortalidade. O poeta Fernando Pessoa se expressa de uma maneira eloqüente quando afirma: “Todos nós sabemos que morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito com as entranhas, que repudia”.3 Nasce, assim, a religião, que é um conjunto de mediações culturais destinadas a ajudar o gênero humano a lidar com a morte e a encontrar uma expressão para sua recusa a morrer. Todos os povos e civilizações que se desenvolveram, na história oficial ou fora dela, organizaram sua vida social e política, sua economia, sua ética de acordo com alguma perspectiva de imortalidade. Diante disso, podemos afirmar que a religião e a tecnologia possuem uma origem comum, ou seja, o desenvolvimento da consciência humana. É significativo o fato de os arqueólogos descobrirem que os mais antigos indícios de utensílios e instrumentos de caça encontrados são do mesmo período dos vestígios de sepulturas. A construção de sepultura denuncia a existência de alguma maneira pela qual uma comunidade lida com a morte. Desde então, tanto a religião como a tecnologia têm contribuído de forma eqüitativa no desenvolvimento cultural da espécie humana até os nossos dias. Não é possível privilegiar uma em detrimento da outra sem correr o risco de cometer sérios equívocos conceituais. E nem se pode dizer que elas surgiram dentro de um contexto de franca oposição, como até pretendem alguns, porém, numa situação de complexa interação. 3 4 PESSOA, 1986, p. 179. Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 O ASPECTO MÍSTICO DA TECNOLOGIA Não há aqui nenhuma intenção de transformar a tecnologia em categoria religiosa. No entanto, queremos mostrar alguns componentes místicos que a cercam. Ordinariamente, se tem pensado que a experiência mística é privilégio de alguns escolhidos e acontece tão somente através da linguagem religiosa. De acordo com Victor Hellen, Henry Notaker e Jostein Gaarder, “a experiência mística pode ser caracterizada, resumidamente, como uma sensação direta de ser um só com Deus ou com o espírito do universo. (...) O místico experimenta, pelo menos por instantes, a sensação de ser indivisível de um eu maior – não importando que ele dê a isso o nome de Deus, espírito universal, o eu, o vazio, o universo ou qualquer outra coisa”.4 Segundo essa visão, a experiência mística não está necessariamente ligada a alguma divindade formalmente estabelecida, mas configura-se numa relação de intimidade com algo ou alguém com quem a pessoa se sente uma. Assim, descobrir a beleza de um pôr-do-sol e sentindo-se parte desse fenômeno, e ele parte de nosso mundo, é um momento de êxtase místico. Uma certa lenda conta que um monge saiu para dar uma volta fora dos limites do mosteiro e, havendo se assentado num banco de jardim, pôs-se a contemplar atentamente a cena de um passarinho cantando num galho de árvore próximo. Passado algum tempo, ele retornou ao mosteiro, mas percebeu que o porteiro era desconhecido e não o reconheceu. Apresentou-se declinando seu nome, mas este não constava no livro oficial da portaria da instituição. Após muito se procurar, devido à sua natural insistência, finalmente seu nome veio a HELLERS; NOTAKER; GAARDER, 2000, p. 33-34. 45
  • 6. 001922_Impulso_34.book Page 46 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM ser descoberto num livro muito antigo e empoeirado. Havia trezentos anos que ele saíra para dar um simples passeio. Essa estória nos faz pensar na singular experiência dos místicos. Mas e a tecnologia? Ela é capaz de facultar esse tipo de experiência? Numa entrevista recente, o ex-piloto de Fórmula Um, Émerson Fittipaldi, afirmava algo dessa possibilidade ao dizer que, às vezes, sentia-se como se ele e o seu automóvel fossem uma só pessoa. É bem verdade que a máquina em si mesma não é nenhum deus. No entanto, ela possui esse atributo de comunhão com o ser humano. Os seres humanos criaram a máquina como Deus criou os seres humanos, ambos com a finalidade de manter uma comunhão com sua respectiva criação. Além disso, a máquina nos ajuda a nos aproximarmos dos deuses. Uma das razões disso é que a máquina está muito ligada aos mitos. Joseph Campbell afirma: os automóveis adentraram a mitologia. Adentraram os sonhos. E as aeronaves estão a serviço da imaginação. O vôo da aeronave, por exemplo, atua na imaginação como libertação da terra. É a mesma coisa que os pássaros simbolizam, de certo modo. O pássaro é um símbolo da libertação em relação ao aprisionamento à terra, assim como a serpente simboliza o aprisionamento à terra. A aeronave desempenha esse papel hoje.5 namento da máquina, porém, se o dono dela surpreender o seu autor, será capaz de ir com ele às vias de fato. Por outro lado, é impossível não sentir a emoção que a velocidade cria em nosso sistema nervoso ao pilotar um veículo possante e dos mais velozes. Uma das causas prováveis de acidentes automobilísticos pode ser a entrega total da pessoa a essa emoção, uma espécie de êxtase ao volante. A relação homem/máquina é capaz até de produzir sentimentos, como, por exemplo, o ciúme, e até a saudade. Não seria essa situação uma espécie de ensaio a uma experiência mística? Além da dimensão detectada pelos nossos sentidos e os instrumentos tecnológicos mais sofisticados, existe uma espécie de mundo diferente, movido por leis absurdas que contrariam as regras impostas pela experiência quotidiana. Refere-se isso ao mundo da magia. É nesse universo mágico que existem lugares e acontecem fatos fantásticos, como milagres, paraísos, infernos, encarnações, nascimentos virginais etc., e onde habitam seres maravilhosos, como mitos, deuses, demônios, fadas, bruxas etc. Esse mundo dos sonhos e mistérios existe. Sua existência, porém, possui natureza diferente da dos elementos detectáveis pelos sentidos e pelo método científico. É uma existência extrafísica, que se manifesta na dimensão do imaginário, coletivo ou individual, e tem origem na nossa capacidade de sonhar. Segundo Gaston Bachelard, Talvez não seja por acaso que os autódromos fiquem lotados e que os mezaninos dos aeroportos sejam os seus lugares mais freqüentados, pois, em ambos os espaços, as pessoas buscam ao menos testemunhar uma experiência mística, ou algo próximo a ela. A máquina oferece ao homem essa chance de comunhão com algo além de si mesmo, pois atua como uma espécie de extensão do nosso corpo. Talvez também não seja por acaso que o proprietário de um automóvel, de tão ligado ao seu veículo, perturbe-se ao perceber um leve arranhão em sua pintura. Ora, esse leve risco não interfere em nada no funcio- antes da cultura o mundo sonhou muito. Os mitos saíam da terra, abriam a Terra para que, com o olho dos seus lagos, ela contemplasse o céu. Um destino de alturas subia dos abismos. Os mitos encontravam assim, imediatamente, vozes de homem, a voz do homem que sonha o mundo dos seus sonhos. O homem exprimia a terra, o céu, as águas. O homem era a palavra desse macroântropos que é o corpo monstruoso da terra. Nos devaneios cósmicos primitivos, o mundo é corpo humano, olhar humano, sopro humano, voz humana.6 5 CAMPBELL, 1992, p. 19. 46 6 BACHELARD, 1996, p. 180. Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
  • 7. 001922_Impulso_34.book Page 47 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM A tecnologia também está ligada a esse universo mágico. Primeiramente, porque constrói os meios para o adentrarmos. O cinema, por meio dos efeitos tecnológicos especiais, pode abrir o Mar Vermelho de forma visível e incontestável para todos os olhos, afundar várias vezes o Titanic e fazer o Superman voar a incríveis velocidades. Tudo isso é fruto da tecnologia aliada à imaginação humana. Através do computador podese hoje navegar pelo imenso mundo da virtualidade, o chamado ciberespaço. Aliás, falando sobre o interior de um computador, Joseph Campbell assim se expressa: “É um milagre o que acontece naquela tela? Você já examinou por dentro uma dessas coisas? Não dá para acreditar. É toda uma hierarquia de anjos... todos sobre as placas. E aqueles pequenos tubos – aquilo são milagres”.7 Em segundo lugar, a máquina abre as perspectivas dos milagres que os seres humanos modernos esperam. Esses milagres estão, em geral, vinculados ao fenômeno da velocidade. Um jato supersônico, um carro de corrida, uma nave espacial são bons exemplos disso. Eles permitem à pessoa humana a proeza de quase manipular o tempo e o espaço, transformando-os em elementos dóceis aos seus comandos. Provavelmente não cheguemos jamais a ponto de esse controle ser total, uma vez que, para isso acontecer, teríamos de atingir a velocidade da luz. Ocorre que todos sabemos que chegaremos a velocidades cada vez maiores que a do som. Isso porque a tecnologia não pode prescindir da capacidade humana de sonhar, que é, em suma, a mesma causa e efeito dos milagres. Não está sendo aqui afirmado que a tecnologia faz milagres, mas apenas que ela abre as possibilidades para experimentar a sua influência, ao menos no desejo das pessoas, o que é, sem dúvida, algo grandioso. Não é um milagre voar à velocidade do som, ou falar com alguém que está do outro lado do mundo através de um aparelho celular. O milagre reside no desejo de que isso pudesse vir acontecer. Milagre pode ser entendido como uma ruptura momentânea das leis físicas e biológicas, provocada por forças extranaturais e mediante a vontade soberana de um ser sobrenatural. Assim, são milagres o andar por sobre as águas, a ressurreição de um morto, a multiplicação de pães etc. No vôo de um supersônico não está presente uma força sobrenatural, nem a vontade soberana de um deus. Além do mais, não se pode dizer que exista aí uma ruptura dos processos da natureza, porém, uma utilização diferenciada e complexificada das próprias leis naturais. Todavia, a máquina mexe com a área sensível da natureza humana, suscitando emoções e expectativas bem próximas da dimensão do milagre. Está claro que tecnologia não produz os milagres. Entretanto, ela é capaz de fazer emergir, de dentro da subjetividade humana, o desejo, que é a principal fonte dos milagres. Também a religião não os opera, mas atua na vida humana de maneira idêntica. Ambas influem na nossa vida, provocando desejos de que a realidade seja ao menos diferente. 7 8 Ibid., p. 21. Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 CONTATO COM O SAGRADO Campbell faz alusão a uma anedota envolvendo um ex-presidente norte-americano. “Eisenhower entrou numa sala repleta de computadores e propôs às máquinas a seguinte questão: existe um Deus? Todas começam a funcionar, luzes se acendem, carretéis giram e após algum tempo uma diz: Agora existe”.8 Talvez seja essa uma maneira bem-humorada de falar sobre tal proximidade com o sagrado que a máquina nos proporciona, ou seja, a intimidade da tecnologia com as divindades. Os seres humanos são criadores de deuses, que são criadores de seres humanos, que são criadores de deuses, formando, assim, um fantástico ciclo vicioso que não se fecha e nem possui um começo definido. Não se pode dizer quem criou quem primeiro. Assim, os seres humanos têm necessidade de serem criados para criar, e os deuses, necessidade de criar para serem criados e vice-versa. Essa é a fórmula dialética que enconCAMPBELL, 1992, p. 20. 47
  • 8. 001922_Impulso_34.book Page 48 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM tramos para expressar a relação entre o humano e o divino. Nessa relação, porém, existem fronteiras bem claras, limites estabelecidos: o ser humano não pode ser deus e o deus não pode ser humano. Somente o cristianismo é que quebrou esse segundo princípio, por meio da teologia da encarnação do Verbo de Deus. Embora essa teologia represente uma espécie de ruptura com o paradigma religioso, o cristianismo ainda preserva, inclusive na sua prática litúrgica, a consciência dessa separação. Além do mais, a encarnação só se manifesta numa única direção, ou seja, a humanização de Deus, porém, não a divinização do homem. Essa fronteira foi um dia estabelecida e as várias tradições religiosas desenvolveram suas representações míticas para explicar como isso aconteceu. A tradição judaica conta a estória da quebra de um interdito divino de não se comer do fruto que representava o conhecimento do Bem e do Mal. O resultado foi a expulsão do jardim e a separação total entre a criatura humana e Deus. Ocorre que, em virtude de uma necessidade mútua, há uma tentativa de religação. Essa religação só é possível em face da separação em que ambas as partes buscam sinais da presença da outra. Dessa forma, os deuses revelam-se de várias maneiras e os seres humanos respondem de maneiras várias e vice-versa. No entanto, tudo o que podem conseguir é chegar o mais perto possível da linha divisória, sem jamais atingi-la, menos ainda ultrapassá-la. Assim, os seres humanos criaram os mais variados meios para chegar perto da fronteira. Entre eles estão os rituais religiosos, mas não só. Há também os meios criados e desenvolvidos pela tecnologia. Entramos numa sala de projeções cinematográficas ou ligamos o aparelho de televisão e vemos, nas respectivas telas, imagens de pessoas comuns em variadas situações. Mas essas pessoas deixam de ser comuns pelo fato de parecerem estar em muitos lugares ao mesmo tempo. A tecnologia é capaz de transformá-las em quase deuses, conferindo-lhes até o atributo da onipresença. Talvez seja por essa razão que milhares de pessoas procuram ver, tocar, abraçar as estrelas e os 48 astros da TV e do cinema, como se estivessem tocando e abraçando o próprio Deus, ou alguns dos seus anjos. Essas estrelas e esses astros, embora não se confundindo com deuses, são posicionados, pelos meios tecnológicos, numa zona mais próxima da fronteira. São como sacerdotes que quase chegaram lá. Nosso alvo, no entanto, não é apenas chegar perto. É a ultrapassagem, a invasão dos espaços do segredo – sagrado, secreto, sacro – dos deuses o que desejamos. Por pretender ultrapassar é que chegamos perto. Essa proximidade é perigosa, mas traz momentos de extrema emoção. Tratando-se ainda da velocidade, podemos dizer que não é apenas com a finalidade de chegar mais cedo ao trabalho ou em casa que se pesquisa e se investe em projetos de veículos mais rápidos. O objetivo é atingir o limite que faz a diferença entre ser humano e ser divino. Daí, provavelmente, vem a grande admiração popular pelos pilotos de corrida. Eles chegam mais perto desses limites. E, falando em tecnologia, não podemos omitir os programas de exploração espacial, mediante os quais essa aproximação toma uma forma mais fascinante. Os astronautas passam a ser os sacerdotes de uma nova investida em busca das novas dimensões do mistério, ou seja, os espaços da divindade, quer para confirmá-la quer mesmo para negá-la. É significativo o fato de os chamados filmes de ficção científica carregarem uma forte dose de misticismo. O clássico de Stanley Kubrick, 2001: uma odisséia no espaço, é um bom exemplo disso. Em várias ocasiões do filme está presente um objeto misterioso, uma espécie de paralelepípedo metálico. Sua primeira aparição se dá diante dos primatas que, ao descobrirem-no numa certa manhã, dele se aproximam hesitantes e excitados, chegando até a tocá-lo. Segue-se a isso a cena prodigiosa que retrata o despertar da consciência. Em outra ocasião, esse mesmo objeto causa uma série de transtornos numa base estabelecida num planeta próximo, suscitando a necessidade de uma investigação. Quando a expedição chega ao local, e se posiciona para uma foto diante da coisa desconhecida, seus membros são mortos, vitimados por um som tenebroso. No final do filme, o Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
  • 9. 001922_Impulso_34.book Page 49 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM mesmo objeto está numa sala diante do leito de um bebê, espécie de mutante de um ancião. Há nesse filme, e em outros, uma nítida intenção de mostrar a tecnologia como um instrumento de aproximação com o sagrado. A religião cumpre sua função, nesse sentido, através dos diversos gestos e ritos que cada cultura desenvolve. A dança, a oração, os sacrifícios, as oferendas etc. são formas de uma espécie de conspiração que representam caminhos e movimentos também em busca da invasão do espaço sagrado. Ocorre, porém, que o religioso pretende, na realidade, que o sagrado o invada de volta. Seus objetivos estão mais vinculados a uma necessidade de ser tomado, possuído, atingido pelo sagrado, do que somente atingi-lo. Ora-se, dança-se, oferecem-se sacrifícios etc. para aplacar, ou até despertar a nosso favor, a fúria dos deuses. Na primeira hipótese, dizemo-lhes que nos deixem em paz e, na segunda, que nos perturbem. Em ambas, está também clara a necessidade divina de invadir e ser invadido. mundo. Precisam ser salientadas, nesse conceito, pelo menos três implicações do jogo. A primeira diz respeito ao aspecto do convite. Convite é algo que pode ser ou não aceito. Não se trata de uma imposição ou qualquer forma de chantagem, como freqüentemente acontece nas estratégias burguesas de persuasão. A pessoa verdadeiramente sedutora é capaz de lidar com a possibilidade concreta de sua sedução não resultar em sucesso. Seduzir não é reivindicar ou exigir alguma coisa. Pelo contrário, a sedução é uma promessa de dádiva de um objeto para cuja fruição se faz o convite. Porém, o que é oferecido não pertence ao universo físico, mas ao universo simbólico. A segunda implicação é que o jogo da sedução pressupõe a absoluta igualdade de condições entre os parceiros. No processo de sedução não se concebem as idéias da dominação e da submissão. A sutileza desse jogo consiste em que jamais se pode saber quem é que seduz ou quem é o seduzido. Não é possível saber de onde surgiu a iniciativa desse convite. Nesse sentido, Jean Baudrillard nos dá uma significativa contribuição: SEDUÇÃO É nesse contexto que acontece um jogo de sedução. Queremos tentar aqui salientar o aspecto erótico da religião, como também da tecnologia. Tirante a arte, nada é mais sedutor na cultura humana do que a tecnologia e a religião. Em geral, se pensa que o jogo da sedução é um jogo apenas entre sexos diferentes. Para muitos, seduzir significa conseguir convencer alguém do outro sexo a ser seu parceiro numa conjugação genital, efêmera ou permanente. Acontece que a sedução independe da sexualidade. Ela pertence a uma ordem que desestrutura as ordens. A palavra sedução tem origem latina – se-ducere: afastar, desviar de seu caminho. Tem a ver, portanto, com uma certa dose de transgressão. Tratase do jogo mais fascinante a que somos levados pela nossa sensualidade. Seduzir é fazer certa pessoa mudar de direção, é transviar, ou seja, tirar de certo itinerário previamente determinado. Essa mudança de rumo não é feita por força de alguma ordem infligida, mas mediante um convite. Seduzir é convidar alguém a fazer parte do nosso Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 A lei da sedução é primeiro a de uma troca ritual ininterrupta, de um lance maior onde os jogos nunca são feitos, de quem seduz e de quem é seduzido e, em virtude disso, a linha divisória que definiria a vitória de um e a derrota de outro é ilegível – e não há outro limite para esse desafio ao outro de ser ainda mais seduzido ou de amar mais do que eu amo senão a morte.9 Uma terceira implicação é que a sedução pressupõe uma promessa de prazer. O mundo para o qual eu convido alguém a participar é um mundo presumivelmente fascinante, do qual vale a pena alguém especial também tomar parte. É um mundo prazeroso. Portanto, o sedutor precisa formar um lastro de prazerosidade em seu corpo, e, só assim, adquire a prerrogativa de fazer um convite a alguém para a doação de um prazer. Quando isso ocorre, não é mais necessário recorrer aos subterfúgios econômicos e sociais das chantagens, pois o próprio corpo se encarrega de 9 BAUDRILLARD, 1992, p. 29. 49
  • 10. 001922_Impulso_34.book Page 50 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM emitir os signos dessa prazerosidade e irradiá-la ao redor, tornando-se a pessoa uma pessoa atraente. É a isso que, em linguagem teológica, chama-se graça, palavra originada do termo grego káris. Assim se conhece o indivíduo carismático, ou seja, aquele em cuja presença sentimos uma onda de prazer a nos invadir. Essas três implicações se aplicam à sedução da religião e da tecnologia. Os deuses são pródigos em atrair; as máquinas igualmente. Há uma espécie de carisma no mecanismo de uma máquina que nos chama e atrai. O autor deste texto se recorda bem de sua infância, como os trens que passavam em frente à sua casa exerciam sobre ele uma fascinação até perigosa, pois ele queria se aproximar o mais possível para ver de mais perto o funcionamento das alavancas que moviam as rodas das antigas locomotivas a vapor. São fascinantes tanto a decolagem de um Boeing quanto a tela de uma televisão ou de um computador. Ao indivíduo humano primitivo devem ter causado a mesma fascinação as primeiras lanças atiradas e as primeiras gravuras nas paredes das cavernas. São convites a que participemos do seu mundo. Os deuses são igualmente fascinantes, mas, por uma razão inversa, nos seduzem porque não se revelam. Ao contrário, eles se escondem. A sedução da religião implica a fascinação pelo distante e inalcançável. Tudo o que simboliza o inacessível pode se transformar num elemento de sedução. É assim que, na Idade Média, quando os cavaleiros e guerreiros deixavam suas esposas protegidas nos famosos cintos de castidade, por ocasião de sua participação em longas campanhas, dava-se o fenômeno da sedução àquelas mulheres pelos desconhecidos trovadores. A paixão daqueles poetas pelas mulheres nobres estava vinculada à sua condição de inacessíveis. Quem sabe tenha daí nascido a prática da verdadeira sedução. E é essa a sedução cultivada pela religião ao longo de todo esse tempo, da pré-história até os dias de hoje. Além disso, está embutida, tanto na religião como na tecnologia, uma promessa de prazer. Ambas estão a serviço da prazerosidade humana. A religião aponta especialmente a perspectiva do 50 gozo eterno, mas não apenas isso. Há uma onda de prazer que invade as pessoas participantes de cerimônias religiosas, especialmente quando permeadas pelas manifestações corpóreas. Uma celebração religiosa é, portanto, a aceitação individual e coletiva de um convite dos deuses a que as pessoas participem do seu mundo de prazer. Aí, nesse momento, homem e deus são parceiros, sem nenhuma espécie de dominação ou submissão de qualquer um deles. Por sua vez, a tecnologia é igualmente um instrumento de gozo. Há sempre uma perspectiva de prazer vinculada ao uso de uma máquina. Certamente não se pode afirmar ser uma sensação dolorosa a experiência de pilotar um automóvel. Não se trata, entretanto, somente de uma sensação física, sensitiva, como a de aspirar um perfume, fazer ou receber uma carícia, ou mesmo a da experiência do orgasmo. Trata-se de um prazer que se expressa mais simbolicamente na sensação de controlar um universo complexo de mecanismos engenhosos. É prazerosa, sem dúvida, a sensação de voar em asa delta, não só pela exposição do corpo a novos estímulos sensitivos, mas também pela perspectiva de estar acima da mera condição de mortal. Há outro aspecto no jogo da sedução que não se pode omitir. Trata-se do processo de fragilização dos parceiros. Segundo Jean Baudrillard, “Seduzir é fragilizar. Seduzir é desfalecer. É através da nossa fragilidade que seduzimos, jamais por poderes ou signos fortes. É essa fragilidade que pomos em jogo na sedução, e é isso que lhe confere seu poder”.10 Não por acaso o próprio Baudrillard afirma que a sedução reside no mundo feminino. Bachelard certamente diria que a ela pertence ao componente feminino anima, que reside nas profundezas da personalidade humana e representa, contrariamente ao masculino animus, a sensibilidade, a ternura, a delicadeza. É bom observar que não se está necessariamente referindo, ao falar em masculino e feminino, ao aspecto da diferença hormonal entre macho e fêmea. Feminino retrata 10 Ibid., p. 94. Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003
  • 11. 001922_Impulso_34.book Page 51 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM uma força que atua tanto nas mulheres quanto nos homens. Expressa tudo o que diz respeito à delicadeza, à graça, à sensibilidade. Quando nos invadem as necessidades de exercer carinho e afetividade, é o lado anima que está atuando. Isto pode acontecer até aos mais arrogantes machões. Uma pessoa que se permite ser seduzida é porque se deixou domar pela anima. Esse é um dos grandes receios do ser humano nos dias de hoje, o de ser seduzido, porque a sedução implica evidenciar a fragilidade tanto do sedutor quanto do seduzido. Permitir ser seduzido ou permitir-se seduzir é um exercício penoso a homens e mulheres hodiernos, em geral movidos pelo animus, que se consideram sérios e apostam no poder e na força. Seduzir e ser seduzido significa depor as armas. Os heróis clássicos sempre se entregam, fragilizados, aos braços de suas amadas. E esse é outro efeito da religião e da tecnologia: elas nos fragilizam, desarmam nossas defesas e nos preparam para a grande entrega. Não é possível não se sentir fragilizado quando da contemplação de um fruto da tecnologia, como um moderno transatlântico ou um computador. Ocorre, por outro lado, que a máquina possui suas limitações. Embora se apresente com uma manifestação de poder e infalibilidade, elas também falham. Seus mecanismos, para funcionar a contento, precisam de cuidados meticulosos que se efetuam em escalas milimétricas. Elas precisam do carinho cuidadoso dos humanos, que, às vezes, as tratam como se fossem crianças indefesas ou amantes carentes. Por sua vez, os deuses só podem ser alcançados pelo caminho da fragilização da pessoa humana. Mas eles também são frágeis. Possuem sentimentos e emoções. Na tradição cristã, temos um deus que se torna homem e chora, entregue totalmente à gama de sentimentos que compõem a fragilidade humana. É bem verdade que eles são poderosos e, muitas vezes, destruidores. No entanto, apresentam também um quadro de carência de afetividade, de ternura, de atenção especial. É aqui, em essência, que tanto as máquinas como os deuses são realmente sedutores. Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003 CONCLUINDO Como é sabido, os primeiros hominídeos, há cerca de três milhões de anos, já manejavam alguns objetos, como ossos de grandes animais, pedaços de troncos de árvores caídas, pedras etc. como instrumentos de defesa e ataque. Era o Homo habilis. Não se pode afirmar que já houvesse uma tecnologia. Mais tarde, aproximadamente um milhão e meio de anos, o Homo habilis manufaturava seus instrumentos, desenvolvendo a capacidade de dar uma forma mais anatômica aos seus artefatos e até ensaiar um tratamento estético. Era o Homo faber. Até se pode dizer que aí já se plantavam as primeiras sementes da tecnologia, como hoje a entendemos. Ainda não há, nesse período, indícios de atividades de caráter religioso, além da existência das sepulturas, porém, são dados os primeiros passos para a complexificação da sociedade e da linguagem, culminando no surgimento do Homo sapiens, que aparece há aproximadamente cem mil anos. Para a sobrevivência de uma sociedade tão complexa, são criadas as regras de controle social e os interditos. Com o objetivo de que esses últimos fossem gravados de maneira indelével nas mentes dos indivíduos, entraram aos poucos em cena os mitos, os espíritos e os deuses, que, por sua vez, acumulavam as funções de provedores de meios de sobrevivência e de proteção. Isso, no entanto, não substituiu a técnica, mas representou um reforço a ela. Edgar Morin afirma que “mito, rito, magia rematam a integração interna da sociedade, envolvendo, precedendo, acompanhando as atividades práticas, as operações de funcionamento, assim como o ciclo da vida individual, da nascença até a morte. Longe de eliminar os modos técnicos ou de se fazer eliminar por eles, os modos mágicos completam-nos e protegem-nos”.11 Assim, a sociedade pré-histórica desenvolveu-se por meio do aprimoramento de uma nascente tecnologia e da criação de elementos de onde surgem as grandes religiões. Da interação desses elementos nasce essa complexa rede de mediações a que chamamos de cultura. 11 MORIN, 1997, p. 163. 51
  • 12. 001922_Impulso_34.book Page 52 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Portanto, separar a religião e a tecnologia em compartimentos fechados, dando-lhes caminhos opostos e estabelecendo uma hierarquização, é uma forma equivocada de pensar a cultura e o próprio ser humano. Religião e tecnologia são construções autônomas, é verdade, mas guardam entre si mais semelhanças que diferenças, no contexto do desenvolvimento da humanidade. Uma não fere a outra, nem se deixa pela outra ferir. Ao contrário, ambas se reforçam, ou seja, contribuem para um desenvolvimento mútuo. Cada uma pode atuar exercendo uma forma de controle sobre as tendências de excesso da outra, restabelecendo-se o equilíbrio, sem o qual corremos reais riscos de extinção como espécie. Até mesmo quando fica em evidência o lado cruel que ambas possuem, elas se complementam. Quando a religião assume a forma de fanatismo, vale-se da tecnologia para a destruição nas chamadas guerras religiosas e já foi até utilizada na criação dos instrumentos de torturas dos inquisidores. E quantas vezes, por outro lado, a tecnologia bélica, para se manifestar em seu poderio a serviço de conquistadores ou de déspotas, tem necessitado dos argumentos oriundos da religião para a legitimação de uma hostilidade! Em tempos normais, no entanto, a religião precisa da tecnologia que lhe constrói os meios, como templos, instrumentos musicais, utensílios sagrados etc., para sua atuação e comunicação no mundo moderno. Por sua vez, a tecnologia precisa da religião, de cujo mundo mágico se alimenta, para manter sobre nós seu carisma e sua fascinação. Ambas têm estado igualmente presentes nos mais decisivos momentos da vida humana e contribuído juntas, dialeticamente integradas, para o encantamento dos seres humanos em relação à vida e ao cosmo. Referências Bibliográficas ALVES, R. O Que é Religião. São Paulo: Brasiliense, 1983. ANJOS, A. dos. Eu. São Paulo: Abril, 1982. (Literatura Comentada). BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996. BAUDRILLARD, J. Da Sedução. Campinas: Papirus, 1992. CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Atena, 1992. HELLERS, V.; NOTAKER, H.; GAARDER, J. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MORIN, E. O Paradigma Perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1997. PESSOA, F. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. ______. O Livro do Desassossego. Lisboa: Europa-América, s/d. Dados do autor Teólogo, músico e poeta; mestre e doutor em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), onde é compositor musical no Núcleo Universitário de Cultura e professor na Faculdade de Ciências da Religião. Recebimento artigo: 31/mar./03 Consultoria: 1.º/abr./03 a 16/abr./03 Aprovado: 12/maio/03 52 Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003