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Che Guevara
                                                                             A VIDA EM VERMELHO




                                   ÍNDICE
Este livro.....................................................................................
1           Morro porque não morro.............................................................
2.          Anos de amor e indiferença: Buenos Aires, Perón e Chichina....
3.        Os primeiros passos: navegar é preciso, viver não é preciso.........
4.        No fogo com Fidel .......................................................................
5.        Nosso homem em Havana ..........................................................
6.        “Cérebro da Revolução”, cria da URSS .........................................
7.        A bela morte não compensa........................................................
8.        Com Fidel, nem casamento, nem divórcio..................................
9.        O coração nas trevas de Che Guevara.........................................
                                     7
10.       Traído por quem .........................................................................
11.       Morte e ressurreição....................................................................
Notas ..........................................................................................
Agradecimentos .........................................................................
índice onomástico......................................................................




Para Jorge Andrés, que não conheceu os anos 60
mas que algum dia viverá tempos melhores




ESTE LIVRO
Uma pesquisa desta natureza requer uma grande multiplicidade de
fontes. Nenhuma delas é perfeita nem suficiente em si mesma; todas encerram enigmas, defeitos e
lacunas. Até aquelas aparentemente incontestáveis cartas, anotações ou diários do sujeito mesmo da
biografia apresentam contradições e exigem reserva. Afinal, quem é transparente consigo mesmo? E
acima de tudo, por se tratar de um tema eminentemente político, nenhuma fonte é neutra: todas
carregam a marca de seu posicionamento ideológico. O trabalho do historiador, biógrafo ou mero
escritor imbuído de curiosidade consiste em agrupá-las, cotejá-las, separar o joio do trigo e buscar
conclusões que se baseiem na soma do material, não no material preferido
ou mais acessível. Nos últimos anos, diversos estudiosos da vida de Che Guevara vêm desenterrando
material inédito, ou publicado em edições restritas de algumas de suas obras. Trata-se de fontes de
grande valor, mas não definitivas.
Neste texto, materiais de tal natureza desempenharam um papel importante
— refiro-me principalmente a suas cartas a Chichina Ferreyra, às chamadas
Actos dei Ministério de Industrias e a Pasajes de Ia guerra revolucionaria (el Con-
go) —, ao lado de outras fontes que confirmam os ditos e escritos do próprio
Che. Constituem um acervo novo e crucial para toda pesquisa contem-
porânea sobre Che Guevara.
Um segundo acervo encontra-se nos arquivos de Estado dos países
envolvidos, direta ou indiretamentè, na vida e morte do Che. Os cubanos
não têm arquivos disponíveis: ou porque não existem, ou porque não os
abrem. A única consequência disso é que a versão cubana documentada dos
fatos não se reflete em nenhum trabalho sério. Talvez algum dia Havana decida contar sua versão da
história valendo-se de seus arquivos, e não só das lembranças mais ou menos fiéis, mais ou menos
geniais, de Fidel Castro. Enquanto isso não ocorre, dispomos de outros arquivos, mais acessíveis, que
contêm um enorme volume de informação extremamente útil no presente trabalho. Esses arquivos
      pertencem a três governos: o dos Estados
      Unidos, o da ex-URSS e o do Reino Unido. Cada um deles merece um breve comentário.
      Os Estados Unidos atravessam um período de grandes mudanças quanto às regras em relação a sua
      própria história. Muitos arquivos foram abertos;
      muitos outros permanecem fechados. Graças ao sistema de bibliotecas presidenciais e universitárias,
      é relativamente fácil o acesso às informações já liberadas. Com base nos princípios legais de
      liberdade de informação e de revisão obrigatória (Freedom of information e Mandatory review), pode-
      se pleitear o acesso à informação restrita. Todos os arquivos e documentos do governo dos Estados
      Unidos aqui citados encontram-se à disposição de qualquer pesquisador; basta saber onde procurá-
      los e dispor dos recursos (modestos, diga-se de passagem) para obtê-los. Seja nas bibliotecas
      presidenciais (especialmente a de Kennedy, em Cambridge, Massachusetts, e a de Johnson, em
      Austin, Texas), seja nos documentos do Departamento de Estado depositados nos Arquivos Nacionais
      em College Park, Maryland, e em sua publicação mais ou menos regular intitulada Foreign Relations
      ofthe United States (FRUS), seja, por último, em publicações como o índex ofrecendy declassified
      documents da imprensa universitária, qualquer um pode ter acesso aos documentos consultados. Em
      alguns deles há trechos rasurados (sanitized), mas pode-se pedir uma revisão, que em certos casos é
      atendida, em outros não. Quem supõe que para a elaboração deste livro contou-se com acesso
      privilegiado aos arquivos da CIA, ou de quem quer que seja fora dos Estados Unidos, simplesmente
      carece de experiência em pesquisa historiográfica.
      Os arquivos do Reino Unido foram particularmente úteis neste trabalho por vários motivos muito
      simples. Em primeiro lugar, o Foreign Office mantém uma merecida reputação de seriedade e perícia
      na confecção e conservação de seus telegramas e notas. Continua sendo um dos serviços
      diplomáticos e de informação mais competentes do mundo. Em segundo lugar, a partir da ruptura de
      relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba, em janeiro de 1961, a embaixada do Reino
      Unido passou a ser, de fato, os olhos e ouvidos de Washington em Havana. Enquanto a Suíça
      garantia representação oficial dos interesses norte-americanos junto a Cuba, cabia a
  Londres escutar, observar e analisar os acontecimentos na ilha, repassando todas as informações a Washington. Em
  terceiro lugar, embora as notas do MI5 só sejam liberadas ao público depois de meio século, as do Foreign Office de Kew
  Gardens, em Londres, podem ser consultadas já ao completar trinta anos. Como em muitos casos, e particularmente em
  Cuba durante os anos 60, umas e outras costumavam ser redigidas pela mesma pessoa, os informes remetidos ao
  serviço exterior de Sua Majestade devem guardar grande semelhança com os que foram enviados ao serviço secreto de
  Sua
  Majestade.
  Por último, convém acrescentar um comentário sobre os arquivos de
Moscou. Como se sabe, a partir da Perestroika e, sobretudo, do fim do regime soviético, os arquivos da ex-URSS foram
abertos e leiloados de maneira sele-tiva e nem sempre racional. Os arquivos do Ministério de Relações Exteriores (MID, por
suas iniciais em russo) estão bem organizados e contêm verdadeiras jóias para o historiador. Neste caso, são de extremo
interesse as anotações das conversas entre Che Guevara e vários enviados da URSS a Havana, em especial o embaixador
Alexander Alexeiev e o encarregado de Assuntos Políticos Oleg Daroussenkov. Em 1995, esses arquivos se encontravam à
disposição de qualquer pesquisador de boa-fé, desde que contasse com o mínimo respaldo institucional e com os recursos
para cobrir as despesas — não totalmente justificadas — que seu acesso requer. A consulta aos arquivos do Partido
Comunista da URSS é um tanto mais difícil: as despesas são maiores, o acesso é mais restrito e arbitrário. Por outro lado,
muitos dos documentos ali conservados são cópias dos que se encontram no MID: a confusão entre Partido e Estado na
ex-URSS não deve ser surpresa para ninguém.
  A terceira e última fonte primária que merece comentário consiste nas entrevistas ou na história oral que foi possível
  recolher ao longo da pesquisa. Insisto: nem tudo o que reluz é ouro, e nem tudo o que os protagonistas dizem ou
  escrevem é verdade. Deve-se trabalhar sobre os depoimentos do mesmo modo que se trabalha sobre um documento,
  uma estatística ou até mesmo uma foto. Para fazer este livro, pôde-se entrevistar um grande número de pessoas:
  em Cuba, na Argentina, na Bolívia, em Moscou, e em lugares muito mais estranhos. Sempre que possível, as entrevistas
  foram gravadas, embora a transcrição sintetize ou condense as palavras ditas. Em certos casos, por diferentes motivos,
  não foi possível gravá-las, mas contou-se com a presença de uma testemunha: as anotações contam com o respaldo de
  um terceiro. Em pouquíssimos casos não foi possível nem gravar, nem contar com uma testemunha: a veracidade da
  fonte apoia-se na credibilidade do pesquisador, nas citações^qe
  terceiros e na verossimilhança do depoimento. Todas as entrevistas obtidas para a elaboração desta obra estão ao
  alcance de qualquer pesquisador: basta procurá-las e contar com o apoio institucional (editorial, universitário ou político)
  pertinente. Não houve vias privilegiadas de acesso.
  Alguns leitores poderão se perguntar: como alguém que não viveu a época aqui resenhada, e não conheceu os
  personagens aqui descritos, se atreve a contar esta história? Assumo plenamente minha deficiência: eu não tinha nem
  quinze anos quando o Che morreu, e suas façanhas e desgraças aconteceram antes de eu chegar à idade da razão. Sem
  dúvida, quem viveu aquele tempo já na idade adulta deve ter muito o que contar; alguns já
  começam a fazê-lo.
  Mas a distância também tem suas vantagens. Talvez quem não conheceu de perto aqueles anos de chumbo e glória
  possa narrá-los com maior objetividade e precisão do que as pessoas que os sofreram na própria carne. Seja como for, o
  direito de propriedade não vale neste terreno: o passado que povoa estas páginas pertence a todos nós, para o bem e
  para o mal. A história é feita por seus protagonistas, mas escrita pêlos escritores: truísmo doloroso, mas irrefutável. ‘
l
MORRO PORQUE NÃO MORRO
Limparam seu rosto, já sereno e claro, e descobriram-lhe o peito dizimado por quarenta anos de asma e um de fome no
árido Sudeste boliviano. Depois o estenderam no leito do hospital de Nuestra Senora de Malta, alçando sua cabeça para
que todos pudessem contemplar a presa caída. Ao recostá-lo na lápide de concreto, soltaram as cordas que serviram
para atar suas mãos durante a viagem de helicóptero desde La Higuera, e pediram à enfermeira que o lavasse,
penteasse e inclusive escanhoasse parte da barba rala que tinha. Quando os jornalistas e populares curiosos começaram
a desfilar, a metamorfose já era completa: o homem abatido, iracundo e esfarrapado até as vésperas da morte se
convertera no Cristo de Vallegrande, refletindo nos límpidos olhos abertos a tranquilidade do sacrifício consentido. O
exército boliviano cometeu o único erro da campanha depois de consumada a captura de seu máximo trofeu de guerra.
Transformou o revolucionário resignado e encurralado, o indigente da quebrada dei Yuro, vencido por todos os preceitos
da lei, envolto em trapos, com o rosto sombreado pela fúria e a derrota, na imagem de Cristo da vida que sucede à morte.
Seus verdugos deram feição, corpo e alma ao mito que percorreria o mundo.
Quem examinar cuidadosamente essas fotos há de querer entender como o Guevara da escolinha de La Higuera se
transfigurou no ídolo beati-ficado de Vallegrande, captado para a posteridade pela lente magistral de Freddy Alborta. A
explicação vem do general Gary Prado Salmon, o mais lúcido e profissional dos caçadores do Che:
Lavaram-no, vestiram-no, acomodaram-no, sob a supervisão de um médico forense. Era preciso mostrar a identidade,
mostrar ao mundo que o Che fora der- rotado, que nós o tínhamos vencido. Não seria o caso de mostrá-lo como sempre
se mostravam guerrilheiros, por terra, cadáveres, mas com expressões que a mim chocavam muitíssimo, uns rostos como
que retorcidos. Essa foi uma das razões que me levou a colocar o lenço na mandíbula do Che: para que não se
deformasse. Instintivamente, todos só queriam mostrar que aquele era o Che, poder dizer: “Aqui está ele, vencemos”.
Esse era o sentimento que existia nas forças armadas da Bolívia: que tínhamos vencido a guerra; e que não restassem
dúvidas quanto à sua identidade, pois se o apresentássemos como estava, sujo, andrajoso, despenteado e tudo o mais, a
dúvida teria permanecido.’
O que seus perseguidores evidentemente não previram foi que a mesma lógica haveria de se impor tanto aos que
arquejavam de medo como aos que portariam durante anos o seu luto. O impacto emblemático de Ernesto Gue-vara é
inseparável da noção do sacrifício: um homem que tinha tudo — glória, poder, família e conforto — e tudo entrega em
troca de uma ideia, e o faz sem ira nem dúvidas. A disposição para a morte não é confirmada pêlos discursos e
mensagens do próprio Che, ou pelas orações fúnebres de Fidel Castro, nem pela exaltação póstuma e imprópria do
martírio, mas por uma visão: a de Gaevara morto, vendo seus algozes e perdoando-os, porque não sabiam o que faziam,
e ao mundo, asseverando que não há sofrimento quando se morre por ideias.
O outro Guevara, cuja fúria não cabia na expressão ou no gesto, dificilmente teria se convertido no emblema do heroísmo
e da abnegação. O Che aniquilado, com os cabelos sujos, a roupa rasgada e os pés envoltos em abarcas* bolivianas,
irreconhecível por seus amigos e adversários, jamais teria despertado a simpatia e admiração que a vítima de
Vallegrande despertou.** As três fotos existentes de Guevara preso só circularam vinte anos após sua execução; nem
Felix Rodríguez, o agente da CIA que bateu uma delas, nem o general Arnaldo Saucedo Parada, que tirou as outras, as
divulgaram. O motivo mais uma vez era perverso. Embora se tenha admitido, poucos dias após a emboscada do Yuro,
que o Che não morrera em combate, era preferível dissimular as provas evidenciando sua execução a sangue-frio, os
instantâneos do Che vivo e prisioneiro. As imagens só foram levadas à telinha nos anos 90, pelas mesmas razões. O Che
morto convencia e não acusava ninguém, mas engendrava um mito inesgotável; o Che vivo, na
      melhor das hipóteses, despertava piedade, porém suscitava ceticismo quanto à sua identidade, ou
      provava o assassinato inconfessável, embora conhecido de todos. Prevaleceu a imagem do Cristo;
      desvaneceu-se a outra, sombria e destroçada.
      Ernesto Guevara conquistou seu direito de cidadania no imaginário social de toda uma geração por
      muitos motivos mas antes de mais nada pelo encontro místico de um homem com a própria época.
      Nos anos 60, repletos de cólera e doçura, outra pessoa teria deixado um leve rastro; o mesmo Che,
em outra época menos turbulenta, idealista e paradigmática, teria passado em branco. A
permanência de Guevara enquanto figura digna de interesse, investigação e leitura não deriva
diretamente da geração à qual pertence. Não brota da obra nem sequer do ideário guevarista; vem
da identificação quase perfeita de um lapso da história com um indivíduo. Outra vida jamais teria
captado o espírito da época; outro momento histórico nunca se reconheceria em uma vida como a
dele.
A convergência existencial se deu por vários caminhos. Um fio condutor da vida de Ernesto Guevara
foi a exaltação da vontade, lidando com o voluntarismo, ou, diriam alguns, a onipotência. Na
enigmática e depurada carta em que se despede dos pais, ele próprio se refere a ela: “Uma vontade
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que aperfeiçoei com deleite de artista me sustentará as pernas frouxas e os pulmões cansados”.
Desde o rúgbi de sua mocidade em Córdoba até o calvário nas selvas da Bolívia, partiu sempre de
um critério: bastava desejar alguma coisa para que ela acontecesse. Não existia limite irremovível
nem obstáculo insuperável para a vontade: a sua e a dos distintos atores sociais e individuais que
encontraria pelo caminho. Seus amores e suas viagens, a visão política e a conduta militar e
económica se impregnaram de um voluntarismo a toda prova, que autorizaria façanhas
extraordinárias, arrebataria vitórias maravilhosas e o conduziria a repetidas e por fim fatais derrotas.
As origens desse voluntarismo quase narcisista são múltiplas: seu próprio empenho, a luta perene
do Che contra a asma e um onipresente olhar materno, de adoração e culpa inesgotáveis. Se
alguém chegou a acreditar que bastava querer o mundo para tê-lo num átimo, esse alguém foi Che
Guevara. Se algo caracterizou seus arautos nos anos 60, esse algo foi a bandeira: “We want the
worid, and we want it now”. Nós Queremos o mundo. e nós queremos ele agora.
outro princípio que governou a vida do Che — a eterna recusa em conviver com a ambivalência, a
qual o perseguiria como uma sombra desde a asma infantil até Nancahuazú — também se
entrelaçaria com as características comportamentais de uma geração. Os anos 60 significaram, em
grande medida, a negativa a coexistir com as contradições da vida; assistiram a uma perpétua fuga
para a frente da primeira geração do pós-guerra, que considerava intolerável a coexistência com
sentimentos, desejos e objetivos políticos contraditórios. Quem melhor que o Che para encarnar a
incompatibilidade individual e generacional com a ambivalência, para simbolizar a incapacidade de
conviver com pulsões dadas de antemão?
As ideias, a vida, a obra, até o exemplo do Che pertencem a uma etapa da história moderna, motivo
por que será difícil recuperarem no futuro sua atualidade. As principais teses teóricas e políticas
vinculadas ao Che — a luta armada e o foco guerrilheiro, a criação do homem novo e o primado dos
incentivos morais, o internacionalismo combatente e solidário — virtualmente deixaram de existir. A
Revolução Cubana — seu maior êxito, seu verdadeiro triunfo — agoniza ou sobrevive graças ao
abandono de boa parte da herança ideológica de Guevara. Porém, a nostalgia persiste: o
subcoman-dante Marcos, dirigente aguerrido e acossado das hostes zapatistas nos fundos vales de
Chiapas, costuma invocar, gráfica ou explicitamente, as imagens e analogias do Che, sobretudo
aquelas que evocam traições ou derrotas. Respondeu à ofensiva das forças armadas mexicanas em
9 de fevereiro de 1995 com dois ícones: Emiliano Zapata em Chinameca e o Che em vado dei Yeso
e na quebrada dei Yuro.*
Em compensação, o intervalo em que o Che se movimentou e alcançou a glória ainda não se
encerrou. Continua a provocar saudade como a última convocação das utopias modernas, o último
encontro com as grandes e generosas ideias de nosso tempo — a igualdade, a solidariedade, a
libertação individual e coletiva —, com as mulheres e homens que as encarnaram. A importância de
Che Guevara para o mundo e a vida de hoje se verificam por osmose ou por controle remoto.
Reside na atualidade dos valores de sua era, jaz na relevância das esperanças e sonhos dos anos
60 para um fim de século órfão de utopias, carente de projeto coletivo e dilacerado pêlos ódios e
tensões próprias de uma homogeneidade ideológica sem jaca. Seu instante de fama sobrevive ao
Che, e ele, por seu turno, confere luz e sentido a esse momento cuja memória empalidece mas
ainda perdura. Em sua infância e
juventude, em sua maturidade e morte, jaiem as chaves para decifrar o encontro do homem com
seu mundo. Comecemos.
A Argentina às vésperas da Grande Depressão não era um mau lugar para se nascer e crescer,
sobretudo para quem, como no caso do primeiro filho de Ernesto Guevara Lynch e Célia de Ia Serna
y Liosa, provinha de uma aristocracia de origem e sangue, quando não pecuniária. Ernesto Guevara
de Ia Serna nasce em 14 de junho de 1928 em Rosário, terceira cidade de um país de 12,5 milhões
de habitantes, muitos deles oriundos de outras regiões. Pelo lado paterno, os Guevara Lynch já
tinham doze gerações na terra austral: mais que suficiente para merecerem o título de avoengos em
um país de imigrantes, em sua imensa maioria recém-chegados. Na genealogia de sua mãe
também luzem as raízes e a distinção; além disso que a família De Ia Ser-na possuía terras e,
portanto, dinheiro.
Por parte do pai, Ernesto tinha sangue espanhol, irlandês (o bisavô, Patrick Lynch, fugiu da
Inglaterra para a Espanha e dali para a Gobemación do Rio da Prata, na segunda metade do século
XVIII) e até mexicano-ameri-cano, já que a avó paterna do Che nasceu na Califórnia, em 1868. O
pai de Guevara Lynch, Roberto Guevara, também era originário dos Estados Unidos: seus pais
haviam participado da corrida do ouro californiana de 1848, embora tivessem retornado poucos anos
depois à terra natal com os filhos. Mas para além de seu lugar de nascimento, os Guevara eram
argentinos de cepa. O ramo Guevara Lynch da família se confundia com a história da aristocracia
local; Gaspar Lynch foi um dos fundadores da Sociedade Rural Argentina — verdadeiro Conselho
de Administração da oligarquia latifundiária do país — e Enrique Lynch erigiu-se em um de seus
baluartes durante as crises económicas que fustigaram a agricultura local em fins do século XIX.
Ana Lynch, liberal e iconoclasta, seria a única avó que o Che conheceria, e a relação com ela o
marcaria em profundidade. A decisão do neto de estudar medicina em vez de engenharia deriva
parcialmente do falecimento de Ana, a quem ele assistiu no leito de morte.
Do lado materno, o vínculo com o torrão natal remontava ao general José de Ia Serna e Hinojosa,
último vice-rei do Peru, cujas tropas foram derrotadas por Sucre na batalha de Ayacucho.’ Filha de
Juan Martín de Ia Serna e Edelmira Liosa, Célia não havia completado 21 anos quando se casou,
em 1927, com o jovem ex-estudante de arquitetura. Seus pais faleceram anos antes: don Juan,
assim que Célia nasceu, segundo uma de suas netas, suicidou-se em alto-mar ao saber que sofria
           4
de sífilis; Edelmira,
algum tempo depois. Na realidade, Célia foi criada por uma irmã mais ve-
lha, Carmen de Ia Sema, que se casou em 1928 com o poeta comunista
Cayetano Córdova Itúrburu; antes fora noiva do poeta mexicano Amado
Nervo. Tanto Carmen como Córdova permaneceram nas fileiras do Par-
tido Comunista Argentino durante catorze anos, ela talvez com mais fer-
                    5
vor que o marido.
A família de Célia era “endinheirada”, como reconhecia sem rubor o
seu marido; o pai, “herdeiro de uma grande fortuna [...] possuía várias estân-
cias. Homem culto, muito inteligente, militou nas fileiras do radicalismo”,
                                          6
participando na “revolução de 1890”. Embora a fortuna familiar devesse ser
repartida por sete, dava para todos. Os Guevara de Ia Serna viveriam muito
mais das diversas rendas e heranças de Célia que dos disparatados e siste-
maticamente falidos projetos empresariais do chefe da família. Ainda que a
ma’i tivesse dado a Célia uma educação católica clássica na escola do Sagra-
do Coração, logo o ambiente livre-pensador, radical ou francamente de
esquerda do lar de sua irmã a transformaria numa personagem à parte: femi-
nista, socialista, anticlerical.* Participava das infinitas reuniões celebradas
em sua casa, d ,s diversas lutas travadas pelas mulheres argentinas ao longo
dos anos 20;** tanto antes como depois do casamento conservou um perfil
próprio, que dura.ia até sua morte, em 1965.
Essa mulher excepcional foi sem dúvida a figura afetiva e intelectual
mais importante na vida do filho mais velho, pelo menos até o encontro
deste com Fidel Castro no México, em 1955. Ninguém desempenhou na
vida do Che um papel equivalente ao de Célia, sua mãe, nem o pai, nem as
esposas ou os filhos. A mulher que conviveu durante vinte anos com o peri-
go e o estigma do câncer; a militante que pouco antes da morte passou sema-
nas no cárcere em razão do sobrenome que partilhava com o filho; a mãe que
educou e manteve cinco crias quase por conta própria impôs uma marca à
vida de Che Guevara a que só Castro pôde se igualar, durante um breve
interiúdio na vida dos dois. Nada ilustra melhor a glória e a tragédia da saga
de Guevara que seu lamento dilacerado no coração das trevas ao receber no
Congo a notícia da morte da mãe:
Pessoalmente, no entanto, [Machado Ventura] trouxe-me a notícia mais
triste da guerra: em comunicação telefónica de Buenos Aires, informavam que
minha mãe estava muito enferma, em um tom que deixava presumir que era
apenas um anúncio preparatório... Tive de passar um mês nessa triste
incerteza, aguardando os resultados de algo que esperava mas com a esperança
de que houvesse um equívoco, até que chegou a confirmação do falecimento
de minha mãe. Ela quisera ver-me pouco antes de minha partida, possivel-
mente sentindo-se doente, mas não fora possível, pois minha viagem já esta-
va bastante adiantada. Não chegou a tomar conhecimento da carta de despe-
dida deixada em Havana para meus pais; só a entregariam em outubro, quando
minha partida tornou-se pública.*
Não pôde despedir-se dela, nem guardar o luto que sua dor impunha. A
revolução africana, as enfermidades tropicais ferozes e as eternas divisões
tribais dos descendentes políticos de Patrice Lumumba o impediam. Célia
falece em Buenos Aires, expulsa do hospital onde jazia no leito de morte; os
donos da clínica se recusaram a albergar a mãe que parira Che’Guevara 37
anos antes. Che carrega seu pesar nas colinas da África, desterrado de sua
pátria adotiva pêlos próprios demónios internos e pelo fervor idealista que
herdou da mãe. Morrerá poucos anos mais tarde: duas mortes demasiado
próximas.
A Argentina onde o menino Ernesto vem à luz era ainda em 1928 um
país dinâmico, em plena ebulição, abençoado por um aparente idílio
económico e inclusive político que rápido se dissiparia. Durante os anos 20
ela é tão legitimamente comparável aos ex-domínios ingleses brancos como
aos demais países latino-americanos. As vésperas da Primeira Guerra
Mundial, seus principais indicadores sociodemográficos se assemelhavam
mais aos da Austrália, Canadá e Nova Zelândia que aos da Colômbia, Peru, Venezuela ou México.*
Recebera um volume de investimentos diretos estrangeiros três vezes superior ao do México ou do
Brasil; em número de vias férreas por mil habitantes, embora inferior em 50% ao da Austrália e ao
                                                                      7
do Canadá, superava amplamente os seus vizinhos de hemisfério. Em 1913, a renda per capita
argentina era a décima terceira do mundo, um pouco superior à da França. A conflagração europeia
e a expansão desenfreada dos anos 20 não alterariam essa classificação. Ainda que as dificuldades
argentinas — industrialização raquítica, superendividamento externo, setor de exportação altamente
vulnerável — logo fossem arruinar as pretensões moder-nizantes das elites locais, o país onde
nasce Che Guevara transpira uma afortunada e merecida autoconfiança. Aspira — com razão — a
sua inclusão em um Primeiro Mundo avant Ia lettre, despreocupado dos vergonhosos sinais
económicos e sociais que já se perfilavam no horizonte.**
A introdução do sufrágio universal secreto (para homens e cidadãos argentinos) em 1912 deu lugar,
quatro anos mais tarde, ao triunfo eleitoral da União Cívica Radical e seu legendário paladino,
Hipólito Yrigoyen. Este logrou sua eleição meses antes do nascimento do Che, em 1928, ao fim do
interregno de Marcelo T. de Alvear. Porém, o yrigoyenismo não pôde satisfazer às enormes
esperanças que despertou nas camadas médias emergentes do país e no seio da nova classe
trabalhadora portenha — uma eclética e instável mescla de argentinos de segunda geração,
interioranos e imigrantes.*** A pressão da direita, o desencanto das classes médias e os estragos
causados pela Grande Depressão puseram termo ao fugaz lapso democrático: em 1930 o exército
consumou o primeiro golpe de Estado do século que destituiu um governo latino-americano
democraticamente eleito. Em
(*) A taxa de mortalidade infantil da Argentina, por exemplo, era nessa época de 121 por mil, a da
Colômbia de 177, a do México de 228, a do Chile de 261, e a da Austrália de 72. A porcentagem de
habitantes do país que viviam em grandes cidades chegava a 31 %, ao passo que a cifra
correspondente no Brasil era de 10,7% e no Peru de 5% (Victor Bulmer-Thomas, Economic history
ofLatin América, Nova York, Cambridge University Press 1994, p. 86).
(**) “A Argentina conseguiu um sólido crescimento industrial em quase todos os anos da década de
20 [...] expandindo rapidamente a produção de hens de consumo duráveis e não duráveis
(sobretudo têxteis) à custa das importações. As indústrias intermediárias, como a refinação de
petróleo, a indústria química e a metalurgia, também floresceram; apenas a construção civil
permaneceu abaixo dos níveis à guerra” (ibidem, p. 189).
(***)0paido voto não foi um dosdesiludidos; deu seu primeiro voto, em 1919, ao Partido Socialista
Argentino.
seu lugar as forças armadas puseram o general José Felix Uriburu; depois do fracasso de seu
projeto filofascista, suceder-se-ão governos fraudulentos, até que em 1943 o ciclo se encerrará com
um novo golpe de Estado. A alternância de governos civis com governos militares caracterizará a
vida política argentina até 1983.
O nascimento de Ernesto filho aconteceu em Rosário por razões circunstanciais. Seus pais, depois
do casamento em Buenos Aires um ano antes, partiram para Puerto Caraguatay, no alto Paraná,
território de Misiones. Ali Ernesto pai se propusera cultivar e explorar uns duzentos hectares
semeados de erva-mate, o chamado ouro verde, que proliferava nessa região da Argentina.* Já com
Célia grávida de sete meses, dirigiram-se a Rosário, o centro urbano de certa dimensão mais
próximo, tanto para que o parto se consumasse ali como para estudar a possibilidade de comprar
um moinho ervateiro. O projeto agrícola do erval naufragou rapidamente enquanto iniciativa
empresarial, o que ocorreria com frequência nos anos vindouros. O pequeno Ernesto nasce de oito
meses, fraquinho e sujeito a deslocamentos constantes que o acompanharão por toda a vida; a
família logo abandonará a zona de Misiones. Guevara Lynch também era sócio de um estaleiro em
San Isidro, perto de Buenos Aires.
Aí ocorre o primeiro ataque de asma de Ernestinho, semanas antes de ele completar dois anos, em
2 de maio de 1930. Segundo relata o pai do Che, sua esposa, nadadora competente e tenaz,
costumava levar o filho ao Clube Náutico de San Isidro, às margens do rio da Prata. O pai da vítima
não deixa muitas dúvidas sobre sua interpretação da responsabilidade pela desgraça:
“Numa fria manhã do mês de maio, quando ainda por cima ventava muito, minha mulher foi banhar-
se no rio com nosso filho Ernesto. Cheguei ao clube à sua procura com a intenção de levá-los para
almoçar e encontrei o pequeno em trajes de banho, já fora da água e tiritando. Célia não tinha
experiência e não percebeu que a mudança de tempo era perigosa naquela época do ano”.**
(*) O próprio Ernesto Guevara Lynch fornece as versões sobre a origem dos recursos que lhe
permitiram adquirir o erval de Puerto Caraguatay. Em seu livro Mi fujo el Che, diz que recebera uma
herança do pai e pensava utilizá-la para comprar terras em Misiones. Essa versão é retomada por
uma fonte oficial cubana, o Acios histórico, biográfico y militar de Ernesto Guevara, t. l, publicado em
Havana em 1990 (p. 25). Porém, em uma longa entrevista com José Grigulevich, incluída no livro já
citado (I. Lavretsky), o pai do Che diz textualmente:
“Célia herdou uma plantação de erva-mate em Misiones” (p. 14).
(**) Ernesto Guevara Lynch, op. cit., p. 139. Em outra versão, Guevara pai trocou os papéis, contudo
manteve a atribuição de culpas: “Em 2 de maio de 1930 Célia e eu fomos na-
Todavia, esse não foi o primeiro mal pulmonar do menino; quarenta dias depois de nascer, ele foi
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atacado por uma pneumonia que, segundo Ercilia Guevara Lynch, sua tia, “quase o mata”. Essa
primeira infecção respiratória põe em dúvida a explicação paterna sobre a etiologia da asma do Che;
o mencionado resfriado tinha seus antecedentes. De qualquer modo, desde o primeiro ataque à
beira do rio da Prata até junho de 1933 as crises asmáticas de Ernestinho se dariam quase
diariamente, de maneira exasperante e devastadora para os pais, mas acima de tudo para Célia,
que afora a carga desigual que suportava nos cuidados para com o enfermo, carregava uma forte
dose de culpa. Somavam-se à que seu marido lhe atribuía pelo incidente no rio, os antecedentes
hereditários, de que na época apenas se suspeitava mas de que hoje se tem certeza. Célia fora
asmática na infância; havia, portanto, 30% de chance de que um de seus filhos padecesse da
doença; tudo indica que foi o que ocorreu com Ernesto. A pneumonia aos quarenta dias de vida e o
resfriado no Clube Náutico podem ter agido como detonadores de uma grande predisposição
genética, mas não provocaram a asma.
Os três anos transcorridos entre o surgimento e a estabilização da doença parecem ter marcado o
casal de modo acentuado e, indiretamente, o filho; os relatos de familiares, amigos e dos próprios
pais do Che são comoventes.* Foi sem dúvida durante esse período que Célia construiu sua relação
maternal entremeada de obsessão, culpa e adoração — relação que muito em breve engendraria
uma espécie de educação particular, à qual o Che deveria, pelo resto da vida, seu gosto pela leitura
e a curiosidade intelectual insaciável.
A família perambularia pela Argentina ao longo de cinco anos, buscando uma moradia que
beneficiasse a saúde do menino ou ao menos não a agravasse. Finalmente a encontrariam em Alta
Gracia, uma estância de veraneio a quarenta quilómetros da cidade de Córdoba, nas encostas da
sierra Chica, a seiscentos metros de altitude. O ar seco e límpido, que atraía turis-
dar com Teté. O dia ficou frio, passou a ventar e logo Teté começou a tossir. Nós o levamos ao
médico, que diagnosticou asma. Talvez já estivesse resfriado, ou quem sabe herdou a enfermidade,
já que Célia fora asmática quando criança” (Lavretsky, op. cit., p. 15).
(*) A mãe do Che confirma, por exemplo, os cuidados do pai com o menino. “Aos quatro anos
Ernesto já não resistia ao clima da capital. Guevara Lynch [assim se refere ao marido depois da
separação] acostumou-se a dormir sentado à cabeceira de seu primogénito, para que ele, recostado
em seu peito, suportasse melhor a asma” (Célia de Ia Serna, testemunho publicado em Granma,
Havana, 16/10/67, p. 8). Célia morreuem 19deabrilde 1965;oteste-munho obviamente foi recolhido
anos antes de ser divulgado.
tas e tuberculosos, moderou as crises asmáticas de Teté, embora não as tivesse curado nem
espaçado sensivelmente. A enfermidade ficou sob controle graças ao clima de Alta Gracia, aos
cuidados médicos e à personalidade do menino. E, sobretudo, à excepcional devoção e carinho de
sua mãe.
Nessa montanha mágica ao pé da serra de Córdoba cresceria Ernesto Guevara de Ia Serna, com o
pai consagrado à construção de casas no . pequeno município e a mãe à criação e educação do
menino e suas duas irmãs, Célia e Ana Maria, e o irmão menor, Roberto; o caçula dos Guevara de
Ia Serna, Juan Martín, nasceria mais tarde em Córdoba. Tudo isso configurava um oásis de
introspecção e placidez, em meio a um país que se despedia dos anos dourados e ingressava, junto
com o mundo, nas desgraças da Depressão e em suas inesperadas sequelas políticas. A crise
mundial de 1929 não só destruiu as pretensões ervateiras do pai do Che, como também destroçou
em poucos anos o mito da Argentina aprazível e próspera. O golpe de 1930 deu início a um longo
período de instabilidade política, e a queda dos preços e da demanda internacional dos principais
itens de exportação da Argentina inaugurou uma interminável letargia económica, só interrompida
pelo breve boom das matérias-primas no imediato pós-guer-ra. Porém, a crise inaugurou também
uma época de mobilização social, de polarização ideológica e transformações culturais a que nem
Alta Gracia nem as elites protegidas e ilustradas de províncias como Córdoba poderiam ficar
imunes.
Em um primeiro momento, as exportações dos produtos do pampa não sofreram a catástrofe do
cobre chileno ou do café brasileiro, por exemplo. Não obstante, na Argentina, os rendimentos
relativos à exportação se reduziram em 50% entre 1929 e 1932, e o colapso não foi menos
demolidor e prenhe de consequências que em outros países da região. Ele teve um duplo efeito na
sociedade austral. Por um lado, a crise gerou considerável desemprego agrícola, basicamente de
arrendatários impossibilitados de cumprir os termos de seus contratos; por outro, as restrições às
importações por causa da escassez de divisas e crédito externo ativaram o desenvolvimento de uma
indústria manufatureira nacional, tanto de bens de consumo como de alguns bens de produção.
Esse fenómeno contribuiu para o crescimento acelerado da classe operária argentina. Duas cifras
indicam a transformação social desse período: em 1947, 1,4 milhão de imigrantes procedentes das
zonas rurais haviam acorrido a Buenos Aires, e meio milhão de operários tinham se incorporado ao
proletariado, duplicando seus efetivos em apenas uma década.
Os migrantes constituiriam os famosos cabecitas negras; os operários, uma nova classe
trabalhadora, menos forasteira e menos branca que a dos princípios do século, mais vinculada à
indústria nacional que ao processamento de artigos de exportação, mais afastada da classe média
tradicional que a da idade de ouro do yrigoyenismo. O fosso entre os segmentos médios ilustrados e
tradicionais, de um lado, e o novo estamento operário, de outro, se refletiria, dez anos mais tarde, no
desencontro entre a esquerda argentina socialista, intelectual e pequeno-burguesa e o peronismo
em ascensão, populista e irreverente.
Os anos de Ernesto em Alta Gracia apenas começavam, mas muito em breve algumas de suas
principais características transpareceriam. A primeira que salta à vista se baseia na continuidade da
perpétua peregrinação, agora reduzida ao perímetro da cidadezinha de veraneio. Segundo Roberto,
o irmão mais novo do Che, depois de residir seis meses no Hotel Grutas a família mudou-se, em
1933, para Vilia Chichita; dali iria para uma casa mais ampla, Vilia Nydia, em 1934, e em seguida
para Chalet de Fuentes, em 193 7, Chalet de Ripamonte, em 1939, e novamente Vilia Nydia em
1940-1. Para Roberto Guevara tantos deslocamentos tinham uma explicação: “Como os contratos
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venciam, tínhamos de mudar”. Sem dúvida seria absurdo atribuir a futura e extremada inclinação
errante de Che Guevara a esse permanente perambular de sua família. Porém, o constante ir e vir
certamente adquiriu uma naturalidade muito peculiar no universo do menino. De cidade em cidade
até os cinco anos, de casa em casa até os quinze; a normalidade gue-varista residia no movimento,
que amenizava a uniformidade dos outros aspectos de sua existência. Também reavivava a
esperança de começar de novo e superar tensões familiares — afetivas, financeiras — que não fal-
tavam no agora mais populoso lar de Ernesto e Célia.
E nessa época que a relação de Célia e Teté se torna essencial na vida dos dois e ultrapassa
largamente, em intensidade e proximidade, o vínculo de Ernestinho com o pai e das outras crianças
com a mãe. A enfermidade de Ernesto filho explica-o em grande parte: nada como a culpa e a
angústia de uma mãe em relação ao filho para gerar uma devoção maternal sem limites. A simbiose
entre Célia e o Che, que alimentaria a correspondência, a existência afetiva e a própria vida de
ambos durante os trinta anos seguintes, inicia-se nesses anos lânguidos de Alta Gracia, quando
Ernesto aprende, no colo da mãe, a ler e escrever, a vê-la e sobretudo ser visto por ela. Essa
relação chega a tal ponto que quem conheceu Ernesto e os irmãos na juventude se assombra com
as diferenças físicas e de caráter entre eles, muito anteriores à
celebridade do filho maior e à sombra que inevitavelmente projetaria sobre os demais integrantes da
família. Qual o motivo? A explicação talvez esteja no olhar de Célia, repleto de culpa, angústia e
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amor no caso de Ernesto, de simples carinho maternal no caso dos demais.
Outro sinal distintivo desse prelúdio da adolescência deriva do primeiro: consolida-se de modo mais
preciso o papel do chefe da família. Guevara Lynch era, simultaneamente, um grande boémio, um
formidável amigo dos filhos, um provedor medíocre e um pai distante e indiferente. Sem dúvida são
autênticas suas recordações sobre as horas passadas com o filho, nadando, jogando golfe, dando-
lhe atenção e falando-lhe da vida. Mas também o eram o desligamento durante o resto do tempo e a
displicência ante as necessidades do menino e da família. Enquanto a mãe fazia as vezes de pro-
fessora, organizadora do lar e enfermeira, Guevara Lynch construía casas em sociedade com o
irmão e passava longas horas no Sierras Hotel, ponto de reunião e lazer da sociedade abastada de
Alta Gracia.*
A enfermidade continuava atormentando Ernestinho. Impediu-o de obter uma educação primária
“normal”, substituída pelo empenho didático da mãe: “Eu ensinava as primeiras letras a meu filho,
mas Ernesto não podia ir à escola por causa da asma. Só cursaria regularmente o segundo, o
terceiro grau; o quinto e o sexto, ele os cursou como pôde. Seus irmãos copiavam os deveres e ele
estudava em casa”.”
Se o pai de Ernesto desempenhou um papel central foi o de inculcar ao menino um gosto voraz pelo
esporte e o exercício físico e a convicção de que era possível vencer à base de pura força de
vontade as limitações e penas que a doença impunha.** Tanto Ernesto pai como Célia eram
esportistas, gente que amava o campo e a natureza, e conseguiram transmitir esse gosto ao fi-
(*) Decerto os Guevara de Ia Serna saíam juntos, sobretudo ao chegar a Alta Gracia. E sem dúvida
não se pode tomar ao pé da letra testemunhos como o de Rosário Gonzáiez, que trabalhou como
empregada doméstica, encarregada em especial das crianças, entre 1933 e 1938. Mas eles ilustram
uma tendência que se aguçaria com o tempo: “Os pais de Ernesto saíam bastante, eram muito de
noitadas, iam ao Sierras Hotel todas as noites, desde as sete, para jantar. Chegavam de
madrugada, às quatro, às cinco... Todos os dias; isso era frequente. saíam às sete, às oito, iam
embora e não vinham jantar. Os meninos jantavam sozinhos” (Rosário Gonzáiez, entrevista com o
autor, Alta Gracia, 17/2/95).
(**) Mais uma vez proliferam as interpretações sobre a verdadeira responsabilidade de cada um dos
pais do Che nessa etapa. Segundo o irmão Roberto, o papel central, inclusive nesse particular,
coube à mãe: “Era uma criança muito doente... Mas conseguiu se impor à doença com seu caráter e
força de vontade. Houve nisso muita influência de minha mãe” (Roberto Guevara de Ia Sema,
testemunho reproduzido em Cupull e Gonzáiez, op. cit., p. 82).
lho. Como este precisava realizar esforços muito superiores aos de uma criança sadia para desfrutar
realmente dos prazeres do exercício físico, desde pequeno começou a desenvolver uma força de
vontade descomunal. Foram os pais do Che que descobriram o único remédio possível para o
tormento crónico. Concluíram que o único tratamento razoável consistiria em continuar a medicá-lo e
em fortalecê-lo por meio de tónicos e exercícios apropriados, como natação, jogos ao ar livre,
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passeios pêlos montes, equitação.
Dessa forma, a crescente e indispensável (para ele) vontade de superação física se transformaria
em traço decisivo da vida do jovem Ernesto. Também o seria a heterogeneidade social do círculo de
amizades, o contato frequente dos meninos Guevara de Ia Serna com amiguinhos de diferentes
classes sociais. Entre eles figuravam os caddies* do clube de golfe de Alta Gracia e os camareiros
dos hotéis, os filhos dos pedreiros das diversas obras de Ernesto pai, assim como as famílias
pobres das redondezas da série de casas que os Guevara foram alugando. Em cada uma delas
apareciam multidões de meninos, uns vindos de lares de classe média, outros de origem popular,
uns brancos como Ernesto e seus irmãos, outros de pele mais escura, ou morochos, como Rosendo
Zacarias, vendedor de doces nas ruas de Alta Gracia. Meio século mais tarde, este ainda lembrava
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(talvez com ajuda do mito de que “o Che era uma criança perfeita, sem problemas”) como todos
brincavam sem distinções nem hierarquias. Desde então Ernestinho mostrava uma facilidade notória
para relacionar-se com gente alheia ao seu meio cultural e social.
Das longas horas passadas em casa e na cama nasce a predileção de Ernesto filho pela leitura. Ele
devorava os clássicos para leitores infantis de sua idade e época: os romances de aventuras de
Dumas Filho, Robert Louis Stevenson, Jack LondoneJúlio Veme e, naturalmente, de Emílio Salgari.
Mas lê também Cervantes e Anatole France, de Pablo Neruda e Horacio Quiroga, e dos poetas
espanhóis, Machado e Garcia Lorca. Tanto o pai como a mãe contribuíram para despertar-lhe o
gosto pela leitura: Ernesto Guevara Lynch, pêlos romances de aventuras; Célia, pela poesia e, na
época em que o educou em casa, pelo idioma francês. Na escola propriamente, Ernesto era apenas
bom aluno, segundo as recordações de uma de suas professoras, que o igualavam em inteligência
às irmãs menores mas atribuía mais assiduidade a estas.
Para a professora Elba Rossi Oviedo Zelaya, Ernestinho viveu dois vínculos familiares distintos com
a educação: o de Célia, sempre presente, fis-
(*) Rapazes que carregam os tacos e o equipamento dos jogadores. (N. T.)
calizando de perto a instrução do filho, e o de Ernesto pai, mais distante. Diz a educadora sobre o
menino Che:
Conheci apenas a mãe. Ela era realmente muito democrática, uma senhora que não se incomodava
em pegar um menino qualquer, levá-lo até sua casa, colaborar com a escola... tinha um
temperamento adorável. Ia à escola todos os dias e a todas as reuniões de pais, com todos os
meninos no carrinho, e no caminho outras crianças se juntavam a eles. O pai era um senhor bem
distinto que vivia no Sierras Hotel, pois era gente de família. Devo tê-lo visto alguma vez por acaso;
não ia à escola, não falava com as professoras. Sei apenas que frequentava bastante o Sierras,
porque naquela época era o melhor hotel de Alta Gracia. Com ela falamos várias vezes, de
questões escolares e outras coisas. Tudo era com ela; ele, se foi à escola, eu nunca vi;
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talvez o tenha visto alguma vez, alguém pode ter dito que se tratava do senhor Guevara.
Talvez os dois aspectos mais notáveis da passagem de Ernesto por algumas escolas públicas de
Alta Gracia, onde cursou o primário — a San Martín primeiro, a Manuel Solares depois —, se devam
à atitude dos pais e às consequências do fato de frequentar justamente escolas públicas, nos anos
do ocaso da Argentina oligárquica. O Che se impressionaria sobretudo com a tensão entre um país
ainda homogéneo e uma incipiente diversidade que já se chocava com as tendências igualitárias da
educação pública, laica e obrigatória. A obrigatoriedade do ensino primário não possuía um caráter
apenas de princípios; quando a asma impedia o menino de assistir às aulas, sua mãe recebia
requerimentos da autoridade responsável indagando sobre os motivos da ausência. E na escola
Ernestinho sofreria os efeitos contraditórios das vertiginosas mutações da sociedade argentina. Os
dois colégios de Alta Gracia em que esteve matriculado eram frequentados por crianças dos
arredores da cidade, do “campo”, como se dizia comumente nessa região da Argentina: de origem
rural, em alguns casos morochos, procedentes de lares humildes, que constituíam a primeira
geração escolarizada. A grande diferença entre a Argentina e o resto da América Latina naquela
época (exceto o Uruguai e, em menor medida, o Chile) residia na existência dessa instituição
igualadora por excelência (junto com o serviço militar, implantado antes do sufrágio universal): a
educação pública. O imenso fosso que sempre separou o Che adulto de muitos de seus compa-
nheiros cubanos e do resto da América Latina, no que toca ao trato e à sensibilidade para com
interlocutores de classes, raças, etnias e padrões educacionais diferentes, nasce desse encontro
precoce com a igualdade. Brota
também da experiência da diversidade, típica da educação republicana em um continente onde as
elites não costumam gozar do privilégio do encontro com os outros.
Contudo, procurar a igualdade não equivale a encontrá-la. O surgimento nos anos 30 de novas
classes sociais, compostas em parte de imigrantes de segunda geração e em parte de gente vinda
do velho campo dos gaúchos e estâncias, não perdoou nenhum dos setores da sociedade argenti-
na. Nas escolas de Ernesto estudavam meninos pobres, de ascendência italiana, espanhola e rural;
graças a suas professoras e à excepcional herança cultural recebida de Célia, o Che dispôs de
oportunidades únicas e evidentes para defrontar-se com os contornos da desigualdade. Porém,
essas mesmas vantagens lhe outorgaram a distinção de ser um prematuro primus interpores:
o menino que, graças à cultura e abastança (relativa) dos pais e à autoconfiança gerada por um lar
estável e aprazível, gozou do privilégio de se destacar desde muito cedo, de converter-se no
dirigente das turmas escolares, de ocupar uma posição de liderança entre os amiguinhos. A
vocação têmpora para líder, que muitos admiradores descobrem no Che desde a mais longínqua
infância, talvez provenha de seus possíveis dotes de chefe, mas deriva também de uma situação
social privilegiada.*
SL^~ Last but not least, remonta a esses anos passados no sossego de Alta Gra-cia o início da
politização do primogénito dos Guevara de Ia Serna. Assim como ocorreu com milhões de jovens e
adultos do mundo inteiro, a Guerra Civil espanhola despertou a curiosidade política do menino. Seu
interesse e o acompanhamento das glórias e tragédias de Madri, Temei e Guernica não se
concentrarão nas facetas ideológicas, internacionais ou mesmo políticas da conflagração, mas nos
aspectos militares e heróicos. Desde 193 7 ele pren-
(*) “Lembro que muitos meninos o seguiam no quintal; ele subia em uma árvore que havia ali,
grande, e todos os meninos o rodeavam porque ele era como um líder; depois ele saía correndo e
os outros iam atrás, já se notava que era o chefe... Devia ser por causa da família, que era uma
família distinta; o menino sabia falar melhor tudo o mais. Percebia-se uma diferença. O fato de eles
virem de Buenos Aires já lhes dava um ar de superiores aos outros. Aqueles meninos vinham de
outro ambiente, tinham se criado de maneira diferente. Por exemplo: não lhes faltava material; para
os meninos mais pobres muitas vezes era preciso conseguir alguma coisa, não tinham lápis de cor
nem material para pintar; a eles nunca faltou nada. Era uma outra categoria; bem, isso não se
notava, porque não eram de desprezar os outros, em absoluto. Estavam perfeitamente integrados
no grupo. Mas falavam melhor, faziam melhor as coisas, os deveres, tudo. Não deixavam de
entregar os deveres como as outras crianças, que muitas vezes não têm ajuda em casa, e voltam
para a escola sem fazer os deveres” (Elba Rossi Oviedo Zelaya, entrevista com o autor. Alta Gracia,
17/2/95).
dera um mapa da Espanha na parede de seu quarto, onde seguirá a marcha dos exércitos
republicano e franquista, e construirá no jardim de casa uma espécie de campo de batalha, com
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trincheiras e montes. Vários fatores contribuirão para fazer da causa da República espanhola o
crisol da consciência política do prematuro aficionado das atualidades mundiais.
Em 1937 seu tio Cayetano Córdova Itúrburu partiu para a Espanha. Jornalista e membro do Partido
Comunista Argentino, foi contratado como correspondente estrangeiro pelo diário Crítica, de Buenos
Aires. A tia Carmen viajou com os dois filhos para Alta Gracia; foi viver com a irmã durante a estadia
do marido na Espanha. Assim, todos os despachos, comentários e artigos transmitidos do front por
Córdova Itúrburu passavam pelas vilas e chalés dos Guevara em Alta Gracia. A chegada de notícias
de além-mar se transformava em um acontecimento; o conteúdo delas aumentava ainda mais a
excitação. As vezes Córdova mandava também revistas e livros espanhóis, os quais reforçavam a
informação detalhada que aterrissava na imaginação do pequeno Ernesto, onde ficaria gravada para
sempre.
Outro fator importante na conscientização do Che foi a chegada a Cór-doba e depois a Alta Gracia
de várias famílias expulsas da península Ibérica. A mais significativa, pela intimidade que
estabeleceria com o núcleo dos Guevara, foi a do médico Juan Gonzáiez Aguilar, que despachara
previamente a esposa e os filhos para Buenos Aires e depois para Alta Gracia. Quando caiu a
resistência republicana, o próprio Gonzáiez Aguilar — amigo de Manuel Azana e colaborador de
Juan Negrín, último presidente do governo legalista — exilou-se na Argentina. Seus filhos, Paço,
Juan e Pepe, se matricularam com o Che no liceu Deán Funes, de Córdoba, em 1942;
durante um ano os adolescentes percorreram juntos os 35 quilómetros de Alta Gracia até a escola.
A amizade entre as duas famílias durará décadas, e será dos relatos dos Gonzáiez Aguilar, assim
como de outros refugiados que transitavam por sua casa — o general Jurado, o compositor Manuel
de Falia —, que Ernesto Guevara filho adquirirá boa parte de sua sensibilidade e solidariedade para
com os republicanos. A guerra da Espanha foi a experiência política fundamental da infância e
adolescência do Che. Nada o marcou tão fundo nesses anos como a luta e a derrota dos
republicanos: nem a Frente Popular francesa, nem a expropriação do petróleo no México, nem o
New Deal de Roosevelt, para não falar do golpe argentino de 1943 ou mesmo da jornada de 17 de
outubro de 1945 e do advento de Perón.
Os pais transmitiram a Ernesto uma grande parcela das próprias posturas políticas. Concluída a
guerra da Espanha e esmagados os republicanos, teria início a Segunda Guerra Mundial; o pai do
menino de onze anos fundou a seção local da Ação Argentina, em cujo setor infantil logo inscreveu
o filho. Típica organização antifascista, a Ação Argentina fez um pouco de tudo naqueles anos:
realizou comícios e levantou fundos em favor dos Aliados, combateu a penetração nazista na
Argentina, descobriu casos de infiltração de ex-tripulantes do couraçado alemão GrafSpee (atracado
à baía de Montevidéu em 1940) e difundiu informações sobre o avanço militar das forças aliadas.
Como lembra seu pai, “toda vez que havia um ato organizado pela Ação Argentina ou que tínhamos
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de fazer uma averiguação importante, Ernesto me acompanhava”.’
A descrição anterior ficaria truncada se não situasse a guerra da Espanha no ambiente argentino da
época, e em especial no contexto da ascensão de uma direita local nacionalista, católica e
virtualmente fascista. Para a intelectualidade argentina dos anos 30, radical, socialista ou comunista,
com ou sem raízes italianas ou espanholas, a xenofobia e o conservadorismo de escritores como
Leopoldo Lugones, Gustavo Martínez Zuviría e Alejan-dro Bunge, de publicações como Crisol,
Bandera Argentina e La Voz Nacionalista e sua expressão política em círculos da oficialidade média
do exército constituíam o pior dos inimigos. O nacionalismo argentino dos anos 30 era anti-semita,
racista e eugênico, fascista e filo-hitierista. Naturalmente voltou-se para o franquismo a partir de
1936.0 discurso xenófobo era-lhe particularmente caro, sobretudo diante do surgimento da nova
classe operária procedente do interior, “negra” e “pele-vermelha”.* O fato de esse nacionalismo
conter também sua vertente “social” e “antiimperia-lista”, sua faceta “desenvolvimentista” (embora
todos esses termos sejam anacronismos) e industrializadora, não impedia que a esquerda argentina
de velha estirpe o contemplasse espavorida, e com razão.
O desenlace desse drama contraria todas as previsões. A ascensão de Perón deixaria, por um lado,
os nacionalistas descontentes e, por outro, a esquerda desorientada e órfã de massas. No auge
desse nacionalismo con-
(*) Lugones finalmente defendeu o fim de toda imigração que não fosse branca, e Bunge, em seu
artigo “Esplendor e decadência da raça branca”, assinalava que “todo o vigor da raça [...] do
patriotismo de seus homens superiores e da abnegação do espírito cristão deve voltar-se desde
agora para restaurar o quanto antes o conceito da bênção dos filhos e das famílias numerosas,
particularmente nas classes mais afortunadas” (cit. por David Rock, La Argentina autoritária, Buenos
Aires, Ariel, 1993, p. 117).
servador e católico encontra-se parte da resposta ao enigma sobre a reação da esquerda argentina
— e do Che — diante do principal acontecimento do século no país: a chegada de Perón ao poder.
O pequeno Ernesto seguirá os pais, o antiperonismo juvenil dele será tão visceral como o de seus
progenitores, tão engajado como o de seus pares na universidade, tão lógico e a um só tempo
desligado da realidade argentina como o do resto da esquerda portenha. Apenas vinte anos mais
tarde ele conseguirá fechar o círculo, tornando-se amigo dos representantes de Perón em Havana,
em particular de John William Cooke,* e servindo de canal de ligação de Perón inclusive com
Ahmed Ben Bella, presidente da Argélia, ao solicitar-lhe ajuda para articular uma entrevista daquele
                             17
com Gamai Abdel Nasser.
Quando a família Guevara partiu para Córdoba, em 1943, já estavam cristalizados os principais
traços da infância e adolescência do Che. A casa permanecia sempre aberta; por ela desfilavam
crianças, amigos, visitas e inclusive pessoas de passagem, tudo numa grande desordem regida
apenas pela hospitalidade para com os forasteiros e pela liberdade da criançada da família.
Velocípedes e bicicletas circulavam pelo interior da residência, almoçava-se a qualquer hora e não
faltavam convidados. Não sobrava dinheiro; parte do caos doméstico brotava das dificuldades
económicas do casal — nunca angustiantes, mas constantes —, assim como da ausência de
Ernesto pai e da indiferença de Célia por esse género de assuntos. A ampla liberdade para as
crianças — de almoçar a qualquer hora, convidar a multidão de amigos, guardar os pertences como
e quando quisessem — tinha como contrapartida uma certa falta de estrutura. As consequências
dessa desordem fizeram-se sentir mais intensamente quando os laços que uniam o casal Guevara
de Ia Serna passaram a se tornar frágeis.
Um ano antes de toda a família se mudar para Córdoba, Ernesto foi matriculado pêlos pais no
Colégio Nacional Deán Punes, escola secundária pública de qualidade, ligada ao Ministério da
Educação. Os membros da
(*) A amizade entre o Che e Cookè teve início quando este chegou a Cuba em 1960, tendo sido
recebido por Guevara no aeroporto de Havana. Foi selada em 25 de maio de 1962, em um ato
conjunto dos argentinos em Cuba, celebrando o dia da independência de seu país (cf. Ernesto
Goldar, “John William Cooke: de Perón ao Che Guevara”, Todo es historia, Buenos Aires, jun. 1991,
vol. 25, n” 288, p. 26).
elite local — à qual Ernesto pertencia por direito — costumavam estudar no Colégio Montserrat; os
da classe média emergente preferiam o Deán Funes. A escolha dos pais se revelou afortunada.
Ernesto conviveria durante cinco anos com jovens de diferentes origens sociais e profissionais.
Claro que não se deve exagerar; nos anos 40, Córdoba era uma cidade relativamente homogénea,
branca e burocrática, inserida em uma província agrícola ainda próspera e onde a segregação
geográfica dissimulava as inegáveis diferenças sociais. Porém sua população já disparara. Passou
de 250 mil habitantes em 1930 para 386 mil em 1947: um crescimento vertiginoso e nunca visto na
cidade. Os habitantes de renda mais baixa, recém-chegados do campo e dedicados à prestação de
serviços, se aglomeravam na periferia. Em alguns bairros, as moradias rústicas dos pobres
confinavam com a cidade “bonita”. A industrialização viria depois, com a chegada da indústria auto-
mobilística, em fins da década de 40.
Iniciava-se uma nova etapa para o Che, tanto na escola como na eterna luta contra a asma: em
Córdoba ele começou a participar ativamente de competições esportivas organizadas, e sobretudo a
jogar rúgbi. Era o esporte preferido da Argentina angiófila: violento e cerebral. Algumas partidas se
realizavam no Lawn Tennis Club, onde Ernesto também jogou ténis e golfe, e praticou natação. Ali o
imberbe estudante secundarista fez amizade com dois irmãos: Tomás, da mesma idade que ele, e
Alberto Granado, seis anos mais velho, com os quais viveria aventuras decisivas. Tomás foi o
grande amigo da adolescência; Alberto, o da juventude, das viagens e da abertura para o mundo.
Juntos fizeram o colegial, tiveram os primeiros casos amorosos e se viram expostos à efervescência
política que sacudiu a vida do país a partir de 17 de outubro de 45: a irrupção de Perón, dos
cabecitas negras e do autoritarismo argentino, católico e conservador.
O rúgbi tinha duas implicações para o jovem asmático, já marcado pêlos estragos pulmonares
clássicos na enfermidade respiratória. Por um lado, constituía um excepcional desafio. Já então se
sabia que, de todos os fatores que causam crises asmáticas, a prática de exercícios vigorosos
provoca a maior incidência de ataques.* Superar as crises e controlá-las com a vontade, um inalador
ou mesmo injeções de epinefrina, tudo isso logo se converteu em um tipo de comportamento que
Guevara adotaria até o último de seus dias. Ao mesmo tempo, o rúgbi atribui aos jogadores vários
papéis
(*) “O exercício físico é o desencadeador mais comum da asma. Oitenta por cento dos doentes de
asma sofrem algum tipo de estreiteza do peito, tossem ou ofegam ao se exercitar” (Thomas F. Plant,
Children withasthma. Nova York, Pedipress, 1985, p. 56).
e funções, uns mais exigentes que outros. A posição de meio-scrum* tinha para Ernesto a grande
vantagem de ser a mais estática e estratégica, menos móvel e tática. A posição escolhida
beneficiaria Ernesto de duas maneiras:
dando-lhe oportunidade de desenvolver seus dotes de líder e estrategista e permitindo-lhe jogar sem
ter de atravessar o campo durante a partida inteira. Isso não significa, evidentemente, que os
acessos não acontecessem. As vezes o surpreendiam ao longo da partida, obrigando-o a refugiar-
se na arquibancada, onde ostensivamente ele mesmo se aplicava uma injeção de adrenalina
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através da roupa, talvez para chamar atenção. O desafio era enorme e ao mesmo tempo
superável, dadas determinadas condições — uma combinação que haveria de perdurar na vida de
Guevara, tanto quanto a asma, pois, ao contrário do que ocorre em muitos casos de asma infantil, o
sofrimento do Che não se esvaneceu com a idade.
As explicações psicanalíticas para a etiologia da asma não têm aceitação entre os médicos;** a
doença é acima de tudo hereditária. As interpretações baseadas na angústia do doente, em sua
incapacidade de exteriorizá-la e na impossibilidade de enfrentar a ambivalência geradora da aflição
talvez sirvam mais para explicar a permanência da enfermidade que a sua origem. São
especialmente sugestivas para se compreender a evidente dificuldade do Che, ao longo de toda a
vida, com emoções ou desejos contraditórios, na família, na escola, nos amores e inclusive em
política. A asma seria a resposta do Che para uma angústia recorrente e primária, impossível de ser
exteriorizada ou verbalizada e que, contida, provoca o sufocamento. A angústia, por sua vez, surgia
e se exacerbava com a frequência e a ubiqüidade da ambivalência, inadmissível para Ernesto
justamente pela angústia que desencadeava. A única cura possível — que ele j amais alcançaria —
seria esquivar-se da ambivalência recorrendo à distância, à viagem e à morte.
Entre os fatores que provocam a asma figuram vários de origem fisiológica — as infecções virais, o
exercício físico, o pó ou qualquer elemento
(*) “O meio-scrum é uma ligação entre o ataque e a defesa [...] E o homem que inicia a jogada de
ataque [...] e o mais indicado para constituir-se em líder dentro do campo, pois cons-tantemente
deve dar ordens aos atacantes [...] Sua função não requer velocidade, mas controle de bola [...]
Exigia-se dele uma função estática, na qual não corria o risco de ficar sem fôlego” (Hugo Gambini,
Ei Che Guevara, Buenos Aires, Paidós, 1968, p. 48).
(**) “A asma provém de um complexo conjunto de fatores fisiológicos que ainda não
compreendemos em sua totalidade. Mas podemos afirmar com certeza que não é produto de uma
relação irregular entre mãe e filho ou qualquer outro problema psicológico, como foi sugerido no
passado” (Plant, op. cit., p. 62).
que cause alergia e as mudanças de clima —, aos quais se somam problemas emocionais: os
tormentos afetivos, a sensação de perigo iminente, a expectativa, situações conflitivas,
aparentemente sem saída e nas quais toda alternativa implica custos. O vínculo entre a dilatação
dos brônquios contraídos e a adrenalina leva situações que acarretam descargas endógenas de
adrenalina — como o combate, por exemplo — a evitar crises, enquanto outras, que requerem
decisões, podem desencadeá-las justamente em virtude da ausência de descargas endógenas de
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adrenalina. Se essa interpretação está correta, ajuda em grande medida a elucidar a incapacidade
do Che para aceitar a presença simultânea dos contrários em sua vida: os problemas e o
distanciamento dos pais, a contradição intrínseca do peronismo, a ambiguidade da relação dele com
Chichina Ferreyra. Por fim, Guevara não poderia conciliar os imperativos da sobrevivência da
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Revolução Cubana com as épicas e notáveis aspirações humanistas e sociais que lhe quis incutir.
Com base em seus boletins escolares, ficamos sabendo que Ernesto era um estudante mediano,
tendo se destacado em humanidades. Em 1945, seu quarto ano de colegial, por exemplo, distinguiu-
se em literatura e filosofia;
obteve notas medíocres em matemática, história, química, e verdadeiramente desastrosas em
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música e física. Sua total falta de ouvido tomou-se proverbial: não diferenciava ritmos nem
melodias, nem jamais se aventurou na dança ou no aprendizado de algum instrumento. Alberto
Granado contaria anos depois como isso se evidenciou em uma viagem que fizeram pela América
do Sul:
Tínhamos combinado que eu lhe daria um tapinha cada vez que pudesse dançar, e ele só havia
aprendido o tango, que se pode dançar sem ter ouvido. Era o dia do aniversário dele, e o Che fez
um discurso fantástico, que para mim provava que aquele rapaz não era um louco, que tinha alguma
coisa; ele dançava com uma indiazinha, enfermeira do leprosário do Amazonas. E então tocaram
“Delicado”, um baião que estava na moda e, além disso, era das músicas preferidas da namorada
que Ernesto tinha deixado em Córdoba. Quando lhe dei o tapinha, lá foi ele, dando os passos do
tango. Era o único. Eu não conseguia parar de rir, e quando ele percebeu ficou zangado comigo.”
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Seu inglês também era sofrível: no quarto ano ficou com média 3, enquanto seu francês, aprendido
em casa com Célia, chegou a ser rico e fluente, quem sabe mais ainda rico. Contudo, o seu nível
educacional geral e a cultura do Che, segundo os companheiros, sobressaíam. Ele comprava livros
de todos os ganhadores do Prémio Nobel de literatura; discutia constante-mente com os professores
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de história e literatura. Tinha conhecimentos de que os demais nem sequer suspeitavam. Seus
resultados apenas satis
fatórios* deviam-se talvez ao acúmulo de atividades: os esportes, o xadrez (que jogaria a vida
inteira, adquirindo uma perícia notável), o primeiro emprego, no Departamento Provincial de Viação,
em Córdoba, e depois em Vilia Maria. Como disse seu pai, “era um mago do emprego do tempo”.”
Um episódio da época ilustra a generosa e obstinada vocação de Ernesto filho para superar o
abismo que o separava dos setores mais humildes da sociedade de Córdoba e rechaçar as
evidências mais flagrantes de injustiça. A rua Chile, onde residia a família Guevara, confinava com
uma das favelas mais pobres da cidade. Ali os excluídos e despossuídos, recém-chegados do
campo, viviam em casas de papelão e zinco, como em toda a América Latina. No monturo
vagabundeava um personagem de Dante: o chamado Homem dos Cachorros, um aleijado, privado
das pernas, que se arrastava em um carrinho de brinquedo, ladeado por um par de cães nos quais
descarregava toda a fúria que seu destino lhe inspirava. Toda manhã, ao sair do buraco na terra que
lhe servia de casa, açoitava os cães, que só com grande esforço conseguiam iça-lo até o nível da
rua. O rosto convulsionado e os ganidos dos animais anunciavam a aparição dele; era um
acontecimento no bairro. Um dia, as crianças da favela começaram a zombar do Homem dos
Cachorros e a apedrejá-lo. Ernesto e seus amigos, que literal e figurati-vamente viviam na rua de
cima, assistiram ao espetáculo e o interromperam. Ernesto exortou seus conhecidos da favela a dar
um fim naquilo. O Homem dos Cachorros, em vez de agradecer ao jovem Che, fulminou-o com um
olhar gelado, repleto de um ancestral e irremediável ódio de classe. Nas palavras de Dolores
Moyano, que relata o episódio, o disparate deu uma grande lição a Ernesto: os inimigos do homem
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não eram os meninos pobres que o apedrejavam, mas os meninos ricos que tentavam defendê-lo.
Ernesto aprenderia a lição apenas em parte.
Esses anos marcam um distanciamento na relação conjugal dos pais e o agravamento dos traços de
penúria e desordem já presentes em Alta Gracia. Data de então o romance — mais ou menos
conhecido nos restritos círculos de Córdoba, nos quais a família se movimentava — de Ernesto
Guevara Lynch com Raquel Hevia, cubana de beleza excepcional, conhecida na cidade como
mulher sedutora e alegre.** Não foi a primeira nem a última
(*) Há uma certa continuidade em suas preferências escolares: um boletim do primário, datado de
1938, atesta que sua melhor média foi em história, seguida por educação moral e cívica, enquanto o
desempenho em desenho, trabalhos manuais e música era precário, e os resultados em aritmética e
geometria, medianos (ver Korol, p. 35).
(**) “Raquel Hevia era fascinante. Era belíssima, e Ernesto estava encantado com ela” (Betty Feijin,
entrevista com o autor, Córdoba, 18/2/95).
das aventuras de Ernesto pai; como recorda Carmen, a prima enamorada do Che, “sabia-se que ele
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era muito mulherengo; Célia sabia”.
Atriz de algum talento, a mãe de Raquel se instalara em Córdoba por motivos de saúde. Foi durante
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a guerra que teve início a relação com Ernesto pai. Apesar da notoriedade do caso — “Era um
                               29
espetáculo em Córdoba” —, Guevara Lynch em certa ocasião levou a moça para visitar sua casa,
o que certamente não agradou ao Che nem a sua mãe. O incidente marcou a tal ponto Ernesto filho
que, alguns anos depois, quando em meio a uma conversa sua namorada Chichina Ferreyra citou o
nome da mulher, ele respondeu, cortante e irritado: “Nunca mencione esse nome na minha
             30
presença”.
Logicamente as tensões no seio do casal Guevara de Ia Serna perduravam e se agravavam, agora
afetando os cinco filhos, três deles já maiores. Como recorda Betty Feijin, contemporânea de
Guevara e por muitos anos esposa de Gustavo Roca, um advogado de Córdoba de quem ele se
tomaria amigo íntimo mais tarde, em Cuba:
A vida familiar era complicada. Lembro-me de quando nasceu Juan Martín, o menor dos irmãos de
Ernesto, e fui vê-lo. Lembro-me da casa onde viviam;
deparei com uma coisa que me pareceu tão desorganizada... dava uma sensação de pobreza, de
descuido. Célia era uma mulher muito inteligente, bastante atraente como pessoa, podia-se
conversar muito bem com ela, mas sentia-se que as coisas não iam bem... E ai, uma dessas coisas
que as crianças comentam: que Ernesto estava separado. Houve diversos períodos de grandes
divergências conjugais e de problemas financeiros. Inclusive viviam pobremente; bem do ponto de
vista sociocultural, mas com seriíssimas limitações económicas.*
Dolores Moyano desenvolveu uma tese sobre a vida doméstica da família Guevara nessa fase. Em
sua solidão, e diante das crescentes dificuldades dos filhos menores para se desenvolver em um
ambiente caracterizado já não só pela desordem mas também por apuros financeiros e pela crise do
casamento, talvez a mãe adoradora e adorada tenha sucumbido à tentação de pôr o filho mais velho
no lugar do pai. A primeira separação
(*) Feijin, op. cit. O pai do Che alude a essas “divergências conjugais” da seguinte maneira: “A
imprensa mundial [...] se pôs a fazer soar sua charanga de invenções e mentiras. Alguns
‘comentaristas’ chegaram a afirmar que em nossa casa minha mulher e eu sentávamos à mesa
cada qual com um revólver na cintura para dirimir qualquer discussão a tiros. Porém, nada disseram
sobre como nos complementamos em tudo o que se referisse à luta pêlos ideais políticos e sociais”
(Guevara Lynch, op. cit., p. 105).
propriamente dita dos Guevara — provisória, ambígua, relativa — só ocorreria em Buenos Aires, em
1947, mas em todo caso seu prólogo já estava em curso.* A complexidade da situação ficou na
memória de Carmen Córdova: “Era como se Ernesto [pai] tivesse ido embora, pois decidiu que iria,
mas logo reaparecia. Tampouco era uma relação de rompimento do casal ou o fim do casamento”.”
Em 1943 nascera o último filho do casal, juan Martín. Sua relação com Ernesto seria representativa
da adolescência em Córdoba e em seguida da mocidade portenha do Che. Nessa relação
comprova-se a teoria de Dolores Moyano: “Eu era como uma espécie de irmão-filho: Ernesto era
meu pai e meu irmão ao mesmo tempo. Levava-me para passear, carregava-me nos ombros,
                                              32
brincava comigo e eu o via como meu pai”.
Nas outras tarefas da casa — e evidentemente não se tratava apenas de funções domésticas —
talvez Célia estivesse começando a solicitar de maneira inconsciente mas firme uma maior
responsabilidade de seu primogénito e preferido. Segundo um primo irmão de Ernesto, o Che entre-
gava sempre à mãe uma parte dos salários provenientes dos variados empregos que conseguira na
capital nessa época. “Tive a impressão de que de algum modo, pouco a pouco, ele começava a
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substituir o pai.” E provável que essa exigência não se verbalizasse nem chegasse a uma
formulação explícita; a comunicação entre mãe e filho admitia insinuações e meias palavras. Pouco
a pouco, em vista da crescente pressão materna, o jovem Che iria se distanciar; não no que se
refere ao carinho ou à dedicação aos pais e irmãos, mas fisicamente. A isso se deveria em parte o
início de suas viagens logo a seguir, com o posterior e interminável perambular pelo mun-
(*) Alguns biógrafos a situam algum tempo antes, em Córdoba. Assim, Marvin Resnick, em The
Black Beret, the life and mearúng ofChe Guevara (Nova York, Ballantines Books, 1970), afirma: “Em
1945, quando Ernesto ainda estava no colegial, os Guevara se separaram. O sr. Guevara mudou-se
para outra casa, mas via a esposa e os filhos todos os dias” (p.
27).JáDanielJames,emseuCrieGuevara:aí)iogTflprry (Nova York, Stein and Day, 1969), diz que a
separação se deu quando a família chegou a Buenos Aires, em 1947. Martin Ebon, em Crie: the
making ofa legend (Nova York, Universo Books, 1969, p. 15), concorda: a separação ocorreu em
Buenos Aires, em 1947. Por fim, Carlos Maria Gutiérrez, talvez o mais qualificado dos biógrafos —
embora seu texto jamais tenha sido pubi içado na íntegra —, afirma que a separação ocorreu em
1950 (LUÍS Bruschtein/Carlos Maria Gutiérrez, “Los hombres, Che Guevara”, Página 12, Buenos
Aires, p. l). Não é preciso dizer que nem o próprio pai do Che nem nenhuma das fontes oficiais ou
oficiosas cubanas menciona a separação do casal. Aparentemente, preferem manter imaculada, em
todos os sentidos possíveis da palavra, até a mais tenra infância de Ernesto Guevara.
do.* Esse enfoque serve também para explicar em parte a decisão inicial de estudar engenharia em
Córdoba, quando seus pais e irmãos já tinham se mudado para Buenos Aires. Porém não chegara
ainda o momento da separação. Por diversos motivos, que examinaremos depois, ele modificaria
seu plano original; seguiria a família até a capital, embora nunca tivesse chegado a lançar realmente
raízes em Buenos Aires.
Remonta a esses tempos de colegial o primeiro encontro do Che com Maria dei Carmen (Chichina)
Ferreyra. O namoro só se concretizou três anos mais tarde, em 1950, quando Guevara cursava
medicina na Universidade de Buenos Aires. Mas nesse período o grupo de amigos de Ernesto já
começa a convergir com o de Chichina: muitos primos e primas dela são também próximos de
Guevara, dos Granado e de outros do mesmo círculo de amizades. Convergência, não assimilação.
O Che veste-se de maneira diferente (até provocativamente desarrumada), tem gostos distintos e
uma cultura muito superior. Em alguma parte recôndita de sua psique assoma uma ténue
politização, nesse momento ainda revestida de um tom exclusivamente emocional: simpatia e
sentimentos nobres para com os menos favorecidos que ele; disposição de lutar por todos os meios,
mas sem saber muito bem para quê, nem por quê.
Um dos episódios mais citados da biografia do Che é o que Alberto Granado relatou: sua própria
detenção em Córdoba, em 1943, por ter assistido a uma manifestação estudantil antigolpista.
Quando Ernesto o visitou no comissariado de polícia, Granado pediu-lhe que convocasse com
outros amigos manifestações dos secundaristas. Segundo a versão consagrada, o Che respondeu,
atónito: “Sair em passeata para que caiam em cima de nós? Nem louco. Eu só saio se levar um
bufoso [uma pistola]”. Mais que um sinal premonitório da vocação revolucionária ou mesmo da
propensão para a violência, o incidente denota no Ernesto Guevara de dezesseis anos uma com-
batividade desnorteada e uma ideia da correlação de forças: não convém brigar se não se pode
         34
ganhar.
(*) Jorge Ferrer, no relato pessoal anteriormente citado, diverge de maneira enfática dessa
interpretação de Dolores Moyano: “Em nenhuma de nossas conversas Ernesto mencionou ou disse
algo que sugerisse que se sentia pressionado por Célia em qualquer sentido, ou incomodado pêlos
problemas financeiros da família. Conhecendo Célia, estou convencido de que em nenhuma
circunstância ela teria incomodado algum dos filhos com seus problemas e muito menos com
problemas financeiros”. Convém recordar que os anos a que Dolores Moyano se refere são os de
Córdoha, enquanto Ferrer conviveu mais de perto com o Che em Buenos Aires. Em segundo lugar,
ela fala de impulsos mais inconscientes, menos literais; Ferrer busca uma literalidade que sem
dúvida não existiu, mas cuja ausência não invalida a análise mais sofisticada de Dolores Moyano.
Essa nascente consciência política seria inevitavelmente marcada pela influência dos pais, da
intelectualidade de Córdoba e da escassa atenção que o próprio Che consagrava a temas políticos
em suas conversas e momentos de ócio com os amigos. Ele não era um colegial apaixonado pelo
processo político, nem imbuído de paixões políticas particularmente vigorosas ou claras.* já
esboçava um viés de antiamericanismo exacerbado,
‘não de todo atípico na intelectualidade da época em Córdoba, “a douta”.** Também abriga um
indubitável sentimento antiperonista, mas proveniente sobretudo do ciclo antiautoritário que incluiu a
guerra da Espanha, a luta contra o nazismo na Europa e na Argentina, a oposição ao golpe de
Estado de 1943 e a rejeição de Perón por parte da velha esquerda da classe média intelectualizada.
Não se encontra em nenhum relato, por exemplo, a rea-ção de Ernesto ao que foi sem dúvida, na
memória dos argentinos que o testemunharam, o acontecimento político-social mais importante de
suas vidas até então: a jornada de 17deoutubrode 1945 em Buenos Aires, quando a classe operária
tomou as ruas para resgatar Perón da ilha onde se encon-
‘ trava preso e conduzi-lo pêlos ares, metafórica e fisicamente, à Presidência
da República. rf’4- Em fins de 1946 o jovem Guevara concluiu seus estudos secundários;
passou o verão trabalhando no Departamento Provincial de Viação em Vil-la Maria. Seu emprego,
assim como certa inclinação — mas não destreza — para a matemática e a decisão de seu melhor
amigo, Tomás Granado, de entrar na Faculdade de Engenharia de Córdoba, o induziam a seguir
essa carreira na cidade provinciana. Sua família já partira para Buenos Aires, ocupando a casa da
mãe de Ernesto Guevara Lynch. Porém, em março de 1947, a avó do Che, Ana Lynch, adoeceu, e o
neto foi à capital cuidar dela em seus últimos dias. Após a morte da avó, Ernesto tomou uma
decisão crucial: matricular-se na Faculdade de Medicina de Buenos Aires e voltar a viver com os
pais, em uma casa da rua Araoz. Esta, contudo, já não espelhava por
(*) Sabemos, pela reprodução de algumas páginas de seus cadernos filosóficos ou ‘Dicionário
filosófico”, que ele começou a ler Marx e Engeis em 1945, aos dezessete anos: pelo menos o Anti-
Duhring, o Manrfesto comunista e A guerra civil na França. No entanto, pelas anotações do jovem
leitor, trata-se de leituras de índole mais filosófica que política, ainda que tenham sem dúvida surtido
um efeito político.
(**) O garçom do Sierras Hotel, que Ernesto pai frequentara antes e ao qual Ernesto rilho retornava
com seus amigos em algumas ocasiões, recorda que ele nunca pedia Coca-Cola e, se a ofereciam,
recusava com veemência: “Ficava frenético”. A precisão da lembrança pode, contudo, deixar algo a
desejar (Francisco Fernández, entrevista como autor, Alta Gra-cia, 17/2/95).
inteiro um lar. Conforme narra euremisticamente Roberto Guevara: “Ernesto frequentava muito um
estúdio, bem velho, que tinha na rua de Para-guay, 2034, primeiro andar, A”.” Ou, como recorda um
primo de ambos, mais próximo de Roberto que de Ernesto na idade e na vocação: “Nos últimos
tempos seus pais já estavam praticamente separados; Ernesto, suponho, em geral não ia dormir em
casa. Quando estavam na Araoz ele tinha seu
estúdio de arquiteto, na rua de Paraguay, perto da faculdade de medicina, onde dormia”.’”
Ernesto residiria na Araoz até deixar a Argentina, em 1953. Portanto, chegará em definitivo a
Buenos Aires pouco mais de um ano depois de Perón tomar-se presidente; partirá para sempre da
pátria menos de um ano após a
morte de Evita Perón, em 26 de fevereiro de 1952, no início do ocaso do primeiro período de Perón
no poder.
2
ANOS DE AMOR E INDIFERENÇA: BUENOS AIRES, PERÓN E CHICHINA
O capítulo portenho de Che Guevara será simultaneamente de formação — não poderia ser de
outra maneira: os anos universitários, como as viagens, forment lajeunesse — e prelúdio da etapa
seguinte, decisiva e apaixonante. Abrangerá sua introdução no amor, a viagem e a profissão falida,
assim como um vislumbre adicional — não mais que isso —de despertar político. Essa etapa tem
lugar em um ambiente excepcional: a profunda transfiguração da Argentina que começa em
l°deoutubrode 1946, com a posse de J uan Domingo Perón no cargo de presidente constitucional da
República argentina.
Três explicações podem ser dadas para a decisão de Ernesto Guevara de Ia Serna de ingressar na
Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. A primeira foi a morte de sua avó, Ana
Lynch, motivo que goza de numerosos adeptos, em virtude da coincidência no tempo com a
resolução do candidato a engenheiro, já matriculado na Escola de Engenharia, de estudar medicina.
* Ernesto, consternado pelo falecimento de sua única avó, com quem
(*) O primeiro adepto é evidentemente seu pai, que relaciona de modo direto a decisão de estudar
medicina com a morte da avó do Che: “Recordo que [Ernesto] me disse:
‘Velho, mudo de profissão. Não seguirei engenharia, vou dedicar-me à medicina’” (Ernesto Guevara
Lynch, Mi hijo el Che, Madri, Planeta, 1981, pp. 226-47). Sua irmã Célia partilha esse ponto de vista:
“Ele via que não podia fazer nada por ela, que estava morrendo, e então achou que devia estudar
medicina [...] por isso mudou de engenharia para medicina” (Célia Guevara de Ia Serna, depoimento
colhido em Adys Cupull e Froilán Gonzáiez, Emestito: vivo y presente. Iconografia testimoniaAi de ifl
infância y lajuventud de Ernesto Che Guerara Í928-1953, Havana, Editora Política, 1989, p. 111).
Outros biógrafos que enfatizam essa conexão são J. C. Cernadas Lamadrid e Ricardo Halac, que
afirmam: “Assim que a família Guevara chega a Buenos Aires, a avó Lynch adoece. Ernesto [...]
acompanha-a
mantinha desde pequeno uma relação estreita e carinhosa, reagiu como o jovem impulsivo e
obstinado que já então se tomara. Visando evitar que outros morressem do mesmo mal, ele se
propôs encontrar uma cura para a enfermidade que a matou (um derrame cerebral, segundo a irmã
do Che);* para tanto, não havia outro caminho a não ser estudar medicina. A explicação não é
absurda e, embora possa parecer insuficiente, é preciso outorgar-lhe certa importância.
A segunda explicação diz respeito ao câncer mamário detectado em Célia de Ia Serna Guevara,**
um diagnóstico que abalou profundamente seu filho.*** Conforme a versão relatada ao autor por
Roberto Guevara, irmão menor do Che, e Roberto Nicholson, primo do cirurgião que atendeu Célia,
a
dia a dia, até a morte. Essa experiência parece ter sido determinante; poucos dias depois ele decide
ficar na capital e começar a estudar medicina” (J. C. Cemadas Lamadrid e Ricardo Halac, Yofui
testigo: el “Che” Guevara, Buenos Aires, Editorial Perfil, 1986, p. 20). Dois admiradores argentinos,
Estehan Morales e Fabián Rios, em seu “Comandante Che Guevara” (Cuademos de América Latina,
1/10/68, p. 5), também atribuem o estudo da medicina a “um fato singular: a morte da avó paterna”.
A versão cubana raais ou menos oficial também é essa: “Em seguida ao fatal desenlace [da avó] [...]
ele se matricula na faculdade de medicina” (Atlas histórico, biográfico y militar de Ernesto Guevara,
Havana, 1990,t. l, p. 37).
(*) Célia Guevara de Ia Sema, op. cit. O pai também afirma que a causa moreis foi um derrame
cerebral, e não o câncer que vários biógrafos apontam (Guevara Lynch, op. cit., p. 247).
(**) Entre os partidários dessa tese figuram Andrew Sinclair: “A morte da avó de câncer, e a luta da
mãe contra a mesma enfermidade levaram o Che a ser doutor” (Andrew Sinclair, C/ie Guevara,
Nova York, Viking Press, 1970, p. 3). Vários outros biógrafos do Che mencionam a enfermidade da
mãe como o fator que o levou a cursar medicina (cf. Daniel James, Che Guevara: a biography, Nova
York, Stein and Day, 1969; Martin Ebon, Che: the makingofa legend. Nova York, Universe Books,
1969; Marvin Resnick, The Black Beret, the life and meaning ofChe Guevara, Nova York, Ballantine
Books, 1969). Um biógrafo alemão, cujo texto contém numerosos erros e claras fantasias (ver mais
adiante a nota da página 65), mas inclui também acertos interessantes, relaciona a enfermidade da
mãe com o empenho do Che em encontrar uma cura para o câncer em seu pequeno laboratório
doméstico com porquinhos-da-índia, mas não com a decisão de estudar medicina: “Quando sua
mãe teve de se submeter a uma operação, em virtude de um tumor canceroso no seio, ele construiu
um laboratório amador e começou a fazer experiências com porquinhos-da-índia, na esperança
otimista de desvendar o segredo dessa enfermidade” (Frederik Hetmann, Yo tengo siete vidas,
Madrid, Lóguez Ediciones, 1977, p. 23).
(***) “Célia, minha mulher, foi tratada com radioterapia para erradicar um tumor maligno. Um dia
disse-me que encontrara uma protuberância no seio [...] Os médicos [...] decidiram operá-la
imediatamente [...j Quando [Ernesto] se deu conta de que levavam a mãe para a sala de operações
e o resultado da intervenção era incerto, perdeu a serenidade (...] Seguiu passo a passo o processo
de cura de sua mãe” (Guevara Lynch, op. cit., p. 247).
primeira operação foi em 12 de setembro de 1945.* Extirpou-se uma parte considerável do seio em
razão da presença de um tumor maligno e “muito ati-vo”. A cirurgia foi um êxito e não teve maiores
consequências. Ocorreu, portanto, dois anos antes da decisão do Che de estudar medicina e sem
dúvida foi fundamental em suas opções. Em outubro de 1949 Célia queixou-se de que a cicatriz da
operação de 1945 a estava incomodando; em princípios de 1950 foi submetida a nova intervenção,
em que se extirpou todo o seu seio e extraiu-se o aparelho reprodutivo. Célia demorou muito mais
para se recuperar dessa operação, e dezessete anos mais tarde morreria de câncer, talvez por
causa de sequelas do tumor inicial. Não é difícil supor que um rapaz extraordinariamente apegado à
mãe, ao saber um belo dia que ela padecia de câncer, ainda que os médicos j ulgassem que a
enfermidade específica de Célia fosse curável, tenha sofrido um golpe devastador.** Se Ernesto
resolveu se dedicar à medicina para impedir que outros morressem como sua avó, maiores motivos
teria para tentar evitar uma hipotética (ainda que provável) recaída da mãe, figura muito mais
próxima e intensamente ligada a ele que Ana Lynch.
Nenhuma das fontes oficiais cubanas sequer menciona a enfermidade de Célia, muito menos os
efeitos que teve na vida, carreira e personalidade do filho. * * * Também não se fala da separação
dos pais do Che — parece que
(*) Esses fatos foram relatados ao autor por Roberto Guevara, o irmão mais novo do Che, durante
uma entrevista realizada em Buenos Aires, em 22 de agosto de 1996. Por sugestão dele, foi
possível consultar pessoas diretamente relacionadas com os médicos que atenderam Célia. A
pessoa que realizou a investigação por conta do autor também pôde corroborar alguns fatos junto a
Célia Guevara, irmã do Che. Em um depoimento escrito, Jorge Ferrer, amigo próximo de Ernesto
durante esse período, assinala que “quando descobriram o tumor de Célia, Ernesto já estava
cursando o segundo ano de medicina” (Jorge Ferrer ao autor, 11/3/96). Ferrer desconhecia a
existência do primeiro tumor e da primeira operação. Talvez isso se devesse a um certo segredo
que cercava a enfermidade de Célia. Dolores Moyano, por exemplo, acreditava que as repetidas
reclusões de Célia em seu quarto deviam-se a uma depressão (Dolores Moyano, entrevista com o
autor, Washington, DC, 26/2/96).
(**) “Quando Ernesto era estudante de medicina, sua mãe foi operada do seio em virtude de um
possível tumor maligno. O Che ficou tremendamente afetado” (testemunho de Armando March,
                                   3
encontrado em Primera Plana, n 251, Buenos Aires, 17/10/67, p. 29).
(***) A enfermidade da mãe não é mencionada em nenhuma das obras cubanas dedicadas ao tema
que pudemos consultar: nem no Atlas histórico (op. cit.), nem Adys Cupull e Froilán Gonzáiez em
suas obras a respeito (L/n homhre bravo, Havana, Editorial Capitán San LUÍS, 1994), nem no
trabalho mais recente publicado com o apoio de fontes cubanas — Jean Cormier, com a
colaboração de Alberto Granado e Hilda Guevara, Che Guevara, Paris, Éditions du Rocher, 1995.
os heróis revolucionários não podem incluir em sua biografia episódios penosos ou amargos: os pais
não brigam nem adoecem, nem os tropeços de suas vidas têm maior influência sobre os filhos.
Algum dia haverá que se examinar por que o stalinismo, em qualquer de suas versões, seja a polar
ou a tropical, só reconstitui homens maus ou perfeitos, nunca seres humanos normais que, por seu
talento e pela época em que vivem, se transformam em personagens extraordinários.
Por último, há a tese de que Ernesto estudou medicina em busca de um alívio para sua própria
enfermidade respiratória.* Além do peso dos teste->• munhos em seu apoio,** ela possui uma
poderosa justificativa intrínseca. A especialização medicado Che orientou-se precisamente para as
alergias;*** suas investigações sob a orientação do dr. Salvador Pisani, na faculdade de medicina,
também permaneceram nessa área.**** Inclusive durante o período que passou no México antes de
embarcar na expedição do Granma — única fase em que ele exerceu sua profissão —, seu
esporádico e escasso trabalho médico girou em torno de problemas alérgicos e dermatológicos.
***** Não seria descabido pensar que sua própria doença contribuiu de alguma maneira para a
escolha de uma carreira para a qual ele não tinha nenhuma vocação aparente.
(*) John Gerassi, o divulgador da obra do Che nos Estados Unidos, menciona essa explicação, mas
confere-lhe maior importância como fator que levou Ernesto a especializar-se em alergias: “Mas o
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A vida em vermelho de Che Guevara

  • 1. Che Guevara A VIDA EM VERMELHO ÍNDICE Este livro..................................................................................... 1 Morro porque não morro............................................................. 2. Anos de amor e indiferença: Buenos Aires, Perón e Chichina.... 3. Os primeiros passos: navegar é preciso, viver não é preciso......... 4. No fogo com Fidel ....................................................................... 5. Nosso homem em Havana .......................................................... 6. “Cérebro da Revolução”, cria da URSS ......................................... 7. A bela morte não compensa........................................................ 8. Com Fidel, nem casamento, nem divórcio.................................. 9. O coração nas trevas de Che Guevara......................................... 7 10. Traído por quem ......................................................................... 11. Morte e ressurreição.................................................................... Notas .......................................................................................... Agradecimentos ......................................................................... índice onomástico...................................................................... Para Jorge Andrés, que não conheceu os anos 60 mas que algum dia viverá tempos melhores ESTE LIVRO Uma pesquisa desta natureza requer uma grande multiplicidade de fontes. Nenhuma delas é perfeita nem suficiente em si mesma; todas encerram enigmas, defeitos e lacunas. Até aquelas aparentemente incontestáveis cartas, anotações ou diários do sujeito mesmo da biografia apresentam contradições e exigem reserva. Afinal, quem é transparente consigo mesmo? E acima de tudo, por se tratar de um tema eminentemente político, nenhuma fonte é neutra: todas carregam a marca de seu posicionamento ideológico. O trabalho do historiador, biógrafo ou mero escritor imbuído de curiosidade consiste em agrupá-las, cotejá-las, separar o joio do trigo e buscar conclusões que se baseiem na soma do material, não no material preferido ou mais acessível. Nos últimos anos, diversos estudiosos da vida de Che Guevara vêm desenterrando material inédito, ou publicado em edições restritas de algumas de suas obras. Trata-se de fontes de grande valor, mas não definitivas. Neste texto, materiais de tal natureza desempenharam um papel importante — refiro-me principalmente a suas cartas a Chichina Ferreyra, às chamadas Actos dei Ministério de Industrias e a Pasajes de Ia guerra revolucionaria (el Con- go) —, ao lado de outras fontes que confirmam os ditos e escritos do próprio Che. Constituem um acervo novo e crucial para toda pesquisa contem- porânea sobre Che Guevara. Um segundo acervo encontra-se nos arquivos de Estado dos países envolvidos, direta ou indiretamentè, na vida e morte do Che. Os cubanos não têm arquivos disponíveis: ou porque não existem, ou porque não os abrem. A única consequência disso é que a versão cubana documentada dos fatos não se reflete em nenhum trabalho sério. Talvez algum dia Havana decida contar sua versão da história valendo-se de seus arquivos, e não só das lembranças mais ou menos fiéis, mais ou menos geniais, de Fidel Castro. Enquanto isso não ocorre, dispomos de outros arquivos, mais acessíveis, que
  • 2. contêm um enorme volume de informação extremamente útil no presente trabalho. Esses arquivos pertencem a três governos: o dos Estados Unidos, o da ex-URSS e o do Reino Unido. Cada um deles merece um breve comentário. Os Estados Unidos atravessam um período de grandes mudanças quanto às regras em relação a sua própria história. Muitos arquivos foram abertos; muitos outros permanecem fechados. Graças ao sistema de bibliotecas presidenciais e universitárias, é relativamente fácil o acesso às informações já liberadas. Com base nos princípios legais de liberdade de informação e de revisão obrigatória (Freedom of information e Mandatory review), pode- se pleitear o acesso à informação restrita. Todos os arquivos e documentos do governo dos Estados Unidos aqui citados encontram-se à disposição de qualquer pesquisador; basta saber onde procurá- los e dispor dos recursos (modestos, diga-se de passagem) para obtê-los. Seja nas bibliotecas presidenciais (especialmente a de Kennedy, em Cambridge, Massachusetts, e a de Johnson, em Austin, Texas), seja nos documentos do Departamento de Estado depositados nos Arquivos Nacionais em College Park, Maryland, e em sua publicação mais ou menos regular intitulada Foreign Relations ofthe United States (FRUS), seja, por último, em publicações como o índex ofrecendy declassified documents da imprensa universitária, qualquer um pode ter acesso aos documentos consultados. Em alguns deles há trechos rasurados (sanitized), mas pode-se pedir uma revisão, que em certos casos é atendida, em outros não. Quem supõe que para a elaboração deste livro contou-se com acesso privilegiado aos arquivos da CIA, ou de quem quer que seja fora dos Estados Unidos, simplesmente carece de experiência em pesquisa historiográfica. Os arquivos do Reino Unido foram particularmente úteis neste trabalho por vários motivos muito simples. Em primeiro lugar, o Foreign Office mantém uma merecida reputação de seriedade e perícia na confecção e conservação de seus telegramas e notas. Continua sendo um dos serviços diplomáticos e de informação mais competentes do mundo. Em segundo lugar, a partir da ruptura de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba, em janeiro de 1961, a embaixada do Reino Unido passou a ser, de fato, os olhos e ouvidos de Washington em Havana. Enquanto a Suíça garantia representação oficial dos interesses norte-americanos junto a Cuba, cabia a Londres escutar, observar e analisar os acontecimentos na ilha, repassando todas as informações a Washington. Em terceiro lugar, embora as notas do MI5 só sejam liberadas ao público depois de meio século, as do Foreign Office de Kew Gardens, em Londres, podem ser consultadas já ao completar trinta anos. Como em muitos casos, e particularmente em Cuba durante os anos 60, umas e outras costumavam ser redigidas pela mesma pessoa, os informes remetidos ao serviço exterior de Sua Majestade devem guardar grande semelhança com os que foram enviados ao serviço secreto de Sua Majestade. Por último, convém acrescentar um comentário sobre os arquivos de Moscou. Como se sabe, a partir da Perestroika e, sobretudo, do fim do regime soviético, os arquivos da ex-URSS foram abertos e leiloados de maneira sele-tiva e nem sempre racional. Os arquivos do Ministério de Relações Exteriores (MID, por suas iniciais em russo) estão bem organizados e contêm verdadeiras jóias para o historiador. Neste caso, são de extremo interesse as anotações das conversas entre Che Guevara e vários enviados da URSS a Havana, em especial o embaixador Alexander Alexeiev e o encarregado de Assuntos Políticos Oleg Daroussenkov. Em 1995, esses arquivos se encontravam à disposição de qualquer pesquisador de boa-fé, desde que contasse com o mínimo respaldo institucional e com os recursos para cobrir as despesas — não totalmente justificadas — que seu acesso requer. A consulta aos arquivos do Partido Comunista da URSS é um tanto mais difícil: as despesas são maiores, o acesso é mais restrito e arbitrário. Por outro lado, muitos dos documentos ali conservados são cópias dos que se encontram no MID: a confusão entre Partido e Estado na ex-URSS não deve ser surpresa para ninguém. A terceira e última fonte primária que merece comentário consiste nas entrevistas ou na história oral que foi possível recolher ao longo da pesquisa. Insisto: nem tudo o que reluz é ouro, e nem tudo o que os protagonistas dizem ou escrevem é verdade. Deve-se trabalhar sobre os depoimentos do mesmo modo que se trabalha sobre um documento, uma estatística ou até mesmo uma foto. Para fazer este livro, pôde-se entrevistar um grande número de pessoas: em Cuba, na Argentina, na Bolívia, em Moscou, e em lugares muito mais estranhos. Sempre que possível, as entrevistas foram gravadas, embora a transcrição sintetize ou condense as palavras ditas. Em certos casos, por diferentes motivos, não foi possível gravá-las, mas contou-se com a presença de uma testemunha: as anotações contam com o respaldo de um terceiro. Em pouquíssimos casos não foi possível nem gravar, nem contar com uma testemunha: a veracidade da fonte apoia-se na credibilidade do pesquisador, nas citações^qe terceiros e na verossimilhança do depoimento. Todas as entrevistas obtidas para a elaboração desta obra estão ao alcance de qualquer pesquisador: basta procurá-las e contar com o apoio institucional (editorial, universitário ou político) pertinente. Não houve vias privilegiadas de acesso. Alguns leitores poderão se perguntar: como alguém que não viveu a época aqui resenhada, e não conheceu os personagens aqui descritos, se atreve a contar esta história? Assumo plenamente minha deficiência: eu não tinha nem quinze anos quando o Che morreu, e suas façanhas e desgraças aconteceram antes de eu chegar à idade da razão. Sem dúvida, quem viveu aquele tempo já na idade adulta deve ter muito o que contar; alguns já começam a fazê-lo. Mas a distância também tem suas vantagens. Talvez quem não conheceu de perto aqueles anos de chumbo e glória possa narrá-los com maior objetividade e precisão do que as pessoas que os sofreram na própria carne. Seja como for, o direito de propriedade não vale neste terreno: o passado que povoa estas páginas pertence a todos nós, para o bem e para o mal. A história é feita por seus protagonistas, mas escrita pêlos escritores: truísmo doloroso, mas irrefutável. ‘
  • 3. l MORRO PORQUE NÃO MORRO Limparam seu rosto, já sereno e claro, e descobriram-lhe o peito dizimado por quarenta anos de asma e um de fome no árido Sudeste boliviano. Depois o estenderam no leito do hospital de Nuestra Senora de Malta, alçando sua cabeça para que todos pudessem contemplar a presa caída. Ao recostá-lo na lápide de concreto, soltaram as cordas que serviram para atar suas mãos durante a viagem de helicóptero desde La Higuera, e pediram à enfermeira que o lavasse, penteasse e inclusive escanhoasse parte da barba rala que tinha. Quando os jornalistas e populares curiosos começaram a desfilar, a metamorfose já era completa: o homem abatido, iracundo e esfarrapado até as vésperas da morte se convertera no Cristo de Vallegrande, refletindo nos límpidos olhos abertos a tranquilidade do sacrifício consentido. O exército boliviano cometeu o único erro da campanha depois de consumada a captura de seu máximo trofeu de guerra. Transformou o revolucionário resignado e encurralado, o indigente da quebrada dei Yuro, vencido por todos os preceitos da lei, envolto em trapos, com o rosto sombreado pela fúria e a derrota, na imagem de Cristo da vida que sucede à morte. Seus verdugos deram feição, corpo e alma ao mito que percorreria o mundo. Quem examinar cuidadosamente essas fotos há de querer entender como o Guevara da escolinha de La Higuera se transfigurou no ídolo beati-ficado de Vallegrande, captado para a posteridade pela lente magistral de Freddy Alborta. A explicação vem do general Gary Prado Salmon, o mais lúcido e profissional dos caçadores do Che: Lavaram-no, vestiram-no, acomodaram-no, sob a supervisão de um médico forense. Era preciso mostrar a identidade, mostrar ao mundo que o Che fora der- rotado, que nós o tínhamos vencido. Não seria o caso de mostrá-lo como sempre se mostravam guerrilheiros, por terra, cadáveres, mas com expressões que a mim chocavam muitíssimo, uns rostos como que retorcidos. Essa foi uma das razões que me levou a colocar o lenço na mandíbula do Che: para que não se deformasse. Instintivamente, todos só queriam mostrar que aquele era o Che, poder dizer: “Aqui está ele, vencemos”. Esse era o sentimento que existia nas forças armadas da Bolívia: que tínhamos vencido a guerra; e que não restassem dúvidas quanto à sua identidade, pois se o apresentássemos como estava, sujo, andrajoso, despenteado e tudo o mais, a dúvida teria permanecido.’ O que seus perseguidores evidentemente não previram foi que a mesma lógica haveria de se impor tanto aos que arquejavam de medo como aos que portariam durante anos o seu luto. O impacto emblemático de Ernesto Gue-vara é inseparável da noção do sacrifício: um homem que tinha tudo — glória, poder, família e conforto — e tudo entrega em troca de uma ideia, e o faz sem ira nem dúvidas. A disposição para a morte não é confirmada pêlos discursos e mensagens do próprio Che, ou pelas orações fúnebres de Fidel Castro, nem pela exaltação póstuma e imprópria do martírio, mas por uma visão: a de Gaevara morto, vendo seus algozes e perdoando-os, porque não sabiam o que faziam, e ao mundo, asseverando que não há sofrimento quando se morre por ideias. O outro Guevara, cuja fúria não cabia na expressão ou no gesto, dificilmente teria se convertido no emblema do heroísmo e da abnegação. O Che aniquilado, com os cabelos sujos, a roupa rasgada e os pés envoltos em abarcas* bolivianas, irreconhecível por seus amigos e adversários, jamais teria despertado a simpatia e admiração que a vítima de Vallegrande despertou.** As três fotos existentes de Guevara preso só circularam vinte anos após sua execução; nem Felix Rodríguez, o agente da CIA que bateu uma delas, nem o general Arnaldo Saucedo Parada, que tirou as outras, as divulgaram. O motivo mais uma vez era perverso. Embora se tenha admitido, poucos dias após a emboscada do Yuro, que o Che não morrera em combate, era preferível dissimular as provas evidenciando sua execução a sangue-frio, os instantâneos do Che vivo e prisioneiro. As imagens só foram levadas à telinha nos anos 90, pelas mesmas razões. O Che morto convencia e não acusava ninguém, mas engendrava um mito inesgotável; o Che vivo, na melhor das hipóteses, despertava piedade, porém suscitava ceticismo quanto à sua identidade, ou provava o assassinato inconfessável, embora conhecido de todos. Prevaleceu a imagem do Cristo; desvaneceu-se a outra, sombria e destroçada. Ernesto Guevara conquistou seu direito de cidadania no imaginário social de toda uma geração por muitos motivos mas antes de mais nada pelo encontro místico de um homem com a própria época. Nos anos 60, repletos de cólera e doçura, outra pessoa teria deixado um leve rastro; o mesmo Che,
  • 4. em outra época menos turbulenta, idealista e paradigmática, teria passado em branco. A permanência de Guevara enquanto figura digna de interesse, investigação e leitura não deriva diretamente da geração à qual pertence. Não brota da obra nem sequer do ideário guevarista; vem da identificação quase perfeita de um lapso da história com um indivíduo. Outra vida jamais teria captado o espírito da época; outro momento histórico nunca se reconheceria em uma vida como a dele. A convergência existencial se deu por vários caminhos. Um fio condutor da vida de Ernesto Guevara foi a exaltação da vontade, lidando com o voluntarismo, ou, diriam alguns, a onipotência. Na enigmática e depurada carta em que se despede dos pais, ele próprio se refere a ela: “Uma vontade 2 que aperfeiçoei com deleite de artista me sustentará as pernas frouxas e os pulmões cansados”. Desde o rúgbi de sua mocidade em Córdoba até o calvário nas selvas da Bolívia, partiu sempre de um critério: bastava desejar alguma coisa para que ela acontecesse. Não existia limite irremovível nem obstáculo insuperável para a vontade: a sua e a dos distintos atores sociais e individuais que encontraria pelo caminho. Seus amores e suas viagens, a visão política e a conduta militar e económica se impregnaram de um voluntarismo a toda prova, que autorizaria façanhas extraordinárias, arrebataria vitórias maravilhosas e o conduziria a repetidas e por fim fatais derrotas. As origens desse voluntarismo quase narcisista são múltiplas: seu próprio empenho, a luta perene do Che contra a asma e um onipresente olhar materno, de adoração e culpa inesgotáveis. Se alguém chegou a acreditar que bastava querer o mundo para tê-lo num átimo, esse alguém foi Che Guevara. Se algo caracterizou seus arautos nos anos 60, esse algo foi a bandeira: “We want the worid, and we want it now”. Nós Queremos o mundo. e nós queremos ele agora. outro princípio que governou a vida do Che — a eterna recusa em conviver com a ambivalência, a qual o perseguiria como uma sombra desde a asma infantil até Nancahuazú — também se entrelaçaria com as características comportamentais de uma geração. Os anos 60 significaram, em grande medida, a negativa a coexistir com as contradições da vida; assistiram a uma perpétua fuga para a frente da primeira geração do pós-guerra, que considerava intolerável a coexistência com sentimentos, desejos e objetivos políticos contraditórios. Quem melhor que o Che para encarnar a incompatibilidade individual e generacional com a ambivalência, para simbolizar a incapacidade de conviver com pulsões dadas de antemão? As ideias, a vida, a obra, até o exemplo do Che pertencem a uma etapa da história moderna, motivo por que será difícil recuperarem no futuro sua atualidade. As principais teses teóricas e políticas vinculadas ao Che — a luta armada e o foco guerrilheiro, a criação do homem novo e o primado dos incentivos morais, o internacionalismo combatente e solidário — virtualmente deixaram de existir. A Revolução Cubana — seu maior êxito, seu verdadeiro triunfo — agoniza ou sobrevive graças ao abandono de boa parte da herança ideológica de Guevara. Porém, a nostalgia persiste: o subcoman-dante Marcos, dirigente aguerrido e acossado das hostes zapatistas nos fundos vales de Chiapas, costuma invocar, gráfica ou explicitamente, as imagens e analogias do Che, sobretudo aquelas que evocam traições ou derrotas. Respondeu à ofensiva das forças armadas mexicanas em 9 de fevereiro de 1995 com dois ícones: Emiliano Zapata em Chinameca e o Che em vado dei Yeso e na quebrada dei Yuro.* Em compensação, o intervalo em que o Che se movimentou e alcançou a glória ainda não se encerrou. Continua a provocar saudade como a última convocação das utopias modernas, o último encontro com as grandes e generosas ideias de nosso tempo — a igualdade, a solidariedade, a libertação individual e coletiva —, com as mulheres e homens que as encarnaram. A importância de Che Guevara para o mundo e a vida de hoje se verificam por osmose ou por controle remoto. Reside na atualidade dos valores de sua era, jaz na relevância das esperanças e sonhos dos anos 60 para um fim de século órfão de utopias, carente de projeto coletivo e dilacerado pêlos ódios e tensões próprias de uma homogeneidade ideológica sem jaca. Seu instante de fama sobrevive ao Che, e ele, por seu turno, confere luz e sentido a esse momento cuja memória empalidece mas ainda perdura. Em sua infância e juventude, em sua maturidade e morte, jaiem as chaves para decifrar o encontro do homem com seu mundo. Comecemos. A Argentina às vésperas da Grande Depressão não era um mau lugar para se nascer e crescer, sobretudo para quem, como no caso do primeiro filho de Ernesto Guevara Lynch e Célia de Ia Serna y Liosa, provinha de uma aristocracia de origem e sangue, quando não pecuniária. Ernesto Guevara de Ia Serna nasce em 14 de junho de 1928 em Rosário, terceira cidade de um país de 12,5 milhões de habitantes, muitos deles oriundos de outras regiões. Pelo lado paterno, os Guevara Lynch já tinham doze gerações na terra austral: mais que suficiente para merecerem o título de avoengos em um país de imigrantes, em sua imensa maioria recém-chegados. Na genealogia de sua mãe também luzem as raízes e a distinção; além disso que a família De Ia Ser-na possuía terras e, portanto, dinheiro. Por parte do pai, Ernesto tinha sangue espanhol, irlandês (o bisavô, Patrick Lynch, fugiu da Inglaterra para a Espanha e dali para a Gobemación do Rio da Prata, na segunda metade do século XVIII) e até mexicano-ameri-cano, já que a avó paterna do Che nasceu na Califórnia, em 1868. O pai de Guevara Lynch, Roberto Guevara, também era originário dos Estados Unidos: seus pais haviam participado da corrida do ouro californiana de 1848, embora tivessem retornado poucos anos depois à terra natal com os filhos. Mas para além de seu lugar de nascimento, os Guevara eram argentinos de cepa. O ramo Guevara Lynch da família se confundia com a história da aristocracia local; Gaspar Lynch foi um dos fundadores da Sociedade Rural Argentina — verdadeiro Conselho de Administração da oligarquia latifundiária do país — e Enrique Lynch erigiu-se em um de seus
  • 5. baluartes durante as crises económicas que fustigaram a agricultura local em fins do século XIX. Ana Lynch, liberal e iconoclasta, seria a única avó que o Che conheceria, e a relação com ela o marcaria em profundidade. A decisão do neto de estudar medicina em vez de engenharia deriva parcialmente do falecimento de Ana, a quem ele assistiu no leito de morte. Do lado materno, o vínculo com o torrão natal remontava ao general José de Ia Serna e Hinojosa, último vice-rei do Peru, cujas tropas foram derrotadas por Sucre na batalha de Ayacucho.’ Filha de Juan Martín de Ia Serna e Edelmira Liosa, Célia não havia completado 21 anos quando se casou, em 1927, com o jovem ex-estudante de arquitetura. Seus pais faleceram anos antes: don Juan, assim que Célia nasceu, segundo uma de suas netas, suicidou-se em alto-mar ao saber que sofria 4 de sífilis; Edelmira, algum tempo depois. Na realidade, Célia foi criada por uma irmã mais ve- lha, Carmen de Ia Sema, que se casou em 1928 com o poeta comunista Cayetano Córdova Itúrburu; antes fora noiva do poeta mexicano Amado Nervo. Tanto Carmen como Córdova permaneceram nas fileiras do Par- tido Comunista Argentino durante catorze anos, ela talvez com mais fer- 5 vor que o marido. A família de Célia era “endinheirada”, como reconhecia sem rubor o seu marido; o pai, “herdeiro de uma grande fortuna [...] possuía várias estân- cias. Homem culto, muito inteligente, militou nas fileiras do radicalismo”, 6 participando na “revolução de 1890”. Embora a fortuna familiar devesse ser repartida por sete, dava para todos. Os Guevara de Ia Serna viveriam muito mais das diversas rendas e heranças de Célia que dos disparatados e siste- maticamente falidos projetos empresariais do chefe da família. Ainda que a ma’i tivesse dado a Célia uma educação católica clássica na escola do Sagra- do Coração, logo o ambiente livre-pensador, radical ou francamente de esquerda do lar de sua irmã a transformaria numa personagem à parte: femi- nista, socialista, anticlerical.* Participava das infinitas reuniões celebradas em sua casa, d ,s diversas lutas travadas pelas mulheres argentinas ao longo dos anos 20;** tanto antes como depois do casamento conservou um perfil próprio, que dura.ia até sua morte, em 1965. Essa mulher excepcional foi sem dúvida a figura afetiva e intelectual mais importante na vida do filho mais velho, pelo menos até o encontro deste com Fidel Castro no México, em 1955. Ninguém desempenhou na vida do Che um papel equivalente ao de Célia, sua mãe, nem o pai, nem as esposas ou os filhos. A mulher que conviveu durante vinte anos com o peri- go e o estigma do câncer; a militante que pouco antes da morte passou sema- nas no cárcere em razão do sobrenome que partilhava com o filho; a mãe que educou e manteve cinco crias quase por conta própria impôs uma marca à vida de Che Guevara a que só Castro pôde se igualar, durante um breve interiúdio na vida dos dois. Nada ilustra melhor a glória e a tragédia da saga de Guevara que seu lamento dilacerado no coração das trevas ao receber no Congo a notícia da morte da mãe: Pessoalmente, no entanto, [Machado Ventura] trouxe-me a notícia mais triste da guerra: em comunicação telefónica de Buenos Aires, informavam que minha mãe estava muito enferma, em um tom que deixava presumir que era apenas um anúncio preparatório... Tive de passar um mês nessa triste incerteza, aguardando os resultados de algo que esperava mas com a esperança de que houvesse um equívoco, até que chegou a confirmação do falecimento de minha mãe. Ela quisera ver-me pouco antes de minha partida, possivel- mente sentindo-se doente, mas não fora possível, pois minha viagem já esta- va bastante adiantada. Não chegou a tomar conhecimento da carta de despe- dida deixada em Havana para meus pais; só a entregariam em outubro, quando minha partida tornou-se pública.* Não pôde despedir-se dela, nem guardar o luto que sua dor impunha. A revolução africana, as enfermidades tropicais ferozes e as eternas divisões tribais dos descendentes políticos de Patrice Lumumba o impediam. Célia falece em Buenos Aires, expulsa do hospital onde jazia no leito de morte; os donos da clínica se recusaram a albergar a mãe que parira Che’Guevara 37 anos antes. Che carrega seu pesar nas colinas da África, desterrado de sua pátria adotiva pêlos próprios demónios internos e pelo fervor idealista que herdou da mãe. Morrerá poucos anos mais tarde: duas mortes demasiado próximas. A Argentina onde o menino Ernesto vem à luz era ainda em 1928 um país dinâmico, em plena ebulição, abençoado por um aparente idílio económico e inclusive político que rápido se dissiparia. Durante os anos 20
  • 6. ela é tão legitimamente comparável aos ex-domínios ingleses brancos como aos demais países latino-americanos. As vésperas da Primeira Guerra Mundial, seus principais indicadores sociodemográficos se assemelhavam mais aos da Austrália, Canadá e Nova Zelândia que aos da Colômbia, Peru, Venezuela ou México.* Recebera um volume de investimentos diretos estrangeiros três vezes superior ao do México ou do Brasil; em número de vias férreas por mil habitantes, embora inferior em 50% ao da Austrália e ao 7 do Canadá, superava amplamente os seus vizinhos de hemisfério. Em 1913, a renda per capita argentina era a décima terceira do mundo, um pouco superior à da França. A conflagração europeia e a expansão desenfreada dos anos 20 não alterariam essa classificação. Ainda que as dificuldades argentinas — industrialização raquítica, superendividamento externo, setor de exportação altamente vulnerável — logo fossem arruinar as pretensões moder-nizantes das elites locais, o país onde nasce Che Guevara transpira uma afortunada e merecida autoconfiança. Aspira — com razão — a sua inclusão em um Primeiro Mundo avant Ia lettre, despreocupado dos vergonhosos sinais económicos e sociais que já se perfilavam no horizonte.** A introdução do sufrágio universal secreto (para homens e cidadãos argentinos) em 1912 deu lugar, quatro anos mais tarde, ao triunfo eleitoral da União Cívica Radical e seu legendário paladino, Hipólito Yrigoyen. Este logrou sua eleição meses antes do nascimento do Che, em 1928, ao fim do interregno de Marcelo T. de Alvear. Porém, o yrigoyenismo não pôde satisfazer às enormes esperanças que despertou nas camadas médias emergentes do país e no seio da nova classe trabalhadora portenha — uma eclética e instável mescla de argentinos de segunda geração, interioranos e imigrantes.*** A pressão da direita, o desencanto das classes médias e os estragos causados pela Grande Depressão puseram termo ao fugaz lapso democrático: em 1930 o exército consumou o primeiro golpe de Estado do século que destituiu um governo latino-americano democraticamente eleito. Em (*) A taxa de mortalidade infantil da Argentina, por exemplo, era nessa época de 121 por mil, a da Colômbia de 177, a do México de 228, a do Chile de 261, e a da Austrália de 72. A porcentagem de habitantes do país que viviam em grandes cidades chegava a 31 %, ao passo que a cifra correspondente no Brasil era de 10,7% e no Peru de 5% (Victor Bulmer-Thomas, Economic history ofLatin América, Nova York, Cambridge University Press 1994, p. 86). (**) “A Argentina conseguiu um sólido crescimento industrial em quase todos os anos da década de 20 [...] expandindo rapidamente a produção de hens de consumo duráveis e não duráveis (sobretudo têxteis) à custa das importações. As indústrias intermediárias, como a refinação de petróleo, a indústria química e a metalurgia, também floresceram; apenas a construção civil permaneceu abaixo dos níveis à guerra” (ibidem, p. 189). (***)0paido voto não foi um dosdesiludidos; deu seu primeiro voto, em 1919, ao Partido Socialista Argentino. seu lugar as forças armadas puseram o general José Felix Uriburu; depois do fracasso de seu projeto filofascista, suceder-se-ão governos fraudulentos, até que em 1943 o ciclo se encerrará com um novo golpe de Estado. A alternância de governos civis com governos militares caracterizará a vida política argentina até 1983. O nascimento de Ernesto filho aconteceu em Rosário por razões circunstanciais. Seus pais, depois do casamento em Buenos Aires um ano antes, partiram para Puerto Caraguatay, no alto Paraná, território de Misiones. Ali Ernesto pai se propusera cultivar e explorar uns duzentos hectares semeados de erva-mate, o chamado ouro verde, que proliferava nessa região da Argentina.* Já com Célia grávida de sete meses, dirigiram-se a Rosário, o centro urbano de certa dimensão mais próximo, tanto para que o parto se consumasse ali como para estudar a possibilidade de comprar um moinho ervateiro. O projeto agrícola do erval naufragou rapidamente enquanto iniciativa empresarial, o que ocorreria com frequência nos anos vindouros. O pequeno Ernesto nasce de oito meses, fraquinho e sujeito a deslocamentos constantes que o acompanharão por toda a vida; a família logo abandonará a zona de Misiones. Guevara Lynch também era sócio de um estaleiro em San Isidro, perto de Buenos Aires. Aí ocorre o primeiro ataque de asma de Ernestinho, semanas antes de ele completar dois anos, em 2 de maio de 1930. Segundo relata o pai do Che, sua esposa, nadadora competente e tenaz, costumava levar o filho ao Clube Náutico de San Isidro, às margens do rio da Prata. O pai da vítima não deixa muitas dúvidas sobre sua interpretação da responsabilidade pela desgraça: “Numa fria manhã do mês de maio, quando ainda por cima ventava muito, minha mulher foi banhar- se no rio com nosso filho Ernesto. Cheguei ao clube à sua procura com a intenção de levá-los para almoçar e encontrei o pequeno em trajes de banho, já fora da água e tiritando. Célia não tinha experiência e não percebeu que a mudança de tempo era perigosa naquela época do ano”.** (*) O próprio Ernesto Guevara Lynch fornece as versões sobre a origem dos recursos que lhe permitiram adquirir o erval de Puerto Caraguatay. Em seu livro Mi fujo el Che, diz que recebera uma herança do pai e pensava utilizá-la para comprar terras em Misiones. Essa versão é retomada por uma fonte oficial cubana, o Acios histórico, biográfico y militar de Ernesto Guevara, t. l, publicado em Havana em 1990 (p. 25). Porém, em uma longa entrevista com José Grigulevich, incluída no livro já citado (I. Lavretsky), o pai do Che diz textualmente: “Célia herdou uma plantação de erva-mate em Misiones” (p. 14). (**) Ernesto Guevara Lynch, op. cit., p. 139. Em outra versão, Guevara pai trocou os papéis, contudo manteve a atribuição de culpas: “Em 2 de maio de 1930 Célia e eu fomos na- Todavia, esse não foi o primeiro mal pulmonar do menino; quarenta dias depois de nascer, ele foi
  • 7. 8 atacado por uma pneumonia que, segundo Ercilia Guevara Lynch, sua tia, “quase o mata”. Essa primeira infecção respiratória põe em dúvida a explicação paterna sobre a etiologia da asma do Che; o mencionado resfriado tinha seus antecedentes. De qualquer modo, desde o primeiro ataque à beira do rio da Prata até junho de 1933 as crises asmáticas de Ernestinho se dariam quase diariamente, de maneira exasperante e devastadora para os pais, mas acima de tudo para Célia, que afora a carga desigual que suportava nos cuidados para com o enfermo, carregava uma forte dose de culpa. Somavam-se à que seu marido lhe atribuía pelo incidente no rio, os antecedentes hereditários, de que na época apenas se suspeitava mas de que hoje se tem certeza. Célia fora asmática na infância; havia, portanto, 30% de chance de que um de seus filhos padecesse da doença; tudo indica que foi o que ocorreu com Ernesto. A pneumonia aos quarenta dias de vida e o resfriado no Clube Náutico podem ter agido como detonadores de uma grande predisposição genética, mas não provocaram a asma. Os três anos transcorridos entre o surgimento e a estabilização da doença parecem ter marcado o casal de modo acentuado e, indiretamente, o filho; os relatos de familiares, amigos e dos próprios pais do Che são comoventes.* Foi sem dúvida durante esse período que Célia construiu sua relação maternal entremeada de obsessão, culpa e adoração — relação que muito em breve engendraria uma espécie de educação particular, à qual o Che deveria, pelo resto da vida, seu gosto pela leitura e a curiosidade intelectual insaciável. A família perambularia pela Argentina ao longo de cinco anos, buscando uma moradia que beneficiasse a saúde do menino ou ao menos não a agravasse. Finalmente a encontrariam em Alta Gracia, uma estância de veraneio a quarenta quilómetros da cidade de Córdoba, nas encostas da sierra Chica, a seiscentos metros de altitude. O ar seco e límpido, que atraía turis- dar com Teté. O dia ficou frio, passou a ventar e logo Teté começou a tossir. Nós o levamos ao médico, que diagnosticou asma. Talvez já estivesse resfriado, ou quem sabe herdou a enfermidade, já que Célia fora asmática quando criança” (Lavretsky, op. cit., p. 15). (*) A mãe do Che confirma, por exemplo, os cuidados do pai com o menino. “Aos quatro anos Ernesto já não resistia ao clima da capital. Guevara Lynch [assim se refere ao marido depois da separação] acostumou-se a dormir sentado à cabeceira de seu primogénito, para que ele, recostado em seu peito, suportasse melhor a asma” (Célia de Ia Serna, testemunho publicado em Granma, Havana, 16/10/67, p. 8). Célia morreuem 19deabrilde 1965;oteste-munho obviamente foi recolhido anos antes de ser divulgado. tas e tuberculosos, moderou as crises asmáticas de Teté, embora não as tivesse curado nem espaçado sensivelmente. A enfermidade ficou sob controle graças ao clima de Alta Gracia, aos cuidados médicos e à personalidade do menino. E, sobretudo, à excepcional devoção e carinho de sua mãe. Nessa montanha mágica ao pé da serra de Córdoba cresceria Ernesto Guevara de Ia Serna, com o pai consagrado à construção de casas no . pequeno município e a mãe à criação e educação do menino e suas duas irmãs, Célia e Ana Maria, e o irmão menor, Roberto; o caçula dos Guevara de Ia Serna, Juan Martín, nasceria mais tarde em Córdoba. Tudo isso configurava um oásis de introspecção e placidez, em meio a um país que se despedia dos anos dourados e ingressava, junto com o mundo, nas desgraças da Depressão e em suas inesperadas sequelas políticas. A crise mundial de 1929 não só destruiu as pretensões ervateiras do pai do Che, como também destroçou em poucos anos o mito da Argentina aprazível e próspera. O golpe de 1930 deu início a um longo período de instabilidade política, e a queda dos preços e da demanda internacional dos principais itens de exportação da Argentina inaugurou uma interminável letargia económica, só interrompida pelo breve boom das matérias-primas no imediato pós-guer-ra. Porém, a crise inaugurou também uma época de mobilização social, de polarização ideológica e transformações culturais a que nem Alta Gracia nem as elites protegidas e ilustradas de províncias como Córdoba poderiam ficar imunes. Em um primeiro momento, as exportações dos produtos do pampa não sofreram a catástrofe do cobre chileno ou do café brasileiro, por exemplo. Não obstante, na Argentina, os rendimentos relativos à exportação se reduziram em 50% entre 1929 e 1932, e o colapso não foi menos demolidor e prenhe de consequências que em outros países da região. Ele teve um duplo efeito na sociedade austral. Por um lado, a crise gerou considerável desemprego agrícola, basicamente de arrendatários impossibilitados de cumprir os termos de seus contratos; por outro, as restrições às importações por causa da escassez de divisas e crédito externo ativaram o desenvolvimento de uma indústria manufatureira nacional, tanto de bens de consumo como de alguns bens de produção. Esse fenómeno contribuiu para o crescimento acelerado da classe operária argentina. Duas cifras indicam a transformação social desse período: em 1947, 1,4 milhão de imigrantes procedentes das zonas rurais haviam acorrido a Buenos Aires, e meio milhão de operários tinham se incorporado ao proletariado, duplicando seus efetivos em apenas uma década. Os migrantes constituiriam os famosos cabecitas negras; os operários, uma nova classe trabalhadora, menos forasteira e menos branca que a dos princípios do século, mais vinculada à indústria nacional que ao processamento de artigos de exportação, mais afastada da classe média tradicional que a da idade de ouro do yrigoyenismo. O fosso entre os segmentos médios ilustrados e tradicionais, de um lado, e o novo estamento operário, de outro, se refletiria, dez anos mais tarde, no desencontro entre a esquerda argentina socialista, intelectual e pequeno-burguesa e o peronismo em ascensão, populista e irreverente. Os anos de Ernesto em Alta Gracia apenas começavam, mas muito em breve algumas de suas
  • 8. principais características transpareceriam. A primeira que salta à vista se baseia na continuidade da perpétua peregrinação, agora reduzida ao perímetro da cidadezinha de veraneio. Segundo Roberto, o irmão mais novo do Che, depois de residir seis meses no Hotel Grutas a família mudou-se, em 1933, para Vilia Chichita; dali iria para uma casa mais ampla, Vilia Nydia, em 1934, e em seguida para Chalet de Fuentes, em 193 7, Chalet de Ripamonte, em 1939, e novamente Vilia Nydia em 1940-1. Para Roberto Guevara tantos deslocamentos tinham uma explicação: “Como os contratos 9 venciam, tínhamos de mudar”. Sem dúvida seria absurdo atribuir a futura e extremada inclinação errante de Che Guevara a esse permanente perambular de sua família. Porém, o constante ir e vir certamente adquiriu uma naturalidade muito peculiar no universo do menino. De cidade em cidade até os cinco anos, de casa em casa até os quinze; a normalidade gue-varista residia no movimento, que amenizava a uniformidade dos outros aspectos de sua existência. Também reavivava a esperança de começar de novo e superar tensões familiares — afetivas, financeiras — que não fal- tavam no agora mais populoso lar de Ernesto e Célia. E nessa época que a relação de Célia e Teté se torna essencial na vida dos dois e ultrapassa largamente, em intensidade e proximidade, o vínculo de Ernestinho com o pai e das outras crianças com a mãe. A enfermidade de Ernesto filho explica-o em grande parte: nada como a culpa e a angústia de uma mãe em relação ao filho para gerar uma devoção maternal sem limites. A simbiose entre Célia e o Che, que alimentaria a correspondência, a existência afetiva e a própria vida de ambos durante os trinta anos seguintes, inicia-se nesses anos lânguidos de Alta Gracia, quando Ernesto aprende, no colo da mãe, a ler e escrever, a vê-la e sobretudo ser visto por ela. Essa relação chega a tal ponto que quem conheceu Ernesto e os irmãos na juventude se assombra com as diferenças físicas e de caráter entre eles, muito anteriores à celebridade do filho maior e à sombra que inevitavelmente projetaria sobre os demais integrantes da família. Qual o motivo? A explicação talvez esteja no olhar de Célia, repleto de culpa, angústia e 10 amor no caso de Ernesto, de simples carinho maternal no caso dos demais. Outro sinal distintivo desse prelúdio da adolescência deriva do primeiro: consolida-se de modo mais preciso o papel do chefe da família. Guevara Lynch era, simultaneamente, um grande boémio, um formidável amigo dos filhos, um provedor medíocre e um pai distante e indiferente. Sem dúvida são autênticas suas recordações sobre as horas passadas com o filho, nadando, jogando golfe, dando- lhe atenção e falando-lhe da vida. Mas também o eram o desligamento durante o resto do tempo e a displicência ante as necessidades do menino e da família. Enquanto a mãe fazia as vezes de pro- fessora, organizadora do lar e enfermeira, Guevara Lynch construía casas em sociedade com o irmão e passava longas horas no Sierras Hotel, ponto de reunião e lazer da sociedade abastada de Alta Gracia.* A enfermidade continuava atormentando Ernestinho. Impediu-o de obter uma educação primária “normal”, substituída pelo empenho didático da mãe: “Eu ensinava as primeiras letras a meu filho, mas Ernesto não podia ir à escola por causa da asma. Só cursaria regularmente o segundo, o terceiro grau; o quinto e o sexto, ele os cursou como pôde. Seus irmãos copiavam os deveres e ele estudava em casa”.” Se o pai de Ernesto desempenhou um papel central foi o de inculcar ao menino um gosto voraz pelo esporte e o exercício físico e a convicção de que era possível vencer à base de pura força de vontade as limitações e penas que a doença impunha.** Tanto Ernesto pai como Célia eram esportistas, gente que amava o campo e a natureza, e conseguiram transmitir esse gosto ao fi- (*) Decerto os Guevara de Ia Serna saíam juntos, sobretudo ao chegar a Alta Gracia. E sem dúvida não se pode tomar ao pé da letra testemunhos como o de Rosário Gonzáiez, que trabalhou como empregada doméstica, encarregada em especial das crianças, entre 1933 e 1938. Mas eles ilustram uma tendência que se aguçaria com o tempo: “Os pais de Ernesto saíam bastante, eram muito de noitadas, iam ao Sierras Hotel todas as noites, desde as sete, para jantar. Chegavam de madrugada, às quatro, às cinco... Todos os dias; isso era frequente. saíam às sete, às oito, iam embora e não vinham jantar. Os meninos jantavam sozinhos” (Rosário Gonzáiez, entrevista com o autor, Alta Gracia, 17/2/95). (**) Mais uma vez proliferam as interpretações sobre a verdadeira responsabilidade de cada um dos pais do Che nessa etapa. Segundo o irmão Roberto, o papel central, inclusive nesse particular, coube à mãe: “Era uma criança muito doente... Mas conseguiu se impor à doença com seu caráter e força de vontade. Houve nisso muita influência de minha mãe” (Roberto Guevara de Ia Sema, testemunho reproduzido em Cupull e Gonzáiez, op. cit., p. 82). lho. Como este precisava realizar esforços muito superiores aos de uma criança sadia para desfrutar realmente dos prazeres do exercício físico, desde pequeno começou a desenvolver uma força de vontade descomunal. Foram os pais do Che que descobriram o único remédio possível para o tormento crónico. Concluíram que o único tratamento razoável consistiria em continuar a medicá-lo e em fortalecê-lo por meio de tónicos e exercícios apropriados, como natação, jogos ao ar livre, 12 passeios pêlos montes, equitação. Dessa forma, a crescente e indispensável (para ele) vontade de superação física se transformaria em traço decisivo da vida do jovem Ernesto. Também o seria a heterogeneidade social do círculo de amizades, o contato frequente dos meninos Guevara de Ia Serna com amiguinhos de diferentes classes sociais. Entre eles figuravam os caddies* do clube de golfe de Alta Gracia e os camareiros dos hotéis, os filhos dos pedreiros das diversas obras de Ernesto pai, assim como as famílias pobres das redondezas da série de casas que os Guevara foram alugando. Em cada uma delas apareciam multidões de meninos, uns vindos de lares de classe média, outros de origem popular,
  • 9. uns brancos como Ernesto e seus irmãos, outros de pele mais escura, ou morochos, como Rosendo Zacarias, vendedor de doces nas ruas de Alta Gracia. Meio século mais tarde, este ainda lembrava 13 (talvez com ajuda do mito de que “o Che era uma criança perfeita, sem problemas”) como todos brincavam sem distinções nem hierarquias. Desde então Ernestinho mostrava uma facilidade notória para relacionar-se com gente alheia ao seu meio cultural e social. Das longas horas passadas em casa e na cama nasce a predileção de Ernesto filho pela leitura. Ele devorava os clássicos para leitores infantis de sua idade e época: os romances de aventuras de Dumas Filho, Robert Louis Stevenson, Jack LondoneJúlio Veme e, naturalmente, de Emílio Salgari. Mas lê também Cervantes e Anatole France, de Pablo Neruda e Horacio Quiroga, e dos poetas espanhóis, Machado e Garcia Lorca. Tanto o pai como a mãe contribuíram para despertar-lhe o gosto pela leitura: Ernesto Guevara Lynch, pêlos romances de aventuras; Célia, pela poesia e, na época em que o educou em casa, pelo idioma francês. Na escola propriamente, Ernesto era apenas bom aluno, segundo as recordações de uma de suas professoras, que o igualavam em inteligência às irmãs menores mas atribuía mais assiduidade a estas. Para a professora Elba Rossi Oviedo Zelaya, Ernestinho viveu dois vínculos familiares distintos com a educação: o de Célia, sempre presente, fis- (*) Rapazes que carregam os tacos e o equipamento dos jogadores. (N. T.) calizando de perto a instrução do filho, e o de Ernesto pai, mais distante. Diz a educadora sobre o menino Che: Conheci apenas a mãe. Ela era realmente muito democrática, uma senhora que não se incomodava em pegar um menino qualquer, levá-lo até sua casa, colaborar com a escola... tinha um temperamento adorável. Ia à escola todos os dias e a todas as reuniões de pais, com todos os meninos no carrinho, e no caminho outras crianças se juntavam a eles. O pai era um senhor bem distinto que vivia no Sierras Hotel, pois era gente de família. Devo tê-lo visto alguma vez por acaso; não ia à escola, não falava com as professoras. Sei apenas que frequentava bastante o Sierras, porque naquela época era o melhor hotel de Alta Gracia. Com ela falamos várias vezes, de questões escolares e outras coisas. Tudo era com ela; ele, se foi à escola, eu nunca vi; 14 talvez o tenha visto alguma vez, alguém pode ter dito que se tratava do senhor Guevara. Talvez os dois aspectos mais notáveis da passagem de Ernesto por algumas escolas públicas de Alta Gracia, onde cursou o primário — a San Martín primeiro, a Manuel Solares depois —, se devam à atitude dos pais e às consequências do fato de frequentar justamente escolas públicas, nos anos do ocaso da Argentina oligárquica. O Che se impressionaria sobretudo com a tensão entre um país ainda homogéneo e uma incipiente diversidade que já se chocava com as tendências igualitárias da educação pública, laica e obrigatória. A obrigatoriedade do ensino primário não possuía um caráter apenas de princípios; quando a asma impedia o menino de assistir às aulas, sua mãe recebia requerimentos da autoridade responsável indagando sobre os motivos da ausência. E na escola Ernestinho sofreria os efeitos contraditórios das vertiginosas mutações da sociedade argentina. Os dois colégios de Alta Gracia em que esteve matriculado eram frequentados por crianças dos arredores da cidade, do “campo”, como se dizia comumente nessa região da Argentina: de origem rural, em alguns casos morochos, procedentes de lares humildes, que constituíam a primeira geração escolarizada. A grande diferença entre a Argentina e o resto da América Latina naquela época (exceto o Uruguai e, em menor medida, o Chile) residia na existência dessa instituição igualadora por excelência (junto com o serviço militar, implantado antes do sufrágio universal): a educação pública. O imenso fosso que sempre separou o Che adulto de muitos de seus compa- nheiros cubanos e do resto da América Latina, no que toca ao trato e à sensibilidade para com interlocutores de classes, raças, etnias e padrões educacionais diferentes, nasce desse encontro precoce com a igualdade. Brota também da experiência da diversidade, típica da educação republicana em um continente onde as elites não costumam gozar do privilégio do encontro com os outros. Contudo, procurar a igualdade não equivale a encontrá-la. O surgimento nos anos 30 de novas classes sociais, compostas em parte de imigrantes de segunda geração e em parte de gente vinda do velho campo dos gaúchos e estâncias, não perdoou nenhum dos setores da sociedade argenti- na. Nas escolas de Ernesto estudavam meninos pobres, de ascendência italiana, espanhola e rural; graças a suas professoras e à excepcional herança cultural recebida de Célia, o Che dispôs de oportunidades únicas e evidentes para defrontar-se com os contornos da desigualdade. Porém, essas mesmas vantagens lhe outorgaram a distinção de ser um prematuro primus interpores: o menino que, graças à cultura e abastança (relativa) dos pais e à autoconfiança gerada por um lar estável e aprazível, gozou do privilégio de se destacar desde muito cedo, de converter-se no dirigente das turmas escolares, de ocupar uma posição de liderança entre os amiguinhos. A vocação têmpora para líder, que muitos admiradores descobrem no Che desde a mais longínqua infância, talvez provenha de seus possíveis dotes de chefe, mas deriva também de uma situação social privilegiada.* SL^~ Last but not least, remonta a esses anos passados no sossego de Alta Gra-cia o início da politização do primogénito dos Guevara de Ia Serna. Assim como ocorreu com milhões de jovens e adultos do mundo inteiro, a Guerra Civil espanhola despertou a curiosidade política do menino. Seu interesse e o acompanhamento das glórias e tragédias de Madri, Temei e Guernica não se concentrarão nas facetas ideológicas, internacionais ou mesmo políticas da conflagração, mas nos aspectos militares e heróicos. Desde 193 7 ele pren- (*) “Lembro que muitos meninos o seguiam no quintal; ele subia em uma árvore que havia ali,
  • 10. grande, e todos os meninos o rodeavam porque ele era como um líder; depois ele saía correndo e os outros iam atrás, já se notava que era o chefe... Devia ser por causa da família, que era uma família distinta; o menino sabia falar melhor tudo o mais. Percebia-se uma diferença. O fato de eles virem de Buenos Aires já lhes dava um ar de superiores aos outros. Aqueles meninos vinham de outro ambiente, tinham se criado de maneira diferente. Por exemplo: não lhes faltava material; para os meninos mais pobres muitas vezes era preciso conseguir alguma coisa, não tinham lápis de cor nem material para pintar; a eles nunca faltou nada. Era uma outra categoria; bem, isso não se notava, porque não eram de desprezar os outros, em absoluto. Estavam perfeitamente integrados no grupo. Mas falavam melhor, faziam melhor as coisas, os deveres, tudo. Não deixavam de entregar os deveres como as outras crianças, que muitas vezes não têm ajuda em casa, e voltam para a escola sem fazer os deveres” (Elba Rossi Oviedo Zelaya, entrevista com o autor. Alta Gracia, 17/2/95). dera um mapa da Espanha na parede de seu quarto, onde seguirá a marcha dos exércitos republicano e franquista, e construirá no jardim de casa uma espécie de campo de batalha, com 15 trincheiras e montes. Vários fatores contribuirão para fazer da causa da República espanhola o crisol da consciência política do prematuro aficionado das atualidades mundiais. Em 1937 seu tio Cayetano Córdova Itúrburu partiu para a Espanha. Jornalista e membro do Partido Comunista Argentino, foi contratado como correspondente estrangeiro pelo diário Crítica, de Buenos Aires. A tia Carmen viajou com os dois filhos para Alta Gracia; foi viver com a irmã durante a estadia do marido na Espanha. Assim, todos os despachos, comentários e artigos transmitidos do front por Córdova Itúrburu passavam pelas vilas e chalés dos Guevara em Alta Gracia. A chegada de notícias de além-mar se transformava em um acontecimento; o conteúdo delas aumentava ainda mais a excitação. As vezes Córdova mandava também revistas e livros espanhóis, os quais reforçavam a informação detalhada que aterrissava na imaginação do pequeno Ernesto, onde ficaria gravada para sempre. Outro fator importante na conscientização do Che foi a chegada a Cór-doba e depois a Alta Gracia de várias famílias expulsas da península Ibérica. A mais significativa, pela intimidade que estabeleceria com o núcleo dos Guevara, foi a do médico Juan Gonzáiez Aguilar, que despachara previamente a esposa e os filhos para Buenos Aires e depois para Alta Gracia. Quando caiu a resistência republicana, o próprio Gonzáiez Aguilar — amigo de Manuel Azana e colaborador de Juan Negrín, último presidente do governo legalista — exilou-se na Argentina. Seus filhos, Paço, Juan e Pepe, se matricularam com o Che no liceu Deán Funes, de Córdoba, em 1942; durante um ano os adolescentes percorreram juntos os 35 quilómetros de Alta Gracia até a escola. A amizade entre as duas famílias durará décadas, e será dos relatos dos Gonzáiez Aguilar, assim como de outros refugiados que transitavam por sua casa — o general Jurado, o compositor Manuel de Falia —, que Ernesto Guevara filho adquirirá boa parte de sua sensibilidade e solidariedade para com os republicanos. A guerra da Espanha foi a experiência política fundamental da infância e adolescência do Che. Nada o marcou tão fundo nesses anos como a luta e a derrota dos republicanos: nem a Frente Popular francesa, nem a expropriação do petróleo no México, nem o New Deal de Roosevelt, para não falar do golpe argentino de 1943 ou mesmo da jornada de 17 de outubro de 1945 e do advento de Perón. Os pais transmitiram a Ernesto uma grande parcela das próprias posturas políticas. Concluída a guerra da Espanha e esmagados os republicanos, teria início a Segunda Guerra Mundial; o pai do menino de onze anos fundou a seção local da Ação Argentina, em cujo setor infantil logo inscreveu o filho. Típica organização antifascista, a Ação Argentina fez um pouco de tudo naqueles anos: realizou comícios e levantou fundos em favor dos Aliados, combateu a penetração nazista na Argentina, descobriu casos de infiltração de ex-tripulantes do couraçado alemão GrafSpee (atracado à baía de Montevidéu em 1940) e difundiu informações sobre o avanço militar das forças aliadas. Como lembra seu pai, “toda vez que havia um ato organizado pela Ação Argentina ou que tínhamos 6 de fazer uma averiguação importante, Ernesto me acompanhava”.’ A descrição anterior ficaria truncada se não situasse a guerra da Espanha no ambiente argentino da época, e em especial no contexto da ascensão de uma direita local nacionalista, católica e virtualmente fascista. Para a intelectualidade argentina dos anos 30, radical, socialista ou comunista, com ou sem raízes italianas ou espanholas, a xenofobia e o conservadorismo de escritores como Leopoldo Lugones, Gustavo Martínez Zuviría e Alejan-dro Bunge, de publicações como Crisol, Bandera Argentina e La Voz Nacionalista e sua expressão política em círculos da oficialidade média do exército constituíam o pior dos inimigos. O nacionalismo argentino dos anos 30 era anti-semita, racista e eugênico, fascista e filo-hitierista. Naturalmente voltou-se para o franquismo a partir de 1936.0 discurso xenófobo era-lhe particularmente caro, sobretudo diante do surgimento da nova classe operária procedente do interior, “negra” e “pele-vermelha”.* O fato de esse nacionalismo conter também sua vertente “social” e “antiimperia-lista”, sua faceta “desenvolvimentista” (embora todos esses termos sejam anacronismos) e industrializadora, não impedia que a esquerda argentina de velha estirpe o contemplasse espavorida, e com razão. O desenlace desse drama contraria todas as previsões. A ascensão de Perón deixaria, por um lado, os nacionalistas descontentes e, por outro, a esquerda desorientada e órfã de massas. No auge desse nacionalismo con- (*) Lugones finalmente defendeu o fim de toda imigração que não fosse branca, e Bunge, em seu artigo “Esplendor e decadência da raça branca”, assinalava que “todo o vigor da raça [...] do patriotismo de seus homens superiores e da abnegação do espírito cristão deve voltar-se desde
  • 11. agora para restaurar o quanto antes o conceito da bênção dos filhos e das famílias numerosas, particularmente nas classes mais afortunadas” (cit. por David Rock, La Argentina autoritária, Buenos Aires, Ariel, 1993, p. 117). servador e católico encontra-se parte da resposta ao enigma sobre a reação da esquerda argentina — e do Che — diante do principal acontecimento do século no país: a chegada de Perón ao poder. O pequeno Ernesto seguirá os pais, o antiperonismo juvenil dele será tão visceral como o de seus progenitores, tão engajado como o de seus pares na universidade, tão lógico e a um só tempo desligado da realidade argentina como o do resto da esquerda portenha. Apenas vinte anos mais tarde ele conseguirá fechar o círculo, tornando-se amigo dos representantes de Perón em Havana, em particular de John William Cooke,* e servindo de canal de ligação de Perón inclusive com Ahmed Ben Bella, presidente da Argélia, ao solicitar-lhe ajuda para articular uma entrevista daquele 17 com Gamai Abdel Nasser. Quando a família Guevara partiu para Córdoba, em 1943, já estavam cristalizados os principais traços da infância e adolescência do Che. A casa permanecia sempre aberta; por ela desfilavam crianças, amigos, visitas e inclusive pessoas de passagem, tudo numa grande desordem regida apenas pela hospitalidade para com os forasteiros e pela liberdade da criançada da família. Velocípedes e bicicletas circulavam pelo interior da residência, almoçava-se a qualquer hora e não faltavam convidados. Não sobrava dinheiro; parte do caos doméstico brotava das dificuldades económicas do casal — nunca angustiantes, mas constantes —, assim como da ausência de Ernesto pai e da indiferença de Célia por esse género de assuntos. A ampla liberdade para as crianças — de almoçar a qualquer hora, convidar a multidão de amigos, guardar os pertences como e quando quisessem — tinha como contrapartida uma certa falta de estrutura. As consequências dessa desordem fizeram-se sentir mais intensamente quando os laços que uniam o casal Guevara de Ia Serna passaram a se tornar frágeis. Um ano antes de toda a família se mudar para Córdoba, Ernesto foi matriculado pêlos pais no Colégio Nacional Deán Punes, escola secundária pública de qualidade, ligada ao Ministério da Educação. Os membros da (*) A amizade entre o Che e Cookè teve início quando este chegou a Cuba em 1960, tendo sido recebido por Guevara no aeroporto de Havana. Foi selada em 25 de maio de 1962, em um ato conjunto dos argentinos em Cuba, celebrando o dia da independência de seu país (cf. Ernesto Goldar, “John William Cooke: de Perón ao Che Guevara”, Todo es historia, Buenos Aires, jun. 1991, vol. 25, n” 288, p. 26). elite local — à qual Ernesto pertencia por direito — costumavam estudar no Colégio Montserrat; os da classe média emergente preferiam o Deán Funes. A escolha dos pais se revelou afortunada. Ernesto conviveria durante cinco anos com jovens de diferentes origens sociais e profissionais. Claro que não se deve exagerar; nos anos 40, Córdoba era uma cidade relativamente homogénea, branca e burocrática, inserida em uma província agrícola ainda próspera e onde a segregação geográfica dissimulava as inegáveis diferenças sociais. Porém sua população já disparara. Passou de 250 mil habitantes em 1930 para 386 mil em 1947: um crescimento vertiginoso e nunca visto na cidade. Os habitantes de renda mais baixa, recém-chegados do campo e dedicados à prestação de serviços, se aglomeravam na periferia. Em alguns bairros, as moradias rústicas dos pobres confinavam com a cidade “bonita”. A industrialização viria depois, com a chegada da indústria auto- mobilística, em fins da década de 40. Iniciava-se uma nova etapa para o Che, tanto na escola como na eterna luta contra a asma: em Córdoba ele começou a participar ativamente de competições esportivas organizadas, e sobretudo a jogar rúgbi. Era o esporte preferido da Argentina angiófila: violento e cerebral. Algumas partidas se realizavam no Lawn Tennis Club, onde Ernesto também jogou ténis e golfe, e praticou natação. Ali o imberbe estudante secundarista fez amizade com dois irmãos: Tomás, da mesma idade que ele, e Alberto Granado, seis anos mais velho, com os quais viveria aventuras decisivas. Tomás foi o grande amigo da adolescência; Alberto, o da juventude, das viagens e da abertura para o mundo. Juntos fizeram o colegial, tiveram os primeiros casos amorosos e se viram expostos à efervescência política que sacudiu a vida do país a partir de 17 de outubro de 45: a irrupção de Perón, dos cabecitas negras e do autoritarismo argentino, católico e conservador. O rúgbi tinha duas implicações para o jovem asmático, já marcado pêlos estragos pulmonares clássicos na enfermidade respiratória. Por um lado, constituía um excepcional desafio. Já então se sabia que, de todos os fatores que causam crises asmáticas, a prática de exercícios vigorosos provoca a maior incidência de ataques.* Superar as crises e controlá-las com a vontade, um inalador ou mesmo injeções de epinefrina, tudo isso logo se converteu em um tipo de comportamento que Guevara adotaria até o último de seus dias. Ao mesmo tempo, o rúgbi atribui aos jogadores vários papéis (*) “O exercício físico é o desencadeador mais comum da asma. Oitenta por cento dos doentes de asma sofrem algum tipo de estreiteza do peito, tossem ou ofegam ao se exercitar” (Thomas F. Plant, Children withasthma. Nova York, Pedipress, 1985, p. 56). e funções, uns mais exigentes que outros. A posição de meio-scrum* tinha para Ernesto a grande vantagem de ser a mais estática e estratégica, menos móvel e tática. A posição escolhida beneficiaria Ernesto de duas maneiras: dando-lhe oportunidade de desenvolver seus dotes de líder e estrategista e permitindo-lhe jogar sem ter de atravessar o campo durante a partida inteira. Isso não significa, evidentemente, que os acessos não acontecessem. As vezes o surpreendiam ao longo da partida, obrigando-o a refugiar-
  • 12. se na arquibancada, onde ostensivamente ele mesmo se aplicava uma injeção de adrenalina 18 através da roupa, talvez para chamar atenção. O desafio era enorme e ao mesmo tempo superável, dadas determinadas condições — uma combinação que haveria de perdurar na vida de Guevara, tanto quanto a asma, pois, ao contrário do que ocorre em muitos casos de asma infantil, o sofrimento do Che não se esvaneceu com a idade. As explicações psicanalíticas para a etiologia da asma não têm aceitação entre os médicos;** a doença é acima de tudo hereditária. As interpretações baseadas na angústia do doente, em sua incapacidade de exteriorizá-la e na impossibilidade de enfrentar a ambivalência geradora da aflição talvez sirvam mais para explicar a permanência da enfermidade que a sua origem. São especialmente sugestivas para se compreender a evidente dificuldade do Che, ao longo de toda a vida, com emoções ou desejos contraditórios, na família, na escola, nos amores e inclusive em política. A asma seria a resposta do Che para uma angústia recorrente e primária, impossível de ser exteriorizada ou verbalizada e que, contida, provoca o sufocamento. A angústia, por sua vez, surgia e se exacerbava com a frequência e a ubiqüidade da ambivalência, inadmissível para Ernesto justamente pela angústia que desencadeava. A única cura possível — que ele j amais alcançaria — seria esquivar-se da ambivalência recorrendo à distância, à viagem e à morte. Entre os fatores que provocam a asma figuram vários de origem fisiológica — as infecções virais, o exercício físico, o pó ou qualquer elemento (*) “O meio-scrum é uma ligação entre o ataque e a defesa [...] E o homem que inicia a jogada de ataque [...] e o mais indicado para constituir-se em líder dentro do campo, pois cons-tantemente deve dar ordens aos atacantes [...] Sua função não requer velocidade, mas controle de bola [...] Exigia-se dele uma função estática, na qual não corria o risco de ficar sem fôlego” (Hugo Gambini, Ei Che Guevara, Buenos Aires, Paidós, 1968, p. 48). (**) “A asma provém de um complexo conjunto de fatores fisiológicos que ainda não compreendemos em sua totalidade. Mas podemos afirmar com certeza que não é produto de uma relação irregular entre mãe e filho ou qualquer outro problema psicológico, como foi sugerido no passado” (Plant, op. cit., p. 62). que cause alergia e as mudanças de clima —, aos quais se somam problemas emocionais: os tormentos afetivos, a sensação de perigo iminente, a expectativa, situações conflitivas, aparentemente sem saída e nas quais toda alternativa implica custos. O vínculo entre a dilatação dos brônquios contraídos e a adrenalina leva situações que acarretam descargas endógenas de adrenalina — como o combate, por exemplo — a evitar crises, enquanto outras, que requerem decisões, podem desencadeá-las justamente em virtude da ausência de descargas endógenas de 19 adrenalina. Se essa interpretação está correta, ajuda em grande medida a elucidar a incapacidade do Che para aceitar a presença simultânea dos contrários em sua vida: os problemas e o distanciamento dos pais, a contradição intrínseca do peronismo, a ambiguidade da relação dele com Chichina Ferreyra. Por fim, Guevara não poderia conciliar os imperativos da sobrevivência da 20 Revolução Cubana com as épicas e notáveis aspirações humanistas e sociais que lhe quis incutir. Com base em seus boletins escolares, ficamos sabendo que Ernesto era um estudante mediano, tendo se destacado em humanidades. Em 1945, seu quarto ano de colegial, por exemplo, distinguiu- se em literatura e filosofia; obteve notas medíocres em matemática, história, química, e verdadeiramente desastrosas em 21 música e física. Sua total falta de ouvido tomou-se proverbial: não diferenciava ritmos nem melodias, nem jamais se aventurou na dança ou no aprendizado de algum instrumento. Alberto Granado contaria anos depois como isso se evidenciou em uma viagem que fizeram pela América do Sul: Tínhamos combinado que eu lhe daria um tapinha cada vez que pudesse dançar, e ele só havia aprendido o tango, que se pode dançar sem ter ouvido. Era o dia do aniversário dele, e o Che fez um discurso fantástico, que para mim provava que aquele rapaz não era um louco, que tinha alguma coisa; ele dançava com uma indiazinha, enfermeira do leprosário do Amazonas. E então tocaram “Delicado”, um baião que estava na moda e, além disso, era das músicas preferidas da namorada que Ernesto tinha deixado em Córdoba. Quando lhe dei o tapinha, lá foi ele, dando os passos do tango. Era o único. Eu não conseguia parar de rir, e quando ele percebeu ficou zangado comigo.” 23 Seu inglês também era sofrível: no quarto ano ficou com média 3, enquanto seu francês, aprendido em casa com Célia, chegou a ser rico e fluente, quem sabe mais ainda rico. Contudo, o seu nível educacional geral e a cultura do Che, segundo os companheiros, sobressaíam. Ele comprava livros de todos os ganhadores do Prémio Nobel de literatura; discutia constante-mente com os professores 24 de história e literatura. Tinha conhecimentos de que os demais nem sequer suspeitavam. Seus resultados apenas satis fatórios* deviam-se talvez ao acúmulo de atividades: os esportes, o xadrez (que jogaria a vida inteira, adquirindo uma perícia notável), o primeiro emprego, no Departamento Provincial de Viação, em Córdoba, e depois em Vilia Maria. Como disse seu pai, “era um mago do emprego do tempo”.” Um episódio da época ilustra a generosa e obstinada vocação de Ernesto filho para superar o abismo que o separava dos setores mais humildes da sociedade de Córdoba e rechaçar as evidências mais flagrantes de injustiça. A rua Chile, onde residia a família Guevara, confinava com uma das favelas mais pobres da cidade. Ali os excluídos e despossuídos, recém-chegados do campo, viviam em casas de papelão e zinco, como em toda a América Latina. No monturo vagabundeava um personagem de Dante: o chamado Homem dos Cachorros, um aleijado, privado das pernas, que se arrastava em um carrinho de brinquedo, ladeado por um par de cães nos quais
  • 13. descarregava toda a fúria que seu destino lhe inspirava. Toda manhã, ao sair do buraco na terra que lhe servia de casa, açoitava os cães, que só com grande esforço conseguiam iça-lo até o nível da rua. O rosto convulsionado e os ganidos dos animais anunciavam a aparição dele; era um acontecimento no bairro. Um dia, as crianças da favela começaram a zombar do Homem dos Cachorros e a apedrejá-lo. Ernesto e seus amigos, que literal e figurati-vamente viviam na rua de cima, assistiram ao espetáculo e o interromperam. Ernesto exortou seus conhecidos da favela a dar um fim naquilo. O Homem dos Cachorros, em vez de agradecer ao jovem Che, fulminou-o com um olhar gelado, repleto de um ancestral e irremediável ódio de classe. Nas palavras de Dolores Moyano, que relata o episódio, o disparate deu uma grande lição a Ernesto: os inimigos do homem 26 não eram os meninos pobres que o apedrejavam, mas os meninos ricos que tentavam defendê-lo. Ernesto aprenderia a lição apenas em parte. Esses anos marcam um distanciamento na relação conjugal dos pais e o agravamento dos traços de penúria e desordem já presentes em Alta Gracia. Data de então o romance — mais ou menos conhecido nos restritos círculos de Córdoba, nos quais a família se movimentava — de Ernesto Guevara Lynch com Raquel Hevia, cubana de beleza excepcional, conhecida na cidade como mulher sedutora e alegre.** Não foi a primeira nem a última (*) Há uma certa continuidade em suas preferências escolares: um boletim do primário, datado de 1938, atesta que sua melhor média foi em história, seguida por educação moral e cívica, enquanto o desempenho em desenho, trabalhos manuais e música era precário, e os resultados em aritmética e geometria, medianos (ver Korol, p. 35). (**) “Raquel Hevia era fascinante. Era belíssima, e Ernesto estava encantado com ela” (Betty Feijin, entrevista com o autor, Córdoba, 18/2/95). das aventuras de Ernesto pai; como recorda Carmen, a prima enamorada do Che, “sabia-se que ele 27 era muito mulherengo; Célia sabia”. Atriz de algum talento, a mãe de Raquel se instalara em Córdoba por motivos de saúde. Foi durante 28 a guerra que teve início a relação com Ernesto pai. Apesar da notoriedade do caso — “Era um 29 espetáculo em Córdoba” —, Guevara Lynch em certa ocasião levou a moça para visitar sua casa, o que certamente não agradou ao Che nem a sua mãe. O incidente marcou a tal ponto Ernesto filho que, alguns anos depois, quando em meio a uma conversa sua namorada Chichina Ferreyra citou o nome da mulher, ele respondeu, cortante e irritado: “Nunca mencione esse nome na minha 30 presença”. Logicamente as tensões no seio do casal Guevara de Ia Serna perduravam e se agravavam, agora afetando os cinco filhos, três deles já maiores. Como recorda Betty Feijin, contemporânea de Guevara e por muitos anos esposa de Gustavo Roca, um advogado de Córdoba de quem ele se tomaria amigo íntimo mais tarde, em Cuba: A vida familiar era complicada. Lembro-me de quando nasceu Juan Martín, o menor dos irmãos de Ernesto, e fui vê-lo. Lembro-me da casa onde viviam; deparei com uma coisa que me pareceu tão desorganizada... dava uma sensação de pobreza, de descuido. Célia era uma mulher muito inteligente, bastante atraente como pessoa, podia-se conversar muito bem com ela, mas sentia-se que as coisas não iam bem... E ai, uma dessas coisas que as crianças comentam: que Ernesto estava separado. Houve diversos períodos de grandes divergências conjugais e de problemas financeiros. Inclusive viviam pobremente; bem do ponto de vista sociocultural, mas com seriíssimas limitações económicas.* Dolores Moyano desenvolveu uma tese sobre a vida doméstica da família Guevara nessa fase. Em sua solidão, e diante das crescentes dificuldades dos filhos menores para se desenvolver em um ambiente caracterizado já não só pela desordem mas também por apuros financeiros e pela crise do casamento, talvez a mãe adoradora e adorada tenha sucumbido à tentação de pôr o filho mais velho no lugar do pai. A primeira separação (*) Feijin, op. cit. O pai do Che alude a essas “divergências conjugais” da seguinte maneira: “A imprensa mundial [...] se pôs a fazer soar sua charanga de invenções e mentiras. Alguns ‘comentaristas’ chegaram a afirmar que em nossa casa minha mulher e eu sentávamos à mesa cada qual com um revólver na cintura para dirimir qualquer discussão a tiros. Porém, nada disseram sobre como nos complementamos em tudo o que se referisse à luta pêlos ideais políticos e sociais” (Guevara Lynch, op. cit., p. 105). propriamente dita dos Guevara — provisória, ambígua, relativa — só ocorreria em Buenos Aires, em 1947, mas em todo caso seu prólogo já estava em curso.* A complexidade da situação ficou na memória de Carmen Córdova: “Era como se Ernesto [pai] tivesse ido embora, pois decidiu que iria, mas logo reaparecia. Tampouco era uma relação de rompimento do casal ou o fim do casamento”.” Em 1943 nascera o último filho do casal, juan Martín. Sua relação com Ernesto seria representativa da adolescência em Córdoba e em seguida da mocidade portenha do Che. Nessa relação comprova-se a teoria de Dolores Moyano: “Eu era como uma espécie de irmão-filho: Ernesto era meu pai e meu irmão ao mesmo tempo. Levava-me para passear, carregava-me nos ombros, 32 brincava comigo e eu o via como meu pai”. Nas outras tarefas da casa — e evidentemente não se tratava apenas de funções domésticas — talvez Célia estivesse começando a solicitar de maneira inconsciente mas firme uma maior responsabilidade de seu primogénito e preferido. Segundo um primo irmão de Ernesto, o Che entre- gava sempre à mãe uma parte dos salários provenientes dos variados empregos que conseguira na capital nessa época. “Tive a impressão de que de algum modo, pouco a pouco, ele começava a 33 substituir o pai.” E provável que essa exigência não se verbalizasse nem chegasse a uma
  • 14. formulação explícita; a comunicação entre mãe e filho admitia insinuações e meias palavras. Pouco a pouco, em vista da crescente pressão materna, o jovem Che iria se distanciar; não no que se refere ao carinho ou à dedicação aos pais e irmãos, mas fisicamente. A isso se deveria em parte o início de suas viagens logo a seguir, com o posterior e interminável perambular pelo mun- (*) Alguns biógrafos a situam algum tempo antes, em Córdoba. Assim, Marvin Resnick, em The Black Beret, the life and mearúng ofChe Guevara (Nova York, Ballantines Books, 1970), afirma: “Em 1945, quando Ernesto ainda estava no colegial, os Guevara se separaram. O sr. Guevara mudou-se para outra casa, mas via a esposa e os filhos todos os dias” (p. 27).JáDanielJames,emseuCrieGuevara:aí)iogTflprry (Nova York, Stein and Day, 1969), diz que a separação se deu quando a família chegou a Buenos Aires, em 1947. Martin Ebon, em Crie: the making ofa legend (Nova York, Universo Books, 1969, p. 15), concorda: a separação ocorreu em Buenos Aires, em 1947. Por fim, Carlos Maria Gutiérrez, talvez o mais qualificado dos biógrafos — embora seu texto jamais tenha sido pubi içado na íntegra —, afirma que a separação ocorreu em 1950 (LUÍS Bruschtein/Carlos Maria Gutiérrez, “Los hombres, Che Guevara”, Página 12, Buenos Aires, p. l). Não é preciso dizer que nem o próprio pai do Che nem nenhuma das fontes oficiais ou oficiosas cubanas menciona a separação do casal. Aparentemente, preferem manter imaculada, em todos os sentidos possíveis da palavra, até a mais tenra infância de Ernesto Guevara. do.* Esse enfoque serve também para explicar em parte a decisão inicial de estudar engenharia em Córdoba, quando seus pais e irmãos já tinham se mudado para Buenos Aires. Porém não chegara ainda o momento da separação. Por diversos motivos, que examinaremos depois, ele modificaria seu plano original; seguiria a família até a capital, embora nunca tivesse chegado a lançar realmente raízes em Buenos Aires. Remonta a esses tempos de colegial o primeiro encontro do Che com Maria dei Carmen (Chichina) Ferreyra. O namoro só se concretizou três anos mais tarde, em 1950, quando Guevara cursava medicina na Universidade de Buenos Aires. Mas nesse período o grupo de amigos de Ernesto já começa a convergir com o de Chichina: muitos primos e primas dela são também próximos de Guevara, dos Granado e de outros do mesmo círculo de amizades. Convergência, não assimilação. O Che veste-se de maneira diferente (até provocativamente desarrumada), tem gostos distintos e uma cultura muito superior. Em alguma parte recôndita de sua psique assoma uma ténue politização, nesse momento ainda revestida de um tom exclusivamente emocional: simpatia e sentimentos nobres para com os menos favorecidos que ele; disposição de lutar por todos os meios, mas sem saber muito bem para quê, nem por quê. Um dos episódios mais citados da biografia do Che é o que Alberto Granado relatou: sua própria detenção em Córdoba, em 1943, por ter assistido a uma manifestação estudantil antigolpista. Quando Ernesto o visitou no comissariado de polícia, Granado pediu-lhe que convocasse com outros amigos manifestações dos secundaristas. Segundo a versão consagrada, o Che respondeu, atónito: “Sair em passeata para que caiam em cima de nós? Nem louco. Eu só saio se levar um bufoso [uma pistola]”. Mais que um sinal premonitório da vocação revolucionária ou mesmo da propensão para a violência, o incidente denota no Ernesto Guevara de dezesseis anos uma com- batividade desnorteada e uma ideia da correlação de forças: não convém brigar se não se pode 34 ganhar. (*) Jorge Ferrer, no relato pessoal anteriormente citado, diverge de maneira enfática dessa interpretação de Dolores Moyano: “Em nenhuma de nossas conversas Ernesto mencionou ou disse algo que sugerisse que se sentia pressionado por Célia em qualquer sentido, ou incomodado pêlos problemas financeiros da família. Conhecendo Célia, estou convencido de que em nenhuma circunstância ela teria incomodado algum dos filhos com seus problemas e muito menos com problemas financeiros”. Convém recordar que os anos a que Dolores Moyano se refere são os de Córdoha, enquanto Ferrer conviveu mais de perto com o Che em Buenos Aires. Em segundo lugar, ela fala de impulsos mais inconscientes, menos literais; Ferrer busca uma literalidade que sem dúvida não existiu, mas cuja ausência não invalida a análise mais sofisticada de Dolores Moyano. Essa nascente consciência política seria inevitavelmente marcada pela influência dos pais, da intelectualidade de Córdoba e da escassa atenção que o próprio Che consagrava a temas políticos em suas conversas e momentos de ócio com os amigos. Ele não era um colegial apaixonado pelo processo político, nem imbuído de paixões políticas particularmente vigorosas ou claras.* já esboçava um viés de antiamericanismo exacerbado, ‘não de todo atípico na intelectualidade da época em Córdoba, “a douta”.** Também abriga um indubitável sentimento antiperonista, mas proveniente sobretudo do ciclo antiautoritário que incluiu a guerra da Espanha, a luta contra o nazismo na Europa e na Argentina, a oposição ao golpe de Estado de 1943 e a rejeição de Perón por parte da velha esquerda da classe média intelectualizada. Não se encontra em nenhum relato, por exemplo, a rea-ção de Ernesto ao que foi sem dúvida, na memória dos argentinos que o testemunharam, o acontecimento político-social mais importante de suas vidas até então: a jornada de 17deoutubrode 1945 em Buenos Aires, quando a classe operária tomou as ruas para resgatar Perón da ilha onde se encon- ‘ trava preso e conduzi-lo pêlos ares, metafórica e fisicamente, à Presidência da República. rf’4- Em fins de 1946 o jovem Guevara concluiu seus estudos secundários; passou o verão trabalhando no Departamento Provincial de Viação em Vil-la Maria. Seu emprego, assim como certa inclinação — mas não destreza — para a matemática e a decisão de seu melhor amigo, Tomás Granado, de entrar na Faculdade de Engenharia de Córdoba, o induziam a seguir essa carreira na cidade provinciana. Sua família já partira para Buenos Aires, ocupando a casa da
  • 15. mãe de Ernesto Guevara Lynch. Porém, em março de 1947, a avó do Che, Ana Lynch, adoeceu, e o neto foi à capital cuidar dela em seus últimos dias. Após a morte da avó, Ernesto tomou uma decisão crucial: matricular-se na Faculdade de Medicina de Buenos Aires e voltar a viver com os pais, em uma casa da rua Araoz. Esta, contudo, já não espelhava por (*) Sabemos, pela reprodução de algumas páginas de seus cadernos filosóficos ou ‘Dicionário filosófico”, que ele começou a ler Marx e Engeis em 1945, aos dezessete anos: pelo menos o Anti- Duhring, o Manrfesto comunista e A guerra civil na França. No entanto, pelas anotações do jovem leitor, trata-se de leituras de índole mais filosófica que política, ainda que tenham sem dúvida surtido um efeito político. (**) O garçom do Sierras Hotel, que Ernesto pai frequentara antes e ao qual Ernesto rilho retornava com seus amigos em algumas ocasiões, recorda que ele nunca pedia Coca-Cola e, se a ofereciam, recusava com veemência: “Ficava frenético”. A precisão da lembrança pode, contudo, deixar algo a desejar (Francisco Fernández, entrevista como autor, Alta Gra-cia, 17/2/95). inteiro um lar. Conforme narra euremisticamente Roberto Guevara: “Ernesto frequentava muito um estúdio, bem velho, que tinha na rua de Para-guay, 2034, primeiro andar, A”.” Ou, como recorda um primo de ambos, mais próximo de Roberto que de Ernesto na idade e na vocação: “Nos últimos tempos seus pais já estavam praticamente separados; Ernesto, suponho, em geral não ia dormir em casa. Quando estavam na Araoz ele tinha seu estúdio de arquiteto, na rua de Paraguay, perto da faculdade de medicina, onde dormia”.’” Ernesto residiria na Araoz até deixar a Argentina, em 1953. Portanto, chegará em definitivo a Buenos Aires pouco mais de um ano depois de Perón tomar-se presidente; partirá para sempre da pátria menos de um ano após a morte de Evita Perón, em 26 de fevereiro de 1952, no início do ocaso do primeiro período de Perón no poder. 2 ANOS DE AMOR E INDIFERENÇA: BUENOS AIRES, PERÓN E CHICHINA O capítulo portenho de Che Guevara será simultaneamente de formação — não poderia ser de outra maneira: os anos universitários, como as viagens, forment lajeunesse — e prelúdio da etapa seguinte, decisiva e apaixonante. Abrangerá sua introdução no amor, a viagem e a profissão falida, assim como um vislumbre adicional — não mais que isso —de despertar político. Essa etapa tem lugar em um ambiente excepcional: a profunda transfiguração da Argentina que começa em l°deoutubrode 1946, com a posse de J uan Domingo Perón no cargo de presidente constitucional da República argentina. Três explicações podem ser dadas para a decisão de Ernesto Guevara de Ia Serna de ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. A primeira foi a morte de sua avó, Ana Lynch, motivo que goza de numerosos adeptos, em virtude da coincidência no tempo com a resolução do candidato a engenheiro, já matriculado na Escola de Engenharia, de estudar medicina. * Ernesto, consternado pelo falecimento de sua única avó, com quem (*) O primeiro adepto é evidentemente seu pai, que relaciona de modo direto a decisão de estudar medicina com a morte da avó do Che: “Recordo que [Ernesto] me disse: ‘Velho, mudo de profissão. Não seguirei engenharia, vou dedicar-me à medicina’” (Ernesto Guevara Lynch, Mi hijo el Che, Madri, Planeta, 1981, pp. 226-47). Sua irmã Célia partilha esse ponto de vista: “Ele via que não podia fazer nada por ela, que estava morrendo, e então achou que devia estudar medicina [...] por isso mudou de engenharia para medicina” (Célia Guevara de Ia Serna, depoimento colhido em Adys Cupull e Froilán Gonzáiez, Emestito: vivo y presente. Iconografia testimoniaAi de ifl infância y lajuventud de Ernesto Che Guerara Í928-1953, Havana, Editora Política, 1989, p. 111). Outros biógrafos que enfatizam essa conexão são J. C. Cernadas Lamadrid e Ricardo Halac, que afirmam: “Assim que a família Guevara chega a Buenos Aires, a avó Lynch adoece. Ernesto [...] acompanha-a mantinha desde pequeno uma relação estreita e carinhosa, reagiu como o jovem impulsivo e obstinado que já então se tomara. Visando evitar que outros morressem do mesmo mal, ele se propôs encontrar uma cura para a enfermidade que a matou (um derrame cerebral, segundo a irmã do Che);* para tanto, não havia outro caminho a não ser estudar medicina. A explicação não é absurda e, embora possa parecer insuficiente, é preciso outorgar-lhe certa importância. A segunda explicação diz respeito ao câncer mamário detectado em Célia de Ia Serna Guevara,** um diagnóstico que abalou profundamente seu filho.*** Conforme a versão relatada ao autor por Roberto Guevara, irmão menor do Che, e Roberto Nicholson, primo do cirurgião que atendeu Célia, a dia a dia, até a morte. Essa experiência parece ter sido determinante; poucos dias depois ele decide ficar na capital e começar a estudar medicina” (J. C. Cemadas Lamadrid e Ricardo Halac, Yofui testigo: el “Che” Guevara, Buenos Aires, Editorial Perfil, 1986, p. 20). Dois admiradores argentinos, Estehan Morales e Fabián Rios, em seu “Comandante Che Guevara” (Cuademos de América Latina, 1/10/68, p. 5), também atribuem o estudo da medicina a “um fato singular: a morte da avó paterna”. A versão cubana raais ou menos oficial também é essa: “Em seguida ao fatal desenlace [da avó] [...] ele se matricula na faculdade de medicina” (Atlas histórico, biográfico y militar de Ernesto Guevara, Havana, 1990,t. l, p. 37). (*) Célia Guevara de Ia Sema, op. cit. O pai também afirma que a causa moreis foi um derrame cerebral, e não o câncer que vários biógrafos apontam (Guevara Lynch, op. cit., p. 247). (**) Entre os partidários dessa tese figuram Andrew Sinclair: “A morte da avó de câncer, e a luta da
  • 16. mãe contra a mesma enfermidade levaram o Che a ser doutor” (Andrew Sinclair, C/ie Guevara, Nova York, Viking Press, 1970, p. 3). Vários outros biógrafos do Che mencionam a enfermidade da mãe como o fator que o levou a cursar medicina (cf. Daniel James, Che Guevara: a biography, Nova York, Stein and Day, 1969; Martin Ebon, Che: the makingofa legend. Nova York, Universe Books, 1969; Marvin Resnick, The Black Beret, the life and meaning ofChe Guevara, Nova York, Ballantine Books, 1969). Um biógrafo alemão, cujo texto contém numerosos erros e claras fantasias (ver mais adiante a nota da página 65), mas inclui também acertos interessantes, relaciona a enfermidade da mãe com o empenho do Che em encontrar uma cura para o câncer em seu pequeno laboratório doméstico com porquinhos-da-índia, mas não com a decisão de estudar medicina: “Quando sua mãe teve de se submeter a uma operação, em virtude de um tumor canceroso no seio, ele construiu um laboratório amador e começou a fazer experiências com porquinhos-da-índia, na esperança otimista de desvendar o segredo dessa enfermidade” (Frederik Hetmann, Yo tengo siete vidas, Madrid, Lóguez Ediciones, 1977, p. 23). (***) “Célia, minha mulher, foi tratada com radioterapia para erradicar um tumor maligno. Um dia disse-me que encontrara uma protuberância no seio [...] Os médicos [...] decidiram operá-la imediatamente [...j Quando [Ernesto] se deu conta de que levavam a mãe para a sala de operações e o resultado da intervenção era incerto, perdeu a serenidade (...] Seguiu passo a passo o processo de cura de sua mãe” (Guevara Lynch, op. cit., p. 247). primeira operação foi em 12 de setembro de 1945.* Extirpou-se uma parte considerável do seio em razão da presença de um tumor maligno e “muito ati-vo”. A cirurgia foi um êxito e não teve maiores consequências. Ocorreu, portanto, dois anos antes da decisão do Che de estudar medicina e sem dúvida foi fundamental em suas opções. Em outubro de 1949 Célia queixou-se de que a cicatriz da operação de 1945 a estava incomodando; em princípios de 1950 foi submetida a nova intervenção, em que se extirpou todo o seu seio e extraiu-se o aparelho reprodutivo. Célia demorou muito mais para se recuperar dessa operação, e dezessete anos mais tarde morreria de câncer, talvez por causa de sequelas do tumor inicial. Não é difícil supor que um rapaz extraordinariamente apegado à mãe, ao saber um belo dia que ela padecia de câncer, ainda que os médicos j ulgassem que a enfermidade específica de Célia fosse curável, tenha sofrido um golpe devastador.** Se Ernesto resolveu se dedicar à medicina para impedir que outros morressem como sua avó, maiores motivos teria para tentar evitar uma hipotética (ainda que provável) recaída da mãe, figura muito mais próxima e intensamente ligada a ele que Ana Lynch. Nenhuma das fontes oficiais cubanas sequer menciona a enfermidade de Célia, muito menos os efeitos que teve na vida, carreira e personalidade do filho. * * * Também não se fala da separação dos pais do Che — parece que (*) Esses fatos foram relatados ao autor por Roberto Guevara, o irmão mais novo do Che, durante uma entrevista realizada em Buenos Aires, em 22 de agosto de 1996. Por sugestão dele, foi possível consultar pessoas diretamente relacionadas com os médicos que atenderam Célia. A pessoa que realizou a investigação por conta do autor também pôde corroborar alguns fatos junto a Célia Guevara, irmã do Che. Em um depoimento escrito, Jorge Ferrer, amigo próximo de Ernesto durante esse período, assinala que “quando descobriram o tumor de Célia, Ernesto já estava cursando o segundo ano de medicina” (Jorge Ferrer ao autor, 11/3/96). Ferrer desconhecia a existência do primeiro tumor e da primeira operação. Talvez isso se devesse a um certo segredo que cercava a enfermidade de Célia. Dolores Moyano, por exemplo, acreditava que as repetidas reclusões de Célia em seu quarto deviam-se a uma depressão (Dolores Moyano, entrevista com o autor, Washington, DC, 26/2/96). (**) “Quando Ernesto era estudante de medicina, sua mãe foi operada do seio em virtude de um possível tumor maligno. O Che ficou tremendamente afetado” (testemunho de Armando March, 3 encontrado em Primera Plana, n 251, Buenos Aires, 17/10/67, p. 29). (***) A enfermidade da mãe não é mencionada em nenhuma das obras cubanas dedicadas ao tema que pudemos consultar: nem no Atlas histórico (op. cit.), nem Adys Cupull e Froilán Gonzáiez em suas obras a respeito (L/n homhre bravo, Havana, Editorial Capitán San LUÍS, 1994), nem no trabalho mais recente publicado com o apoio de fontes cubanas — Jean Cormier, com a colaboração de Alberto Granado e Hilda Guevara, Che Guevara, Paris, Éditions du Rocher, 1995. os heróis revolucionários não podem incluir em sua biografia episódios penosos ou amargos: os pais não brigam nem adoecem, nem os tropeços de suas vidas têm maior influência sobre os filhos. Algum dia haverá que se examinar por que o stalinismo, em qualquer de suas versões, seja a polar ou a tropical, só reconstitui homens maus ou perfeitos, nunca seres humanos normais que, por seu talento e pela época em que vivem, se transformam em personagens extraordinários. Por último, há a tese de que Ernesto estudou medicina em busca de um alívio para sua própria enfermidade respiratória.* Além do peso dos teste->• munhos em seu apoio,** ela possui uma poderosa justificativa intrínseca. A especialização medicado Che orientou-se precisamente para as alergias;*** suas investigações sob a orientação do dr. Salvador Pisani, na faculdade de medicina, também permaneceram nessa área.**** Inclusive durante o período que passou no México antes de embarcar na expedição do Granma — única fase em que ele exerceu sua profissão —, seu esporádico e escasso trabalho médico girou em torno de problemas alérgicos e dermatológicos. ***** Não seria descabido pensar que sua própria doença contribuiu de alguma maneira para a escolha de uma carreira para a qual ele não tinha nenhuma vocação aparente. (*) John Gerassi, o divulgador da obra do Che nos Estados Unidos, menciona essa explicação, mas confere-lhe maior importância como fator que levou Ernesto a especializar-se em alergias: “Mas o