O cantador que dizia a mentira pra falar a verdade+ilustra…
As manifestções em São Paulo
1. A política como ethos social bate em nossas portas. Ela não nos espera nem mais
um segundo. Apenas urge. Submerge como uma vontade de vida frente a um
Estado Violência.
Sinto no meu corpo
A dor que angustia
A lei ao meu redor
A lei que eu não queria...
Estado Violência
Estado Hipocrisia
A lei não é minha
A lei que eu não queria...
Meu corpo não é meu
Meu coração é teu
Atrás de portas frias
O homem está só...
Homem em silêncio
Homem na prisão
Homem no escuro
Futuro da nação
Homem em silêncio
Homem na prisão
Homem no escuro
Futuro da nação...
Estado Violência
Deixem-me querer
Estado Violência
Deixem-me pensar
Estado Violência
Deixem-me sentir
Estado Violência
Deixem-me em paz...
Manifestações como as da passagem livre que estão ocorrendo em São Paulo são
cada vez mais comuns nas grandes cidades do nosso país. Somadas a alguns
movimentos, como, por exemplo, o Ocupa Sampa, ganham força expressiva.
Possuem inspirações em movimentos no Brasil e no mundo. Não se trata de lutar
contra o aumento das passagens dos meios de transporte. Esse é olhar é da
redução banal da Imprensa, representante dos interesses privados, que procura
produzir tomadas distantes das manifestações e pouco registra as palavras de
ordem, apontando para o vandalismo, juízo de valor e clichê presente em todas
suas intervenções em situações como esta. O que se instala, cada vez mais, está
muito além da negação do direito de ir e vir. As pessoas começam a experimentar
as barras de ferro do cárcere reforçadas pelo apoliticismo em suas vidas. É um
sentimento de que o espaço público sempre nos foi negado, ou está sendo
reduzido a pó. De forma inconsciente talvez, o mundo começa a despertar para a
hipocrisia do Estado de Direito num Sistema Econômico que gera somente
2. desigualdade e concentração de riqueza, e para a falácia da liberdade e da
igualdade proporcionados pela democracia representativa do Estado Liberal
Burguês.
Os braços do Estado Liberal Burguês são os tentáculos ferozes do Leviatã
(Thomas Hobbes). A polícia militar, ou a milícia do poder, em sua origem era uma
guarda particular dos grandes proprietários. Hoje é pública no discurso do Estado
de Direito e continua sendo particular na sua prática violenta e desmedida, sempre
em favor da propriedade privada (para pensar um pouco mais leia um livro O
Processo Civilizador, do sociólogo alemão Norbert Elias). Esse monstro, o Estado
Liberal Burguês, geralmente prefere a versatilidade mimética do camaleão. É bem
verdade que esse mesmo Estado se traveste no Estado Democrático de Direito e
nos provê a política do bem-estar social: com Saúde, Educação, cultura, estrutura
urbana logística, transportes, entre outros. Mas, qual é o vetor diretor da estrutura
desse bem-estar? O Estado Democrático de Direito realmente tem o primado da
vida? Como estão as nossas Saúde e Educação Públicas? Em nome do bem
público ou das pessoas são planejados os planos diretores das cidades ou eles
são uma mera contingência do capital especulativo? Sugiro que assistam o
documentário Entre Rios, a urbanização de São Paulo, disponível no Yotube. Nele
aparece como a cidade foi concebida, assassinando seus bens naturais, em nome
da especulação imobiliária da época.
A concentração de riqueza e de poder foi constituída historicamente. Mais do que
analisar o desempenho político do Estado Liberal Burguês, é preciso pensar nas
formas e nas relações de poder com que a nossa civilização e cultura sempre se
organizaram socialmente? Pierre de Clastres, no livro A sociedade contra o Estado
nos aponta algumas pistas de como as civilizações ameríndias se organizam de
maneira muito diferente da nossa, mediante suas relações de poder. Não que ele
sugira que nos tornemos índios, mas que as relações de poder têm em sua
gênese algo que instrumentaliza o Estado, que se coloca contra a Sociedade. No
entanto, discorda Nietzsche:
"Em todos os países da Europa, e também na América, existe atualmente quem abuse desse
nome, uma espécie bem limitada de espíritos, gente prisioneira e agrilhoada, que quer mais ou
menos o oposto daquilo que está em nosso intento e nosso instinto, sem falar que, em relação
aos novos filósofos que surgem, eles com certeza serão portas e janelas travadas. Em suma, e
lamentavelmente, eles são niveladores, esses falsamente chamados "espíritos livres", escravos
eloquentes e folhetinescos do gosto democrático e suas "ideias modernas"; todos eles homens
sem solidão, sem solidão própria,rapazes bonzinhos e desajeitados,a quem não se pode negar
coragem nem costumes respeitáveis, mas que são cativos e ridiculamente superficiais,
sobretudo em sua tendência básica de ver, nas formas da velha sociedade até agora existente,
a causa de toda miséria e falência humana:com o que a verdade vem a ficar alegremente de
cabeça para baixo! O que eles gostariam de perseguir com todas as forças é a universal
felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de perigo, bem estar e
facilidade para todos; suas doutrinas e cantigas mais lembradas são "igualdade de direitos" e
"compaixão pelos que sofrem" e o sofrimento mesmo é visto por eles como algo que se deve
abolir. Nós, os avessos, que abrimos os olhos e a consciência para a questão de onde e de
que modo, até hoje, a planta "homem" cresceu mais vigorosamente às alturas, acreditamos
que isso sempre ocorreu nas condições opostas, que para isso a periculosidade de sua
situação tinha de crescer até o extremo, sua força de invenção e dissimulação (seu "espírito")
tinha de converter-se,sob prolongada pressão e coerção, em algo fino e temerário, sua vontade
de vida tinha de ser exacerbada até se tornar absoluta vontade de poder. Acreditamos que
dureza, violência, escravidão,perigo nas ruas e no coração, ocultamento, estoicismo, arte da
3. tentação e diabolismo de toda espécie, tudo o que há de mau, terrível, tirânico tudo o que há
de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie "homem"
quanto o seu contrário"
Penso que esses dois movimentos, poder e desenvolvimento do homem não estão
dissociados. O homem exerce poder, através das relações sociais, através da maneira com
que ele consegue interpretar seus símbolos, que também são instrumentos e tecnologias de
poder, instituídos culturalmente nas sociedades. A mudança, portanto, demanda de
necessitades éticas, em direção à construção de uma nova forma de política, a saber, refletir
as relações de poder, interagir e mudar com essas novas relações. Perpassa pela construção
do íntimo e da intimidade, como escrevi na reflexão aos fragmentos da poesia de Manoel de
Barros, postado aqui no D.I.
Pressinto os ventos da mudança. Infelizmente eu não as viverei em sua forma
mais plena. As transformações históricas são produzidas dessa maneira. Elas se
instalam lentamente. Os movimentos não são totalmente conscientes. São muito
mais sentimentos de indignação e de revolta contra uma situação imposta, com
tecnologias de controle sutis ou não (para pensar melhor a respeito, leiam A
arqueologia do saber, Vigiar e punir e a Microfísica do Poder, de Michel Foucault),
que invariavelmente terminam repreendidas pela força bruta do Estado.