O documento discute como o design contribuiu para a sociedade de consumo e como pode ajudar na sustentabilidade. O design promoveu o consumo em massa, mas agora reconhece seu impacto ambiental e busca projetos mais sustentáveis. A inovação precisa ser repensada para além do lucro e considerar questões éticas, criativas e de valor real para as pessoas e o planeta.
Planeta Design - O design na sociedade de consumo e seu papel na sustentabilidade do planeta prof Ligia Fascioni
1. nov 2009
mar 2011
Planeta design
Design: Cultura & Sociedade | Pós graduação em Inovação, Design Gráfico, Produto, Moda e Embalagem | SUSTENTARE
O design na sociedade de consumo e seu
papel na sustentabilidade do planeta
Lígia Fascioni | wwww.ligiafascioni.com.br
2. defendida por cosmopolitas engajados,
preocupa-se em elaborar projetos que
reduzam o impacto ambiental de várias
maneiras: usar materiais não tóxicos e
menos poluentes, privilegiando a reci-
clagem; pensar em processos produtivos
que enfatizem a e ciência energética;
elaborar produtos com mais qualidade
e que durem mais, gerando menos lixo;
projetar de maneira modular, onde a
parte com problema pode ser substi-
tuída, sem que seja preciso jogar fora o
objeto inteiro; e, nalmente, a reutiliza-
ção e o reaproveitamento.
Estamos ainda muito longe de colher os
frutos do ecodesign em uma escala que
faça diferença, mas os designers, mesmo
aqueles mais desligados dos problemas
ambientais, deveriam prestar atenção
em detalhes que não doem nada.
Consumo Reutilizar é melhor que
reciclar
Responsabilidade e design É que usar de novo não implica, na
maioria das vezes, em gasto de energia.
Você certamente já reparou: o mundo nas: nossos desejos, necessidades, des- Na reciclagem você desconstrói o objeto
está mais quente, mais bagunçado, controles emocionais, carências e dores para construir outro depois, o que dá um
mais sujo, mais seco, e mais preocupado passaram a ser resolvidos comprando e trabalho danado e gasta muita energia.
também. A autodestruição deve se com- consumindo cada vez mais e mais. No reuso, você simplesmente tira o rótu-
pletar em algumas centenas de anos. E lo e usa a embalagem para outra coisa,
tem uma notícia ainda pior: boa parte por exemplo.
da culpa é do design! A conseqüência disso foi a produção de
lixo e desperdício de energia também
no atacado, em dimensões nunca antes Mas então, por que os fabricantes
É isso mesmo, uma disciplina tão cheia vistas neste planeta cada vez mais sujo e teimam em usar essas colas nojentas?
de beleza e ideais nobres tem culpa no maltratado. A nova embalagem do Nescafé é uma
cartório, e muita. graça, serve para guardar uma miríade
de coisinhas, mas torna-se praticamente
E agora? Bom, o povo do design tam- inútil porque a retirada do rótulo gera
Nascido com a revolução industrial, o bém já notou o tamanho do estrago, e cicatrizes horrorosas e permanentes no
design foi concebido para trazer con- corre para apagar esse incêndio nem tão vidro. Onde estão os designers que não
forto e beleza para a plebe, que sempre metafórico assim. Hoje, os projetos já vêem isso?
foi maioria no mundo. O que antes contemplam estudos mais aprofunda-
era produzido por talentosos artesãos dos sobre o ciclo de vida do produto e
para uso exclusivo da nobreza, passou registra-se até o nascimento da logística Outra prática infelizmente muito comum
a ser comum nas casas da numerosa reversa, que trata do retorno dos produ- é o uso combinado de materiais reci-
categoria dos sem-brasão. E dá-lhe tos, das embalagens e dos materiais ao cláveis que necessitam de tratamentos
bugigangas. Praticamente tudo passou local onde foram produzidos. diferentes, mas que não se desgrudam
a ser produzido em escala industrial a nem por decreto.
preços sedutoramente acessíveis, para
deleite dos consumistas de plantão. Foi Outra área em crescente expansão
quando o design se uniu ao marketing e (inclusive em prestígio e popularidade) Pegue-se, por exemplo, uma escova de
os objetos passaram a fazer as vezes de é o ecodesign. Essa atualíssima área, dentes. A embalagem pode indicar que
remédio para todas as questões huma- antes relegada aos bicho-grilos e agora ela é toda feita de materiais recicláveis,
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3. mas, na hora de executar o processo,
não dá para separar os dois materiais Inovação X Consumo
do cabo e as cerdas. Como cada tipo
de polímero exige um tratamento di- Outra questão sensível é que poucos
ferente, acaba que a escova vai direto admitem é que a inovação, como
para o lixo, por melhores que tenham existe hoje, na verdade, não inova. A
sido as intenções de quem a projetou. inovação consiste, basicamente, em
Isso é pseudo-ecodesign, e denota desenvolver coisas comercialmente
incompetência, quando não má-fé novas. Essa abordagem já se mostrou
mesmo. desastrosa na última crise causada
por consumidores compulsivos, onde
a pseudo riqueza gerada virou vapor
Uma das maneiras de resolver esse
rapidinho.
imbróglio no qual nos metemos é
pensando diferente, inovando a ma-
neira de fazer as coisas. A questão que Haque coloca é: o
custo da inovação compensa seus
benefícios?
Mas até mesmo o conceito de inova-
ção precisa ser revisto.
Ele acredita que não e apresenta
o conceito de awesomeness que
consegue traduzir mais a contento as
Inovação e o conceito de necessidades de um mundo inter-
dependente, onde não dá mais para
awesomeness
Criatividade construir e vender sem se preocupar
com o impacto dessa ação para o
planeta e os que nele vivem. Umair
Umair Haque, diretor do Havas Media
Lab, explica no seu “The Awesomeness
Manifesto” porque isso é necessário. e inovação Haque fundamenta o awesomeness
em 4 pilares:
É difícil traduzir awesomeness, que para continuar nesse ciclo maluco, os 1. Produção ética
seria mais ou menos a capacidade de resultados estão aí para quem quiser ver. O mantra do século XX, muito bem
impressionar, causar espanto. Pensei À luz da sustentabilidade e do conceito embalado pela inovação empreende-
em substituir por incrível, sensacional, de interdependência, obsolescência é dora era “compre barato, venda caro,
deslumbrante e até mesmo impres- que é um conceito obsoleto. crie valor!”. O século XXI não há de
sionante, mas esses são adjetivos e produzir nada que mereça o rótulo de
Haque acrescentou o “ness” no nal impressionante sem que se considere
justamente porque queria um subs- Haque lembra também que a inovação
a questão ética em todo o seu ciclo
tantivo. Aí ca difícil traduzir, né? trata basicamente de empreendedo-
de vida.
rismo ou seja, toda boa ideia precisa se
transformar em negócio lucrativo para
Mas não faz mal, usamos o original merecer o título de inovação. Seguindo
e vamos ao que interessa: Haque diz esse princípio, o que se percebe é quase 2. Ousadia
que a palavra inovação soa como tudo já foi inventado e não apenas isso: O conceito de inovação submete a
uma relíquia da era industrial e que, está à venda em qualquer esquina ou criatividade às leis do mercado, de
por isso, a própria palavra precisa ser site. Poucas coisas fundamentalmente maneira que a coisa inovadora, às ve-
inovada. novas estão sendo criadas nos dias zes, é muito menos que emocionante
atuais. A inovações cada vez mais cami- – é chata mesmo. Do ponto de vista
nham para encontrar maneiras novas de da inovação formal, o iPhone não tem
Ele lembra que inovação implica vender, apenas isso. muito a contribuir; mas é uma das
em obsolescência. Inovação foi um coisas mais impressionantes já vistas
conceito pioneiro criado pelo econo- em termos de interface e encanta-
mista Joseph Schumpeter e utilizá-lo O autor lembra que o desa o do século mento até onde se sabe. A questão é
implica também em aceitar a teoria da XXI não é desenvolver a criatividade que para a Apple o foco é deslumbrar,
destruição criativa, onde o mercado para vender mais coisas; o problema é isso nunca sai da mente de quem está
se sustenta à base da substituição do construir coisas melhores e com menos trabalhando no projeto.
antigo pelo novo. Só que não dá mais impacto para o planeta.
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4. Inovar não é acrescentar Você pode pensar, como eu enquanto
lia, onde é que pode estar o problema.
mais botões Não é esse justamente o sonho de con-
sumo de um monte de gente (talvez até,
Aliás, essa história de acrescentar botões em certa medida, eu e você?).
a um ritmo frenético reduzindo o ciclo
de vida dos produtos e os jovens (ou
Pois é, o problema é que ele queria um
seja, as pessoas que herdarão essa
quarto pequeno e aconchegante, e
encrenca toda) trocam de celular mais
não dormir em um salão temático. Ele
frequentemente do que trocam de esco-
sonhava dormir abraçado todo dia com
va de dentes.
o mesmo ursinho de pelúcia, mas as
versões mudam a cada dia e ele precisa
A cada dia das mães, natal, dias dos acompanhar as tendências.
pais, namorados, páscoa, dia da criança,
chovem promoções irresistíveis. Tudo é
Ele chora porque quer o colo da mãe,
motivo para jogar fora o novo e trocar
mas ela tem que consumir, e, além disso,
pelo novíssimo. Observando as pessoas
os robôs-babás precisam ser testados.
ensandecidas para trocar aparelhos em
Ele quer brinquedos simples, mas tudo
3. Amor excelente estado de funcionamento co
tem que interagir e desenvolver suas
me lembrando de um conto de cção
As pessoas precisam estar encantadas infantis capacidades cognitivas. Ele
cientí ca que eu li há muitos anos e que
com o que fazem para fazê-lo bem. quer chorar, mas os procedimentos para
me impressionou muito.
Haque deu o exemplo das lojas Apple, parar choro de criança são insuportáveis
onde os funcionários não estão lá para e enfadonhos. Ele quer ser rico.
vender, mas para compartilhar o encan- O conto, de Frederik Pohl, chamado “O
tamento e a paixão por estarem ali. homem que comeu o mundo” conta a sur-
Rico é quem não precisa mais comprar.
preendente história de um menino que
Rico é quem já tem o que necessita,
vive em algum lugar no futuro.
Eles realmente curtem fazer o que estão gosta das coisas que possui e não tem
fazendo e esse foco ca muito claro que servir de cobaia para novos lança-
quando se compara essa atitude com mentos. Rico não sente a obrigação de
lojas comuns, onde os vendedores são ter, pode se preocupar apenas em ser.
instruídos unicamente para vender. Pobre menino rico E o máximo dos máximos, os meninos
ricos podem car com o mesmo ursinho
de pelúcia até crescerem e eles mesmos
No mundo dele, onde a produção não decidirem quando não o querem mais.
4. Valor de verdade pode parar de crescer, o consumo tam-
A expressão mais usada no mundo bém não pode estabilizar. Sua família é
corporativo é “agregar valor”. Ora, se- muito pobre e, por isso, os pais são obri- Será que vai chegar o dia em que só os
gundo Haque, mais valor é uma ilusão. gados a passar as noites fora, consumin- muito ricos poderão car com o mesmo
A maioria das empresas consegue criar do desenfreadamente em bares e a ns. aparelho celular por mais de um ano?
um pequeno valor, nada signi cativo Mais do que inovar e desenvolver novos
que justi que o uso indiscriminado do produtos ecologicamente corretos,
termo. Valor de verdade, grande, para Durante o dia, precisam comprar sem precisamos mudar os hábitos consumis-
Haque, tem que ser sustentável. parar em shoppings. O menino mora tas arraigados tão fortemente em nossa
numa casa imensa e se sente solitário cultura.
com seus numerosos guardiães ele-
Isso signi ca realmente fazer melhor, trônicos e montanhas de brinquedos
não apenas adicionar botões em um inteligentes, trocados diariamente. E o E agora não é mais cção, é realidade
telefone ou sabores em um refrigerante. menino é profundamente infeliz. mesmo.
O conto citado, “The man who ate the world”, é parte do livro “The science ction weight-loss book”, editado por Isaac Asimov em 1983.
O “The Awesomeness Manifesto” está disponível em < http://blogs.harvardbusiness.org/haque/2009/09/is_your_business_innovative_
or.html>
Imagens: Leszek Kowalski, Mana Bernardes, Oliver Barret e Vladimir Tsesler & Voichenk