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DEIXA EU SER PIÁ! Processos criativos em uma criança tímida
1. Ensaio Pesquisa-Ação
Programa de Iniciação Artística – PIÁ
DEIXA EU SER PIÁ!
Processos criativos em uma criança tímida.
VIDIZ, Thâmile
Musicista, brincante, contadora de história.
Facilitadora de processos criativos em artes integradas.
Musicoterapeuta formada pela Universidade Federal de Goiás.
Pesquisadora independente de Culturas Tradicionais da Infância.
e-mail: thamile.vidiz@gmail.com
São Paulo
Dezembro, 2015
2. DEIXA EU SER PIÁ!
Processos criativos em uma criança tímida.
Thâmile Vidiz1
1. INTRODUÇÃO
Há quem diga que o mundo é dos extrovertidos e que a arte é para
os espontâneos de plantão. A ludicidade, a alegria e o reconhecimento da
bagunça, da desordem e do caos são matéria-prima para os processos
criativos na infância. Mas e o contrário disto? E quando a criança se
desenvolve em meio a raras manifestações expressivas, ao recuo, ao retirar-
se, ao afastar-se de outras crianças para entrar em um mundo de sussurros,
silêncios e quietude. De onde viria esta introversão? Qual o papel da relação
familiar na negação e apropriação da identidade? Quais os caminhos
subjetivos e artísticos presentes na criança introvertida? Como entrar no tempo
dela para potencializar o que já existe, mas que de alguma forma se esconde?
2. UM MENINO SOB LENTE DE AUMENTO
Introspecção contínua, corpo enrijecido, pavor do erro, expressão
verbal e não verbal reduzida, fala sussurrada, insegurança para improvisar,
medo de criar, recusa para atividades coletivas. Foram características que eu,
Thâmile Vidiz e Kallu Whitaker2
, observamos em Jeferson3
desde nossos
primeiros encontros. Segundo Oaklander (1978, p 258):
As crianças retraídas são crianças que se reprimem. A definição
“retirar ou não se manifestar (uma afirmação, etc.)” é muito
apropriada. Em algum ponto do caminho elas aprenderam a manter a
boca calada (...). Essas crianças “se fecham”, segurando rigidamente
sentimentos e experiências dentro da sua concha.
Analisando os contextos de vida da criança, três fatos me
chamaram a atenção: a superproteção materna, a timidez paterna e a
constante fuga desta criança em relação ao mundo externo aos seus
pensamentos.
1
Thâmile Vidiz é graduada em musicoterapia pela Universidade Federal de Goiás, musicista, brincante,
contadora de história. Atua como facilitadora de processos criativos em artes integradas desde 2009.
Tem uma ampla pesquisa no campo da cultura popular/tradicional, vinculando seu trabalho às
brincadeiras, confecção de brinquedos, tradição oral, dentre outros.
2
Dupla de artistas-educadoras do Piá.
3
O nome da criança e da mãe serão fictícios para que a identidade seja preservada.
3. De acordo com Woollams e Brown (1979), quando a mãe não
consegue satisfazer as necessidades de sua própria criança, isto acarreta uma
sensibilidade excessiva às necessidades do filho. Assim, a medida que o filho
cresce ela continua a fornecer uma série de auxílios, sem ensinar e permitir
que ele próprio se cuide. Kertész (1987), define este processo como “Simbiose
Primária Não Resolvida”. Para o autor a simbiose passa a ser patológica
quando a mãe age superprotegendo um filho que já tem condições de tatear
seu próprio desenvolvimento. Ou ainda, quando a mesma impede o
rompimento da simbiose natural, que é necessária durante os primeiros meses
de vida, se comportando de modo a tornar a criança dependente de suas
ações. Muitas características observadas em Jeferson podem surgir como
resultado de uma identidade insegura, que ainda se encontra fragmentada em
processos simbióticos. Durante meses acompanhando a criança e em diálogos
com sua mãe ficou evidente que por ter vivido processos muito doloridos
durante a infância Madalena tinha criado um mundo particular e fantasioso para
o filho, onde ela seria capaz de protegê-lo não só daquilo que ela mesma tinha
sofrido quando pequena, mas de todos os riscos e frustrações que ele pudesse
ter contato. Sem se dar conta dos efeitos da privação de riscos no menino, a
mãe observava apenas a timidez. Jeferson, privado de viver os próprios erros,
desafios, cercado por todo zelo materno se fechava em sua introspecção
defensiva e medo de reprovação grupal. Estar sob as vistas de sua mãe lhe
permitia segurança.
Em vários momentos percebemos que Jeferson ficava recluso dos
demais participantes principalmente no início e fim do encontro, quando a mãe
o deixava ou estava prestes a busca-lo. Bassoff (1991), afirma que a devoção
da mãe superprotetora torna difícil o processo de individuação da criança.
Separar-se físico e psicologicamente significa estar em um mundo que nem
sempre é afetivo, cuidadoso, mas necessário para que a criança desenvolva
sua individualidade. Quando a relação mãe e filho se dá de maneira simbiótica,
ambos não conseguem expandir. Sem nunca se darem conta de que podem
desenvolver habilidades em si, procurarão em vão, por preenchimento de um
vazio, uma lacuna que ficou perdida no próprio desenvolvimento. A formação
da identidade, que se dá a partir dos primeiros anos de vida ficará corrompida e
cheia de déficits. Para que exista um amadurecimento saudável a criança
precisa entender que não está em simbiose com a mãe, como acontecia antes
de seu nascimento. Segundo Rufo (2007), passados os primeiros meses de
vida a mãe precisa permitir que outros modelos sirvam para desfusionar a
criança. Outros papéis, além do materno, irão servir como modelo de
identificação até que o filho consiga assumir sua própria identidade.
Em nossos encontros com a mãe de Jeferson, Madalena trouxe
outro dado importante: o pai da criança sofrera bastante com sua própria
timidez, todavia tinha conseguido superar alguns limites que o bloqueavam,
4. conseguindo inclusive falar em público. A mãe disse que o pai conseguia
compreender o universo introspectivo da criança e que afirmava sempre que
aquilo não era um problema, visto que ele mesmo tinha convivido com a
timidez durante toda vida. Quanto a isto, Marulanda (2001) afirma que a timidez
pode ter características de personalidade herdada. E Axia (2003, 15p), esclare:
Ser tímido pode ser desvantajoso, é verdade, mas é um fato absolutamente
normal, sadio e, sobretudo relativo tanto à cultura, ao lugar, como ao tempo em
que a pessoa se encontra. O que não é sadio é a intolerância à timidez: a
intolerância alheia e, principalmente a nossa própria intolerância interior. Para os
tímidos parece muito difícil gostar da própria timidez – que na realidade é
possível de ser amada e profundamente útil.
A cultura brasileira ressalta as pessoas extrovertidas, espontâneas,
falantes, dadas ao convívio social. Existe difundida também a alusão de que a
infância é o momento de pura alegria, correria, falatório. Estes padrões sociais
criados geram exclusão de quem não nasce assim, daqueles que não
conseguem ou não querem se adequar a eles. Pelos relatos de Madalena, o
pai de Jeferson tem muita clareza de que a timidez é uma condição humana
particular e que o maior problema se encontra nas comparações sociais que
geram intolerância. As próprias crianças do grupo desqualificavam Jeferson,
com comentários do tipo: “Ah, esse aí não faz nada!”, “Ele só fica quieto”, “Ele
nunca brinca!”. Sem perceberem que toda atividade que a criança tinha
interesse era realizada, as vezes sem comunicação verbal, mas era realizada.
E mesmo tendo que vencer vários monstros internos ele se esforçava para
fazer aquilo que acreditava não ter aptidão. Por inúmeras vezes percebi,
principalmente em atividades manuais, que envolviam desenho, pintura, ou
construção com sucatas, que Jeferson demorava um bom tempo até se
envolver, se protegia em seu mundo interior, mas depois tentava. Insatisfeito
com o resultado deixava de lado, rasgava, ficava nervoso, enchia os olhos de
água, levantava os ombros, mas depois retomava ao objeto construído. Neste
momento, tanto eu quanto Kallu, reforçávamos que o valor que damos às
nossas produções é que é primordial.
Axia (2003), afirma também que pelo menos três fatores
caracterizam a pessoa tímida: o primeiro é esta insegurança diante de
determinadas circunstâncias sociais que Jeferson apresenta nitidamente
durante as atividades de artes visuais, encenações, atividades de canto, ou
seja, tudo se expor diante do grupo; o segundo é a forte consciência de ter
medo, porque o medo gera nela sintomas fisiológicos e emotivos – percebi que
diante de certas situações a criança ruborizava, enchia os olhos de lágrima,
paralisava o corpo, certamente o coração devia estar saltando à boca, o
batimento cardíaco acelerava, dentre outros; e o terceiro é o fato dela sentir-se
embaraçada ou vergonhosa pelo que está acontecendo – Jeferson nunca
falava sobre o que estava sentindo e quando passava por alguma situação
embaraçosa, levantava os ombros, a sobrancelha e se esquivava do grupo.
5. 3. SOBRE O ANDAR DA CARRUAGEM
Os primeiros meses foram de observação e de pesquisa sobre a
infância, timidez, criatividade na criança tímida. Conversei muito com a mãe
durante este período. Percebi que o ambiente novo, o fato da característica
grupal ser predominantemente efusiva e as atividades que preponderavam
serem correspondentes aos desejos dos outros participantes que expressavam
suas vontades – encenações, intervenções na rua, futebol, jogos dramatizados
– intimidavam Jeferson e fazia com que ele se afastasse das crianças e de nós,
aristas-educadoras que de certa forma também propúnhamos atividades
expressivas e de improvisação. Aliado a todo este ambiente que era pertubador
para Jeferson ele ainda poderia ver em nós duas figuras de autoridade pelo
papel que desempenhamos. Teríamos que criar um ambiente acolhedor,
compreender que em algumas atividades a criança não iria interagir e que isto
não era um problema e, ainda desmistificar a figura do “educador opressor” que
muitas crianças carregam.
Depois de muitas tentativas, acertos e erros conseguimos tatear o
universo subjetivo da criança, identificando suas habilidades inerentes, os
gostos e aquilo que mesmo com a emoção a mil, ele se desafiava fazer. Foi
uma experiência de compreensão da singularidade, e percepção de que
mesmo que ele ocultasse ali dentro morava uma criança viva, cheia de
desejos, saberes e preferências. Descobri que o futebol, que era rotina da
turma nos primeiros minutos do encontro, não agradava Jeferson e que neste
momento era natural que ele ficasse na periferia do jogo ou escolhesse um
livro para ler. Quando ele se afastava da atividade proposta eu convidava,
incentivava a participar, mas quando eu percebia que existia uma recusa à
integração, ou que a atividade era expositiva demais entendia perfeitamente
que naquele momento o mais respeitoso era permitir que ele escolhesse não
participar. Todavia, estive atenta e quando via a tentativa por parte dele de se
desafiar, o encorajava. Jeferson revelou seu gosto por jogos eletrônicos e
interagia bastante quando o mote grupal era em torno deste assunto. Em um
dos encontros, criou com a Kallu regras para um Minecraft4
dramatizado e
jogou com todo grupo, se expressando, inclusive verbalmente, em todos os
momentos. Também é válido ressaltar que as faltas da criança dificultaram o
andamento do processo criativo.
4
Minecraft é um jogo eletrônico em que as cenas são todas construídas em blocos. O jogo é dividido
entre várias plataformas - Windows, Mac, Linux, Xbox 360, Xbox One, PlayStation 3, PlayStation 4, iOS e
Android – criado em 2009 por Markus'Notch Persson.
6. 3. CONCLUSÃO
A criança tímida precisa de muito mais tempo para aproximar-se de
pessoas ou situações que são pouco comuns para elas. É necessário
identificar as emoções limitantes ajudando-as a terem respeito pelos próprios
limites e pelos erros, olhar com olhos de lupa para habilidades inerente e
ajuda-las a conviver com a timidez não como um problema, uma doença e sim
como uma característica normal de sua personalidade. Somente depois de
entender como a criança tímida vive sua vida, seus temores, conflitos é que foi
possível fazer surgir espaço para que Jeferson fosse capaz de olhar para seu
potencial de criação e de troca com o grupo.
Na timidez, assim como em muitos outros aspectos da nossa vida, o
que é realmente importante é a estrada, o tipo de caminho que cada pessoa
percorre. (AXIA, 2003)
Fundamentada no “Ritmo do encontro”, princípio básico do Piá, pude
experimentar o cuidado com a individualidade de Jeferson e com seu tempo. A
experiência criativa da criança seguiu de acordo com seu pulsar, ora ativa, ora
oculta, mas sempre presente.
Descobrir o que dificulta a criança revelar-se enquanto ser brincante,
artista, social foi tarefa árdua. Entender que a timidez é uma, entre tantas
outras características de Jeferson, possibilitou um olhar para a criança em sua
inteireza. No caminhar, a narrativa das construções e desconstruções se
revelou. A mãe que tomava o filho com um amor de posse, por querer proteger
a criança do mundo hostil em que ela mesma fora criada, conseguiu identificar
sua superproteção. Os encontros do Piá serviram para estimular Jeferson a ir
em busca do respeito pelo seu próprio tempo, da sua própria maneira de se
expressar, de seus silêncios, de sua potência para criar em meio ao suas
escolhas, de sua liberdade para experimentar.
7.
REFERÊNCIAS
AXIA, Giovanna. A Timidez – um dote precioso do patrimônio genético
(tradução Silvia Debetto Cabral), São Paulo: Paulinas: Loyola, 2003, 15p.
BASSOF, Evelyn S. Mãe e Filha o eterno reencontro (tradução Maria Silva
Mourão Netto), São Paulo: Saraiva, 1994.
KERTÉSZ, R. Análise Transacional ao Vivo, São Paulo: Summus Editorial,
1987.
MARULANDA, Angela. O desafio de crescer com os filhos (tradução Roseli
Schrader Giese) Rio Grande do Sul: Grupo Editorial Norma, 2001.
OAKLANDER,, Violet. Descobrindo crianças (tradução de George Schlesinger)
São Paulo: Summer, 1978 . 258 p.
RUFO, Marcel. Me larga! Separar-se para crescer (tradução Claudia Berliner)
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
WOOLLAMS, S. e BROWN, M., Manual Completo de Análise Transacional
(tradução de Otávio Mendes Cajado), Editora Cultrix, São Paulo, 1979.