REVISTA DE BIOLOGIA E CIÊNCIAS DA TERRA ISSN 1519-5228 - Artigo_Bioterra_V24_...
O devido processo e o rigorismo legal
1.
2. Chanceler
Dr. Augusto Cezar Casseb
Vice-Chanceler
Luiz Carlos Casseb
Reitor
Dr. Eudes Quintino de Oliveira Junior
Pró-Reitor Acadêmico
José Luiz Falótico Corrêa
Pró-Reitor Comunitário e de Desenvolvimento
Antônio Fábriga Ferreira
Conselho Editorial
Uderlei Donisete Silveira Covizzi (Coordenador)
Célia Regina Cavicchia Vasconcelos
Danilo Elias de Oliveira
Elza Cristina Mazza Torres
José Renato Bianchi
Leila Maria Homsi Kerbauy
Marcelo Kobelnik
Márcia Maria Menin
Patrícia Helena Mazucchi Saes
Priscila Belintani
Equipe Técnica
Bibliotecária
Miriam Queiroz Rocha
Diagramação e Editoração
Enio José Bolognini
José Renato Bianchi
Revisão Geral
Ademir Pradela
3. EDITORIAL
PASSADO, PRESENTE E FUTURO DO DIREITO
O Direito é uma ciência racional, científica e evolutiva, na qual o passado, presente e
futuro, muitas vezes, se distanciam e em outras são conjugados na mesmo tempo
da história. O entrelaçamento com a ética e moral provoca uma contextualização
necessária, pois muitos costumes são arraigados e vigem para sempre. Enquanto
que outros, em razão da evolução da sociedade, exigem uma revisão e ajustamento
de valores.
Na realização do suum cuique tribuere, preconizado por Justiniano, em seu Digesto,
o pensamento jurídico ingressa, obrigatoriamente, em uma novo momento.
Abandona o Modernismo, período em que se sedimentou o liberalismo, o capitalismo
e, principalmente, o individualismo, com várias promessas de se atingir o bem-estar
social, por meio de uma sociedade livre, justa e solidária, além de reduzir a
desigualdade existente entre os cidadãos, pois não se admitem duas classes de
cidadania, sendo uma delas somente bem sucedida.
O pós modernismo não é rompimento, desagregação, mas sim um liame que
estabelecerá novos parâmetros para as ações tentadas e que não foram realizadas,
observando que todo esse processo se faz necessário, para que o homem possa
atingir a harmonia social desejada. Nem se falar de incompetência em realizar
espontaneamente o Direito, como pretendia Montesquieu. Todo homem traz dentro
de si a semente da evolução e o Direito nada mais faz do que espargi-la em seu
grupo social.
Com espírito elevado para tal finalidade, com os pés no pós-modernismo, sem
desprezar, no entanto, as conquistas até o presente auferidas é que se faz nesta
oportunidade o lançamento da Revista Unorp, com relevo para o Curso de Direito.
Artigos da autoria de professores e alunos desfilam assuntos que frequentam o dia-
a-dia dos operadores da área, fornecendo material filosófico e jurídico compatível
com a nova dimensão do mundo jurídico.
4. O Centro Universitário do Norte Paulista, desta forma, mais uma vez, confirma seu
espírito de trazer à baila reflexões que possam colaborar e transformar os
questionamentos contemporâneos para a edificação de uma sociedade mais justa.
Dr. Eudes Quintino de Oliveira Junior
Reitor da UNORP
5. FICHA CATALOGRÁFICA
Revista UNORP / Centro Universitário do Norte Paulista. – v. 2, n. 2,
(Nov. 2011) – . São José do Rio Preto, 2011.
Irregular.
ISSN 2178-3268
1. Poligrafias – Periódicos I. Centro Universitário do Norte Paulista.
CDU 08(05)
6. SUMÁRIO
ARTIGOS
O devido processo e o rigorismo legal
Eudes Quintino de Oliveira Junior ......................................................................... 7
O artigo 2.039 e a mudança de regime de bens para casamentos
celebrados na égide do revogado código civil
Márcia Maria Menin .............................................................................................. 16
A dignidade da pessoa humana
Shirlei Paci de Rossi Moura .................................................................................. 36
Direitos fundamentais da criança e do adolescente – I
André Luiz Nogueira da Cunha .......................................................................... 48
O imperativo categórico de Immanuel Kant
Ana Paula Polacchini de Oliveira .......................................................................... 67
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO .......................................................................... 83
7. 7
ARTIGO
O DEVIDO PROCESSO E O RIGORISMO LEGAL
*Eudes Quintino de OLIVEIRA JUNIOR
*Mestre em Direito Público, Doutor em Ciências
da Saúde, Pós-doutorando em Ciências da Saúde,
Promotor de Justiça aposentado, Reitor da Unorp.
Resumo: O ajuizamento de uma ação penal requer redobrada atenção em razão dos princípios
garantidores da liberdade individual assegurados na Constituição Federal. Basta ver que a
instauração de um inquérito policial para apuração de um ilícito e o esclarecimento da autoria são
providências necessárias para a deflagração posterior de uma pretensão acusatória. Justamente
porque percorre um caminho investigatório, eminentemente inquisitivo, necessário para a elucidação
do fato. As chamadas peças de informação, aquelas que dispensam o procedimento policial, quando
servirem de base para o Ministério Público propor a ação pública1
, devem reunir indícios que sejam
convincentes e produzir uma garantia satisfatória a respeito da autoria.
Palavras-chave: princípio do contraditório; nulidade do processo; devido processo legal
Abstract: The judging of a criminal prosecution requires increased attention because of the
principles that guarantee individual freedom assured in the Federal Constitution. The initiation
of a police inquiry to investigate an illicit fact and the identification of their authorship are necessary
steps for the subsequent deflagration of an accusatory pretension. Precisely because it follows a
investigational path, highly inquisitive, necessary for the elucidation of the fact. Even pieces of
information, those which do not require police procedure, when used as a basis for the prosecutor to
propose the public action should gather evidence to be convincing and produce a satisfactory
guarantee as to the authorship.
Keywords: contradictory; nullity of process; due process of law
A revolução tecnológica traz inúmeras conquistas que deveriam ser colocadas
à serviço do homem, procurando atender suas necessidades e conveniências, para
contribuir com a formação de uma sociedade mais harmônica, com a possibilidade
de se atingir um estágio mais próximo da perfeição. Ocorre que, muitas vezes, a
1
O Supremo Tribunal Federal, confirmando esse entendimento, tem acentuado ser dispensável, ao
oferecimento da denúncia, a prévia instauração de inquérito policial, desde que seja evidente a
materialidade do fato alegadamente delituoso e estejam presentes indícios de sua autoria
(AI 266.214-AgR/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - HC 63.213/SP, Rel. Min. NÉRI DA
SILVEIRA - HC 77.770/SC, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - RHC 62.300/RJ, Rel. Min. ALDIR
PASSARINHO.
8. 8
tecnologia supera todos os valores do homem e como um tsunami passa arrastando
todas as conquistas morais, éticas e legais, sem qualquer parâmetro e provoca
consequências gravosas na área jurídica. “O crédito que toda Humanidade abre à
ciência, acentua Costa Jr., é ilimitado e preenche as esperanças, mas já não se
admite que o ingresso de nossa civilização na era da cibernética total possa operar-
se à margem da reflexão crítica. Especialmente quando se sabe hoje que que o
progresso técnico interfere até mesmo na evolução biológica, modificando o seu
curso.”2
Quando a ciência invade a área acobertada pelas liberdades públicas,
desrespeitando-as, faz-se necessária a utilização de um instrumento de controle e
restabelecimento do status quo ante.
O princípio do devido processo legal, que figura na Declaração Universal dos
Direitos do Homem,3
traduz, em sua própria definição, todos os demais princípios
aplicáveis ao processo penal. O due process of law4
, significa a síntese de todas as
garantias individuais, legais e processuais conferidas ao cidadão quando diante de
uma lide de natureza penal, civil ou administrativa. É o garantidor que todas as
regras serão efetivamente aplicadas. Nenhuma pessoa será processada ou julgada
sem que tenha sido aplicado o processo previamente estabelecido e ajustado de
acordo com as leis.
Greco Filho, numa lapidar definição, assim se pronunciou:
“A expressão devido processo legal, no âmbito processual penal, tem duplo sentido:
significa processo necessário, porque não é possível aplicar pena sem processo, e,
a segunda acepção, significa processo adequado, ou seja , aquele que assegura
igualdade das partes, o contraditório e a ampla defesa”.5
2
Costa Jr., José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1970, p.14. Referida obra representa a monografia que o autor escreveu para conquistar,
mediante concurso público, a Cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo, em 1969. Representa o marco inicial do princípio constitucional da tutela da intimidade
abraçada posteriormente pela Constituição Federal de 1988.
3
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da Organização
das Nações Unidas, anuncia em seu artigo XI: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o
direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei,
em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua
defesa.”
4
A Constituição Americana, na Emenda nº XIV, de 1868, traz a seguinte regra:
“Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são
cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência, Nenhum Estado poderá fazer ou
executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem
poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a
qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.”
5
Greco Filho, Vicente. Manual de processo penal, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 54.
9. 9
E a Constituição Federal incorporou o princípio em seu artigo 5º, inciso LV,
nos seguintes termos:
“Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes”.
O contraditório, entendido como aquele que estabelece o equilíbrio entre as
partes, ou como alguns preferem, a paridade de armas não surge isoladamente
como corolário do princípio do devido processo legal. Vários outros, como o da
ampla defesa, do juiz natural, do duplo grau de jurisdição, da legalidade, da
identidade física do juiz, da oralidade, da verdade real, da motivação das decisões,
incorporam a mesma roupagem e se apresentam como apanágio do referido
princípio norteador.
O regramento constitucional estabeleceu outra norma rígida e inflexível com
relação ao princípio do devido processo legal: “são inadmissíveis, no processo, as
provas obtidas por meio ilícitos”6
. O texto, por si só, deixa transparecer que somente
as provas consideradas lícitas, colhidas de acordo com a determinação legal,
poderão ser apreciadas e valoradas no processo contraditório. Aquelas que
tangenciam a ilegalidade e que foram auferidas por meios escusos, não
homologados pelo devido processo legal, serão descartadas e, em caso de
utilização, fulminarão de ilegalidade todo o material probatório produzido. Desta
forma, pode-se apontar como provas ilícitas a confissão obtida por meio de tortura
psíquica, a invasão à privacidade, ao domicílio, à interceptação telefônica, à
intimidade, aos segredos, ao sigilo bancário, à comunicação ou qualquer outro ato
abusivo das liberdades públicas consagradas constitucionalmente.
É certo que o entendimento jurisprudencial mitigou a regra da
inadmissibilidade de referida prova, com a aplicação do princípio da
proporcionalidade, tão bem explorado por José Canotilho, assim como pela
aceitação do favor rei pela rotineira interpretação de nossos tribunais, para que o
réu, em casos excepcionais, possa lançar mão das provas ilícitas e delas se
beneficiar para alcançar sua absolvição. Desta forma, o acusado em processo
criminal pode utilizar-se de uma interceptação telefônica não autorizada para
6
Constituição Federal, artigo 5º, inciso LVI.
10. 10
comprovar sua inocência. Justifica-se o sacrifício de um direito que se apresenta
como inferior à vida e liberdade humanas.
Machado, em feliz observação, concluiu:
“Admite-se o uso da prova obtida por meios ilícitos pro reo ainda que a ilegalidade
tenha sido perpetrada pelo próprio beneficiado, ou seja, pelo próprio réu.
Argumenta-se que, nesse caso, o autor da ilegalidade na obtenção da prova terá
agido em legítima defesa do seu jus libertatis, ou mesmo premido pelo estado de
necessidade, o que excluiria a ilicitude de seu comportamento”.7
É no processo penal que se desenvolve a atividade essencialmente
persecutória estatal ou particular e a instrução do processo é ato relevante, pois as
partes indicarão os meios de provas para demonstrar sua pretensão. Sendo a prova
a reconstituição de um fato, não deve a princípio ser limitada e sua apresentação
seguirá as regras pré-constituídas para não acarretar cerceamento ou obstáculo
para o exercício de defesa do interessado.
A doutrina tem por costume distinguir as provas ilícitas das provas
ilegítimas. Essas últimas ofendem diretamente normas de direito processual, como,
por exemplo, a ordem de oitiva das testemunhas, que, se não observada, poderá
acarretar a nulidade processual. Aquelas que forem obtidas por meio ilícito, atingem
normas do direito material “porque, conforme salienta Avolio, a problemática da
prova ilícita se prende sempre à questão das liberdades públicas, onde estão
assegurados os direitos e garantias atinentes à intimidade, à liberdade, à dignidade
humana; mas também, de direito penal, civil, administrativo, onde já se encontram
definidos na ordem infraconstitucional outros direitos ou cominações legais que
podem se contrapor às exigências de segurança social, investigação criminal e
acertamento da verdade, tais os de propriedade, inviolabilidade de domicílio, sigilo
de correspondência, e outros”.8
Pois bem. Toda essa introdução foi elaborada para encaminhar o leitor com
mais segurança na leitura jurídica da decisão proferida pelo Superior Tribunal de
Justiça na chamada “Operação Castelo de Areia”, que representa a maior
investigação criminal desenvolvida pela Polícia Federal, envolvendo empresários e
políticos em fraudes em obras públicas, cuja denúncia foi formulada para perquirir os
7
Machado, Antonio Alberto. Curso de processo penal. 2.ed. – São Paulo: Atlas, 2009, p. 371.
8
Avolio, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e gravações clandestinas.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p.39.
11. 11
crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, doações ilícitas a campanhas
políticas e pagamentos de propinas a agentes públicos.
O STJ entendeu que as interceptações telefônicas realizadas e autorizadas
foram contaminadas por provas obtidas por meio ilícito, vez que tiveram como base
e sustentação a denúncia anônima. Segundo a decisão do órgão colegiado, a
denúncia anônima, pela sua fragilidade e inconsistência, não carrega força suficiente
para determinar restrições aos direitos fundamentais dos envolvidos.
Denúncia anônima em processo penal é aquela feita sob o manto do
anonimato, muitas vezes com o patrocínio do próprio poder público, que cria um
canal direto de comunicação com a comunidade através do “disque-denúncia”. Com
a organização e especialização de quadrilhas voltadas para a prática de ilícitos, a
notícia anônima carrega um arsenal importante de informações que deverão ser
filtradas e analisadas criteriosamente para verificar sua procedência. O crivo de
admissibilidade e idoneidade será feito pela autoridade policial ou Ministério Público,
ambos como destinatários credenciados e legitimados.
E é coerente tal linha de pensamento voltada para a denúncia anônima
porque o Estado, por si só, em razão da natural desvantagem que sofre com o ato
criminoso, cujo infrator, isoladamente ou em grupo devidamente organizado, tem
melhores condições de estruturar sua empreitada criminosa, com maior chance de
sucesso. A informação velada, por mais simples que seja, fornecida por qualquer
pessoa do povo a respeito da prática de ilícito, traz sempre um ponto inicial de
investigação, um norte para o caminhar da persecução penal. Mas não pode ser
considerada a única base sólida e consistente da persecutio criminis extra juditio
“Daí que, conforme acentua Oliveira Júnior, a autoridade policial e o próprio
órgão do Ministério Público não podem repudiar liminarmente a denúncia anônima e
sim dar a ela o tratamento adequado de fonte de informação, com a realização da
pesquisa necessária para rastrear sua idoneidade. Se o denunciante permanecer no
anonimato e se suas informações forem consistentes, possibilitando uma correta
linha de investigação, não há qualquer interesse em se descobrir a identidade do
colaborador. Porém, se lançou mão do anonimato para prejudicar determinada
pessoa, a conduta é reprovável penalmente. Tanto é verdade que o crime de
denunciação caluniosa tem a pena aumentada de sexta parte se o agente se vale do
12. 12
anonimato ou de nome suposto para dar causa à instauração de investigação
policial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.”9
Desta forma, sem qualquer dúvida, a denúncia anônima carrega farto
material para se realizar investigação policial preliminar visando nortear os caminhos
de uma futura persecução criminal. Porém, não se presta para o embasamento da
instauração do inquérito policial. Os tribunais superiores vêm recomendando
extremada cautela com a denúncia apócrifa, que, se não for bem conduzida, poderá
acarretar sérios danos contra a segurança jurídica e gerar um terrorismo social
desnecessário.
O devido processo legal recomenda que a denúncia anônima não se firme
como peça preliminar e isolada de informação, que seja ela o núcleo em torno do
qual gravitarão todas as pesquisas, diligências e investigações. O que se pretende
não é desvalorizar a denúncia apócrifa e sim erigi-la a uma categoria de
assessoriedade para que as diligências policiais sejam iniciadas com base em uma
Portaria da autoridade policial, que tenha por finalidade pesquisar a ocorrência de
uma notitia criminis de cognição imediata, nos crimes de ação penal pública
incondicionada, em que há a obrigatoriedade de ofício da autoridade encarregada de
dar início ao inquérito policial.
O Ministro Celso de Mello, em seu voto, com a lucidez e perspicácia que lhe
são pertinentes, decidindo a respeito de um processo em que se discutia a validade
da denúncia anônima, assim se manifestou:
“No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a
comunicação falsa de crime (Código Penal, arts. 339 e 340), o que implica a
exclusão do anonimato na notitia criminis, uma vez que é corolário dos preceitos
legais citados a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim
de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva e ilicitamente.
Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais de investigação da
autoridade policial, quando delação anônima lhe chega às mãos, uma vez que a
comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de
possibilitar diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou seu
autor. Se, no dizer de G. Leone, não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos
9
Oliveira Júnior, Eudes Quintino de. Publicado no Informativo Migalhas, nº 2535, do dia 21/12/2010.
<http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI123465,31047-Denuncia+Anonima>. Acesso em 23 de abril
de 2011.
13. 13
processuais, não servindo ele de base à ação penal, e tampouco como fonte de
conhecimento do juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses, a autoridade
policial, com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias. Cumpre-
lhe, porém, assumir a responsabilidade da abertura das investigações, como se o
escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido notitia
criminis inqualificada." (grifei)10
O que a Constituição determina é a obediência ao devido processo legal
para que nenhuma pessoa seja acusada injustamente com base em provas obtidas
por meios considerados espúrios. À regra da acusação justa e equilibrada, que é
restrita, soma-se o direito do réu de se defender, de forma ampla, sem que haja
invasão aos seus predicados assegurados constitucionalmente. A denúncia
anônima, sendo ela a única propulsora da investigação policial, não carrega
idoneidade necessária para permitir a prática de vários atos investigativos contra o
suspeito.
Tanto é que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, no
processo já referido, em seu voto, assim se posicionou:
“Tenho para mim, portanto, Senhor Presidente, em face do contexto referido nesta
questão de ordem, que nada impedia, na espécie em exame, que o Poder Público,
provocado por denúncia anônima, adotasse medidas informais destinadas a apurar,
previamente, em averiguação sumária, "com prudência e discrição" (JOSÉ
FREDERICO MARQUES, "Elementos de Direito Processual Penal", vol. I/147, item
n. 71, 2ª ed., atualizada por Eduardo Reale Ferrari, 2000, Millennium), a possível
ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, com o objetivo de viabilizar a
ulterior instauração de procedimento penal em torno da autoria e da materialidade
dos fatos reputados criminosos, desvinculando-se a investigação estatal ("informatio
delicti"), desse modo, da delação formulada por autor desconhecido, considerada a
relevante circunstância de que os escritos anônimos - aos quais não se pode atribuir
caráter oficial - não se qualificam, por isso mesmo, como atos de natureza
processual.
Disso resulta, pois, a impossibilidade de o Estado, tendo por único fundamento
causal a existência de tais peças apócrifas, dar início, somente com apoio nelas, à
10
<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo393.htm#transcricao1>. Acesso em
22/4/2011.
14. 14
"persecutiocriminis".
Daí a advertência consubstanciada em julgamento emanado da E. Corte
Especial do Superior Tribunal de Justiça, em que esse Alto Tribunal, ao pronunciar-
se sobre o tema em exame, deixou consignado, com absoluta correção, que o
procedimento investigatório não pode ser instaurado com base, unicamente, em
escrito anônimo, que venha a constituir, ele próprio, a peça inaugural da
investigação promovida pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público.”11
Feitas tais considerações, é intuitivo concluir que a legislação brasileira trata
com rigorismo indesculpável a inobservância do princípio do devido processo legal.
Isto porque o direito à prova resulta de uma árdua conquista processual e neste
patamar somente podem circular as provas consideradas legais, lícitas e legítimas.
Jamais, sob qualquer condição, pode prevalecer um conteúdo probatório obtido
mediante o arrepio da lei. E, assim, por não possuir uma sedimentação consistente,
qualquer castelo ruirá.
11
<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo393.htm#transcricao1>. Acesso em
22/4/2011.
15. 15
REFERÊNCIAS
AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e
gravações clandestinas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.
CONSTA, Jr., José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1970.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1991,
MACHADO, Antonio Alberto. Curso de processo penal. 2.ed. – São Paulo: Atlas,
2009.
OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quintino de. Disponível em:
<http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI123465,31047-Denuncia+Anonima>.
Acesso em 24 abr. 2011.
16. 16
ARTIGO
O ARTIGO 2.039 E A MUDANÇA DE REGIME DE BENS PARA CASAMENTOS
CELEBRADOS NA ÉGIDE DO REVOGADO CÓDIGO CIVIL
*Márcia Maria MENIN
*Advogada. Mestre em Direito Civil pela Universidade
de São Paulo (USP-SP). Professora do Curso de
Direito do Centro Universitário do Norte Paulista - UNORP
Resumo: A possibilidade da modificação pós nupcial do regime de bens conferida pelo artigo 1.639,
parágrafo 2º do Código Civil, denota verdadeiro respeito ao princípio da Autonomia Privada, fato não
demonstrado sob a égide da revogada codificação civilista. Contudo, o atual artigo 2.039 do Código
Civil inserido nas Disposições Finais e Transitórias deixa dúvidas no que tange a extensão de tal
prerrogativa àqueles que se casaram durante a vigência do Código Civil de 1916. O presente trabalho
tem o propósito de apresentar-se como forma de solucionar referido problema a partir da
demonstração, dentre outros aspectos, de que as normas de direito intertemporal são aplicadas de
modo distinto a depender da natureza da matéria sob a qual ela se impõe.
Palavras-chave: casamento, mutabilidade do regime de bens, direito intertemporal.
Abstract: The possibility of post nuptial change of marital property regime informed by 2002 Civil
Code (1.639, n 2º), respects individuals private autonomy. This situation was not a possibility at the
preceding Civil Code. Even so, the 2002 Civil Code, on its 2.039 dispositive lines brings doubts if that
post marital property regime change possibility is also applied on marriages that happened during the
ruling of 1916 Civil Code. This work aims to analyses the problem and proposes a solution by
discussing, among other things, that the intertemporal law applies differently in each case and
depends on the nature of the subject.
Keywords: marriage; marital regime mutability, intertemporal law.
1. INTRODUÇÃO
O atual Código Civil em seu artigo 1.639, parágrafo 2º, possibilitou a
modificação pós nupcial do regime de bens durante o casamento, desde que por
pedido judicial motivado por ambos os cônjuges. Entretanto, a redação do artigo
2.039 de referido texto legal gerou dúvidas na comunidade jurídica no que diz
respeito à possibilidade da modificação do regime de bens durante o casamento
consistir em uma prerrogativa também concedida àqueles que se casaram sob a
égide do revogado Código Civil.
No momento em que há determinada situação jurídica entre a vigência de
uma norma e o surgimento de outra, urge que se resolva qual delas lhe será
17. 17
aplicável. Sendo assim, resta saber se a nova lei poderá reger os atos já praticados
e aperfeiçoados durante o império da antiga lei, se apenas vigorará quanto aos
efeitos futuros daqueles atos pretéritos, ou se a lei revogada continuará produzindo
efeitos para além de sua vigência.
Para isso, o direito intertemporal se impõe, porquanto é “constituído pelo
conjunto de normas e princípios jurídicos que têm por finalidade resolver as
questões suscitadas pela sucessão de duas leis no tempo”.1
Desse modo, para que o conflito de leis no tempo seja solucionado, o direito
intertemporal faz uso de dois critérios. Um deles consiste na verificação da
existência da imediatidade da nova lei, sua retroatividade ou irretroatividade e,
ainda, se há pós-atividade da lei revogada. O outro critério consiste na inserção, no
próprio ordenamento jurídico, de normas denominadas disposições transitórias, as
quais possuem caráter temporário, uma vez que se tornarão inúteis em decorrência
da extinção das situações jurídicas pretéritas responsáveis por sua edição.
O Código Civil renovou seu conteúdo normativo por apresentar tais normas
de direito intertemporal disciplinadas nos artigos 2.028 a 2.046 no Livro
Complementar – Das Disposições Finais e Transitórias, não ficando tal
responsabilidade apenas adstrita à jurisprudência ou à doutrina, facilitando, assim, o
trabalho do exegeta da lei.
Importa, nesse contexto, dissertar sobre o artigo 2.039, relevante para melhor
entendimento da possibilidade da aplicação da lei mutabilista aos casamentos
celebrados na vigência do diploma civil anterior.
Diz o citado artigo: “O regime de bens nos casamentos celebrados na
vigência do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1o
de janeiro de 1916, é o por ele
estabelecido”.
A partir da leitura de tal lei, surge a tentativa de interpretação mais fiel
possível da intenção do legislador. E qual seria ela? Será que ele se refere apenas
às regras específicas dos regimes de bens? Será que seu desejo também se
estende às Disposições Gerais? Ou, talvez, o legislador não se refira nem às regras
específicas nem às Disposições Gerais?
1
NORONHA, Fernando. Retroatividade, eficácia imediata e pós-atividade das leis: sua
caracterização correta, como indispensável para solução dos problemas de direito intertemporal.
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: RT, v. 23, 1988, p. 91.
18. 18
Para que se possa adquirir conhecimento acerca do assunto, é necessário
perpassar por breve análise do direito intertemporal com o objetivo de chegar ao
destino certo, qual seja, a verdadeira exegese do artigo 2.039 do novo Código Civil.
2. O DIREITO INTERTEMPORAL
As transformações sociais, muitas vezes, reivindicam a edição de novas
normas de modo a trazer regulamentações consentâneas com as urgências sociais,
políticas e econômicas e, por conseqüência, criar um ordenamento jurídico que
guarde estreita identidade com a sociedade na qual ele se impõe. Nesses casos,
crê-se que a aplicação da nova lei para a maioria das situações jurídicas nascidas e
ainda para aquelas que serão concebidas sob o seu manto seria, portanto, reflexo
de um senso de justiça por parte do legislador, e traria harmonia ao sistema jurídico.
Em outro vértice, a alteração normativa poderia ocasionar insegurança às
partes de uma relação jurídica já estabelecida sob a vigência de uma lei revogada.
Dessa forma, o abrupto surgimento de uma nova lei e sua imediata aplicação para
determinados casos seriam razão para a incredulidade social no que diz respeito ao
sistema jurídico, acarretando, quiçá, sensível diminuição na execução de atos
jurídicos e, como efeito, uma possível contaminação na economia do País.
Todavia, há uma zona intermédia em que, não obstante a existência de nova
lei, esta, salvo exceções, não modificará situações jurídicas pretéritas, mas, ao
mesmo tempo, produzirá um ordenamento jurídico atualizado conforme as
necessidades sociais. Destarte, a nova lei será aplicada apenas aos efeitos futuros
de atos jurídicos praticados quando da vigência da lei revogada. Preceitua o artigo
6o
, caput, da Lei de Introdução ao Código Civil:2
“A lei em vigor terá efeito imediato e
geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
A indigitada norma prevê como regra geral o que se denomina aplicação
imediata da lei ou imediatidade, a qual consiste “na aplicação da lei nova a situações
jurídicas que já vêm do passado, criando nova regulamentação para os efeitos que
se produzirem dali em diante, ou mesmo suprimindo pura e simplesmente essas
2
Nesse mesmo sentido dispõe o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
19. 19
situações; em ambas as hipóteses, todos os efeitos que tenham sido produzidos
permanecem intocados”.3
Para a adequada compreensão desse modo de atuação da lei no tempo,
mister é explicitar os ensinamentos de Roubier4
a respeito do assunto.
O autor distingue os fatos já aperfeiçoados no passado, denominando-os de
facta praeterita, dos fatos que ainda estão em via de realização – os facta pendentia,
e dos fatos futuros – facta futura. O que interessa para que se possa compreender a
respeito da eficácia imediata da norma são os fatos pendentes.
Roubier divide os fatos pendentes em duas categorias: os fatos anteriores à
vigência da nova lei e os fatos posteriores a ela. Haverá eficácia imediata da nova lei
se ela atingir os fatos pendentes, cujos efeitos forem posteriores a sua vigência,
porquanto, se houvesse emprego da nova lei aos efeitos anteriores a ela,
configuraria hipótese de retroatividade.5
Importa nesse momento trazer à colação a razão pela qual foram feitas essas
breves e singelas considerações.
No direito de família, as normas de direito intertemporal são aplicadas de
maneira distinta dependendo da natureza da matéria sobre a qual ela se impõe.
No que diz respeito ao direito pessoal, haverá eficácia imediata da nova lei.
Assim, serão aplicadas as novas normas que se refiram, por exemplo, aos deveres
de fidelidade recíproca, à fixação do domicílio, ao poder familiar etc.6
Por sua vez, com relação ao direito patrimonial, deve-se distinguir os efeitos
decorrentes do casamento e que independem da manifestação de vontade das
partes e aquilo que advém do regime de bens. Isto porque “o primeiro constitui uma
3
NORONHA, Fernando. Retroatividade, eficácia imediata e pós-atividade das leis: sua
caracterização correta, como indispensável para solução dos problemas de direito intertemporal,
cit., p. 100.
4
Paul Roubier desenvolveu um dos mais importantes estudos sobre o efeito imediato e geral da
norma em seu artigo “Distiction de l’effet rétroactif et de l’effet immédiat de la loi”, publicado na
Revue Trimestrielle, em 1928, bem como dedicou-se à matéria em alguns capítulos da obra Les
conflits des lois e no Le droit transitoire.
5
Para maior aprofundamento no assunto, ver: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e
prático da Lei de introdução ao Código Civil. Rio de Janeiro: Jacintho, 1943, v. I; FRANÇA, Rubens
Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000; DINIZ,
Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 12. ed. São Paulo: Saraiva,
2007; e MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1955.
6
Com relação aos direitos pessoais, preleciona Vicente Ráo: “(...) são em princípio definidos e
regulados por leis de ordem pública, que, visando primordialmente realizar os fins sociais e
morais da instituição da família, possuem, em conseqüência, maior intensidade em sua força
obrigatória, alcançando os efeitos das relações constituídas sob as leis anteriores” (O direito e a
vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 389).
20. 20
situação jurídica decorrente da lei, puramente, ao passo que o segundo é um
produto contratual”.7
Nesse diapasão, para que se mantenha a segurança jurídica dos cônjuges
que optaram por certa espécie de regime de bens em razão das peculiaridades que
dele faziam parte, mantém-se a lei vigente na época da celebração do casamento,
não sofrendo o regime de bens, salvo menção expressa em contrário, qualquer tipo
de alteração por ocasião do advento de uma nova lei. Se esta cria um outro tipo de
regime supletivo de bens, não atingirá os cônjuges casados antes de sua vigência,
ou, ainda, se a nova lei altera as regras específicas de determinado regime, será
eficaz apenas para os casados posteriormente a ela. É o que ensina Pontes de
Miranda:
A Lei nova, que estabelece outro regime legal, ou que modifica o existente
até então, não alcança os casamentos celebrados antes dela (...), salvo
disposição em contrário. (...). Note-se a diferença entre o que se dá com os
efeitos pessoais do casamento. Esses são regidos pela lei nova (...).
8
Também é o que preceitua João Luiz Alves, citado por Wilson de Souza
Campos Batalha: “Quanto ao regime de bens entre os cônjuges, vigora a lei sob cuja
atuação o regime foi estabelecido, quer se trate de regime resultante de pactos
antenupciais, quer do resultante da própria lei.” 9
Conclui-se que, quanto às normas de caráter cogente, as quais não poderão
ser modificadas pelas partes, preza-se pelo emprego da nova lei, já que há no caso
um interesse público na sua edição e obediência. Frisa-se que isso ocorrerá tanto
com relação aos efeitos pessoais do casamento como no caso de se tratar das
Disposições Gerais (ou estatuto imperativo de base) dos regimes de bens.
7
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil,
cit., p. 343. Vicente Ráo distingue os direitos patrimoniais dos cônjuges da seguinte maneira: “ou
são direitos cuja constituição a lei anterior deixava à livre vontade das partes, por predominarem
neles os interesses individuais, ou são direitos que se definem e caracterizam por sua natureza
social, pelo interesse geral que envolvem” (O direito e a vida dos direitos, cit., p. 390).
8
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito de família. Direito matrimonial 3.
ed. São Paulo: Max Limonad, 1947. v. 2, p. 200. Esse mesmo autor, prevendo a possibilidade da
modificação do regime de bens durante o casamento, afirmava: “Se algum dia o direito brasileiro
permitir a convenção pós-nupcial, a nova lei poderá ser seguida, quanto a isso, pelos casados
anteriormente a ela. A regra de imutabilidade do regime (art. 230) é de direito substancial, e não de
direito intertemporal” (Tratado de direito privado, cit., p. 283).
9
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 259.
21. 21
Durante a vigência do Código Civil revogado, havia interesse geral na
imutabilidade do regime de bens. Como visto, baseava-se, mormente, na segurança
de terceiros e dos cônjuges. Sendo assim, se a nova lei deixa de considerá-lo por
entender o legislador que a prerrogativa concedida aos cônjuges de modificar seu
regime de bens originário trará benesses a eles e que, ao mesmo tempo, não
prejudicará terceiros, não há sentido entender que as pessoas que se casaram sob
a égide do antigo Código Civil não poderão ser contempladas com tal novidade. Não
é permitido, nesses casos, que se invoque violação ao direito adquirido à
imutabilidade do regime de bens, assim como não foi possível a invocação desse
mesmo direito por ocasião do surgimento da Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77), a qual
modificou o regime supletivo de bens de comunhão universal para o regime da
comunhão parcial.
Esse é também o entendimento esposado por Miguel Maria de Serpa Lopes:
Não temos dúvida, a despeito da opinião em contrário de Roubier, que a
eficácia imediata da lei se aplica, porquanto a prescrição da imutabilidade
do regime matrimonial não é pertinente ao domínio contratual, mas sim um
ditame expresso da lei.
10
Ademais, existe outro argumento: depreende-se do entendimento do caput
do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil que a aplicação imediata da lei
consiste em regra geral, ou seja, conforme supramencionado, a nova lei deverá
ser aplicada aos efeitos futuros de atos jurídicos que se constituíram sob o
império da antiga lei. Todavia, juristas contrários à possibilidade de modificação
do regime de bens para os cônjuges que se casaram sob a égide do antigo
Código Civil sustentam, em sua maioria, que tal prerrogativa feriria o ato jurídico
perfeito.11
Leônidas Filippone Farrula Junior,12
indagando sobre a conveniência
da mutabilidade, afirma que, para que se alcance a resposta, faz-se necessário
analisar algumas questões e afirma:
10
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código
Civil, cit., p. 344.
11
Conforme artigo 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Lei n. 3.238/57), “reputa-se ato
jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. Em outras
palavras, o ato jurídico perfeito é aquele cujos efeitos foram completamente verificados ao abrigo da
lei anterior, e se uma nova lei o atingisse configuraria hipótese de retroatividade.
12
FARRULA JUNIOR, Leônidas Filippone. Do regime de bens entre os cônjuges. In: LEITE, Heloisa Maria
Daltro (Coord.). O novo Código Civil. Do direito de família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p. 315-
316.
22. 22
A primeira delas é saber se somente aqueles que se casaram após a
entrada em vigor do novo Código Civil poderão alterar o regime de bens. A
resposta é afirmativa, sob pena de se ferir o ato jurídico perfeito e, por
conseguinte, a norma esculpida no inciso XXXVI, do artigo 5º, da
Constituição da República, onde está cristalizado o Princípio da
Irretroatividade das Leis. Afinal é com as núpcias, que o casamento se
aperfeiçoa e assim, as questões patrimoniais decorrentes destes se regulam
pela legislação vigente quando da sua celebração.
Grande parte das decisões negatórias do pedido de alteração do regime de
bens para os cônjuges que se casaram antes de 11 de janeiro de 2003 também se
fundamenta na ofensa ao ato jurídico perfeito e ao princípio da irretroatividade da
leis.13
Nessa direção é a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
O Código Civil revogado tratava do regime de bens no casamento em seus
artigos 256 a 314, preceituando, ainda, que ‘o regime de bens entre os
cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento, e é irrevogável’.
Quando o ato jurídico perfeito e acabado ganhou roupagem constitucional
foi exatamente para que se mantenha uma garantia de estabilidade, de
perenidade, de segurança das condutas amparadas pelo texto
constitucional.
Se é certo que o Direito não é estático, que a lei reflete o momento em que
é ela elaborada, não menos certo é que a partir o momento em que
comandos legais expressos passam sistematicamente a ser tacitamente
derrogados nas prestações jurisdicionais, perde-se o referencial, perdem-se
os parâmetros, tudo isso, obviamente, em prejuízo do próprio jurisdicionado,
que amanhã, no pólo oposto da demanda estará sujeito ao mesmo
resultado, exatamente porque a falta de referencial torna o procedimento
lotérico. (...) O pedido constante na presente ação é, portanto, juridicamente
impossível, vez que os casamentos celebrados durante a vigência do
Código Civil de 1916 são por eles regidos, constituindo, outrossim, atos
jurídicos perfeitos, que não poderão ser desrespeitados pela lei nova (atual
Código Civil), consoante determina o art. 5º, XXXVI, da Constituição
Federal.
14
13
Uma lei é considerada retroativa quando volta ao passado e modifica os atos jurídicos já
aperfeiçoados sob a vigência da antiga lei. Destarte, o princípio da irretroatividade, o qual teria por
fim impor-se como medida protetiva, traduz-se pela proibição legal conferida à retroatividade da
nova lei disposta. Em que pese muitos considerarem que a atual Carta Magna, em seu artigo 5º,
XXXVI, tenha realmente erigido referido princípio, alguns doutrinadores mostram-se desfavoráveis a
tal posicionamento defendendo que há, na realidade, o princípio da retroatividade limitada,
porquanto entendem que a lei sempre terá efeito imediato e geral exceto se houver ofensa a direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, até porque, diversamente do que dispunham as
Constituições de 1824 e 1891, na atual Constituição Federal não há qualquer tipo de norma
expressa nesse sentido. É o posicionamento de Mario Luiz Delgado, inspirado nas lições de José
de Oliveira Ascensão, Roubier e Carlos Maximiliano: “(...) o princípio albergado na Carta Magna
vigente não é o da irretroatividade, mas sim o da retroatividade limitada, vale dizer, a lei nova pode
retroagir, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada” (Problemas de
direito intertemporal no Código Civil. Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 30-31).
14
Apelação Cível n. 1.0024.04.332426-8/001, 1ª Câmara Cível, relator Desembargador Gouvêa Rios,
comarca de Belo Horizonte/MG, data da publicação do acórdão: 17/12/2004.
23. 23
Mas qual razão levaria os juristas a crer que a concessão do pedido de
modificação do regime de bens para aqueles inseridos na situação particular até o
momento referida configuraria hipótese de violação a princípio constitucional?
No momento em que se dá o casamento, esse instituto jurídico começa a
produzir efeitos que perdurarão durante toda a existência da sociedade conjugal.
Então, mesmo que um dos cônjuges não exerça o direito de obter empréstimo para
compra de objetos necessários à economia doméstica, assim poderá fazê-lo, e
independentemente do regime de bens por ele eleito (CC, artigo 1643), a todo
momento, desde que ainda subsista o casamento.
Se o regime de bens se torna findo apenas com o término da sociedade
conjugal, não se pode afirmar que o casamento constitui ato jurídico perfeito, uma
vez que os efeitos de sua escolha – por exemplo, a partilha nos casos de regime
comunitários – somente surgirão no momento da dissolução. Como poderia ser
caracterizado ato jurídico perfeito se a todo momento é permitido aos cônjuges
exercerem direitos oriundos do casamento?
Quando o legislador opta por dar prosseguimento ao dispositivo legal anterior,
assim deve proceder de maneira expressa, visto que se trata de caso de pós-
atividade15
da norma anterior. É o modo como procedeu por ocasião da elaboração
dos artigos 2.036, 2.037, 2.038 e 2.041, todos do Código Civil.16
15
Dá-se pós-atividade ou ultratividade de uma norma quando, malgrado ter sido revogada,
permanece eficaz, uma vez que há continuidade da aplicação desta antiga lei para além do tempo
de sua vigência. Assinala José Eduardo Martins Cardoso que, “sempre que se verificar, a
sobrevivência da lei velha implicará, normalmente, a exclusão dos efeitos imediatos e futuros da lei
em vigor, no que tange particularmente a situações ou relações em curso no momento da alteração
legislativa, que passam, assim, a ser imunes aos naturais efeitos previstos na vigente legislação”
(DELGADO, Mário Luiz. Problemas de direito intertemporal no Código Civil: doutrina e
jurisprudência, cit., p. 23). Na Itália, por exemplo, a Lei n. 142, de 10 de abril de 1981, que suprimiu
o controle judicial para a modificação do regime de bens após o casamento, conferiu essa
prerrogativa apenas àqueles que se casaram após o advento de tal lei. Destarte, como se trata de
norma de caráter pós-ativo, o seu artigo 2º ordenava que a autorização continuava sendo
necessária, “soltanto per il mutamento, dopo la celebrazione del matrimonio, di convenzoni
matrimoniali stipulate per atto publico prima dell’entrada em vigore della presente legge...”.
Tradução livre da autora: “apenas para a mudança, após a celebração do casamento, das
convenções matrimoniais estipuladas por ato público antes da entrada em vigor da presente lei.
16
“Art. 2.036. A locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser
regida.”
“Art. 2.037. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias
as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades
comerciais, bem como a atividades mercantis.”
24. 24
Portanto, caso a intenção do legislador fosse manter a imutabilidade do
regime de bens, deveria assim se referir de modo claro e expresso na redação do
artigo 2.039 do Código Civil: “O regime de bens nos casamentos celebrados na
vigência do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele
estabelecido, sendo proibida posterior modificação”.
Ademais, cumpre advertir que uma norma com natureza tutelar não deve ser
concedida apenas para determinado grupo de pessoas que se encontram na mesma
situação jurídica das outras, contudo, separadas pelo lapso temporal; caso isso
ocorra, haverá flagrante violação ao princípio da igualdade disposto na Carta Magna,
artigo 5º, caput.
Conforme mencionado, o princípio da igualdade caracteriza-se por tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se
desigualam.
É necessário primeiro individualizar o fato considerado como desigual para
que depois se proceda à análise a respeito da existência de fundamento lógico para
que efetivamente seja considerado distinto e, por fim, se essa desigualdade deve ser
considerada a ponto de ser concedido tratamento diferenciado às pessoas que se
mostrem inseridas nessa situação fática.
Impende concluir que não há qualquer espécie de correlação lógica entre o
elemento discriminador – casamentos celebrados antes da vigência da Lei n.
10.406/2002 – e a finalidade da norma, qual seja, a mutabilidade do regime de bens
durante o casamento.
Por conseguinte, não tem fundamento legal tal vedação, visto que, caso ela
existisse, não poderia ser erigida como asseguradora de interesses de terceiros, já
que o próprio texto da lei já o coloca a salvo, nem tampouco de interesses dos
cônjuges, pois, frisa-se, apenas poderá ser deferida a modificação do regime de
bens caso seja suprido o requisito consensualidade.
Nota-se, portanto, que o direito intertemporal mostra-se abrigo das pessoas
cujo casamento se deu na vigência do Código Civil revogado, de modo a protegê-las
“Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as
existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro
de 1916, e leis posteriores.”
“Art. 2.041. As disposições deste Código relativas à ordem de vocação hereditária (arts. 1.829 a
1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei
anterior (Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916).”
25. 25
da aleatória intervenção estatal sob o fundamento de proteção e respeito à lei, mas
que esconde, verdadeiramente, exacerbado positivismo e efetiva lesão ao princípio
constitucional da isonomia.
3. A CORRETA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 2.039 DO CÓDIGO CIVIL
Como visto, a norma de direito transitório contida no artigo 2.039 do Código
Civil não se refere propriamente à inaplicabilidade do § 2o
do artigo 1.639,
entretanto, na conveniência do momento atual, surge a questão: a que se refere o
artigo 2.039? Qual situação jurídica seria objeto da proteção dessa norma?
O Projeto de Código Civil havia acrescentado uma parte final à redação atual
da norma transitória ora em comento, a qual passaria a vigorar nos seguintes
termos: “O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil
de 1916 é o por ele estabelecido, mas se rege pelas disposições do presente
Código”.
Se a referida norma tivesse sido contemplada pelo atual Código Civil, quiçá
daria indícios de que apenas no que concerne às Disposições Gerais haveria a
aplicação da nova codificação. Entretanto, a parte final foi subtraída por meio da
Emenda n. 491-R pelo senador Josaphat Marinho, relator-geral do Projeto, que se
justifica:
Houve necessidade de se promover a modificação porque se, como dito na
parte final do dispositivo, ‘o regime de bens nos casamentos celebrados na
vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido’, não se regerá
pelo novo. Dúvida, que porventura surja, será apreciada em cada caso.17
Caso seja percorrida a direção imposta pela maioria da doutrina e
jurisprudência brasileiras, ter-se-á que o artigo 2.039 do Código Civil é destinado às
disposições específicas sobre os regimes de bens.18
17
BARBOSA, Heloísa Helena. Alteração do regime de bens e o art. 2.039 do Código Civil. Anais... IV
CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 333.
18
Importa nesta ocasião fazer referência ao magistério de alguns juristas que possuem posição isolada no que
concerne à interpretação do artigo 2.039 do Código Civil. Silmara Juny Chinelato ensina que a regra
de direito transitório é necessária, “pois na vigência do Código revogado havia um regime não
existente, o dotal; o regime legal de bens era o da comunhão universal até o advento da Lei do
Divórcio (...). O regime dotal reger-se-á pelo Código de 1916, bem como os casados sob o regime
26. 26
Significa afirmar que, quanto ao regime escolhido, seja ele convencional ou
legal, continuarão sendo eficazes as características particulares que compunham
cada um deles sob a vigência do Código Civil revogado, ou seja, consoante grande
parte dos juristas, as normas dos artigos 262 a 288 daquele Código continuarão a
nortear as relações entre os cônjuges e entre estes e terceiros, caso aqueles tenham
se casado antes da vigência da Lei n. 10.046 de 2002 – o Código Civil em vigor.
Corroborando as pesquisas realizadas, tem-se presente o entendimento de
Euclides de Oliveira:
Somente as regras específicas acerca de cada regime é que se aplicam em
conformidade com a lei vigente à época da celebração do casamento, mas
quanto às disposições gerais comuns a todos os regimes aplica-se o novo
Código Civil.
19
Nesse diapasão, Sérgio Gischkow Pereira20
manifesta seu posicionamento:
(...) O art. 2.039 do Código Civil não é obstáculo para tal compreensão. Ele
apenas impõe que o regime de bens seja regido pela lei da época da
celebração do casamento; mas evidentemente, se não alterado o regime
por vontade dos cônjuges. Enquanto não modificado o regime, a lei que
regula o regime é a do Código Civil de 1916, quando a união ocorreu sob
sua vigência.
Heloísa Helena Barbosa21
comenta que, se as disposições específicas dos
regimes de bens fossem atingidas pela nova lei, isso causaria “perplexidade em
razão das peculiaridades de cada regime”, e afirma:
legal de comunhão universal de bens continuarão a ter sua vida patrimonial por ele regida, não
obstante o regime legal do novo Código seja o da comunhão parcial” (CHINELATO, Silmara Juny.
Do direito de família, cit., p. 272). Ronaldo Álvaro Lopes Martins afirma: “O que se pode entender
sobre a razão da existência do art. 2.039 é o fato de o atual Código Civil não ter agasalhado em seu
texto o regime dotal e, além disso, ter criado o regime da participação final nos aqüestos” (A
imutabilidade do regime de bens do casamento. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 24, p.
280, 2003). Antonio Jeová Santos crê que a norma autorizadora da alteração do regime de bens “é
de natureza vistosamente processual e, como tal, sua aplicação é imediata. Abarca todos os
casamentos aqueles celebrados antes da vigência do Código Civil de 2002, inclusive” (SANTOS,
Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo Código Civil. Aplicações da Lei 10.406/2002. São
Paulo: RT, 2003, p. 117).
19
OLIVEIRA, Euclides de. Alteração do regime de bens no casamento. In: DELGADO, Mário Luiz;
ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas. São Paulo: Método,
2006. v. 1, p. 395.
20
PEREIRA, Sérgio Gischkow. O direito de família e o novo Código Civil: alguns aspectos polêmicos
ou inovadores. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, n. 18, jun./jul. 2003,
p. 152.
21
BARBOSA, Heloísa Helena. Alteração do regime de bens e o art. 2.039 do Código Civil, cit., p. 333.
27. 27
Razoável, por conseguinte, o entendimento no sentido de que essas regras
gerais, incidentes sobre todos os regimes de bens, sejam atingidas pela lei
nova, mantendo-se a orientação da lei anterior quanto à disciplina
específica de cada regime, como determina o art. 2.039 (...).
Conclui a autora que esse posicionamento adotado poderá acarretar algumas
conseqüências, como:
a) manter o regime de bens dos casamentos anteriores à nova lei (...), salvo no
que respeita às disposições gerais, que passam a ser do Código Civil de 2002;
b) preservar os atos praticados por pessoas casadas na vigência da lei anterior,
ainda que venham a modificar o regime de bens; c) permitir a aplicação das
disposições gerais relativas a regime de bens (do Código Civil de 2002) a
todos os casamentos, insista-se, mesmo aos celebrados antes da vigência da
nova lei civil.
Cumpre enunciar que, atualmente, o entendimento suprademonstrado traduz-
se na maioria das decisões dos tribunais brasileiros, os quais caminham no sentido
de permitir a modificação do regime de bens para casamentos anteriores à entrada
em vigor do atual Código Civil. É o que se afigura em acórdão proferido pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo:
Alteração de Regime – Retroação – Artigo 2.039 do CC de 2002, Inaplicável –
Dá-se provimento ao recurso para acolher o pedido e autorizar a mudança do
regime de casamento de comunhão parcial para separação total, expedindo-
se mandado e as comunicações de praxe. A mutabilidade do regime de
casamento é uma vitória do livre convencimento, que deve vigorar em todas
as áreas em que o ser humano se movimenta, notadamente o casamento. É
de se admitir que, sendo necessário ou justificadamente conveniente, se
permita a mudança do regime de bens, evitando que a imutabilidade que
antes oprimia os casais continue asfixiando as chances de viver novas
perspectivas e outros desafios que a vida imprime. O que o artigo 2.039 do
Código Civil pretendeu, ao instituir que a lei anterior vigora para os
casamentos realizados na sua égide, é o de que somente as regras
específicas acerca de cada regime é que se aplicam em conformidade com a
lei vigente à época da celebração do casamento, mas, quanto às disposições
gerais comuns a todos os regimes, aplica-se o novo Código Civil. 22
22
Apelação Cível n. 311.958-4/9-00, 4ª Câmara Cível, data da publicação do acórdão: 17/12/2004,
relator Desembargador Ênio Zuliani, j. 01/09/2006. Ver também STJ, Recurso Especial n. 0036263-
0, 4ª Turma, relator Ministro Jorge Scartezzini, j. 23/08/2005; STJ, Recurso Especial n. 821.807, 3ª
Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 19/10/2006.
28. 28
Tal posicionamento já se firmou no Enunciado n. 260 do Conselho da Justiça
Federal, o qual possui a seguinte redação: “A alteração do regime de bens prevista
no parágrafo 2º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos
realizados na vigência da legislação anterior.”
Resulta evidente, senão prolixo, afirmar que realmente o artigo 2.039 do
Código Civil tende a assegurar e manter, para os cônjuges que se casaram sob a
vigência da revogada legislação civil, o regime de bens com todas as características
que lhe eram intrínsecas e que foram posteriormente revogadas pelo vigente Código
Civil. Ademais, embora o regime dotal tenha sido de rara eleição, há que se
preservar aqueles que possuem a sua vida patrimonial regida pelo indigitado regime.
Resguardados, portanto, serão os atos praticados pelos cônjuges e já
aperfeiçoados sob o império da lei anterior – ato jurídico perfeito –, bem como o
direito adquirido, ou seja, é impositivo que a proteção também recaia sobre o direito
subjetivo ainda não exercido durante a vigência da revogada lei, mas que se
incorporou ao patrimônio moral ou material dos cônjuges porquanto se trata de
situação jurídica em que há predomínio da vontade individual.23
Destarte, considerando a hipótese de haver, durante a égide do atual Código
Civil, a dissolução de um casamento realizado anteriormente à sua vigência e cujo
regime eleito tenha sido o da comunhão parcial de bens, tais consortes terão o
direito aos frutos civis do trabalho ou indústria de cada cônjuge (CC/16, artigo 271,
inciso VI). Ou seja, embora durante a existência do antigo Código Civil os cônjuges
não tivessem exercido o direito a eles conferidos, esse direito, por dizer respeito ao
domínio de suas escolhas e de seus interesses particulares, poderá ser concretizado
a qualquer momento, não obstante o império de uma nova lei.
É essa a direção que deve ser percorrida. Basta atentar para as sensíveis
modificações que sofreram as regras específicas de cada espécie de regime de
bens, a saber: no regime da comunhão universal de bens, foram revogados o artigo
23
Consoante apregoa o artigo 6º, § 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, “consideram-se
adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele possa exercer, como aqueles cujo
começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de
outrem”. Rubens Limongi França, sobre o conceito de direito adquirido, assinala: “É a conseqüência
de uma lei, por via direta ou intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar
o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o
mesmo objeto” (FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido, cit., p.
216).
29. 29
263, incisos IV, V, VI, X e XII; no regime da comunhão parcial de bens, não mais
vige disposição referente ao inciso III do artigo 269, bem como atualmente serão
excluídos da comunhão os frutos civis do trabalho ou indústria de cada cônjuge ou
de ambos, por causa da revogação do inciso VI do artigo 271 do antigo Código Civil.
No que concerne ao regime da separação de bens, conforme preceituava o artigo
276, os cônjuges eram dispensados de vênia conjugal apenas se houvesse negócio
jurídico que versasse a respeito de bens móveis. Atualmente, o artigo 1.647
dispensa a outorga conjugal independentemente de o bem em questão tratar-se de
móvel ou imóvel.
Cumpre advertir que, malgrado o magistério da corrente doutrinária
majoritária até o momento analisada, não são todas as regras constantes nas
Disposições Gerais do atual Código Civil que deverão ser aplicadas aos casamentos
anteriores à sua vigência.
O artigo 1.647 traz rol de atos que não poderão ser praticados pelos cônjuges
sem a devida autorização conjugal, contudo, o caput do indigitado artigo traz como
exceção a hipótese de os cônjuges serem casados sob o regime da separação de
bens. Portanto, a proibição de os cônjuges alienarem ou gravarem de ônus real seus
bens imóveis sem autorização conjugal trazida pelo inciso I daquele artigo esbarra
na ressalva que ocorrerá caso os cônjuges, frisa-se, forem casados sob o regime da
separação de bens.24
Por sua vez, advém da exegese do artigo 276 do Código Civil de 191625
que
não poderá haver alienação de imóveis sem a devida outorga conjugal. O artigo 235,
inciso I26
daquele mesmo Código, corrobora com tal interpretação, porquanto
interdita ao marido qualquer tipo de alienação de imóveis sem o devido
24
Consoante texto do artigo 1.647: “Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode,
sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I – alienar ou gravar de ônus
real os bens imóveis; II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III – prestar
fiança ou aval; IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam
integrar futura meação”.
25
“Art. 276. Quando os contraentes casarem estipulando separação de bens, permanecerão os de
cada cônjuge sob administração exclusiva dele, que os poderá livremente alienar, se forem móveis
(arts. 235, I, 242, II, e 310)”. (Grifo da autora).
26
“Art. 235. O marido não pode, sem consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens:
I – alienar, hipotecar ou gravar de ônus os bens imóveis alheios (...).”
Importa observar que o mesmo ocorria com a mulher, já que nessa mesma hipótese não poderia
praticar tais atos sem autorização de seu marido. É o que dispunha o artigo 242, inciso I, da vetusta
legislação civil: “A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I – praticar os atos que
este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235)”.
30. 30
consentimento de sua mulher, fato que independe do regime de bens eleito pelos
cônjuges.
Logo, se a proibição de os cônjuges alienarem imóveis consta no artigo 276,
referente às regras específicas sobre o regime da separação de bens, e como estas
devem continuar em vigor por terem o caráter de ultratividade e por prestigiarem o
direito adquirido, deverão continuar tendo eficácia para além do tempo de sua
vigência. Em outras palavras, mesmo após o advento do atual Código Civil, haverá
necessidade de outorga conjugal para alienação de bens imóveis na hipótese de os
cônjuges terem contraído matrimônio sob o império da antiga legislação civil e sob o
regime da separação de bens.27
Ressalvada essa hipótese, as Disposições Gerais terão aplicação imediata,
entretanto, as regras específicas a respeito das espécies de regimes de bens
deverão continuar a produzir seus efeitos, exceto se o conteúdo de tais regras
contrariar o princípio constitucional da igualdade entre homem e mulher disposto no
artigo 226, § 5º da Constituição Federal. Por essa razão, são considerados
revogados os artigos 266, parágrafo único, 274 e 277, todos do Código Civil de
1916, em que pese estarem inseridos nas regras específicas sobre regimes de bens.
27
Entretanto, esse não é o posicionamento preponderante dos tribunais brasileiros cujas decisões
direcionam-se no sentido da dispensa da vênia conjugal, fundamentando-as na obrigatoriedade da
aplicação das Disposições Gerais aos casamentos celebrados antes da vigência do atual Código
Civil. Este é o teor da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Registro
de imóveis – Escritura pública de compra e venda – Alienante casado no regime da separação de
bens – Desnecessidade de autorização da esposa para venda – Artigo 1.647, I do novo Código
Civil, dispensando a outorga uxória – Alegação do Ministério Público de invalidade – Exigência de
autorização, seja qual for o regime de bens, conforme os arts. 235 do antigo Código Civil e 2.039 do
novo Estatuto Civil – Desacolhimento – Necessidade de proteção à instituição familiar que não se
refere, nem é regulado pelo regime de bens – Negócio jurídico realizado na vigência do novo
estatuto legal – Validade do registro – Recurso improvido”. Apelação Cível n. 000.356.6/6-00,
Conselho Superior da Magistratura, data da publicação: 07/07/2005, relator Desembargador José
Mário Antonio Cardinale, comarca de São José do Rio Preto/SP. Nesse mesmo sentido, Apelação
Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais n. 1.0024.02.828636-7/001, data da publicação:
23/04/2004, relator Desembargador Alvim Soares, comarca de Belo Horizonte/MG, e Apelação
Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo n. 323-6/6, data da publicação: 14/04/2005,
relator Desembargador José Mario Antonio Cardinale.
Silmara Juny Chinelato alia-se à interpretação dos tribunais supra-referidos e justifica-se:
“Exemplifique-se, ainda, com a mudança do regime da separação de bens que, no novo Código,
admite a livre alienação de bens da propriedade de cada cônjuge (art. 1.687) diferentemente do art.
276 do Código de 1916, que exigia autorização do outro. Se a alienação ocorre na vigência do
Código de 2002, embora o casamento tenha sido celebrado sob o Código revogado, incide a lei
atual, dispensando o cônjuge da outorga marital ou uxória conforme o caso” (Do direito de família,
cit., p. 273). Débora Brandão, por sua vez, afiança ser indispensável a outorga conjugal no caso em
tela: “(...) aos casados sob a vigência do Código de 1916 aplicam-se as Disposições Gerais do
Código de 2002, exceto o inciso I do artigo 1.647, para os casados pelo regime da separação
convencional, porque a existência da vênia conjugal faz parte da disciplina do seu regime-tipo do
Código de 1916 (...)” (Regime de bens no novo Código Civil, cit., p. 263).
31. 31
Por conseguinte, se o novel diploma civil ordena que haverá um sistema de
co-gestão conjugal no casamento, é evidente que essa possibilidade também se
estende aos que se casaram antes da vigência do atual Código Civil. Ainda, se uma
nova lei retira o prazo mínimo para concessão de separação judicial, beneficiará
aqueles que se casaram antes de sua vigência. Lembre-se que as normas de
caráter cogente devem ser imediatamente aplicadas, pois traduzem a legitimação da
evolução histórica social por meio das leis editadas pelo Estado.
Em que pese a eficácia da norma anterior no que diz respeito às regras
específicas sobre regime de bens, importa mencionar que, uma vez alterado o
regime de bens eleito pelos consortes durante a égide do Código revogado, o novo
regime não necessariamente deve obedecer às peculiaridades de seus antigos
preceitos.
Poderá ocorrer que a razão ensejadora da modificação do regime seja
mormente o novo conteúdo de determinado tipo de regime. Então, se durante o
império do antigo Código Civil os cônjuges se casaram sob o regime da separação
de bens, poderão modificá-lo por esse mesmo regime, mas com a roupagem que lhe
foi conferida pela legislação civil em vigor, a qual, como visto, consiste em eliminar a
outorga conjugal, antes necessária para a alienação imobiliária.
O exacerbado apego à interpretação restritiva engendraria o divórcio entre os
cônjuges cujo intuito seria a adequação da vida patrimonial à sua vida pessoal e
familiar, de acordo com o atual diploma civil.
Finalmente, conclui-se de modo seguro que o intuito do legislador foi autorizar
a mutabilidade do regime de bens na constância do casamento, independentemente
da sua data de celebração, e que a regra contida no artigo 2.039 é norma de caráter
pós-ativo, já que prima pela continuidade da aplicação das regras peculiares
referentes ao regime de bens eleito pelos cônjuges, com a ressalva, frisa-se, do
artigo 1.647, inciso I, do atual Código Civil.
4. CONCLUSÃO
Diante do estudo proposto, conclui-se que a aplicabilidade da norma em
apreço possibilita a homogeneidade do sistema jurídico, oferecendo tratamento igual
àqueles em igual situação, criando uma codificação civil que se destaca por
32. 32
hierarquizar os valores afetivos e sociais, em detrimento do exacerbado positivismo
gerador de estagnação do processo evolutivo da sociedade.
O fim social da aplicação da norma de direito transitório aos casamentos
celebrados pela égide do antigo Código fundamenta-se na proteção da família no
âmbito da adequação das estruturas a um novo regramento patrimonial que seja
consentâneo com sua aspiração e necessidade, assim como é permitido afirmar que
é interesse do próprio Estado e da sociedade manter o equilíbrio da entidade
familiar, subtraindo os valores patrimoniais em nome da tão almejada concretização
da despatrimonialização e personalização do direito de família.
33. 33
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36. 36
ARTIGO
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
*Shirlei Paci de Rossi MOURA
*Mestre em Direito das Relações Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), Coordenadora e Professora do
Curso de Direito do Centro Universitário do
Norte Paulista - UNORP
Resumo: propõe-se, neste trabalho, a estudar a dignidade da pessoa humana como base para
proteção da vida, analisando o conceito de pessoa humana, o conceito de dignidade da pessoa
humana e, por fim, a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional, pois ao destacar a
dignidade da pessoa humana como um dos valores fundamentais, um dos pilares do Estado, e a
partir daí, tendo dignidade como pano de fundo, a direcionar todo o sistema, surge a necessidade de
garantir a proteção contra toda e qualquer atividade que lese ou desconsidere o status de pessoa em
toda sua transcendência.
Palavras-chave: dignidade da pessoa humana; princípio constitucional; valor
Abstract: Is propose this work to study the human dignity as the basis for protection of life, analyzing
the concept of man, the concept of human dignity and, finally, human dignity as a constitutional
principle, because to highlight the human dignity as a fundamental value, one of the pillars of the
state, and from there, with dignity as a backdrop, to direct the whole system, there is a need to ensure
protection against any activity that causes harm or disregard the status of every person in his
transcendence.
Keywords:humana dignity; constitutional principle; value
1. A PESSOA HUMANA
O processo de desenvolvimento da noção de pessoa teve início a partir do
Cristianismo12
, não que os filósofos gregos deixaram de valorizar o homem diante da
natureza - tanto os sofistas, quanto Sócrates, Platão e Aristóteles - contudo, neles
1
Estas reflexões foram sistematizadas em dissertação de mestrado, intitulada Clonagem Terapêutica:
uma nova visão para os transplantes de tecidos e órgãos, defendida pela autora deste artigo, no
Programa de Pós-Graduação (nível Mestrado) em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof. Dra. Maria Celeste Cordeiro Leite
Santos, em 2004.
2
A mensagem trazida pelo Cristianismo foi nos dizeres de Alexandre de Morais na sua obra Direito
Humanos fundamentais, p. 25 de “igualdade de todos os homens, independentemente de origem,
raça, sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos direitos fundamentais, enquanto
necessários à dignidade da pessoa humana.”
37. 37
não existia ainda a noção de universalidade da pessoa humana. Aristóteles, por
exemplo, indagou que as mulheres e os escravos são seres intermediários entre os
homens e os animais.3
O Cristianismo traduz a idéia de que todos os homens são iguais e merecem
ser chamados e tratados como pessoas.
Contudo, foi o filósofo cristão Severino Boécio (480-524) que empregou, pela
primeira vez, o termo pessoa fora dos sentidos restritos que lhe eram dados tanto no
teatro quanto no direito de seu tempo. Inspirando-se no teatro, onde os atores
usavam máscara e representavam figuras importantes da vida política e social.
Assim, o ser humano é pessoa por causa de sua importância e de sua autonomia.4
Severino Boécio elaborou uma das mais famosas definições de pessoa, ou
seja, “pessoa é toda substância individual de natureza racional”, assim todos os
seres humanos são racionais e todos os seres racionais são pessoas.5
Porém, o que se torna difícil é determinar o momento em que o embrião e o
feto passam a ser tidos como pessoas. Diante disso, cabe ao direito determinar,
através das suas normas qual seria esse momento.
Encontramos em nossas pesquisas várias teorias que buscam determinar
qual seria esse momento, vejamos algumas: para o pensamento metafísico
medieval, o embrião é pessoa plena desde a concepção; em oposição temos várias
teorias utilitaristas, que afirmam que só existe pessoa quando o ser humano for
capaz de se expressar suas vontades. Todavia há uma teoria que sustenta que
existe pessoa quando o ser humano for biologicamente viável, ou seja, quando
puder sobreviver fora do corpo da mulher.6
Comungamos da primeira teoria, ou seja, já existe pessoa desde a concepção
e deve inquestionavelmente ter seus direitos garantidos, principalmente ter
respeitada sua dignidade humana, o direito à vida, pois a manipulação da vida em
laboratório já decifrou o ser humano biologicamente, mas nunca terá condições
tecnológicas e científicas para desvendar uma pessoa enquanto valor, porque esses
3
SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 59.
4
Ib., op. cit., p. 60.
5
Ib., Ibid., p. 60
6
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais da bioética. São Paulo:
Loyola, 2000, p. 69.
38. 38
dados não estão inseridos em genes, mas sim no desenvolvimento evolutivo do ser
humano, baseado na ética, filosofia etc.
Assim, a expressão pessoa humana, entendida, pois em sua acepção
ontológica, é o ente dotado de vida humana. A vida é o pressuposto da pessoa. A
pessoa é a essência do Estado, e, ao mesmo tempo, seu fim permanente. Ao
Estado cabe garantir a existência da pessoa (vida), o desenvolvimento de suas
potencialidades e a realização de seus valores (dignidade).7
Recasens Siches8
disserta que “o homem é um organismo animal e, por
tanto, um indivíduo;; mas é mais que isto, é uma pessoa” 9
e que além da sua
característica biológica o homem tem “unidade, identidade e continuidade
substanciais” 10
.
José Cabral Pereira Fagundes Júnior entende o conceito de pessoa humana
como valor essencial:
A pessoa humana é hoje considerada como o mais notável, senão raiz, de
todos os valores, devendo, por isso mesmo e dentro de uma visão
antropocêntrica, ser o destinatário final da norma, base mesma do direito,
revelando, assim, critérios essencial para conferir legitimidade a toda ordem
jurídica.
Não havia, na Antigüidade, o conceito de pessoa como o entendemos
atualmente, sendo certo que o seu conhecimento surgiu apenas na era
moderna. O homem para a filosofia grega era um animal político ou social,
como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, fato de pertencer ao Estado.
O conceito de pessoa como valor essencial que a legitimaria a ser
possuidora de direitos subjetivos fundamentais e de dignidade, somente
surgiu com o advento do Cristianismo11
.
Para Fábio Konder Comparato a “idéia de que o indivíduo e grupos humanos
podem ser reduzidos a um conceito ou categoria geral, que a todos engloba, é de
elaboração recente na História”12
, e continua, “essa convicção de que todos os seres
7
Maria Helena Diniz leciona que "a vida humana é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica
deve respeitar. A vida não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito a uma pessoa
sobre si mesma. Na verdade, o direito à vida é o direito ao respeito à vida do próprio titular e de
todos...”. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed., v. 1. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei
10.406, 10-01-2002). São Paulo: Saraiva, 2002, p. 120.
8
Vida Humana, Sociedad Y Derecho. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 254.
9
“El hombre es un organismo animal y, por tanto, un individuo; pero es algo más que esto: es una
persona.”
10
“unidad, identidad, y continuidad substanciales.”
11
FAGUNDES JUNIOR, José Cabral Pereira. Limites da ciência e o respeito à dignidade humana. In:
LEITE, Maria Celeste Cordeiro (Org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 271.
12
Afirmação dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 11.
39. 39
humanos tem direito a ser igualmente respeitados pelo simples fato de sua
humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei
escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que
vivem numa sociedade organizada”13
.
2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONCEITO
Temos notícia de que “a origem dos direitos individuais pode ser apontada no
antigo Egito e Mesopotâmia” 14
, sendo que o “Código de Hammurabi (1690 a C)
talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os
homens, tais como a vida,... a dignidade...” 15
.
Os antecedentes históricos da dignidade humana são brevemente relatados
por Ingo Wolfgang Sarlet:
No pensamento filosófico e político da antigüidade clássica, verifica-se que
a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição
social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais
membros da comunidade, daí poder falar-se em uma qualificação e
modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas
mais dignas ou menos dignas. Por outro lado, já no pensamento estóico, a
dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o
distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos
são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez,
intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o
Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem
como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua
natureza, são iguais em dignidade.16
A idéia de dignidade humana na Antigüidade era imprecisa, vaga, na medida
em que, era determinada pela posição social, ou seja, quanto melhor a posição
social, mais respeito à dignidade. Este pensamento sofreu modificações com o
advento do cristianismo, que trouxe a idéia de igualdade entre os homens.
A Magna Carta (1215), a Petition of Right (1628), o Bill of Rights (1689), entre
outros, formam os mais importantes antecedentes históricos das declarações de
13
COMPARATO. Op. cit., p.12.
14
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p.24.
15
Id. ibid., p.24
16
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 30-31.
40. 40
direitos humanos fundamentais.
Posteriormente surgiram as Revoluções que deram ensejo aos documentos:
Declaração de Direitos da Virgínia (16-6-1776), Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América (4-7-1776), Constituição dos Estados Unidos da
América (17-9-1787).
Jacques Maritain assevera que “cada um de nós é portador de um grande
mistério que é a personalidade humana. Sabemos que um traço essencial de uma
civilização digna dêsse nome é a noção e o respeito da dignidade humana” 17
, e por
isso “a pessoa humana tem direitos, por isto mesmo que é uma pessoa, um todo
senhor de si próprio e de seus atos, e que por conseqüência não é sòmente um
meio, mas um fim, um fim que deve ser tratado como tal. A dignidade da pessoa
humana – seria uma expressão vã se não significasse que, segundo a lei natural18
, a
pessoa humana tem direito de ser respeitada e é sujeito de direito, possui direitos”
19
.
O ser humano tem que ser respeitado como tal, pelo fato de ser inerentes a
ele todos os atributos essenciais da pessoa humana, sendo um em especial, ou
seja, a dignidade humana20
.
Para Fábio Konder Comparato, tal dignidade: “não consiste apenas no fato de
ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si
e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta
17
MARITAIN, Jacques. Os direitos do homem. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 16.
18
Na concepção de Jacques Maritain direito natural diz respeito aos direitos e deveres que decorrem
do primeiro princípio: fazer o bem e evitar o mal, de maneira necessária e pelo simples fato de que o
homem é homem, fora de qualquer outra consideração. É por isso que os preceitos da lei não escrita
são por si mesmos ou na natureza das coisas (não digo do conhecimento que o homem tem dêles)
universais e invariáveis. Op. cit., p. 65.
19
MARITAIN. Ibid., p. 62
20
Vale ressaltar as palavras de Chaïm Perelman: “Com efeito, se é o respeito pela dignidade humana
a condição para uma concepção jurídica dos direitos humanos, se se trata de garantir esse respeito
de modo que se ultrapasse o campo do que é efetivamente protegido, cumpre admitir, como corolário,
a existência de um sistema de direito com um poder de coação. Nesse sistema, o respeito pelos
direitos humanos imporá, a um só tempo, a cada ser humano – tanto no que concerne a si próprio
quanto no que concerne aos outros homens – e ao poder incumbido de proteger tais direitos a
obrigação de respeitar a dignidade da pessoa. Com efeito, corre-se o risco, se não se impuser esse
respeito ao próprio poder, de este, a pretexto de proteger os direitos humanos, tornar-se tirânico e
arbitrário. Para evitar esse arbítrio, é, portanto, indispensável limitar os poderes de toda autoridade
incumbida de proteger o respeito pela dignidade das pessoas, o que supõe um Estado de direito e a
independência do poder judiciário. Um doutrina dos direitos humanos, que ultrapasse o estádio moral
ou religiosos é, pois, correlativa de um Estado de direito.” Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes,
1996, p. 400.
41. 41
também do fato de que, por sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de
autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita” 21
.
Para Maria Celeste Leite Cordeiro Santos o conceito do termo dignidade
significa a “bondade superior correspondente ao absoluto, ao que é um fim em si
mesmo, com independência total de qualquer uso, utilidade ou gratificação” 22
, e
continua ensinando:
A dignidade humana consiste no valor absoluto da pessoa, Santo Tomás de
Aquino ensina-nos que ‘é a bondade por si mesma, utilidade, bondade para
outra coisa. É a superioridade ou elevação da bondade, a interioridade ou
profundidade de semelhante realeza. É a suprema valia interior do sujeito
que a ostenta. É aquela excelência correlativa a um grau de interioridade
que permite ao sujeito manifestar-se como autônomo, que se apóia ou
sustenta-se em si mesmo. É sinônimo de ‘majestade’ ou de ‘realeza’
23
. (grifo
no texto)
A dignidade é (dever ser) o atributo fundamental e essencial da existência
humana, pois se o direito é uma criação do próprio homem seu valor deriva do
próprio homem, dessa maneira o fundamento da dignidade não poderia ser outro,
senão o próprio ser humano.24
3. A DIGNIDADE DA PESSSOA HUMANA: PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 1º, a base principiológica
sobre a qual se assenta a República Federativa do Brasil. Dentre esses princípios
destacamos a dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, art. 1°, III), que
estabelece um patamar mínimo da existência humana.
Para Celso Ribeiro Bastos a inclusão deste no rol dos princípios fundamentais
da República Federativa do Brasil foi “um acerto do constituinte, pois coloca a
21
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001,
p. 21.
22
Limites éticos e jurídicos do projeto genoma humano, p. 307.
23
Ibid., p. 310.
24
COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos Direitos Humanos. In: MARCÍLIO, Maria Luiza;
PUSSOLI, Lafaiete (Coords.). Cultura dos Direitos Humanos. Coleção Instituto Jacques Maritain. São
Paulo: LTr
42. 42
pessoa humana como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para
alcançar certos objetivos”25
.
O significado constitucional de dignidade está nas palavras de Uadi Lammêgo
Bulos “o valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos
demais direitos e garantias fundamentais do homem, expressos nesta Constituição.
Daí envolver o direito à vida” 26
.
Conseqüentemente, o Estado deverá adotar toda a instrumentação idônea e
necessária para atingir esse patamar mínimo no existir humano para proporcionar
uma melhor qualidade de vida ao ser humano.
Ao destacar a dignidade da pessoa humana como um dos valores
fundamentais, um dos pilares do Estado, e a partir daí, tendo dignidade como pano
de fundo, a direcionar todo o sistema, surge a necessidade de garantir a proteção
contra toda e qualquer atividade que lese ou desconsidere o status de pessoa em
toda sua transcendência.
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe uma tutela
adequada contra todas as atividades que tomarem o homem como meio, como
objeto, como mercadoria, atividades que desrespeitarem o homem em sua
integridade, menosprezarem a expressão de seus valores, que lhes desprezarem a
honra de ser um ente humano vivente.
Fernando Ferreira dos Santos, em sua obra27
cita Kant, para o qual “o
homem, (...), é um fim em si mesmo e, por isso, tem valor absoluto, não podendo,
por conseguinte, ser usado como instrumento para algo, e, justamente por isto, tem
dignidade, é pessoa.” (grifo no próprio texto)
E continua:
Consequentemente, cada homem é um fim em si mesmo. E se o texto
constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da
República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em
função de todas as pessoas e não em função do Estado. Não só o Estado,
mas consectário lógico, o próprio Direito. ‘A dignidade é o fim. A juridicidade
da norma positiva consiste em se poder reconhecer que, tendencialmente,
ela se põe para esse fim. E se não se põe não é legítima. A razão jurídica
se resolve em uma determinada condição humana em que cada indivíduo é,
para a humanidade, o que uma hora é para o tempo: parte universal e
concreta do todo possível’. Aliás, de maneira pioneira, o legislador
25
Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 166.
26
Constituição Federal Anotada. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 49.
27
Princípio Constitucional da Dignidade Humana. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 27.
43. 43
constituinte, para reforçar a idéia anterior, colocou, topograficamente, o
capítulo dos direitos fundamentais antes da organização do Estado.28
O que deve ser fervorosamente defendido, tanto pelas normas como pela
ética é impedir que a pessoa seja transformada em objeto, em coisa, em mercadoria,
em meio. Assim, quando o homem for transformado em objeto para se chegar a um
fim, sem dúvida, ocorrerá ofensa ao princípio da dignidade humana, o que vale
dizer, aniquila a pessoa enquanto ente humano digno de viver.29
Com o avanço da engenharia genética, a passos largos, vislumbramos a
transformação das pessoas em coisas onde é possível a manipulação do homem no
que ele tem de mais íntimo: sua identidade pessoal, por isso hoje podemos dizer
que o homem chegou a ponto de ser manipulado por ele mesmo.
Para Adriana Diaféria dignidade da pessoa humana se caracteriza como
sendo:
Um bem supremo, que garante não só a existência de nosso Estado, mas
da história da evolução humana, por estar atrelada à toda construção
ideológica, psicológica, religiosa e cultural que lhe dão suporte. Nos
momentos em que foi demasiadamente desrespeitada, constatamos a
ocorrência das grandes hecatombes, que nos compeliram, cada vez mais, a
torná-la concreta, objetiva e factível no meio jurídico.
30
Com o escopo de proteger a dignidade humana, a Constituição elencou no
seu artigo 6°, os direitos sociais, onde o Estado tem o dever de protegê-lo, pois
caracteriza-se como o piso vital mínimo, sendo que todas as normas constitucionais
devem estar direcionadas para a pessoa humana. 31
O ser humano é voraz por conhecimento, por isso será um incansável
pesquisador em busca de resposta para suas maiores dúvidas, e nesse contexto
28
Op. cit., p. 92.
29
José Cabral Pereira Fagundes Júnior infere que “sob justificativa de propiciar uma vida melhor, não
podem os avanços da ciência ir além dos limites impostos pelo Princípio Fundamental da Dignidade
da Pessoa Humana, que vem permeado, dentre outros, pelos Direitos e Garantias Fundamentais”.
FAGUNDES JUNIOR, José Cabral Pereira. Limites da ciência e o respeito à dignidade humana. In:
LEITE, Maria Celeste Cordeiro (Org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 268.
30
Clonagem: aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru: EDIPRO, 1999, p. 54
31
Segundo o entendimento de Celso Antônio Pacheco Fiorillo para que uma pessoa possa ter uma
vida digna ela “reclama a satisfação dos valores (mínimos) fundamentais descritos no art. 6° da
Constituição Federal”, quais sejam entre outros a saúde, de maneira que a este dispositivo
constitucional estabelece um “piso vital mínimo de direitos que devem ser assegurados pelo Estado”,
para que o ser humano possa ter uma sadia qualidade de vida. Curso de Direito Ambiental Brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2000, p. 53.