1) O documento descreve parte da rotina diária de um homem que pega ônibus para ir à faculdade, incluindo seus hábitos e observações sobre os outros passageiros.
2) Ele gosta de observar os outros passageiros e analisar seus hábitos, estilo e gostos musicais.
3) O documento também relata alguns incidentes cômicos que ocorreram no ônibus, como quando dois homens com mau cheiro entraram e causaram revolta entre os outros passageiros.
1. ~ Reprodução autorizada apenas para finalidades não comerciais, desde que reconhecida a autoria. ~
DUAS HORAS MUITO LOUCAS, parte i
Por: SANTOS, Wendell Batista dos.
Blog: http://wendellbatista.blogspot.com. Usuário Twitter e SlideShare: @sbwendell.
15h00. Dispara, ainda que não um despertador propriamente dito. Por ter trauma inexplicável de alarmes, prefere optar
pelas funções de seu celular com um toque que inspira disposição. Afinal, disposição é tudo o que precisa após um dia
sob o sol escaldante que começa às 08. Com notável indisposição, move-se e silencia por deslizar a falange do indicador
direito sobre a tela, respira mais fundo, pega uma toalha, roupa de baixo e vai ao banho com o celular tocando uma
música alegre. Aproximadamente às 15h20 volta ao quarto improvisado e, caso não tenha feito isso anteriormente,
pega uma roupa que combine até a cor da peça inferior, mas de suma importância. Não tem modismos, calça os sapatos,
usa um perfume forte e, se lembrar, penteia os cabelos que quase não têm. Esquecer deste último detalhe não faz a
mínima diferença. Olha-se pelo espelho e diz para si mesmo olhando nos olhos: “Perfeito!” Mas se não correr, com
certeza perderá o ônibus tendo que esperar pelo menos mais uns 30 minutos até que venha um outro ônibus que faz
um percurso ainda maior, o que atrasa mais uns 15 minutos consumindo até o último suspiro de toda sua quase ilimitada
paciência. Supostamente, existem duas linhas de ônibus nesta ilha pequena1
. Não há empresa concorrente.
Tchau, pai. Tchau, mãe. Não exatamente, assim. Como de costume familiar, também pede a bênção aos mais
velhos.
Vá com Deus, Deus que te abençoe e que te dê boa sorte. Ligue quando estiver chegando. Ambos respondem.
A avó também quando se faz presente. E diz mais:
Nosso Senhor Jesus que te acompanhe e a Virgem Maria. Deus que te dê boa sorte e te faça feliz. É cristão
restauracionista e responde com fraternal amor:
Obrigado, vó. A senhora também fique com eles. O irmão mais velho já saiu mais cedo para estudar e agora só
poderá vê-lo no dia seguinte.
Ele já não acredita mais em sorte nem destino. Sorte pouco tem servido até mesmo para quem acredita nela. E os
poucos a quem serve, não os serve sem que façam esforços. No caminho para a faculdade, fala com todos que o
procuram e aqueles que, como fala Dom Casmurro, conhece de praça e de chapéu. Alguns dizem que poderia ser
político, mas prefere morrer e ter um funeral bem acompanhado do que perder sua boa reputação mesmo que não
cometa crimes. Sentado num banco em falso da única banca de jornais de sua pequena cidade, há 07 minutos de sua
casa, aguarda o ônibus passar enquanto conversa com quem ali se apresenta. Avistando o coletivo, corre uns 30, 40 ou
50 metros e acena solicitando parada. Não sabe se é feliz por ter o primo como motorista e economizar dinheiro naquela
ida ou ainda se por encontrar um lugar disponível para sentar. Sorri pelos dois motivos entrando pela porta do meio
qual louco sem loucura comprovada. 16h00.
Certo dia, à porta de entrada, lembrou dos bolsos vazios. Se desfez da fila e fora até o banco que ainda fica no outro
lado da avenida, sacou dez reais e ainda conseguiu pegar o mesmo ônibus. Naquele dia deu graças a Deus por permitir
tanta gente entrando naquele coletivo e por não ter ninguém no banco. Essas coisas acontecem.
Tornou-se um hábito entrar e olhar todos em volta, contar quantos estão na jornada e optar pelo lado que não é o do
sol. Observa os hábitos, a maneira de falar e se vestir, o livro que está lendo e faz julgo sobre os gostos musicais; uma
análise psicossocial permanente e sem preconceitos. Às vezes procura o lugar reservado para pessoas obesas porque
gosta de espaço ou sua coluna não está bem desde que certa vez...
Certa vez, mais uma vez, sentou-se no último lugar do ônibus. Era um ônibus articulado. Há muito já havia rido ao ver
os pulos e voos levantados pelos passageiros ali atrás mal acostumados com o balanço do veículo ao passar pelas
lombadas, mas principalmente nas pontes mal feitas de Paulista próximo à/ao BILIO (não sei o que isso significa).
Habitualmente viu alguns caírem. Ele nunca caiu, mas teve a coluna danificada ao subir/voar e descer/cair do banco
diretamente sobre a armação do mesmo. Foi certeiro e no dia seguinte andava qual boneco enferrujado. Mas
enferrujado não é. Quisera ser marionete, mas a empresa lhe tornou boneco de barro e se muito se mexer, pode se
quebrar. Até hoje nota que os bancos são bem apertados, juntinhos um do outro. Sua teoria é de que assim são feitos
1
Ilha de Itamaracá-PE.
2. ~ Reprodução autorizada apenas para finalidades não comerciais, desde que reconhecida a autoria. ~
para que sobre mais espaço, e sobrando mais espaço caberão mais assentos, tendo mais assentos, mais pessoas irão
na mesma viagem, o que diminuirá os gastos e aumentará os ganhos, etc.
Uma das melhores invenções do século passado foram os fones de ouvido, ‘companheiros inseparáveis’. Sem eles
estaríamos condenados a ouvir a falta de bom gosto musical alheio. Play: #LanaDelRey #1D #LadyGaga #Avicii #Glee
#DavidGuetta #Creed #Enya #eRa #DivandoNoBus. Mas se irrita com coisas do tipo:
1) Idoso que não senta nos lugares reservados e olha com olhos grandes como que dizendo: “Dê-me este lugar,
por favor. Sou um idoso incapaz.” Poderia não ceder assim como muitos fazem, mas seu instinto cavalheiro faz-
lhe oferecer o lugar que é irrecusável. Há gente que dorme nessas horas.
2) Idoso que acaba de ganhar um lugar e não se oferece para levar a bolsa pesada da alma caridosa.
3) Idoso que ao ganhar um lugar, o dá para o neto, não necessariamente neto, mas uma criança qualquer que vem
puxada pelo braço e vão em pé o idoso e a alma caridosa e sua bolsa pesada. Ou ainda aquele que desce logo
na próxima parada e não dá tempo de você voltar à sua origem: aquele lugar especial na janela.
Mas ele sabe que nem todos os idosos são assim. Hoje, está sentado.
Vez por outra lembra e ri sozinho acerca de certo dia num ônibus lotado. Era o final de um desses feriados que emenda
com o fim de semana. Pessoas voltando para casa, ocupando espaços com colchões, grandes bolsas com todas as
bugigangas, caixas de isopor que antes levavam bebidas, ventiladores, televisão, tinha de tudo. No caminho sobem dois
homens pela mesma porta do meio. Estes deveriam estar há pelo menos uns dois meses sem se enxaguar. Houve ali
manifestação imediata:
Virgem Maria, que catinga é essa? Uma senhora com estranhas expressões de repugnância. O dono do odor
ainda era desconhecido.
São aqueles ali, ó! Respondeu um gaiato.
É ele, eu não! Amizade nessas horas não conta.
Risos e gargalhadas tomavam conta dos passageiros que se dividiam entre rir ou fechar as vias aéreas superiores. À essa
altura, aquele jovem e sua prima que também é boa prosa já se acabavam de rir. O humor escorria pelos olhos.
O homem ‘tá podre!
Carniça!
Manda ele descer, motorista! Rir era o que ele fazia. Não seria assim se o vento fosse ao contrário. Não me
acrescenta repetir os palavrões.
Houve revolução. Desodorantes, perfumes e aromatizantes surgiam de entre as grandes e pequenas bolsas e
disputavam o ar com o odor insuportável daquele senhor com saco de estopa nas costas, chapéu preto na cabeça e um
pau que lhe servia de bengala. Ainda assim, o coletivo se tornara uma câmara de gás. Hitler o usaria, sem dúvidas. Isto
é, se não morresse antes. Fazia-lhe lembrar um filme de comédia brasileiro. Os primos aceitaram perfumes em suas
mãos e as colocavam sobre as narinas. Enfim, 45 minutos de agonia até que um deles desceu e o seu cheiro fora junto
comprovando a inocência do segundo que falara em sua defesa anteriormente. Isto foi um outro dia. Hoje, não há
cheiros desagradáveis e o ônibus que pegara não é o mesmo que atrasa.
E por falar em desagradáveis, há também um outro relato que faz jus contar. Estava com a mesma prima e, como de
costume, olhando para as pessoas lá fora avistou um louco sentado na calçada. Observou o fundo de suas calças rasgado
e a ausência de qualquer coisa que pudesse suspender, sabemos todos o quê. Com cutuques: “Ei, olha pra ali.” Prima
mudou de cor. Sua insanidade não lhe permite mais saber as coisas que são de suma importância nos dias de hoje.
Risos.
Voltemos ao momento em que acaba de encontrar o seu lugar na janela. Se o dia não for deprimente, não encontrar
um boa prosa para comprar tempo de conversa ou ler as revistas que publica e sempre leva na bolsa, encosta a cabeça
na parte traseira do assento olhando para cima, mas ainda prefere incliná-la no sentido da janela para não perder o dia
lá fora. Mesmo que a visão panorâmica nem sempre seja agradável por causa das tragédias e do fundo ausente, certas
miragens ainda são possíveis: paisagens, pessoas sorrindo, casais felizes, passarinhos... Dorme. Sonha uma besteira
qualquer... “Que mundo maravilhoso!” Mas antes de qualquer ação, ler as coisas escritas na parte traseira do assento à
sua frente se tornou um ato religioso.
3. ~ Reprodução autorizada apenas para finalidades não comerciais, desde que reconhecida a autoria. ~
Ei! Chegou! Acorda com cutucões no seu ombro direito, desorientado, tentando saber o que houve, o que se
passa, onde estou. É a estação2
. Desce com ele umas 80 pessoas, galinhas, papagaios, periquitos, gatos e
cachorros. Muitas vezes literalmente. Suportaria uma lotação maior se fosse um ônibus articulado.
Levanta-se, passa os dedos de ambas as mãos nos olhos, ajeita as calças apertadas chamadas por uns exatamente assim:
carroti3
. Mas pelo menos umas quatro vezes já havia acordado com o bradar que bate em qualquer lugar do veículo de
maneira às vezes assustadora: “Vai Descer!” Na estação, uma fila quilométrica lhe espera ao sol. Sabe que se ficar ali
algum instante dará continuidade ao trabalho destrutivo de sua pele iniciado pelo sol da manhã. Posiciona-se sob a
sombra duma coluna e observa a fila crescer até que o encontre e ele a dê continuidade sem o mínimo esforço ao
mesmo tempo em que vê crianças soltas brincando com os caixas eletrônicos enquanto as mães esquecem que são
mães, cachorros esqueléticos caminhando entre as pessoas com olhares famintos, a lanchonete ao lado do banheiro e
as pessoas ali comendo. Cerca de 50 pessoas estão à sua frente, mas o ônibus as suporta com mais um.
Às vezes sua mãe lhe interroga: “Meu filho, você também é muito crítico. Não precisa ser assim.” Com convicção no
olhar responde: “Se eu não for, quem vai ser por mim?” Ele é do tipo que se fizer uma crítica a um político em seu blog,
procura o contato deste e lhe envia a postagem.
Entra no ônibus que chega 20 minutos depois e, próximo ao sinalizador de paradas solicitadas, lê: “Itamaracá
Transportes, o nosso destino é a sua satisfação.” Desumanos, não precisam de transporte público. Não sabe como a
argentina pudera em pé afirmar: “Eu gosto de andar de ônibus.” Até aqui já olhou as redes sociais pelo menos umas 10
vezes questionando a qualidade do transporte e rindo de tweets malucos, mas, percebendo a gravidade da situação,
desativou as notificações para não viciar.
No trajeto, o coletivo passa por pelo menos dois viadutos. Um deles mal acabado. Nunca se viu um viaduto com 13
(treze; XIII; 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13) lombadas; só Olinda tem. É desses que sabe contar. E conta sempre
mais uma vez que é para ter certeza do que já contou. Certa vez ficou uma manhã inteira contando quantos ônibus
passavam pela sua parada a fim de saber, em média, qual o tempo do intervalo entre um e outro coletivo. Oito minutos.
Depois disso as coisas mudaram e ele mesmo já perdeu a noção do tempo. Vez por outra questiona sua própria sanidade
por causa disso. E de outras.
Faz cara feia sem disfarce ao ver cidadãos nominais jogando lixo nas vias públicas pela janela ou em qualquer lugar que
seja. Acha incrível a capacidade de esticar o braço passando em frente ao seu rosto até que chegue no local de despejo.
Não disfarça em acompanhar com os olhos todo o trajeto desta breve maratona de desrespeito com a vida finalizando
com uma olhadela repreensiva de cinco segundos para o protagonista da história.
Existem coisas na vida que parecem mais terem sido feitas para te ajudar a pensar/refletir do que cumprir suas funções
óbvias. Seremos sempre grato às janelas que não são de casa, ao chuveiro, ao escuro, à música de bom gosto, ao silêncio
do escuro, ao barulho das ondas do mar e ao vaso sanitário. 07 maravilhas da vida. Quando observa pela janela,
pergunta o que cada um daqueles seres fazem, o que pensam, o que sofrem, suas metas, sonhos, o que passam e as
suas singularidades. Reflete sobre as existências... Incluindo a sua. (...) Pensa em coisas como: “Preciso mudar de
emprego, comprar uma casa, mudar de cidade e principalmente ser feliz independente destas coisas.” Quer ser feliz
consigo mesmo. O que é a felicidade? (...) Deve ser acima de tudo, satisfação consigo mesmo, uma consciência limpa
perante todos e perante Deus e a liberdade de viver sem medos. Acredita em um novo mundo. Livre de toda maldade
e do sofrimento.
Lê tudo o que vê. Identifica os erros, ri sozinho como sempre e, se possível, fotografa.
Boa tarde, pessoal! Boa tarde, pessoal! Apenas ouve.
Boa tarde! Vozes poucas e enfraquecidas.
Desperta mais uma vez e é tomado pelo tédio tão rápido quanto instantaneamente.
Boa tarde, pessoal. O meu nome é Alexsandro (achei este bonito), estou aqui para falar com vocês porque sou
do centro de reabilitação ...
2
Igarassu.
3
Carroty (cenoura).
4. ~ Reprodução autorizada apenas para finalidades não comerciais, desde que reconhecida a autoria. ~
Aí diz um daqueles nomes hebraicos que só os centros de reabilitação sem apoio governamental têm; pelo menos a
maioria deles. Faz uma autobiografia: seu passado, suas origens, fala sobre a família, como dera início ao tratamento e
como chegou até ali e agora faz pelos seus colegas o que outros fizeram por ele um dia. No íntimo pensa mais uma vez
consigo mesmo: “Que bom, graças a Deus!”. Cita um versículo bíblico; eles gostam dos salmos e de João 3:16.
Oferece-lhe um de seus produtos, mas o tédio o leva a responder não desejar por fazer movimentos com a cabeça sem
mover um só músculo de sua face, exceto as sobrancelhas levemente erguidas, para o “Não!” passar suave até os
tímpanos do recuperado. É um Não aguado, sem interesse, tão seco quanto sua própria garganta há duas horas de ar
que tomara pela janela. O homem vai embora desapontado e em seguida entra mais um vendedor. Dessa vez apenas
um vendedor, com sua caixa de isopor na cabeça que logo arreia ao chão. Ali ele traz água, sucos e refrigerantes e
pendurado pelos braços também algumas sacolas de balas e pipocas. Este é mais prático e objetivo, oferece seu produto
e o leva quem por ele pagar.
Não há higiene. Nota quando o homem molhado de suor coloca aquela enorme caixa sobre uma enorme marca de
vômito ainda recente desenhada horrendamente no chão do coletivo. Sua face de repugnância é involuntária e exclama
em meio tom: “Ai!” Fecha os olhos e os abre em outra direção. Imagina que aquelas bactérias rompam as barreiras do
isopor e tomem conta do ambiente interno se familiarizando com o gelo, a água e o gás dali. Ensaio de última hora:
imagina que a caixa nunca tomou um banho como em toda calçada tem se deitado, que o vendedor pega tanto no
dinheiro como no produto de consumo, que em seus produtos há coliformes fecais, que as pessoas os consomem,
adoecem, morrem e ainda dizem que não sabem por quê. Uma reflexão que começou no Shopping Tacaruna e foi além
do Santo Amaro.4
Em um só dia são muitas as figuras que lhe aparecem. Umas o fazem sorrir, outras ele as ignora. O menino que pede
ajuda. Não dá, pois acredita que é um beneficiário do Bolsa Família. Já modernizaram seu negócio, fazendo pedido por
escrito, devidamente digitado e impresso do tamanho dum cartão de visita e, às vezes, do talão de cheque. A dupla que
toca pandeiro e faz rimas. Ri, mas não compra seu disco porque só é pego em momentos desprevenido e, por não
comprar, já foi chamado de “pirangueiro”. A senhorinha meiga espevitada que seduz o cobrador, dentre tantos e outros
causos que não dá para mencionar.
Sorri ao ver uma pessoa bonita chegar, mas a sua parada finalmente vai se aproximando e não deixa de realizar mais
uma vez o seu ritual: levanta-se, passa os dedos nos olhos, ajeita as calças e puxa a camisa um pouco para trás se for do
tipo mais folgada. Solicita parada e abandona aqueles estranhos, ainda que os veja costumeiramente. 13 de Maio.5
O desafio é não bater em alguém ou pisar em pé desconhecido. Com os fones ainda ligados, as músicas lhe ajudam no
ritmo. De fato, ouvir uma boa música o leva para outra dimensão e faz sentir-se como parte daquela melodia ou figura
principal de um videoclipe no VEVO. São passos sincronizados, ele não anda em linha reta, desvia-se de todo e qualquer
obstáculo sem perder a correta postura. Mas também sente profunda impaciência com aquelas pessoas que estão ali a
passeio, vagarosas na sua frente ou parando sem avisar. São também carros de vendedores ambulantes... Tudo o
desafia. Avista o semáforo contar 17 segundos e acelera os passos chegando ao outro lado no exato momento em que
fecha para o pedestre. Seria sorte, se ele acreditasse.
Vê os soldados. Acha bonito, mas não tem a mínima e desprezível vocação para tal emprego. Há ali um idoso e uma
idosa, cada um em seu lugar estratégico na calçada. Pedem esmolas. Já não falam mais nada, não ficam com os braços
indo e vindo no sentido de quem passa por não se esforçar mais em vão. Sentados na calçada, apoiam a frente da mão
sobre uma de suas pernas e ali estão na correta posição de pedir. Pensa: “Essa aí já é aposentada, tenho certeza. Esse
também.” Não duvide, leitor, estas coisas acontecem no Brasil. Há alguns anos fazia questão de ajudar mesmo que com
moedas, mas depois tornou-se adepto assíduo da verdade que diz que muitos estão ali baseando-se na mentira de que
“necessita”. Atravessa mais uma vez, passa os olhos nas capas de revistas duma banca, anda em meio aos meninos da
rua com suas garrafas de cola nas mãos e deitados pelo chão ou embaixo daquelas árvores cheirando. São bons garotos
negligenciados pelas autoridades. Seja qual for a real situação de cada um desses moradores de rua, jovens ou idosos,
não consegue vê-los como uma ameaça para a sociedade, são tão mutilados quanto qualquer um de nós. Não há muita
diferença. Mas pensa que alguém poderia lançar umas dinamites no Congresso Nacional.
4
Bairro de Recife, onde fica também o cemitério dos ingleses.
5
Parque 13 de Maio.
5. ~ Reprodução autorizada apenas para finalidades não comerciais, desde que reconhecida a autoria. ~
30 segundos de espera de um lado da Conde da Boa Vista6
e o semáforo abre até que deixa de imaginar naquele local
o primeiro capítulo de Ensaio Sobre a Cegueira7
. Quanto devaneio! Atravessa a avenida e segue à direita. São pessoas
para todos os lados: pedestres normais, pedestres dementes, aquelas senhorinhas que andam agarradinhas,
vendedores, mais vendedores gritando, folheto de um lado, folheto de outro, “aceite Jesus”, culto relâmpago, um cheiro
enjoativo de fritura e o típico odor de esgoto que só Recife, a cidade da Copa, tem. Uma das poucas coisas que lhe
agrada é o som suave da flauta; ele gosta de instrumentos de sopro e de corda, ainda que não saiba tocar algum. Nunca
colocou uma moeda na caixinha do senhor músico magro de cabelos grandes, mas aprecia o seu talento. Vez por outra
este menino que já não é tão jovem assim opta por descer a calçada suja e seguir pelo canto sujo da pista para ir mais
rápido. Desce, sobe de novo, desce de novo. Se resolve e sobe de vez.
Admira os hippies e os angolanos. Lembra sua amiga: “Amigo, comprei cinquenta reais de bijuteria no angolano. Com
uma semana oxidou tudinho.” Bom, não são todos eles. Olha pelas vitrines, lembra as contas que tem para pagar, sente
um calafrio na barriga e se contém. Zomba dos manequins, “eles poderiam ser mais bonitos.” Lamenta uma escola
abandonada8
. Olha também os rostos e indaga sobre cada história que eles levam, pensa em inglês e fala baixinho. Às
vezes percebe que também é olhado.
Aplica-se perícula! Grita um homem segurando uma placa de cerca de um metro e meio.
Essa “perícula” é de alta periculosidade. Replica mentalmente.
Atravessa mais uma vez, pela quinta vez. Chegar na calçada da FAFIRE9
é um alívio. Observa brevemente o desenhista
e nota que os desenhos ainda são os mesmo, o que indica pouca venda. Os passos sincronizados já não são mais os
mesmos, mas não deixa de fazer suas observações até chegue finalmente. As pessoas, os seus modos, as coisas e seus
modos.
Boa tarde! Cansado, com sobrancelhas levemente erguidas e um riso já sem graça.
Boa tarde! Responde o aquele que fica monitorando a entrada e a saída dos alunos.
Olha para Paula e observa se as flores que ganha ainda são as mesmas10
, escolhe as escadas e subindo tenta ver alguém
no pátio de alimentação. Ninguém. Observa o laboratório de informática, fala com a amiga que acessa as redes sociais,
um amigo que vai ouvir música e vai ao banheiro, onde lava as mãos antes e depois pelo medo de perder algo com o
toque das mãos sujas.
Tweeta: “Qualquer transporte público se transforma em carro de luxo quando entra uma pessoa que é bonita.”
As pessoas se assustam quando fala de onde vem. Itamaracá tem de tudo, até o elefante rosa se o procurar, menos
desenvolvimento.
Enfim, chegar à faculdade não é tão fácil assim. Murphy diz que se algo estiver ruim, tenhamos certeza de que pode
piorar. A teoria será comprovada! 18h20.
6
Av. Conde da Boa Vista. Embora a vista às vezes seja má.
7
Do escritor José Saramago, que também escreveu As Intermitências da Morte e outros livros.
8
Marista.
9
Faculdade Frassinetti do Recife, antes Faculdade de Filosofia do Recife conveniada à UFPE.
10
Imagem de Paula Frassinetti, fundadora da instituição e membra da Congregação de Santa Dorotéia do Brasil, recebendo flores
de uma criança. Falecida.