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As Origens de Hatchepsut
A grande esposa real, regente e posteriormente Faraó teve uma atuação tão
extraordinária que o imaginário romanesco se apoderou para converte-la em uma criadora
de intrigas corroída pela ambição, uma devoradora de homens, um Maquiavel de saias que
perseguiu o frágil Tutmósis III antes de ser perseguida por esse vingativo Faraó. Teria
também suprimido alguns cortesãos para melhor dominar o reino. Em suma, uma série de
horrores no mais puro estilo de Catarina de Medicci. Mas o Egito tinha outros valores, e
projetar nele as nossas torpezas é um erro lamentável, além disso, sua estatura política não
chocava os egípcios e se a sua notoriedade eclipsou suas precedentes se deveu à duração de
seu reinado e a abundância de documentação arqueológica.
Durante mais de dois séculos (1785 – 1570 ªC) os Hicsos, povo de origem asiática,
unida aos povos do deserto, ocuparam o norte do Egito neste espaço de tempo conhecido
pelos egiptólogos como “segundo período intermediário”. Foi um período de difícil estudo
pela pobreza de documentação, contudo, o processo dinástico não se interrompe, mas não
teve grandes vultos históricos. Os governantes Hicsos adotaram o título de Faraó visando
sua aceitação pela população nativa, mas seus reinados foram numerosos devido aos chefes
dos “clãs” estarem em constante luta pelo poder. Alguns egípcios colaboraram com os
invasores, outros recusaram aceitar a sua presença, havendo interpretações variadas sobre
esse convívio, alguns afirmando que os Hicsos se dobraram ao estilo de vida egípcio e
outros os Hicsos não passavam de bárbaros invasores, de qualquer forma, os Hicsos não se
tornaram populares.
Pouco antes de 1570 ªC, a filha do rei Tebano Taa I e da rainha Tetissheri,
conhecida como Iah-Hotep - “O deus-lua (Yah) está em paz (Hotep)” - deixou de tolerar
essa ocupação estrangeira no Delta, que arruinava o Egito e decidiu fazer tudo para liberta-
lo. No Egito antigo a lua era uma palavra masculina, era o sol da noite, muitas vezes
comparada ao touro, reconhecido como um temível combatente.
Foi seu esposo, o rei Sequenerê (Aquele que aumenta a bravura da Luz divina)
quem assumiu o comando dos exércitos para combater os Hicsos. Na batalha Sequenerê
pereceu, mas Iah-Hotep ainda tinha seus dois filhos para continuar seu intento, Kamósis
(“O poder nasceu”) e Ahmósis (“Aquele em que as transformações são grandes”).
Kamósis foi impulsionado pela rainha para continuar a batalha apesar do ardil dos
Hicsos ao tentarem insuflar revoltas na Núbia colocando Tebas entre dois fogos, Hicsos ao
norte e Nubios ao sul. Diante disso Kamósis decidiu avançar para o norte reconquistando
cidade após cidade exceto Avaris, capital dos Hicsos, por outro lado, a cidade de
Elefantina, ao sul, era fortificada para oferecer uma barreira aos Nubios. Quando Kamósis
saiu de cena, seu irmão Ahmósis tinha dez anos e sua mãe, Iah-Hotep, era a regente. Outros
nomes de seu segundo filho (Ahmósis), segundo a tradição de ser adotado vários nomes,
eram: “O touro de Tebas”, “Aquele que reúne as Duas Terras”, “A Luz divina (Rá) é o
senhor da força”. Na qualidade “d’Aquele que nasceu do deus-lua” prosseguiu a guerra de
libertação iniciada pela rainha quando atingiu a idade de comandar o exército. Uma Estela
no templo de Karnak salienta o difícil papel de Iah-Hotep, pois boa parte da corte rejeitava
a idéia de reiniciar essa guerra e evidentemente que Iah-Hotep demonstrou a sua autoridade
de Faraó governante do Egito com firmeza impôs o seu desejo.
Consta na Estela de Karnak: “Dirigi louvores à dama das margens das terras
distantes (os ilhéus do norte, no Delta), cujo nome é exaltado em todos os paises
estrangeiros, ela que governa multidões, ela que cuida do Egito com sabedoria, que se
preocupa com seu exército, que velou sobre ele, que fez regressar os fugitivos e reuniu os
dissidentes, que pacificou o Alto-Egito e submeteu os rebeldes”.
Ahmósis conquistou Avaris e perseguiu os Hicsos até a Ásia, libertando todo o
território, unificando assim as Duas Terras e tornando-se o primeiro Faraó da décima oitava
dinastia. Do Delta até a Núbia, apenas o Faraó reinava.
Como a linhagem dos libertadores era de Uaset - a cidade do centro de WAS (
aquele que as deusas têm), nome sagrado de Tebas, “a cidade das cem portas” que
maravilhou Homero, Iah-Hotep a transformou em capital do Egito livre, em substituição a
Menfis - “a balança das Duas Terras”. Iah-Hotep morreu octogenária e única mulher
egípcia a receber a condecoração destinada aos generais e soldados, “as três moscas de
ouro”. Sua tumba foi encontrada em 1859 dC com muitas jóias em ouro maciço revestido
de lápis-lazúli, colares de pérolas em fios de ouro, cornalias, turquesa e uma tiara com a
deusa-abutre Nekhbet. Três objetos simbolizavam seu poder de combatente: um punhal
com lâmina de ouro, um machado em cedro laminado a ouro, no qual se pode ver o rei, a
esfinge e o grifo vencendo seus inimigos e as três moscas de ouro que distinguiam os
generais e soldados pela sua valentia.
Iah-Hotep não era mulher de deixar os destinos do Egito em mãos de
incompetentes, confiava no filho que reinou de 1570 – 1546 ªC, mas a escolha de uma
grande esposa real não era menos importante. A escolha caiu sobre Ahmés-Nefertari -
nascida do deus-lua, a mais bela das mulheres. Ahmés-Nefertari era possivelmente de
origem pobre, pois no Egito antigo a “nobreza” não era um critério imperial para escolha de
uma rainha e foi uma regente, pois sobreviveu ao marido Ahmósis, exercendo o papel deste
durante a infância de Amenhotep I (1551-1524). Ahmés-Nefertari morreu idosa no início
do reinado de Tutmósis I (1524 – 1518) depois de assistir a coroação. Em uma coluna do
templo de Karnak foi encontrado o fragmento de uma Estela onde consta que Ahmés-
Nefertari tinha o segundo posto na hierarquia do templo com o titulo de “segundo servidor
do deus” ao qual renunciou, para fundar uma nova instituição religiosa e econômica
chamada “esposa do deus”. O rei mandou construir uma morada para a “esposa do deus” e
um registro de propriedade foi selado alem de receber terras, ouro, prata, bronze, vestes,
trigo e ungüentos. Ahmés-Nefertari também criou uma escola de sacerdotisas que tinham a
principal função manter, com seu amor, a energia do deus Amom, afim de que o amor
divino alimentasse o Egito, o que do ponto de vista do Estado era um ato mágico essencial.
Como adepta da “Casa da Vida”, na sua qualidade de “esposa do deus” tinha acesso aos
hieróglifos, sinais penetrados de poder onde se incorporavam as palavras das divindades,
que apenas o Faraó podia recitar diariamente no “naos” do templo, a parte mais secreta,
onde somente ele podia entrar, conforme o “ritual do culto divino diário”. Idealizou uma
confraria de artesãos destinada a manter e restaurar os monumentos da Necrópole de Tebas,
concretizada por Tutmósis I após a sua morte em 1524 ªC e com isso tornou-se a protetora
da Necrópole de Tebas por várias gerações de artífices e festejada junto ao santuário
edificado junto ao seu túmulo, uma rara exceção, já que os santuários eram construídos
apenas para os Faraós. Nestas festas “a barca da rainha” era puxada por um trenó e
percorria os jardins da necrópole tebana recebendo homenagens de grandes e humildes.
As representações de Ahmés-Nefertari eram negras, em cedro betumado, apesar de
sua cor branca, como atestou sua múmia. Isso se deve ao costume egípcio de associar o
principio da vida ao pântano dos papiros e os rituais de regeneração a um processo
alquímico que a alma deve passar para viver no além. Note-se que assim como o Lótus, a
flor de papiro tem suas raízes fixas no lodo do pântano cruzando a água e desabrochando
sob a luz do sol.
Com Tutmósis I iniciou-se uma nova fase na composição dos nomes de Faraó até
Tutmósis III quando se passou da influência do deus-lua combatente (Yah) para o deus-lua
Toht, interprete do deus sol (Rá). No governo de Tutmósis I seguiu-se uma época pacífica
graças ao engenho do mestre de obras Ineni, que fortificou a fronteira nordeste contra os
ataques Sírio-Palestino e as margens norte do Nilo. Essa época de paz possibilitou a
Tutmósis I desenvolver Karnak de um templo modesto à uma imensa cidade santa dedicada
à Amom, o princípio oculto, que acolheria outras divindades. Um projeto de envergadura
que elevou Tebas, a cidade que venceu os Hicsos e uniu as Duas Terras, a uma dimensão
digna da antiga Menfis. Quando Tutmósis I faleceu Hatchepsut tinha apenas quinze anos e
tornou-se a esposa real de Tutmósis II que reinou por cerca de cinco ou quatorze anos, não
havendo precisão nestas datas. Alguns supõem erroneamente que Tutmósis II teve um filho
de uma concubina aplicando critérios que poderiam ser aplicados à cultura otomana com
seus haréns, mas que era muito diferente da cultura egípcia. No período de vacância do
Faraó não correram intrigas palacianas sendo a lei automaticamente aplicada, Hatchepsut
foi designada regente enquanto seu filho, Tutmósis III com aproximadamente cinco ou dez
anos, era preparado para governar.
Relata um texto:
“Seu filho (o filho do poder divino que o fez rei e não necessariamente carnal),
instalado no lugar do rei defunto como Faraó das Duas Terras, reinou sobre o trono
daquele que o havia gerado, enquanto a sua irmã, a esposa do deus Hatchepsut, se
ocupava dos assuntos do país, estando as Duas Terras sob seu governo. A sua autoridade
foi aceita. O vale submeteu-se”.
O mestre de obras Ineni especifica:
“Hatchepsut ocupou-se dos assuntos do Egito segundo os seus próprios planos. O
país curvou a cabeça diante dela, a perfeita expressão divina vinda de Deus. Era o cabo
que serve para içar o Norte, o poste onde se amarra o sul, era o cabo perfeito do leme, a
soberana que dá as ordens, aquela cujos planos excelentes pacificam as Duas Terras
quando fala”.
Fonte: "As Egípcias" de Christian Jacq - Editora Bertand Brasil

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  • 1. As Origens de Hatchepsut A grande esposa real, regente e posteriormente Faraó teve uma atuação tão extraordinária que o imaginário romanesco se apoderou para converte-la em uma criadora de intrigas corroída pela ambição, uma devoradora de homens, um Maquiavel de saias que perseguiu o frágil Tutmósis III antes de ser perseguida por esse vingativo Faraó. Teria também suprimido alguns cortesãos para melhor dominar o reino. Em suma, uma série de horrores no mais puro estilo de Catarina de Medicci. Mas o Egito tinha outros valores, e projetar nele as nossas torpezas é um erro lamentável, além disso, sua estatura política não chocava os egípcios e se a sua notoriedade eclipsou suas precedentes se deveu à duração de seu reinado e a abundância de documentação arqueológica. Durante mais de dois séculos (1785 – 1570 ªC) os Hicsos, povo de origem asiática, unida aos povos do deserto, ocuparam o norte do Egito neste espaço de tempo conhecido pelos egiptólogos como “segundo período intermediário”. Foi um período de difícil estudo pela pobreza de documentação, contudo, o processo dinástico não se interrompe, mas não teve grandes vultos históricos. Os governantes Hicsos adotaram o título de Faraó visando sua aceitação pela população nativa, mas seus reinados foram numerosos devido aos chefes dos “clãs” estarem em constante luta pelo poder. Alguns egípcios colaboraram com os invasores, outros recusaram aceitar a sua presença, havendo interpretações variadas sobre esse convívio, alguns afirmando que os Hicsos se dobraram ao estilo de vida egípcio e outros os Hicsos não passavam de bárbaros invasores, de qualquer forma, os Hicsos não se tornaram populares. Pouco antes de 1570 ªC, a filha do rei Tebano Taa I e da rainha Tetissheri, conhecida como Iah-Hotep - “O deus-lua (Yah) está em paz (Hotep)” - deixou de tolerar essa ocupação estrangeira no Delta, que arruinava o Egito e decidiu fazer tudo para liberta- lo. No Egito antigo a lua era uma palavra masculina, era o sol da noite, muitas vezes comparada ao touro, reconhecido como um temível combatente. Foi seu esposo, o rei Sequenerê (Aquele que aumenta a bravura da Luz divina) quem assumiu o comando dos exércitos para combater os Hicsos. Na batalha Sequenerê pereceu, mas Iah-Hotep ainda tinha seus dois filhos para continuar seu intento, Kamósis (“O poder nasceu”) e Ahmósis (“Aquele em que as transformações são grandes”). Kamósis foi impulsionado pela rainha para continuar a batalha apesar do ardil dos Hicsos ao tentarem insuflar revoltas na Núbia colocando Tebas entre dois fogos, Hicsos ao norte e Nubios ao sul. Diante disso Kamósis decidiu avançar para o norte reconquistando cidade após cidade exceto Avaris, capital dos Hicsos, por outro lado, a cidade de Elefantina, ao sul, era fortificada para oferecer uma barreira aos Nubios. Quando Kamósis saiu de cena, seu irmão Ahmósis tinha dez anos e sua mãe, Iah-Hotep, era a regente. Outros nomes de seu segundo filho (Ahmósis), segundo a tradição de ser adotado vários nomes, eram: “O touro de Tebas”, “Aquele que reúne as Duas Terras”, “A Luz divina (Rá) é o senhor da força”. Na qualidade “d’Aquele que nasceu do deus-lua” prosseguiu a guerra de libertação iniciada pela rainha quando atingiu a idade de comandar o exército. Uma Estela no templo de Karnak salienta o difícil papel de Iah-Hotep, pois boa parte da corte rejeitava a idéia de reiniciar essa guerra e evidentemente que Iah-Hotep demonstrou a sua autoridade de Faraó governante do Egito com firmeza impôs o seu desejo.
  • 2. Consta na Estela de Karnak: “Dirigi louvores à dama das margens das terras distantes (os ilhéus do norte, no Delta), cujo nome é exaltado em todos os paises estrangeiros, ela que governa multidões, ela que cuida do Egito com sabedoria, que se preocupa com seu exército, que velou sobre ele, que fez regressar os fugitivos e reuniu os dissidentes, que pacificou o Alto-Egito e submeteu os rebeldes”. Ahmósis conquistou Avaris e perseguiu os Hicsos até a Ásia, libertando todo o território, unificando assim as Duas Terras e tornando-se o primeiro Faraó da décima oitava dinastia. Do Delta até a Núbia, apenas o Faraó reinava. Como a linhagem dos libertadores era de Uaset - a cidade do centro de WAS ( aquele que as deusas têm), nome sagrado de Tebas, “a cidade das cem portas” que maravilhou Homero, Iah-Hotep a transformou em capital do Egito livre, em substituição a Menfis - “a balança das Duas Terras”. Iah-Hotep morreu octogenária e única mulher egípcia a receber a condecoração destinada aos generais e soldados, “as três moscas de ouro”. Sua tumba foi encontrada em 1859 dC com muitas jóias em ouro maciço revestido de lápis-lazúli, colares de pérolas em fios de ouro, cornalias, turquesa e uma tiara com a deusa-abutre Nekhbet. Três objetos simbolizavam seu poder de combatente: um punhal com lâmina de ouro, um machado em cedro laminado a ouro, no qual se pode ver o rei, a esfinge e o grifo vencendo seus inimigos e as três moscas de ouro que distinguiam os generais e soldados pela sua valentia. Iah-Hotep não era mulher de deixar os destinos do Egito em mãos de incompetentes, confiava no filho que reinou de 1570 – 1546 ªC, mas a escolha de uma grande esposa real não era menos importante. A escolha caiu sobre Ahmés-Nefertari - nascida do deus-lua, a mais bela das mulheres. Ahmés-Nefertari era possivelmente de origem pobre, pois no Egito antigo a “nobreza” não era um critério imperial para escolha de uma rainha e foi uma regente, pois sobreviveu ao marido Ahmósis, exercendo o papel deste durante a infância de Amenhotep I (1551-1524). Ahmés-Nefertari morreu idosa no início do reinado de Tutmósis I (1524 – 1518) depois de assistir a coroação. Em uma coluna do templo de Karnak foi encontrado o fragmento de uma Estela onde consta que Ahmés- Nefertari tinha o segundo posto na hierarquia do templo com o titulo de “segundo servidor do deus” ao qual renunciou, para fundar uma nova instituição religiosa e econômica chamada “esposa do deus”. O rei mandou construir uma morada para a “esposa do deus” e um registro de propriedade foi selado alem de receber terras, ouro, prata, bronze, vestes, trigo e ungüentos. Ahmés-Nefertari também criou uma escola de sacerdotisas que tinham a principal função manter, com seu amor, a energia do deus Amom, afim de que o amor divino alimentasse o Egito, o que do ponto de vista do Estado era um ato mágico essencial. Como adepta da “Casa da Vida”, na sua qualidade de “esposa do deus” tinha acesso aos hieróglifos, sinais penetrados de poder onde se incorporavam as palavras das divindades, que apenas o Faraó podia recitar diariamente no “naos” do templo, a parte mais secreta, onde somente ele podia entrar, conforme o “ritual do culto divino diário”. Idealizou uma confraria de artesãos destinada a manter e restaurar os monumentos da Necrópole de Tebas, concretizada por Tutmósis I após a sua morte em 1524 ªC e com isso tornou-se a protetora da Necrópole de Tebas por várias gerações de artífices e festejada junto ao santuário edificado junto ao seu túmulo, uma rara exceção, já que os santuários eram construídos apenas para os Faraós. Nestas festas “a barca da rainha” era puxada por um trenó e percorria os jardins da necrópole tebana recebendo homenagens de grandes e humildes.
  • 3. As representações de Ahmés-Nefertari eram negras, em cedro betumado, apesar de sua cor branca, como atestou sua múmia. Isso se deve ao costume egípcio de associar o principio da vida ao pântano dos papiros e os rituais de regeneração a um processo alquímico que a alma deve passar para viver no além. Note-se que assim como o Lótus, a flor de papiro tem suas raízes fixas no lodo do pântano cruzando a água e desabrochando sob a luz do sol. Com Tutmósis I iniciou-se uma nova fase na composição dos nomes de Faraó até Tutmósis III quando se passou da influência do deus-lua combatente (Yah) para o deus-lua Toht, interprete do deus sol (Rá). No governo de Tutmósis I seguiu-se uma época pacífica graças ao engenho do mestre de obras Ineni, que fortificou a fronteira nordeste contra os ataques Sírio-Palestino e as margens norte do Nilo. Essa época de paz possibilitou a Tutmósis I desenvolver Karnak de um templo modesto à uma imensa cidade santa dedicada à Amom, o princípio oculto, que acolheria outras divindades. Um projeto de envergadura que elevou Tebas, a cidade que venceu os Hicsos e uniu as Duas Terras, a uma dimensão digna da antiga Menfis. Quando Tutmósis I faleceu Hatchepsut tinha apenas quinze anos e tornou-se a esposa real de Tutmósis II que reinou por cerca de cinco ou quatorze anos, não havendo precisão nestas datas. Alguns supõem erroneamente que Tutmósis II teve um filho de uma concubina aplicando critérios que poderiam ser aplicados à cultura otomana com seus haréns, mas que era muito diferente da cultura egípcia. No período de vacância do Faraó não correram intrigas palacianas sendo a lei automaticamente aplicada, Hatchepsut foi designada regente enquanto seu filho, Tutmósis III com aproximadamente cinco ou dez anos, era preparado para governar. Relata um texto: “Seu filho (o filho do poder divino que o fez rei e não necessariamente carnal), instalado no lugar do rei defunto como Faraó das Duas Terras, reinou sobre o trono daquele que o havia gerado, enquanto a sua irmã, a esposa do deus Hatchepsut, se ocupava dos assuntos do país, estando as Duas Terras sob seu governo. A sua autoridade foi aceita. O vale submeteu-se”. O mestre de obras Ineni especifica: “Hatchepsut ocupou-se dos assuntos do Egito segundo os seus próprios planos. O país curvou a cabeça diante dela, a perfeita expressão divina vinda de Deus. Era o cabo que serve para içar o Norte, o poste onde se amarra o sul, era o cabo perfeito do leme, a soberana que dá as ordens, aquela cujos planos excelentes pacificam as Duas Terras quando fala”. Fonte: "As Egípcias" de Christian Jacq - Editora Bertand Brasil