O romance conta a história de um homem estranho que caminhava cambaleante em uma rua durante uma forte tempestade. Ignorando os pedidos de ajuda, ele continuou sua marcha até cair em um barranco coberto pela enchente. Seu corpo foi completamente coberto pela lama e água.
5. Aconteceu no Século Vinte
Dedico este romance Aconteceu no Século Vinte à minha
querida esposa Neusa.
Daniel de Carvalho
Setembro de 2007
Piracicaba - SP
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7. Aconteceu no Século Vinte
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TEMPESTADE
Janeiro de 1970
Cidade de São Paulo
Um bairro da periferia
ESTAVA TÃO QUENTE naquele dia, às quatro horas da
tarde, que a cidade mais parecia um grande forno. O sol ainda
ardia insistentemente no céu azul desprovido de nuvens. O
calor estava insuportável. Aquele calor causticante que queima
e arde na pele. Numa ladeira de terra, cheia de terrenos baldios
e casas empoeiradas, crianças descalças e suadas brincavam rui-
dosamente correndo de um lado para outro sem se importar
com aquela fornalha. Cães corriam e ladravam misturando-se
às crianças em grande algazarra. Era possível ver as radiações
de calor emanando do cimento quente das calçadas e das te-
lhas de barro que cobriam as pequenas casas. Estava abafado!
O ar totalmente parado. Nenhum vento, nenhuma brisa para
refrescar. Os ramos das árvores, sem movimento, lembravam
a paisagem inerte de uma pintura. Casas, árvores, capim, tudo
estava coberto por uma fina camada de pó proveniente da ter-
ra estorricada. Algumas donas de casa cuidavam do quintal,
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outras lavavam roupas, e outras conversavam preguiçosamente
junto às cercas, removendo constantemente, com as costas da
mão, o suor acumulado na testa.
Um homem de aparência esquisita vinha descendo a ladei-
ra. Caminhava aos tropeços de forma vacilante. Alheio ao intenso
calor e a tudo que o rodeava, seu caminhar era indeciso e des-
compassado. Cada vez que seus calcanhares tocavam o solo, ele
contorcia o rosto sentindo dolorosos trancos no peito. Seus pas-
sos se alternavam entre vagarosos, como de um zumbi, e rápidos,
como de quem foge de alguma coisa. Não conseguia caminhar
em linha reta. Ora descambava para a esquerda, ora para a direita,
suportando com dificuldade o peso do corpo. Nem as mulheres
que conversavam em frente de suas casas, nem as crianças na rua,
tinham percebido até então a estranha figura daquele homem.
O límpido azul do céu vinha cedendo espaço para nu-
vens negras que se formavam ameaçadoramente. Uma brisa
morna começou então a soprar timidamente. Brisa que aos
poucos foi se tornando mais forte e mais fria.
— Parece que vamos ter chuva! — comentou, olhando
para o céu e bocejando longamente, uma dona de casa que
conversava na cerca com sua vizinha.
— É melhor recolher a roupa do varal! — lembrou a
vizinha.
— Vem pra dentro, João! — gritou outra senhora, cha-
mando o filho que brincava na rua.
Percebendo que o tempo estava prestes a mudar, as mulhe-
res da vizinhança apressaram-se a chamar os filhos para entrar.
Aquele homem continuava descendo a rua como se
nada mais existisse no mundo além dele mesmo. Seu sem-
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blante ausente não revelava seu estado interior, exceto pelas
constantes caretas de dor e de sofrimento físico. Seu olhar
focalizava somente o horizonte. As crianças notaram sua pre-
sença e pararam de brincar para observá-lo. Curiosas, tenta-
ram falar com ele. Nenhuma resposta! Talvez ele nem tivesse
tomado conhecimento delas.
O ventou passou a rugir furiosamente sacudindo portas
e janelas, ameaçando derrubar e arrastar tudo que encontrasse
pela frente. As mães, apreensivas com o temporal iminente, sa-
íam à rua insistindo com os filhos para que entrassem. Então,
elas perceberam aquele homem que parecia doente ou alcooli-
zado. Uma delas aproximou-se:
— O senhor precisa de ajuda?
Esperou por uma resposta que não veio. Insistiu e nada!
O homem continuou seu caminho ignorando-a por completo.
Como o tempo começou a piorar rapidamente, a mulher deu de
ombros e voltou correndo para sua casa. Aos poucos, as crianças
também foram se recolhendo, até que a rua ficou deserta. Exce-
to pela presença daquele indivíduo que a tudo ignorava.
O vento começou a soprar com maior violência. Nuvens
negras tomaram conta do céu e escureceu rapidamente. Fortes
rajadas de vento atingiam as casas e a vegetação ameaçando
romper vidraças e arrancar os galhos das árvores. A poeira da
rua era arremessada com força contra casas, árvores e arbustos.
Rodamoinhos se formavam aqui e acolá carregando consigo
folhas e detritos para todos os lados.
As poucas janelas que ainda estavam abertas começaram
a ser fechadas rapidamente. Os moradores se davam conta da
fúria da tempestade que se armava lá fora. Mas nada disso pa-
recia afetar aquele homem. Ele mantinha sua sofrida caminha-
da hesitante e irregular.
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Se alguém ainda o estivesse observando, teria a impressão de
que lhe era indiferente ir para frente, para os lados, parar ou prosse-
guir, ir mais depressa ou mais devagar. Teria a impressão de que ele
soubesse para onde desejava ir. Nem, se desejava ir a algum lugar!
As rajadas de vento foram se tornando cada vez mais aterra-
doras. O atrito contra as casas e outras barreiras naturais produzia
assobios fantasmagóricos como o choro de almas penadas. Janelas
e portas eram sacudidas assustadoramente. Vibravam tanto, que
as pessoas temiam que suas casas fossem arrancadas do chão.
As roupas de um varal, que a dona de casa não tivera
tempo de recolher, agitavam-se furiosamente contorcendo-se
e embaraçando-se umas às outras. Desesperada, a mulher saiu
e tentou recolhê-las. O vento quase a arrastava para longe. Os
fortes jatos de poeira machucavam-lhe o rosto, os braços e as
pernas. Seus cabelos esvoaçam enquanto ela tentava, em vão,
tirar algumas peças do varal. Os pegadores não aguentavam
mais a pressão e as peças se soltavam voando para longe em
ziguezague. A mulher, atordoada, desistiu e voltou lutando
contra o vento, até conseguir entrar e trancar a porta.
A fortíssima ventania não conseguia deter o homem,
apenas dificultava ainda mais sua marcha. Ele estava impas-
sível à fúria do vento e da poeira que chicoteavam seu rosto.
Seus lábios, narinas, cabelos e sobrancelhas estavam cobertos
de pó. Sentia o gosto da terra em sua garganta. Mas nada disso
impedia sua marcha!
A natureza parecia ter ficado de mal com os homens. Es-
curecera por completo. Não eram ainda cinco da tarde e já pa-
recia noite. Dentro das casas, o silêncio era total. Estavam com
medo! Ninguém se aventurava a abrir portas ou janelas para ver
o que acontecia lá fora. Um repentino e violento estalo sacudiu
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toda a região. O barulho da trovoada, seguido pelo clarão do
relâmpago, foi alarmante. Os moradores das casas se agacharam
instantaneamente e permaneceram encolhidos até entenderem
o que tinha acontecido. Com os corações disparados, se olha-
vam assustados sem dizer uma só palavra. O trovão fora conco-
mitante com o intenso clarão do relâmpago, o que indicava que
a descarga elétrica ocorrera muito próxima do local.
Lá fora, o homem deteve-se por uma fração de segundo,
sem procurar, entretanto, proteger-se ou localizar de onde vie-
ra o estrondo. Continuou sua marcha, indiferente e cambale-
ante. Suas faces estavam rígidas. Os olhos vidrados e o olhar
perdido. Nenhuma expressão! Nada!... Nada que revelasse o
que se passava em seu íntimo.
Os raios começaram a riscar freneticamente o céu em to-
das as direções, seguidos pelo ribombar das trovoadas. A chuva
finalmente desabou nervosa com toda a força que a natureza lhe
permitia. Foi um aguaceiro indescritível. Uma tormenta! Sugeria
um ajustar de contas entre o céu e a terra. De repente, um curto-
circuito num transformador e a consequente queda da energia
elétrica deixaram o bairro mergulhado em total escuridão.
A estranha figura não dava a mínima demonstração de pre-
tender abrigar-se. Estava com a roupa encharcada. Tinha seus pas-
sos ainda mais dificultados pela lama que se formava. Era apenas
um corpo se locomovendo na escuridão sob o violento temporal.
Mas no interior daquele corpo ocorria uma tormenta ainda mais
forte. Tão forte, que a fúria da natureza não conseguia incomodá-
lo. Seu tormento era muito superior que a tormenta externa!
Um segundo estrondo metálico, mais forte que o primei-
ro, pareceu ter acabado com o mundo. Por alguns segundos,
ficou tão claro como o dia, e o cenário se mostrou arrasador.
Casas destelhadas, cercas caídas, árvores arrancadas como se
fossem de brinquedo. A rua estava coberta de lama misturada
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com galhos, folhas e detritos de toda espécie.
Veio um terceiro estrondo que finalmente deteve o ho-
mem. Seu corpo se contorceu em profunda angústia. Seus pas-
sos começaram a tender mais para o lado esquerdo, até que suas
pernas roçaram um pequeno barranco que servia como meio-
fio. Perdeu o equilíbrio. Esforçou-se para permanecer de pé, mas
as rajadas de água e vento o empurravam furiosamente como
se quisessem liquidar de vez com o duelo. Seus joelhos não su-
portaram. Caiu de quatro e suas mãos escorregaram na enxur-
rada que corria turbulenta pelo meio-fio. Ficou com metade do
corpo imerso na corredeira. Tentou ainda levantar-se, e com
indescritível esforço, colocou-se de pé. Mas por pouco tempo.
Ao tentar reiniciar a caminhada um tremor alucinatório tomou
conta de seu corpo. Os nervos da face começaram a repuxar. Sua
testa franziu e seus olhos se arregalaram ante uma dor insupor-
tável. A tormenta externa somou-se à interna e ele finalmente
tombou. Caiu de vez! Não levantou mais. Ficou inerte junto
ao meio-fio. A turbulenta enxurrada aumentou de intensidade
passando ruidosamente por cima de seu corpo formando um
grande leque de água barrenta. Até que o encobriu totalmente.
Já não se poderia distinguir o homem sob a água e a lama.
Depois de quatro horas de temporal, a intensidade da
chuva começou a diminuir. Já eram onze da noite, quando
finalmente parou de chover. A ladeira terminava numa várzea
que ficou totalmente inundada. O dia seguinte seria um trans-
torno para toda a cidade. Dificilmente, os moradores daquela
rua conseguiriam transpor a várzea para irem ao trabalho. Mas
a chuva passou de vez. Cessaram os relâmpagos e as trovoadas.
A natureza deu-se por satisfeita. A iluminação elétrica foi res-
tabelecida. Todos finalmente puderam dormir mais tranqui-
los. O dia seguinte amanheceu lindo e ensolarado!
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MARIA FUMAÇA
Janeiro de 1945
Cidade de São Paulo
Bairro de Santana
ERA UMA SEXTA-FEIRA. O fim de tarde estava deli-
cioso, com Sol ameno e uma brisa refrescante. A Rua Alfredo
Pujol estava com pouco tráfego naquele horário. De vez em
quando, passava um automóvel ou um daqueles ônibus azuis
da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos).
Bem no meio da rua, sobre o leito de macadame, destacavam-
se os trilhos do trem que separavam as duas mãos de direção.
O jovem Edmundo e seu filho Jeremias, de cinco anos,
caminhavam pela calçada conversando animadamente. Era no-
tório o grande afeto que envolvia aquelas duas criaturas. Jere-
mias prestava atenção a todos os detalhes da rua e das casas.
O menino observava, com curiosidade, as pessoas com quem
eles cruzavam e as mulheres debruçadas nos peitoris das janelas.
Fazia mil perguntas a Edmundo, que nem conseguia responder
a uma das perguntas, e lá vinha outra. Era a vivacidade típica de
uma criança que está começando a conhecer o mundo.
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Repentinamente, um apito forte e agudo fez o menino es-
tremecer. Jeremias estancou assustado. Voltou-se e viu, com os
olhos arregalados e a respiração contida, aquilo que se aproxima-
va! Apertou a mão do pai como quem pede proteção. Seu coração
estava disparado. Tentava entender o que era aquela “coisa”.
— Pai! Que quê é aquilo que vem vindo lá no meio da rua?
— Ahh! Aquilo? — respondeu Edmundo sorrindo. — É
o trem. É a Maria Fumaça!
Jeremias, que nunca passara pela Rua Alfredo Pujol e
nunca vira um trem, continuava tenso e imóvel, olhando com
um misto de medo e curiosidade para aquela coisa barulhenta
e espalhafatosa que se aproximava.
— Vamos andando, Jeremias — disse Edmundo.
Mas Jeremias estava hipnotizado e resistia ao leve esforço
do pai em puxá-lo para que continuassem a caminhar. Vendo
que Jeremias estava tão interessado, Edmundo esperou que o
trem passasse por eles.
— Pai! Ele vai passar aqui perto!!! — exclamou Jeremias
apreensivo sem tirar os olhos da enorme composição que se
aproximava soltando grande coluna de fumaça.
A máquina apitou outra vez ao passar por Edmundo e Je-
remias, reduzindo a velocidade e começando a fazer uma curva
totalmente à direita, como se estivesse envolvendo ameaçado-
ramente o atônito Jeremias.
— O que quê o trem tá fazendo, pai?
— Está parando para os soldados que vêm da cidade,
descerem.
Jeremias não tirava os olhos do trem enquanto bombar-
deava Edmundo com perguntas. Estava muito impressionado.
Como lhe parecia imponente e assustadora a grande máquina
de ferro que suava cuspindo brasas e exalando vapor! Ele nun-
ca vira uma cena impressionante como aquela.
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As pessoas começaram a saltar das plataformas dos vagões
de madeira, mesmo antes de o trem parar por completo.
Jeremias suspirou mais descontraído.
— Pra onde os soldados vão?
— Para aquele Quartel do Exército — respondeu Ed-
mundo apontando para o outro lado da rua.
Parados perto da locomotiva, Jeremias sentia o calor da cal-
deira, o cheiro da fumaça da lenha e o cheiro do vapor. A Maria
Fumaça voltou a apitar enquanto os rangidos do atrito de ferro com
ferro acompanhavam o vagaroso reinício do movimento do trem.
— Agora vamos, Jeremias! — voltou a insistir Edmundo,
puxando levemente a mão do menino.
Mas Jeremias só cedeu e voltou a caminhar depois que
viu o último vagão desaparecer numa curva mais adiante.
— Prá onde o trem tá indo agora, pai?
— A próxima estação é a de Santa Teresinha. Depois ele pas-
sa por muitas outras até chegar à última, que é a da Cantareira.
— Aqui também é uma estação? — perguntou Jeremias
observando todos aqueles soldados atravessando a rua e en-
trando no quartel.
— Aqui não é bem uma estação. É só uma parada conhe-
cida como a Parada do Quartel.
A essa altura, os dois já estavam começando a descer a ín-
greme e curta ladeira que se iniciava bem em frente ao quartel.
— Você não está curioso para conhecer a nossa nova casa?
— perguntou Edmundo, acariciando os cabelos negros do filho.
A família de Jeremias tinha se mudado para uma nova
casa no dia anterior. Durante a mudança, o menino ficara com
seus avós, onde seu pai fora buscá-lo naquela tarde.
— A casa é bonita, pai?
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