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ISSN2238-4413
número 7 dezembro 2012/janeiro 2013
São Luís, por seus romancistas
Sebastião Moreira Duarte
Brasileiros no mundo
Álvaro Lima
O Natal ainda existe?
João Dias Rezende Filho
Calçadas de São Luís
Ricado Laender Perez
“Seu” Google é o tal!
Antôno Nelson Faria
ÍNDICE
NÚMERO 07 - DEZEMBRO 2012 / JANEIRO 2013
São Luís, por seus
romancistas
Calçadas de
São Luís
Ricardo Laender Perez
Brasileiros no mundo
Álvaro Lima
Sebastião Moreira Duarte
Apresentação
Associados
Expediente
O Natal ainda existe?
João Dias Rezende Filho
é o tal!
“Seu”
Antônio Nelson Faria
A sétima edição da revista Plural oferece aos leitores
artigoscomtemasvariados,escritosporespecialistasdo
naipe de Sebastião Moreira Duarte, dos mais assíduos
em nossas páginas, que descreve, utilizando-se da
literatura de Aluísio Azevedo, Nascimento Morais e
Josué Montello, “um passeio pelas ruas de São Luís do
Maranhão”; Ricardo Laender Perez brinda-nos com um
atualíssimo e esclarecedor escrito sobre as dificuldades
que os pedestres sofrem ao praticar uma das tarefas
mais primárias da nossa vida: andar; Álvaro Lima trata
da saga dos imigrantes brasileiros, presentes em um
número cada vez maior de países; Antônio Nelson Faria,
com seu costumeiro bom humor, apresenta-nos “Seu”
Google e as maravilhas de que é capaz; finalmente,
João Dias Rezende Filho, estreante em nossa revista,
faz uma reflexão sobre o Natal, que se aproxima, e as
adaptações que vem sofrendo com o passar do tempo.
Esta é a última edição do ano. Boas festas e muito
sucesso em 2013.
Jorge Murad
Presidente do Conselho Deliberativo
Instituto Geia
APRESENTAÇÃO
SÃO LUÍS, POR
SEUS ROMANCISTAS
Sebastião Moreira Duarte
4 / 58
Foto:AlbaniRamos
Índice
5 / 58
Índice
Que outra cidade no Brasil terá sido tão celebrada, em
prosa e verso, quanto São Luís do Maranhão? O Rio de
Janeiro, talvez, por muito tempo capital política do País
e, ainda hoje, centro de referência número um da cultura
nacional. Talvez a Bahia, a cidade do Salvador, sobretudo
através da recriação imaginária de Jorge Amado. O Recife,
quem sabe...
Que motivos encontraram, na capital maranhense, quan-
tos por ela se encantaram, desde quando aqui se estabe-
leceram os primeiros colonizadores? Falando bem, como
Claude d’Abbeville e Simão Estácio da Silveira (um, dan-
do por certo que esta era a melhor terra dos domínios
portugueses, o outro, afirmando que por esses lados do
mundo Deus inaugurara o Paraíso Terrestre), ou falando
mal (conforme era o gosto do Padre Antônio Vieira, para
quem o Maranhão e seus colonos faziam uma amostra do
inferno, deixada na terra por Deus como aviso prévio aos
pecadores), fato é que a cidade de São Luís poderia ser re-
constituída, sem dificuldade, em sua paisagem física e so-
cial, pelo que dela registraram os seus homens de letras,
apagados quando fossem outros os vestígios que a distin-
guem como das mais documentadas entre as criações ur-
banas em chãos do Brasil.
Mérito deles, escritores, desde as ficções do Padre Vieira,
até Aluísio Azevedo e Josué Montello? Sim, sem dúvida,
dado o pendor para as artes da escrita exibido pelos natu-
rais da terra e por outros mais que para cá manobraram
o próprio destino, a partir de João de Barros, donatário da
Capitania do Maranhão, gramático e primeiro romancista
da língua portuguesa. Certo, porém, a cidade mesma, por
aliciamentos que remontam à memória de sua gente, sua
antropologia, sua arquitetura, sua geografia, escancara-se
como obra de arte ao sol do equador, cenário e convite a que
a imaginação se acenda, e acrescente, à riqueza da histó-
ria e de seu panorama largo, o teatro da invenção literária,
cujas figuras nos levam ao reencontro dos atores reais que
fizeram os quatro séculos da Cidade quatrocentona.
É o que pretendemos demonstrar com esta recolta de
trechos de romances maranhenses, que nos propiciarão o
prazer de um passeio pelas ruas de São Luís do Maranhão,
em meio às quais haveremos de flagrar, transcriados para
a letra impressa, a formação civilizatória de nossa gente.
Pode dizer-se que o prestígio da literatura maranhense faz
paralelo à presença de São Luís nas páginas de nossa fic-
ção. Alguns dos nossos melhores narradores – e cujo nome
corre também entre os maiores do Brasil – encontraram
aqui o meio e modo exatos para dar vida e movimento às
suas criaturas ficcionais. E veja-se que nos restringimos à
ficção extensa e passamos ao largo dos numerosos poetas
de que o Maranhão tem sido pródigo.
Neste primeiro segmento, trazemos amostras de três dos
nossos melhores romancistas: Aluísio Azevedo (1857-1913),
Nascimento Morais (1882-1958) e Josué Montello (1917-
2006), em cujas páginas é possível acompanhar, como em
sequência cronológica, a presença do negro em nosso am-
biente e sua contribuição para moldar, com feições singu-
lares, o modus vivendi dos maranhenses.
Foto:AlbaniRamos
6 / 58Índice
Jornalista,caricaturista,romancista,
inaugurou no Brasil a escola naturalis-
ta, de que foi o melhor representante.
Trocou depois a carreira literária pela
diplomacia, tendo servido em países
da América Latina, Europa, e Japão.
Fundador da Academia Brasileira de
Letras. Faleceu em Buenos Aires. Dei-
xou obra numerosa, de que se desta-
camosromancesOmulato(1881),Casa
de pensão (1883) e O cortiço (1890). O
mulato, objeto de escândalo e polêmica
quando saiu em São Luís, foi alterado,
em partes do texto e da trama, na edi-
ção do Rio de Janeiro (B. L. Garnier,
1889), que passou a ser a mais conhe-
cida. Demos preferência à edição ma-
ranhense dessa obra (Maranhão, Tipo-
grafia d’O País), de que transcrevemos
o primeiro capítulo, com a atualização
da ortografia, da pontuação e de algu-
mas palavras: dois por dous; noite, por
noute; coisa, por cousa; infantaria, por
infanteria, etc.
ALUÍSIOAZEVEDO
(1857-1913)
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Índice
“Era uma dia abafadiço e aborrecido.
A cidade de São Luís do Maranhão parecia
adormecida em um forno quente – as paredes
tinham reverberações argentinas; as pedras
das ruas escaldavam; as vidraças faiscavam
ao sol, como enormes diamantes; as folhas das
árvores nem se mexiam; as carroças d’água,
pesadas e ruidosas, passavam com grandes e
sonoros estalos nas pedras da rua, e os agua-
deiros, em mangas de camisa e pernas arrega-
çadas, invadiam sem cerimônia as casas para
encher as banheiras e os potes.
Em certos pontos da cidade não se via viva
alma na rua – estava tudo concentrado, ador-
mecido; só os pretos faziam as compras para
o jantar ou andavam no ganho.
A Praça d’Alegria tinha um aspecto fúne-
bre e hipocondríaco – estava solitária, triste;
de um casebre miserável, de porta e janela,
ouviam- se gemer armadores enferrujados de
rede, e uma voz tísica e aflautada de mulher
cantar em falsete A gentil Carolina era bela;
de um outro lado uma preta velha, vergada
por um imenso tabuleiro, sujo, seboso, cheio
de sangue coalhado e coberto por um enxame
de moscas, apregoava em tom muito arrasta-
do e melancólico: Fígado, rins e coração! Era
uma vendedeira de fatos de boi. As crianças
nuas, com as perninhas tortas pelo costume
de cavalgar os quadris maternos, com as ca-
beças avermelhadas pelo sol, a pele cresta-
da, os ventres salientes e amarelos, corriam e
guinchavam, empinando papagaios de papel.
Um ou outro branco, levado pela necessidade
de sair, atravessava a rua, suado, vermelho,
afogueado, com o enorme chapéu de sol aber-
to. Os cães, estendidos nas calçadas, tinham
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Índice
gemidos humanos, sensuais e movimentos
irascíveis, mordiam freneticamente o ar, que-
rendo morder os mosquitos. Ouvia-se apregoar
ao longe “Arroz de Veneza, mangas e limões.”
As quitandas vazias fermentavam um cheiro
acre de sabão da terra e aguardente; o qui-
tandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava
seu aborrecimento pesado e morrinhento, aca-
riciando o enorme pé descalço e espalmado.
Da praia de Santo Antônio enchia a cidade
um som monótono e invariável de uma buzi-
na, que anunciava peixe; para lá convergiam,
apressadas e cheias de interesse, as peixei-
ras, negras, com os tabuleiros na cabeça, re-
bolando os grandes quadris trêmulos e as te-
tas opulentas.
A Praia Grande e a Rua da Estrela contras-
tavam com o resto da cidade – era a hora do
movimento comercial; cruzavam-se em todas
as direções homens apressados e vermelhos;
pretos no carreto e caixeiros fumando cigarros
de papel ordinário; avultavam os paletós-sa-
cos de brim pardo, marcados nas espáduas e
nos sovacos por grandes manchas de suor. Os
corretores de escravos examinavam os pretos
e moleques, revistando-lhes os dentes, os pés,
as virilhas, fazendo-lhes perguntas sobre per-
guntas, e como bons entendedores da merca-
doria, batiam-lhes com a biqueira do chapéu
nosombrosenaspernas,experimentando-lhes
o vigor da musculatura, como se estivessem a
comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo
das amendoeiras ou nas portadas dos arma-
zéns, discutia o câmbio, o preço do algodão,
a taxa do açúcar, a tarifa dos gêneros nacio-
nais; os volumosos comendadores resolviam
negócios, faziam transações, perdiam, ganha-
vam, tratavam de embarrilar uns aos outros
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Índice
com boa gíria comercial, gestos amigáveis e
chalaças confiadas. Os leiloeiros cantavam os
preços das mercadorias com grande e afetado
abrimento de vogais – diziam mal rais em vez
de mil réis; nas portas dos leilões aglomera-
vam-se os que queriam comprar e os simples
curiosos. Corria um sussurro baixo e reles de
feira.
O leiloeiro tinha piscos d’olhos significati-
vos. De martelo em punho, entusiasmado, o
ar teatral, mostrava com o braço erguido um
cálice contendo a amostra da cachaça ou,
comicamente acocorado, esbrocava com o fura-
dor os paneiros de farinha e de milho E, quan-
do chegava a vez de vender, repetia, gritando
amiudadas vezes, o preço da mercadoria, e
batia por fim com grande barulho na pipa de
água-ardente ou no lote de caixões de batatas,
arrastando muito a voz em um tom cantado e
estridente.
Viam-se deslizar imponentemente pela praça
os monstruosos ventres dos capitalistas; en-
contravam-se cabeças escarlates e descabela-
das pingando suor por debaixo do chapéu alto
de pelo – o sorriso de proteção, a boca dilatada
pelo calor, a perninha lépida e suada na calça
de brim de Hamburgo.
Havia uma atividade convencional, porém
cheia de movimento, fogo e agitação; até os
ricos ociosos, os caixeiros que faziam cera e
os simples curiosos afetavam preocupação e
pressa.
A varanda do sobrado de Manuel Pescada,
uma varanda larga e sem forro no teto, mos-
trando as ripas e os caibros que sustentavam
as telhas, tinha um aspecto pitoresco, com
sua vista para o rio Bacanga, suas rótulas
11 / 58
Índice
pintadas de verde-paris, toda aberta para o
quintal onde, à mingua de sol, mirravam-se
duas pitangueiras anêmicas e esgalhadas, e
passeava solenemente um pavão da terra. As
paredes, barradas de azulejos portugueses e
forradas para cima de papel pintado, mostra-
vam nos grupos repetidos de zuavos franceses
e chins caricatos, alguns lugares sem tinta,
cujas manchas brancas lembravam joelheiras
de calças surradas. Em uma das paredes la-
terais um velho armário de jacarandá polido,
bem cuidado, com as vidraças muito lustradas
a cré, expunha as pratas e as porcelanas de
gosto moderno; a um canto uma máquina de
costura de Wilson, das primeiras que vieram
ao Maranhão, dormia esquecida na sua cai-
xa de pinho envernizado; nos intervalos das
portas simetrizavam ridiculamente litografias
vulgares representando estudos de Julien; em
uma das cabeceiras da sala um relógio de ar-
mário pulsava monotonamente os segundos e
apontava flegmaticamente duas horas da tar-
de.
Sob a claridade reverberante que vinha do
quintal, permaneciam ainda a louça do almoço,
a garrafa oitavada com um resto de Colares e
a toalha branca, cheia de côdeas de pão e pin-
gos de chá, onde as moscas banqueteavam-se
com grande zunido, prendendo-se nas facas
sujas de manteiga.
De uma gaiola pendurada chilrava um sa-
biá.
Fazia preguiça estar ali – a viração do Ba-
canga refrescava o ar abafado da varanda e
criava no ambiente um tom morno, que enerva-
va os sentidos; sentia-se o quebranto dos dias
inúteis, uma vontade de abrir a boca e esticar
as pernas.
12 / 58
Índice
De fronte, do outro lado do Bacanga, a ve-
getação do Anjo da Guarda convidava a uma
sesta descansada e feliz das mangueiras, dei-
tado no capim. As árvores tinham estremeci-
mentos voluptuosos e pareciam abrir de longe
os braços, provocando amores.
– Então, que me respondes, Ana Rosa? – dis-
se Manuel, estendendo-se mais na cadeira à
cabeceira da mesa. – Olha, filha! Sabes que
não te contrario, desejo este casamento, mas
em primeiro lugar quero saber se é de teu gosto.
Vamos... fala!.
E voltando-se para o interior da casa: – En-
tão esta mesa não se levanta hoje, moleque?!
Ana Rosa não respondeu, continuou assen-
tada ao lado do pai, distraída a mexer com
uma colherzinha os resíduos de chá e açúcar
no fundo da xícara.
Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por
Manuel Pescada, era um português de uns cin-
quenta anos, forte, vermelho, bom e sadio, ati-
lado para o comércio e amigo do Brasil e dos
brasileiros; dava-se à leitura constante dos
jornais portugueses; em rapaz decorara res-
peitosamente Camões e não ignorava de todo
a existência do Garrett; sempre fora fanático
pelo Marquês de Pombal, de quem sabia vá-
rias anedotas e tinha uma assinatura no Ga-
binete Português de Leitura, que chegava para
ele e para a filha, que em compensação era
uma devoradora de romances.
Manuel Pedro fora casado com uma senho-
ra brasileira, de Alcântara, chamada Mariana,
muito virtuosa, rigorosíssima em coisas de re-
ligião, como a maior parte das senhoras brasi-
leiras. Quando morreu deixou em legado seis
escravos para Nossa Senhora do Carmo.
A filha ficou com dez anos e Manuel Pedro
13 / 58
Índice
desamparado; foi uma época triste para am-
bos. Moravam neste tempo no Caminho Gran-
de, em uma casinha térrea, para onde a molés-
tia da mão de Ana Rosa os levara em busca de
novos ares; porém Manuel, que era negociante
e tinha o seu armazém na Praia Grande, mu-
dou-se logo para o sobrado em que o vimos na
rua da Estrela, e em cujos baixos há dez anos
prosperava.
Para não ficar só com a filha que estava se fa-
zendo uma mulher, convidou a sogra, D Maria
Bárbara, a fazer companhia à neta e mesmo
para guiá-la, encaminhá-la bem. – Um homem
nunca servia para essas cousas e se fosse a
chamar uma preceptora – o que não diriam por
aí?... No Maranhão falava-se de tudo. D. Ma-
ria Bárbara que viesse – estaria como em sua
casa, bom quarto, boa mesa e plena liberdade.
A sogra aceitou e lá foi, carregando seus cin-
quenta e tantos anos, alojar-se em casa de
Manuel com seus moleques, suas crias e os
cacaréus ainda do tempo do defunto marido.
Mas em breve, o bom português arrependeu-
-se da má aquisição que fizera. – D. Maria Bár-
bara, apesar de uma senhora piedosa, de não
sair do quarto sem estar bem penteada; sem
faltar-lhe nenhum dos cachinhos de seda pre-
ta, com que emoldurava disparatadamente o
rosto pálido e enrugado, apesar de seu grande
fervor religioso e das missas que absorvia quo-
tidianamente, saíra-lhe má dona de casa – era
uma víbora! Dava nos escravos por hábito e
por gosto, só falava a gritar e quando punha-
-se a ralhar – Deus rios acuda! –, incomoda-
va toda a vizinhança. Enfim, era insuportável,
mas o que se pode chamar insuportável!
Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das
velhas maranhenses criadas na fazenda –
14 / 58
Índice
tratava muito dos avós, eram quase todos
portugueses, muito orgulhosa, muito cheia de
escrúpulos de sangue; sempre que falava nos
pretos dizia – os negros, os sujos! e quando
se referia a um mulato, dizia – o cabra! Fora
sempre devota; em Alcântara tivera uma ca-
pela de Santa Bárbara e obrigava a escrava-
tura a rezar todas as noites, em coro, com os
braços abertos, às vezes algemados. Falava
com grandes suspiros do marido – do seu João
Hipólito –, um português fino, de olhos azuis e
cabelos louros.
Este João Hipólito fora brasileiro adotivo e
alcançara boa posição oficial na Secretaria do
Governo; morreu como posto de coronel.
Maria Bárbara tinha grande admiração pe-
los portugueses, falava deles com entusiasmo
erótico, preferia-os aos brasileiros. Quando a
filha foi pedida por Manuel Pedro, então princi-
piante no comércio, dissera: – Bom! Ao menos
tenho certeza de que é branco!
Porém Manuel nunca fora amado pela mu-
lher; a virtude fizera dela esposa dedicada,
mãe extremosa, mas fria para o marido, foi tal-
vez mártir.
A mãe de Ana Rosa dedicara-se desde os
quinze anos, com o entusiasmo do primeiro
amor, ao nosso talentoso José Cândido de Mo-
raes e Silva, conhecido popularmente pelo Fa-
rol, mas não lograra casar com ele, nem só em
razão das perseguições políticas que tão cedo
atribularam a pequena vida dessa bela crian-
ça, como também pela oposição inflexível que
tal ideia encontrou na família de Mariana.
Entretanto dizia ela amargamente – tinha
sua felicidade presa à sorte do desventurado
maranhense. É que sentira-lhe a mágica in-
fluência que os homens superiores exercem
15 / 58
Índice
sobre a mulher – vira-lhe os olhos claros e inte-
ligentes, onde o amor deveria de ter um reflexo
especial, ouvira a música que ele, nos serões
de família, arrancava de seu violão inspirado
e os bonitos versos que compunha para a na-
morada –, naquela fronte tão nova e já tão im-
ponente admirava a virilidade do talento revo-
lucionário e o heroísmo brilhante de um gênio
superior à época em que floresceu! E tudo isso,
como é muito natural, arrebatava-a para ele
com todo o ardor do primeiro desejo.
Quando o grande herói morreu, na Rua dos
Remédios, vítima de seu talento e de sua leal-
dade, escondido, perseguido, cheio de neces-
sidades, odiado, temido e adorado, tendo ape-
nas vinte e cinco anos, a pobre senhora deitou
luto e nunca mais se enfeitou. – Não tinha gos-
to para nada – dizia. Ficou mais feia e entris-
teceu até morrer, três anos depois.
Ana Rosa era nesse tempo uma criança,
porém a mãe ensinara-lhe a respeitar e com-
preender a memória do talentoso revolucioná-
rio, cujo nome despertava ainda entre os portu-
gueses a raiva antiga do motim de 7 de agosto
de 1831.
– Minha filha – disse a mãe de Ana Rosa
em vésperas da morte –, nunca te deixes casar
sem sentires muito amor pelo homem que te
destinarem. Pensa bem no que te estou dizen-
do – não cases no ar! O casamento, filha de
minh’alma, deve ser sempre a consequência
de duas inclinações – a gente se deve casar
porque ama, e nunca ter de amar porque se
casou; se fizeres o que te digo, serás feliz! –
concluiu, pedindo à filha que prometesse, no
caso que viessem a obrigá-la a casar, de ar-
rostar tudo, tudo, para evitar semelhante coi-
sa, principalmente se ela já gostasse de outro;
16 / 58
Índice
e então por esse outro, sim – fizesse sacrifícios,
dedicasse-lhe toda a sua vida, porque isso era
a verdadeira virtude.
E foram estes os conselhos que a infeliz mu-
lher de Manuel legou à filha. Ana Rosa não os
compreendeu logo, decerto, nem tão cedo pro-
curou compreendê-los, porém tão ligados esta-
vam eles à morte da mãe, que não lhe acudia
esta à memória sem as palavras da moribun-
da.
Manuel Pedro, apesar de bom, era um des-
ses homens pouco susceptíveis aos sentimen-
tos muito delicados; seria um bom esposo para
outra mulher, nunca compreendeu porem a
que lhe coube, e é de supor até que chegasse
a aborrecê-la. Quando viu-se viúvo não sentiu,
a despeito do coração, mais do que a falta de
uma companheira com quem já se tinha habi-
tuado; contudo não pensou em tornar a casar,
convencido que o afeto da filha lhe chegaria de
sobra para amenizar canseiras do trabalho, e
os bons serviços da sogra para zelar pela de-
cência de sua casa e pelos buracos de suas
meias.
Ana Rosa cresceu, como se pode calcular,
entre os cuidados insuficientes do pai e o mau
gênio da avó; ainda assim aprendera a gra-
mática, lera alguma coisa, sabia rudimentos
do francês e tocava modinhas sentimentais ao
violão e ao piano. Era porém inteligente, tinha
intuição da virtude, bonito modo e lamentava
não se ter instruído mais. Conhecia muitos tra-
balhos de agulha, bordava bem e tinha uma
voz boa que era um gosto! Em pequena servira
várias vezes de anjo da verônica nas procis-
sões da quaresma; e os cônegos da Sé gaba-
vam-lhe o metal da voz e davam-lhe grandes
cartuchos de amêndoas de mendubim, muito
17 / 58
Índice
enfeitados com suas pinturas toscas a goma
arábica e tintas de botica.
Ana Rosa, nessas ocasiões, sentia-se ra-
diante, com as faces rubradas de carmim, os
cabelos retorcidos em cachos artificiais, gran-
de roda no vestido curto como uma dançarina
francesa. E muito concha, ufana de seus ga-
lões e de suas asas de papelão e escomilha,
caminhava triunfante e feliz, entre as irman-
dades, segurando a extremidade de um lenço
que lhe dava a segurar o pai. Isto eram pro-
messas feitas pela mãe ou pela avó em dias
de grande enfermidade.
Ana Rosa crescera bonita de formas, sadia,
tinha os olhos pretos e os cabelos castanhos de
Mariana e puxara os dentes fortes e as rijezas
do pai. Aos vinte anos era o santo Antoninho
de casa – senhores e escravos tinham-na por
senhora –, mandava, resolvia a seu bel-prazer.
Com a puberdade apareceram-lhe caprichos
românticos e fantasias poéticas –gostava dos
passeios ao luar, das serenatas, tinha um
quarto de estudo, uma variada biblioteca de
romancistas e poetas, à cabeceira da mezinha
de trabalho o retrato do Farol, que herdara de
Mariana, sobre a estante um Paulo e Virgínia
de biscuits. Lera com entusiasmo a Graziella e
o Raphaël de Lamartine, e à noite, antes de dor-
mir, procurava construir o sorriso que possuía
a procitana quando fitava o amante. Praticava
bem com os pobres, adorava os passarinhos
e não podia ver matar junto de si urna borbo-
leta. Um bocadinho supersticiosa – não que-
ria as chinelas emborcadas debaixo da rede
e aparava os cabelos durante o quarto-cres-
cente da lua –, não porque acreditasse nessas
coisas! justificava-se ela – mas fazia porque
os outros faziam. Tinha sobre a cômoda um
18 / 58
Índice
cromo litográfico de Nossa Senhora dos Remé-
dios e rezava-lhe todas as noites. Dava a vida
por um passeio ao Cutim, e quando soube que
se projetava uma linha férrea de bondes até lá
teve uma alegria nervosa e feliz.
Feitos os dezenove anos, Ana Rosa pouco e
pouco principiara a descobrir em si sintomas
esquisitos e crescentes, sentiu que qualquer
transformação importante se operava em seu
espírito e em seu corpo – sobressaltavam-na
tristezas infundadas e temores ideais. Um dia
acordou mais preocupada – assentou-se cis-
mando na rede, e, com grande espanto, repa-
rou que seus membros se tinham arredonda-
do, que a linha curva suplantara a reta e que
suas formas eram inteiramente de mulher –,
veio-lhe um contentamento estranho e violen-
to, porém pouco depois entristeceu – sentiu-se
só, não lhe bastava o amor do pai e da avó,
queria uma afeição mais exclusiva, um afeto
mais dela. Lembrou-se então de seus namora-
dos, riu-se – Coisas de criança! Aos doze anos
namorara um estudante – conversaram três ou
quatro vezes nas salas do pai e supunham-se
deveras apaixonados um pelo outro; o estu-
dante seguiu para a Escola Central da Corte e
ela nunca mais pensou nele. Depois foi um ofi-
cial de Marinha – como lhe ficava bem a farda!
Que moço engraçado! Bonito! E como sabia se
vestir!... Ana Rosa chegou a principiar a bor-
dar um par de chinelas para oferecer ao gentil
namorado, antes porém de terminar o primeiro
pé, já ele tinha desaparecido na corveta Baia-
na. O outro, um empregado do comércio – bom
rapaz, cuidadoso da roupa e das unhas. Pa-
recia que ainda o estava a ver: todo metódico,
escolhendo palavras para pedir-lhe a subida
honra de dançar com ela uma quadrilha no
19 / 58
Índice
Clube União. Ah tempos, tempos! E não queria
mais pensar nisso: criancices! Criancices! Hoje
ela queria, mas era o marido, o seu! O verda-
deiro! O legal homem de sua casa! O dono de
seu corpo, a quem ela pudesse amar aberta-
mente como amante e obedecer como escrava.
Queria se dedicar a alguém, sentia necessida-
de de aplicar sua atividade em governar uma
casa e educar muitos filhos.
E com estas ideias vinha-lhe sempre um arre-
piozinho de febre – ficava excitada, idealizan-
do um homem forte, corajoso, com um bonito
talento, e capaz de se matar por amor dela! E
debuchava em seus sonhos agitados um vulto
confuso, que galgava a galope precipícios me-
donhos para chegar onde ela estava – merecer-
-lhe um sorriso, uma esperança de casamento.
E sonhava o noivado – um banquete esplêndi-
do e um mancebo formoso e impaciente, a seu
lado, queixando-se com um olhar terno e varo-
nil da demora dos convivas.
Depois via-se dona de casa – pensando mui-
to nos filhos, sonhava-se feliz, independen-
te, presa ao ninho e às cadeias do marido, e
imaginava umas criancinhas louras, engraça-
das, dizendo ternas asneirinhas, chamando-a
mamã. – Como devia ser bom!... Como havia
mulheres que se não casavam!... Não podia
admitir o celibato, o convento, principalmente
para a mulher. Um homem, vá! Viveria triste,
só! Mas enfim sempre era um homem! Teria
outras distrações! Mas uma mulher! Que me-
lhor futuro poderia ambicionar que o casamen-
to? Que melhor prazer do que a maternidade!
Que melhor companhia do que a dos filhos,
esses diabinhos tão feiticeiros?! Além de tudo
isso – ela sempre gostara muito de crianças –,
pedia-as emprestado às mães e as demorava
20 / 58
Índice
quanto fosse possível em sua companhia; ti-
nha um afilhado de dois anos, para quem cosia
camisas, com paciência, boa vontade, gostava
de vestir bonecas e, quando alguma de suas
amigas se casava, Ana Rosa sempre guarda-
va um cravo do casamento, com muita fé – pre-
gava-o no vestido com os alfinetes dourados
da noiva, e, depois de tudo isto, suspirava lon-
gamente, com o desânimo do viajante que já
se sente cansado e não avista ainda o lar.
Mas o noivo onde estava que não vinha?!
Esse mancebo tão ardente, tão romântico,
tão apaixonado, por que não se apresentava?
Dos homens que conhecia nenhum decerto po-
dia ser! E não obstante ela amava! A quem?
Não sabia, mas amava! Sim! Fosse um ideal,
fosse o que fosse, mas ela sentia estremeci-
mentos pensando nele, chorava, ria, estorcia-
-se, soluçava e chamava-se infeliz, desgraça-
da.
Os dias foram se passando no aborrecimento
de seu celibato e nada!... Ana Rosa principiou
a emagrecer a olhos vistos, dormia menos, à
mesa mal tocava nos pratos.
– Ó pequena! Tu tens alguma coisa! – disse-
-lhe um dia o pai, já maçado com o ar doentio
da filha. – Não me pareces a mesma! Que é
isso, Anica?!
– Não era nada!...
E Ana Rosa sobressaltava-se, como se tives-
se cometido uma falta. – Andaço! Incômodo de
nervos! – Não era coisa que valesse a pena!...
E chorava.
– Olha! Aí temos! Agora estás a chorar! Nada!
É preciso chamar o médico!
– Chamar o médico?! Ora, papai! Não vale a
pena!
E tossia. – Que a deixassem em paz! Que
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não a estivessem apoquentando com pergun-
tas!...
E tossia mais, sufocada.
– Vês?! Estás achacada! Levas nesse chrum
chrum! chrum, chrum!
E arremedava a tosse da filha: – E é só. – Não
vale a pena! Não precisa chamar o médico! –
Não, senhora, com moléstias não se brinca!
O médico receitou banhos de mar na Pon-
ta d’Areia. Foi um tempo delicioso para Ana
Rosa os três meses que passou lá – os ares da
costa, os banhos de choque, os passeios a pé
abriram-lhe o apetite e trouxeram-lhe algum
sangue; ficou mais forte, chegou a engordar.
Na Ponta d’Areia travara uma nova amiza-
de: D. Eufrasinha. Era viúva de um oficial do
Quinto d’Infantaria, que morreu na guerra do
Paraguai.
Eufrásia era muito romântica – falava, reque-
brando-se, do marido e poetizava-lhe a curta
história. – Dez dias depois de casado partira
para o campo de batalha e, no denodo de sua
coragem, fora atravessado por uma bala de ar-
tilharia, morrendo a balbuciar com o lábio en-
sanguentado o nome da esposa estremecida!
E com um enorme suspiro histérico a viúva
concluía, pesarosa: – Que conhecera prazeres
nesta vida apenas dez dias e dez noites!...
Ana Rosa lamentava muito a amiga e ou-
via-lhe de boa-fé as frioleiras, com atenção e
recolhimento, cheia de ingênua sinceridade.
Identificava-se facilmente com a história sin-
gular daquele casamento tão triste e simpático
– por mais de uma vez chegou a chorar pela
morte do moço oficial de infantaria.
D. Eufrasinha ensinou a sua nova amiga
muitas cousas que esta ignorava –instruiu-a
em certos segredinhos do casamento; pode-
-se dizer que deu-lhe lições de amor. Falou-lhe
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muito dos homens – como a gente devia lidar
com eles; ensinou-lhe a conhecer as manhas
dos namorados; quais eram os tipos preferí-
veis, o que queriam dizer olhos mortos, beiços
grossos, nariz comprido.
Ana Rosa ria-se – não ligava importância a
essas cousas – bobagens! – dizia ela com um
sorriso de dúvida. Contudo foi insensivelmente
reconstruindo seu ideal pelas informações de
Eufrásia – fê-lo mais material, mais homem,
mais possível de ser encontrado, e, pensan-
do só no corpo, corrigiu-o, reformou-o, poliu-o,
deu-o por pronto, e então amou-o mais, muito
mais!, tanto como si fosse uma realidade.
Desde então começou a servir-se desse ideal
como base de suas observações concernentes
ao homem: era ele o termo de suas compara-
ções, a bitola por onde media o merecimento
de cada sujeito que lhe aparecia. E se o des-
graçado não tivesse o nariz, o olhar, o gesto,
o todo enfim, igual ou pelo menos semelhante
à bitola, podia perder a esperança de cair nas
graças da filha de Manuel Pedro.
Eufrasinha mudou-se para a cidade. Ana
Rosa já lá estava. Visitaram-se de parte a par-
te – confidenciaram. E na intimidade de suas
confidências acharam consolo mútuo para o
celibato de uma e para a viuvez da outra.
Havia, empregado no armazém do pai de
Ana Rosa, um rapaz português, de nome Luís
Dias – muito ativo, econômico, discreto, traba-
lhador, boa letra e muito estimado da praça.
Contavam dele invejáveis partidas de vive-
za comercial, e ninguém se lembrava de dizer
mal do Dias. Era um desses tipos incapazes
de inspirar a alguém qualquer sentimento bem
definido e dos quais em geral se diz: – É um ho-
mem inofensivo. Quase sempre que falavam a
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respeito dele diziam: – Coitado! E este coitado
não tinha uma razão de ser, porque ao Dias
nada faltava – tinha casa, comida, roupa lava-
da e engomada e cobres, mas é que o diabo do
homem inspirava compaixão com o seu eterno
ar de piedade, de súplica, de humilhação; fa-
zia pena, incutia dó em quem o visse tão sub-
misso, tão passivo! A graça é que ninguém se
lembraria de levantar sobre ele o braço sem
sentir a repugnância da covardia.
Outros elogiavam-no. – Que não fossem atrás
daquele ar modesto, porque ali estava um em-
pregado de truz! Muito hábil! inteligente! Ex-
pedito! Um entusiasta chamou-o de uma feita
– gênio privilegiado do comércio! E a fórmula
ficou! Respeitavam-no.
Vários negociantes ofereciam-lhe boas van-
tagens para deixar a casa de Manuel; o Dias
recusava sempre, de cabeça baixa, humilde. E
tão firmemente se negou às repetidas propos-
tas, que todo o comércio, dando como certo o
casamento dele com a filha do patrão, elogiou
a escolha de Manuel, e profetizou ao novo ca-
sal um futuro de riqueza. – Foi acertado, foi! –
diziam com o olhar fito.
De fado Manuel Pedro via naquela criatura,
trabalhadora e passiva como um boi de canga,
e econômico como um usurário, o homem mais
habilitado para fazer a felicidade da filha. Que-
ria-o para genro – apreciava-o, louvava-lhe a
morigeração e contava a toda gente que o seu
Dias retirava por ano apenas a quarta parte
do ordenado. – Deve ler seu pecúlio! Deve! A
mulher que o quisesse levava um bom marido!
Aquele vem a possuir alguma cousa! – dizia
ele com convicção.
E pouco a pouco foi se habituando a julgá-lo
da família e a estimá-lo como tal. Só faltava que
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a filha se inclinasse, se resolvesse, mas ela
– qual! Tinha-lhe até como que repugnância –
não o queria ver com seu cabelo curto, o bigode
convencionalmente raspado, os dentes sujos,
os movimentos acanhados e reles; a exagera-
da economia do Dias causara-lhe tédio. – Um
somítico! – dizia ela, franzindo o nariz.
Um dia o pai falou-lhe no casamento.
– Com o Dias?!... – perguntou espantada.
– Sim.
– Ora, papai!
E soltou uma rizada.
Manuel não se animou a dizer mais nada,
porém à noite contou tudo em particular ao
compadre, um amigo velho, íntimo da casa – o
cônego Diogo.
– Optima saepe despecta! – sentenciou o ami-
go. – É preciso dar tempo ao tempo, seu com-
padre! A coisa há de ser; deixe estar.
No entanto o Dias não desanimava, espera-
va pacificamente, calado, sem erguer os olhos,
cheio de resignação e humildade.”
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Professor, crítico, polemista, poeta,
ativista intelectual, e, sobretudo, jor-
nalista, José do Nascimento Moraes
foi “sem exagero o maior e mais fecun-
do polígrafo maranhense deste sécu-
lo (XX)” (Nauro Machado). Sua obra
publicada inclui Puxos e repuxos, crí-
tica (1910); Vencidos e degenerados,
romance (1915; republicado, junto
com Contos de Valério Santiago – São
Luís: Secma/Sioge, 1982 ); Neurose
do medo, crônicas (1923; republica-
do em 1982, junto com 100 artigos
do autor – São Luís: Secma; Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira), entre
outros títulos.
O texto abaixo foi extraído das pri-
meiras páginas de Vencidos e degene-
rados, (livro que, como diz Jean-Yves
Mérian, “mais que um romance, é
uma crônica da vida em São Luís do
Maranhão em fins do século XIX e no
começo do século XX.” Observe-se
que a personagem principal do rela-
to, José Maria Maranhense, foi um
dos pseudônimos do Autor (Zé Mara-
nhense). O texto foi levemente revis-
to, além de atualizada a ortografia).
NASCIMENTO
MORAES
(1882-1958)
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Às oito horas da manhã do dia 13 de maio de
1888, a residência de José Maria Maranhen-
se, à Rua São Pantaleão, uma meia-morada de
bons cômodos, regurgitava de gente. Ele, Ma-
ranhense, membro saliente do Clube Abolicio-
nista Maranhense, era um dos mais ardorosos
e salientes cabos de guerra do abolicionismo e
um dos que mais se expusera pela nobilíssima
causa da liberdade, não poupando em favor
dela as suas pequenas economias.
Os que lá se achavam naquela gloriosa ma-
nhã eram pessoas de diversas classes sociais,
desde o funcionário público e o homem de le-
tras, até artistas, operários livres, não faltan-
do vagabundos e desclassificados.
Principiara o reboliço na noite passada, du-
rante a qual ansiosamente esperaram que
chegasse o telegrama transmissor da grande
e luminosa notícia da redenção dos cativos, de
que, há muitos dias, já se vinha falando, ani-
mados todos por vigorosas esperanças.
Maranhense mandara vir, à noite, uma has-
te tosca e grosseira, e a colocara numa das ja-
nelas, sustentada na extremidade inferior pelo
parapeito mais acima e por grossas cordas
que se enrolavam fortemente em dois pregos
enterrados na parede, dentro da sala. Com al-
guns reparos que lhe fez, elevou-a à categoria
de pau de bandeira.
Nela se desfraldaria o pavilhão nacional as-
sim que chegasse a promissora notícia.
O movimento continuava intenso na residên-
cia de Maranhense, como em muitos pontos
da cidade, em todas as casas onde moravam
abolicionistas decididos e afervorados.
Os vizinhos, curiosos, estavam à janela,
apreciado aquilo que não compreendiam mui-
to bem...
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NasesquinascomaRuadoMonteiro,emfren-
te da casa de Maranhense, populares comen-
tavam os boatos e notavam os que entravam e
os que saíam daquela formidável assembleia
em que se reuniam tão variados elementos.
Às nove horas, pouco mais ou menos, notou-
se maior reboliço na sala; afluíram muitos ca-
sacudos às janelas, ao mesmo tempo, com
sensível curiosidade: era que se aproximava,
descendo a rua, João Olivier, jornalista vibran-
te e orador fluente, que pela imprensa muito
trabalhava em favor dos oprimidos.
João Olivier dirigia-se para a casa de Mara-
nhense.
Era um rapaz alto, magro, moreno, rosto lar-
go, olhos negros e vivos, faiscando através das
vidraças do pincenê. Envergava um fato azul
claro; trazia um colarinho alto, gravata parda,
a borboletear. Não dispensava uma flor qual-
quer à botoeira, e exibia naquela manhã um
desabrochado botão de rosa amarela, luvas no
bolso do peito do paletó, e um palhinha airoso
e leve. Caminhava com o passo largo e medi-
do. Quando andava, metia o dedo polegar es-
querdo na cava do colete, balanceava o corpo
e a cabeça, jogando com as espáduas para a
direita e para a esquerda, fronte alevantada,
altiva, e, se porventura a baixava, era para se
espelhar no verniz da botinha. Era mestiço e
fora com dificuldade que se colocava na im-
prensa e se fizera guarda-livros de importan-
te casa comercial. Era um cronista excelente e
sustentava no jornal as graças e as louçanias
do dizer castiço e vernáculo.
– Ilustradíssimo causeur! – cumprimentou-o
à porta um dos que se apresentou a recebê-lo,
sacudindo-lhe a mão com mãos ambas.
– Pena bizarra do galanteio feminil, salve! –
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respondeu o moço jornalista, numa curvatura
entre o grotesco e o irônico, descobrindo-se com
elegância, pegando do chapéu e do leque com
a mão esquerda em cima do peito.
Passou entre filas e penetrou na sala, api-
nhada de homens e senhoras. Olivier era uma
figura simpática e insinuante. Seu nome era
um florão de pérolas, na época, uma centelha.
Por isso, à sua presença, quem não lhe vinha
ao encontro compunha-se, voltava-se, para lhe
examinar a figura original. Maranhense o le-
vou para um canto da sala, e, em voz baixa,
lhe falou assim:
– A coisa está demorando. Que achas tu?
– Acho que devemos estar tranquilos. A de-
mora é um nada. Sou capaz de apostar que é
hoje que a bomba arrebenta.
– Eu de ânsias estou ficando doente. Acre-
dita que não preguei olhos à noite passada.
Este pessoal só me deixou depois das duas da
madrugada.
– E quem dormiu à noite passada? Nós não
dormimos e eles não dormiram.
– Eles?...
– Escravos e senhores.
– Ah, sim, percebo. E por que não vieste até
cá?
– Estive em casa do Freire, com o Vítor, até
muito tarde. Quando saí de lá, fui beber um
café no Zé Bento. Com quem me havia de en-
contrar? Com João Reis. O resto, com certeza,
adivinharás.
– O patife, creio que ainda não chegou à casa,
porque ainda há pouco o mandei procurar, e a
velha me mandou dizer que dele não tem nem
novas, nem mandadas...
– É terrível...
Olivier se abanava e conservava a mão
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esquerda no bolso da calça, espraiando o olhar
observador por todos os circunstantes: uns for-
mavam pequenos grupos e conversavam sobre
os últimos acontecimentos relativos à liberdade
dos escravos; outros, agitados, a fumar, pas-
savam pelas salas, trocando palavras aqui e
ali. José Maria recostou-se ao umbral da porta
que comunicava ao quarto. Olivier fechou o le-
que e acendeu um charuto fino, tendo antes
dado outro ao fogoso abolicionista. José Maria
não quis fumar e guardou o charuto no bolso
de dentro do fraque. Olivier [lhe disse], depois
de uma longa fumaça:
– O Pereira e o Freire devem estar aborre-
cidos, lá no telégrafo, a esperarem... Deixa lá
que é uma cacetada...
E depois de alguns instantes, como quem se
recorda:
– Que faz o teu vizinho, o Coronel Patusco?
– Está danado... Temo que ele não resista
ao golpe... Para te falar com franqueza, temo
mais pela mulher dele. É medonha! Irra!
– Horrorosa!...
Coronel Patusco era o Coronel Lousada, a
quem Olivier pregou aquele apelido canalha,
por causa de suas maneiras e hábitos na so-
ciedade. O povo, porém, ferindo outro alvo, o
alcunhara de Alma Negra.
Lousada era um terrível senhor de escravos,
que abalava a cidade com suas torpezas, qua-
se diariamente cometidas, com variantes de re-
quintada selvageria. Lousada tinha especiais
e originalíssimos instrumentos de suplício,
como fossem: cabos preparados com estilha-
ços de vidros, por onde forçadamente subiam
e desciam os escravos, até cortarem inteira e
profundamente as mãos; redes com lâminas
lacerantes e pregos onde se embalavam, num
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horrível balanço, aqueles infelizes, até se re-
talharem as carnes e se rasgarem os tecidos
das costas e dos flancos; martelinhos para ba-
terem na arcada do peito até o sangue espir-
rar ou golfar pelo nariz e pela boca; espetos de
ferros que se levavam ao fogo até o rubro, para
queimarem os olhos, a língua, e os membros
dos escravos, que endoideciam nas prisões
úmidas e sufocantes do pavimento térreo.
De noite, à placidez mórbida e pavorosa de
seusilêncio,ouviam,osquemoravamnascasas
contíguas ao sobrado do Coronel Lousada, ge-
midos surdos que mãos de ferro violentamente
estrangulavam na garganta, espanqueamento
de corpos, de encontro às paredes e às lajes,
queixas e ais, imprecações de almas desespe-
radas, rugidos de corações intumescidos pela
cólera, brados, pragas e vingança e, frequen-
temente, uma frase cheia de terror, do terror
nascida, repetida com precipitação e fervor, na
agonia da dor e do martírio: “Ai, meu senhor!
Ai, meu senhor!”
– Principiando por casa – continu[ou] Olivier
–, eu já disse a tia Rosa que ponha no olho da
rua a sua pouca gente, antes que a coisa che-
gue. É uma medida, José Maria, que, a meu
ver, algo de moral e prudência...
– E a velha está pelos autos?
– Com a maior carga de resignação que pode
concentrar. Porque, na verdade te digo eu –
coordenou Olivier com um sorriso em que a pi-
lhéria se debruçava graciosa –, esta pobreza
fidalga daqui já ia pegando a moda (notaste o
ia de minha frase?), e não viria longe o dia em
que os escravos, os próprios escravos, procu-
rariam ter escravos!...
José Maria não pôde conter o riso ante o sé-
rio com que o Olivier proferiu estas palavras.
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Olivier sorriu e foi-se pelos grupos que enchiam
a sala, apimentando e salgando a prosa alheia
com epigramas que ele lançava com muito chis-
te e superior agudez de espírito.
Olivier era uma prosa encantadora, fluente,
salpicada de notas alegres e leves, até quan-
do tratava de fatos, por sua natureza, graves
e sérios. Suas crônicas eram as mais aprecia-
das da Província e, fora dela, corria o seu nome
em evidência, recomendado pela pureza da
linguagem, muito parecida, pela forma e pela
ironia, com a do afamado folhetinista e poeta
maranhense Gentil Homem de Almeida Braga,
a cuja leitura Olivier, arrebatado por sua ad-
miração incondicional, muito se entregara, de
modo que os seus primorosos lavores saíam
impregnados daquele suave perfume que ain-
da se evola dos períodos do folhetinista de
Entre o céu e a terra, recordando o fino gosto
artístico com que aquele excelso cinzelador de
tão boa prosa escreveu o memorável folhetim
que ele intitulou: Se os Holandeses não tives-
sem perdido a Batalha dos Guararapes!...
Olivier, colocado com desassombro num dos
mais afamados periódicos da Província, foi um
dos maiores elementos contra a escravidão, e,
como se não bastasse a sua ação na impren-
sa, onde ele, com vigor, e até certa violência,
doutrinava, repisava o assunto na conversa-
ção, descrevendo negras cenas de selvageria
desconhecida na capital e que se davam no
interior, nas fazendas, e cujas notícias lhe che-
gavam por intermédio de cartas que raríssimos
amigos lhe escreviam de lá, ou que escravos
vendidos e que vinham para a capital conta-
vam a tremer e espavoridos.
Maranhense enfiou pelo quarto e foi ter
à varanda a repetir pausadamente a seus
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auxiliares as ordens já dadas sobre os fogue-
tes e a bebida. O que não queria era que, à
hora em que se recebesse o telegrama, nada
estivesse em seu lugar e houvesse atrapalhos
e descontentamentos.
Maranhense era mulato, mais baixo que alto,
e careca. Contava quarenta e tantos anos, gri-
salho, gordo e simpático. Marceneiro de pro-
fissão, e estudante nas horas vagas. Tinha
decidido gosto pelas letras, pela ciência, por
tudo enfim que fosse do domínio da inteligên-
cia humana. Se bem não lhe fosse possível
cultivar o espírito com o trato constante do es-
tudo, em disciplinas regulares, fazia, contudo,
o que estava ainda à altura de suas forças:
procurava relacionar-se com os literatos da ter-
ra, chegava-se àqueles de quem se apregoava
um espírito esclarecido; e, como era inteligen-
te, de uma assimilação fácil, deu força à sua
loquacidade. José Maria discutia, argumenta-
va, tinha ideias e pensamentos, e os expunha
sempre, defendendo-os, quando se fazia preci-
so, ajudado do bom senso que sempre tivera.
Entusiasta, impressionável, agitador e cheio
de resolução entre os abolicionistas do grupo,
tomou posição evidente, e sua casa, que já era
um ponto de conservação assiduamente fre-
quentado por muitos dos intelectuais da épo-
ca, tornou-se um dos centros de reuniões de
abolicionistas.
Os escravos o consideravam como um dos
seus protetores, e, porque ele era sincero na
causa que defendia, eles o procuravam a todo
o momento, para tratarem da liberdade deles.
Os abolicionistas estavam preparados para
festejar a grande e áurea Lei, salientando-se,
entre todos os preparativos, os do Clube Artís-
tico [sic] Maranhense, que eram caprichosos,
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sem igual.
A passeata do Clube devia sair de uma casa,
à Rua de Santaninha, onde já se achavam to-
dos os aprestos, ornamentos e dourados que
tinham de figurar na “sensacional”, segundo
se expressava Santana Reis, um dos mais va-
lentes, inteligentes e prestimosos membros do
Clube.
À Rua de Santaninha já estavam o retrato
de José do Patrocínio e os de Nabuco, João Al-
fredo e outros do gabinete libertador e de ga-
binetes que o precederam, trabalhando para a
liberdade dos negros.
Da casa de Maranhense ainda tinham de ir
muitas dúzias de foguetes, de balões, peque-
nos andores para os retratos, velas, alguns
archotes, e um retrato da Princesa Isabel, já
colocado com andor lantejoulado, trabalho im-
perfeito quanto às particularidades, mas tra-
tável e completo nas linhas gerais.
Depois de ter recomendado a seus discípulos
um transporte cuidadoso de tudo aquilo, como
quem diz uma oração, voltou à sala, onde o
reboliço crescia momento a momento com os
boatos desordenados que corriam.
Olivier continuava a palrar, saboreando de-
licioso charuto. Maranhense acendeu o seu e
foi-se, pensativo, a olhar o movimento da rua,
que a mais e mais se aumentava, e a cumpri-
mentar com rasgados cheios os transeuntes.
O telegrama chegou às três horas da tarde.
Os da comissão destacada no telégrafo de-
ram o sinal convencionado, fazendo subir aos
ares girândolas e foguetes.
O pessoal de prontidão na casa de José
Maria respondeu tocando também outras tan-
tas girândolas. A sala do velho abolicionista
tremeu de vivas atroadores, que romperam do
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peito ansioso de toda a assembleia.
As moças correram às cestas de flores, e José
Maria, com ar marcial, foi postar-se em frente
a um retrato coberto de gaze transparente, co-
locado na sala, por cima do sofá. Ouviu-se,
após, o tocar de foguetes em todos os bairros.
Um grupo de populares, vindo da Rua do Pas-
seio pela Travessa do Monteiro, desembocou
em frente da casa de Maranhense, invadindo-
-a depois. Olivier, a um sinal de José Maria,
subiu a uma cadeira, impondo a sua estatura
simpática e atraente, estendeu o braço direito,
com a mão aberta, pedindo silêncio. Súbito o
burburinho estancou. O orador começou o dis-
curso.
O causeur era um tribuno elegante e vee-
mente. Palavra fácil, fluente, cativante dicção,
imagens fortes e cheias de vida, voz áspera,
gesto nervoso, dominou o auditório, comoveu-o,
entusiasmou-o, lançou a chama encantadora
do arroubo, e perorou entre frenéticos e
tumultuosos aplausos.
Foi um discurso de conceitos, de pensamen-
tos, sentimental, que tocou ao auge de beleza
e forma, quando falou na Princesa Isabel.
Foi nesse ponto que Maranhense, repuxando
a gaze com o correr do cordel que se lhe ligava,
fez aparecer o retrato dela, feito a craiom, por
um talentoso artista plástico. Uma orquestra
composta de conhecidos professores, dirigida
pelo clarinetista Evaristo da Conceição, exe-
cutou um Hino da Liberdade, composição do
mesmo Evaristo.
Maranhense não se tinha em si de alegria:
a todos abraçava, atabalhoadamente, derra-
mando uma verbosidade sem fim. Olivier, ufa-
no, chega à janela e fala ao povo que se aper-
tava na rua estreita. Nesta ocasião, rebenta
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um grupo de abolicionistas, companheiros de
Maranhense, rompendo violentamente a mul-
tidão. Levantou-se novo aranzel: novos discur-
sos, novos abraços. José Maria não se contém:
lança-se, por sua vez, à janela e saúda os seus
irmãos de luta. Vítor Castelo responde, infla-
mado, fogoso, sacudindo o chapéu ao ar, num
estrondoso viva a Isabel! E em frente da casa
de José Maria, e dentro dela, se erguem exal-
tados ânimos, entusiásticas falas, e perene
reina uma indizível e eloquente comunicação
de ideias e pensamentos, por muito tempo en-
freados e subjugados.
Eram cinco horas da tarde, e a cidade ful-
gia de delírio, ardia na febre ruidosa e empol-
gante de sugestionadora alegria. Pelas ruas,
cruzavam-se grupos e grupos de escravos, a
gritar, loucos de satisfação; outros berravam
obscenidades que, como pedradas, iam bater
nas janelas dos escravocratas: insultos soe-
zes, ofensas terríveis contra a família dos ex-
-senhores que, temendo violências físicas, fe-
chavam as portas, apenas acabavam de sair
os últimos libertos.
Momentos depois de proclamada a Lei, co-
meçou a divulgar-se a notícia de que uma es-
crava, ao passar pela Rua dos Afogados, dera
uma bofetada numa senhora que estava à ja-
nela. Esta senhora passava por amarga decep-
ção: viu saírem, portas a fora, sem um adeus,
desvairados pela comoção da notícia, todos os
seus escravos. Diziam os que a conheciam que
era uma mulher má, sedenta de cruéis casti-
gos, e que se apontava, distinta, pela impieda-
de de sua cólera, pelo arrebatamento do gênio
irascível e impensadas ações.
Aarrebatadaquelhebateranorostoforauma
das suas escravas. Era um carafuza ainda
nova, farta de carne, sensual, de bem talhadas
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formas sedutoras, que fascinara o marido da
senhora, um velho comendador, bonacheirão,
roído de reumatismo, constrangido de acha-
ques próprios da velhice, mas que ainda tinha
vista para os atrativos do gozo. As olhadelas
furtivas do velho libidinoso deitavam chispas
que feriram a retina de D. Amandra. A crioula
começou a ser espiada e por vezes maltratada.
Fatos tais eram comuns e provocavam sem-
pre a indignação popular. Por isso comenta-
vam a bofetada, com chacotas e sarcasmo
pungente.
Provocaram fortes gargalhadas e pilhérias
picantes os inesperados cômicos que se deram:
cozinheiras que abandonavam os patrões, sem
lhes apresentar o jantar; outras, que faziam
compras e que se foram com dinheiro e balde.
E em muitas casas, se passaram cenas depri-
mentes e tristes: escravos dando expansão à
raiva e ao ódio cometeram desatinos de toda
a espécie, quebrando móveis e louças, e mais
objetos que se lhes deparavam, e deixavam, a
blasfemar, o teto onde tão desgraçados dias
viveram, atirando ferinos e brutos impropérios
que se iam quebrar, como garrafas e vidros,
nas rótulas das janelas, nas portas, e na alma
aniquilada dos infelizes ricaços de ontem, que
se viram, em grande parte, pobres de um mo-
mento para outro.
Não obstante, alguns dos ex-senhores não
ficaram completamente abandonados, porque
não eram maus. Ao abrirem as portas, ao fran-
quearem a saída aos de há pouco escravos,
ofereceram abrigo aos que quisessem conti-
nuar na sua companhia. Muitos aceitaram os
convites, na maioria os velhos, já inválidos
para uma existência laboriosa, e moças que
eram crias de muito estima e algum conforto,
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em geral filhos [sic] de escravas com senhores
moços. Mais que os ricos, sofreram, porém, os
pobres que tinham escravos. Os pobres pre-
sumidos. Faziam economias, com prejuízo da
alimentação, e ostentavam pequeno cabedal
de negros. Os escravos dos pobres sofriam as
mais ridículas vexações, porque o espírito pe-
quenino dos seus senhores se deliciava em os
ocupar a todo instante com as coisas mais in-
significantes, bagatelas, que, à vista da falta
de meios neles patentes, tomavam aspectos
bem deslavados e grotescos.
Pertencer à primeira sociedade era possuir,
pelo menos, duas ou três cabeças de negros.
Imagina-se facilmente o desconsolo em que fi-
caram esses pequenos proprietários, quando
se viram, num minuto, abandonados pelos es-
cravos que eles tinham comprado à custa de
mil sacrifícios e inúmeras necessidades, aque-
les servidores que trabalhavam diariamente à
chuva e ao sol expostos, e que lhes garantiam,
com o produto das energias gastas, o pão de
cada dia.”
Voltado, desde os bancos escola-
res, às plúrimas facetas da vida inte-
lectual, Josué Montello destacou-se
pela numerosa bibliografia de que foi
autor (mais de cem títulos), da qual
sobressai a obra romanesca, em lar-
ga parte ambientada em cenário ma-
ranhense.
Seus romances Os tambores de São
Luís (Rio de Janeiro: José Olympio,
1975) e Noite sobre Alcântara perma-
necem entre as grandes realizações
da literatura brasileira do século XX.
O texto abaixo foi extraído das pági-
nas iniciais e finais de Os tambores
de São Luís.
JOSUÉ MONTELLO
(1917-2006)
AcervodoarquivodaCasadeCulturaJosuéMontello
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“Até ali os tambores da Casa Grande das
Minas tinham seguido seus passos, e ele via
ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo
da varanda, rufando forte os seus instrumen-
tos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e
das cabaças, enquanto a nochê Andreza Ma-
ria deixava cair o xale para os antebraços, re-
cebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar.
Por vezes, no seu passo firme pela calçada
deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tam-
bores, calados de repente no silêncio da noite,
com o vento que amainava ou mudava de di-
reção. Daí a pouco Damião tomava a ouvi-los,
trazidos por uma rajada mais fresca, e outra
vez a imagem da nochê, cercada pelas novi-
ches vestidas de branco, lhe refluía à consciên-
cia, magra, direita, porte de rainha, a cabeça
começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do
querebetã. A intenção dele era apenas ouvir
um pouco os tambores e olhar as danças, sen-
tado no comprido banco da varanda, de rosto
voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já
o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham
sentado no chão de terra batida, com as mãos
entrelaçadas em redor dos joelhos; outras per-
maneciam de pé, recostadas contra a parede.
Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair
do banco um dos assistentes, e ele ali se aco-
modou, em posição realmente privilegiada, po-
dendo ver de perto os tambores tocando e as
noviches dançando, por entre o tinir de ferro
dos ogãs e o chocalhar das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali,
levado por invencível ansiedade nostálgica,
que ele próprio, com toda a agudeza de sua
inteligência superior, não saberia definir ou ex-
plicar. O certo é que, ouvindo bater os tambo-
res rituais, como que se reintegrava no mundo
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mágico de sua progênie africana, enquanto se
lhe alastrava pela consciência uma sensação
nova de paz, que mergulhava na mais profun-
da essência de seu ser. Dali saía misteriosa-
mente apaziguado, e era mais leve o seu corpo
e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe
ser propício o vodum que acompanha na Terra
os passos de cada negro.
Embora só houvesse no céu uma fatia de
lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão,
uma tênue claridade violácea descia sobre a
cidade adormecida, com a multidão de estre-
las que faiscavam na noite de estio. Em cada
esquina, a sentinela de um lampião, com seu
bico de gás chiante. Todas as casas fechadas.
Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apres-
sado rolar de um carro, com o ruído do cavalo
a galope nas pedras do calçamento. E sempre
o baticum dos tambores, ora fugindo, ora vol-
tando, sem perder a cadência frenética, muito
mais ligeira que o retinir das ferraduras.
No canto da Rua do Passeio com a Rua do
Mocambo, antes de passar para a calçada
fronteira, Damião parou um momento, batido
em cheio pela claridade do gás.
Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro
inglês, presente do governador Luís Domingues
no último Natal, parecia mais comprido, a es-
pinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os om-
bros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão
de ter sessenta, ou talvez menos, com muita
luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levan-
tada. Até o começo do século, não dispensava
a bengala de castão de prata com que entrou
pela primeira vez no sobrado do Foro, sobra-
çando a sua pasta de solicitador, para defen-
der outro negro. Agora, trajava com simplicida-
de, muito limpo, a barba escanhoada, o paletó
abotoado acima do peito, um alfinete de ouro
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junto ao laço da gravata.
– Faça favor...
Damião assustou-se com a voz rouca que lhe
vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua
do Mocambo. Não tinha sentido rumor de pas-
sos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pe-
quenino, enxuto, metido na sua sovada casaca
de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado,
bigode, nos negros olhos uma faísca de loucu-
ra, e que logo lhe disse, com um pedaço de pa-
pel impresso na ponta dos dedos:
– É o convite para o meu próximo espetáculo.
– Outra vez A queda da bandeira?
– É. O pessoal pede sempre. E o público é
quem manda.
Damião quis ainda saber por que o velho má-
gico preferia aquela hora da noite, com as ca-
sas fechadas, para distribuir os seus convites.
– De dia – redarguiu ele, dando-lhe outro con-
vite – os moleques vêm atrás de mim, me cha-
mando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros
para me morder. De noite é mais calmo: os mo-
leques estão dormindo.
E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar
o papelucho por baixo das portas, sem ruído,
apenas roçando o chão da calçada com seu
passo macio.
Já fazia alguns anos que Damião vira apa-
recer na cidade aquela figura caricata, de-
baixo de uma cartola preta, casaca, sapatos
cambados, a andar acima e abaixo, com uma
pasta de couro, também preta, e apresentan-
do-se no Largo do Carmo, no Palácio do Gover-
no, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço
Episcopal, e também à porta das igrejas, nas
missas dominicais e nos casamentos, como o
Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por
curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São
Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em
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diante se repetia todos os anos: a caprichada
mágica intitulada A queda da bandeira. Sátiro
subia uma escada, até o último degrau, bem
no centro do palco, e dali, com uma bandeira
desfraldada, recitava comprido bestialógico,
cheio de palavras abstrusas, numa suposta
língua de sua invenção, o gramazino, da qual
proporcionava antes um pano de amostra com
esta explicação: “O A do alfabeto gramazino
é a mesma coisa que o A do alfabeto em por-
tuguês, com a diferença de que se escreve de
cabeça para baixo e tem o som de bé.” Em se-
guida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pól-
vora seca estrondava, assustando a plateia. E
eis que o mágico se atirava lá do alto, em arre-
messo, como se fosse voar, e caía pesadamen-
te cá embaixo, nas tábuas do chão.
– Bis, bis – gritavam-lhe da torrinha.
E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, vá-
rias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda,
até que Damião, compadecido de sua insânia,
começou a reclamar – Chega! Chega! – e o má-
gico afinal se retirou, manquejando, uma das
mãos no quadril machucado, enquanto o pano
do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e
assobios.
Antes que ele desaparecesse, sempre a en-
fiar o impresso por baixo das portas, Damião
mudou de calçada, ainda ouvindo o baticum
dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava
o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo,
a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de
Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa,
a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu
jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do
Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em
seguida, torcendo para a direita, a Rua das
Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipa-
peiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua
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bisneta, num cômoro verde que escorregava
para o mar.
O próprio Tião, no mesmo carro em que fora
buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de
que, antes do anoitecer, a Biá começara a sen-
tir fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz o
primeiro filho.
– Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está
cheia de parentes. É bom que o senhor também
esteja lá, para receber o seu trineto.
– Sim, irei – concordara. – Mas não já. O pri-
meiro parto dá muito rebate falso. Isso é coisa
para o meio da noite.
E antes do Tião sair:
– Eu sou do tempo em que os mais moços es-
peravam pelos mais velhos.
– Hoje, tá tudo mudando – emendou o Tião.
E como o tinham deixado só, no rebuliço do
primeiro trineto da família, apenas com a cria-
da que lhe servira apressadamente o jantar (e
também se fora para a casa da Biá), Damião
se vestiu devagar, sabendo que não adiantava
ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na
cadeira de balanço da varanda, antes de dei-
xar a casa entregue ao Veludo, que andava na
fase de latir e correr, próprio do cio insatisfeito.
Levara bom tempo na esquina da Rua das
Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o
transportasse à Gamboa. Terminara reconhe-
cendo que, se dependesse mesmo de um carro,
só iria conhecer o trineto depois de grande. O
jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite.
Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distan-
te do Cemitério dos Ingleses, experimentou de
repente uma sensação de frio, que lhe desceu
da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o
tivesse apanhado por trás, em toda a extensão
do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu
caminho, sem aumentar nem diminuir o passo,
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ao mesmo tempo que procurava convencer-se
de que a rajada viera da Rua da Cotovia. Pa-
rou adiante, apalpando os bolsos da calça, à
procura do maço de cigarros. Tinha trazido os
cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos.
– Velho é assim mesmo: quando se lembra
de uma coisa, esquece outra. Paciência.
Senhor de si, voltou a caminhar, procurando
espairecer os olhos no ermo da rua longa. De
novo o vento soprou, agora mais forte, como se
o tempo fosse mudar. O céu limpo tranquilizou
Damião. Uma janela bateu; por cima de um
muro, estalou um galho de árvore, que resva-
lou para a calçada; adiante, uma vidraça par-
tiu, no bater violento de outra janela; uma lata
vazia rolou pelo meio-fio.
Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele
teve a impressão de que algo estranho, que
se associava à sua pessoa, estaria ocorrendo
naquele momento. Tentou sacudir de si a im-
pressão aborrecida, e esta retornou, insidiosa,
opressiva, com a teimosia de um mau pressá-
gio. Pensou na Biá. Não, não seria nada com
ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e asse-
gurara que seu parto seria normal. Tudo bem,
e a criança no seu lugar; era só esperar agora
pela reação da natureza, sob a vigilância expe-
riente da Comadre Ludovina.
– E a Comadre Ludovina já está lá.
Foi então que escutou o romper dos tambores,
ali perto, na Casa Grande das Minas. Quase no
mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram
as cabaças, mas não suplantaram os tambo-
res, que iam acelerando o tantantã nervoso que
obriga as noviches a girarem sobre si mesmas.
Dir-se-ia que uma batida queria alcançar a se-
guinte, sem que um tamboreiro destoasse dos
outros na vertigem do compasso. E só esse ba-
ticum frenético se impunha agora, apagando o
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som dos outros instrumentos, e também só ele
o vento levava, rua abaixo e rua acima, dis-
persando-o na grande noite de agosto que se
fechava sobre a cidade.
Depois de passar para o outro lado da rua,
Damião deu consigo na calçada do querebetã,
e ali retardou a caminhada, querendo entrar.
Era uma casa baixa, de beiral saliente, caia-
da de novo, na esquina do Beco das Crioulas,
com janelas de rótulas e porta de duas folhas,
sobre a Rua de São Pantaleão. Só uma banda
da porta estava aberta. Parado na soleira, ele
olhou para dentro, e viu o corredor e a varanda
já repletos, com as noviches dançando em vol-
ta da nochê Andreza Maria. E ia dar o primei-
ro passo no corredor, quando a nochê subiu o
xale para os ombros, compelindo os tamborei-
ros a uma pausa brusca, logo interrompida por
um bater mais forte, em outro ritmo, e veio ca-
minhando para a porta, no espaço que se ia
abrindo para lhe dar passagem. Damião tinha
dado outro passo, e ali esperou que ela o levas-
se.
Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo
quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos?
Meia hora? Ou mais ainda? Mais ainda, cer-
tamente. O importante é que, depois de ouvir
os tamboreiros e assistir às danças rituais, se
sentia preparado para ir ao encontro de seu
trineto. Sentado no banco, a olhar as noviches
dançando rodeadas de velas, era outra vez o
negro puro, filho de sua raça, em contato com
as remotas raízes africanas. E assim entrou
na Rua do Passeio, descendo pelo Beco das
Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã
dos tambores.
A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia
não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de
outro, com grades de ferro rendilhadas, vidros
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coloridos no leque das janelas, um ou outro
portal de pedra. Sem relógio para ver as ho-
ras (o seu andava na loja do Maneco Ourives,
para limpeza geral da máquina, já fazia uma
semana), era debalde que Damião consultava
de vez em quando a posição da lua, que ora
se escondia por trás dos mirantes mais altos,
ora repontava adiante, curva e pontuda como
um chavelho de bumba-meu-boi entrando no
terreiro.
No canto da Rua de Santana, o bico de gás
do lampião estava prestes a apagar, reduzido
a uma chamazinha débil, que se encolhia no
bocal empoeirado, com medo da noite, a escu-
ridão a se fechar à sua volta. E outra vez Da-
mião se assustou, agora com a zoada de uma
lata de lixo, que ia sendo arrastada nas pedras
do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com
uma pata traseira pendurada, que a arrastava
com o focinho, enquanto o lixo se esparramava
na calçada escura. Ao pressentir os passos de
Damião, já bem perto, o cão assustou-se tam-
bém, retirou depressa a cabeça de dentro da
lata, e correu para o outro lado da rua, capen-
gando, com um osso na boca.
Um pouco além, Damião ouve o som de um
piano mal tocado, para os lados da Rua do
Oiteiro. E enquanto apura a orelha, tentando
identificar os compassos da valsa, uma car-
ruagem dispara pela Rua do Passeio, à altura
do Hospital Português, e é tão próximo o tropel
dos cavalos e o estrondo das rodas, que ele fica
esperando que ela passe ao seu lado, seguin-
do a toda brida na direção do Largo do Quar-
tel; como demore passar, ele se volta para trás,
e não a vê: na rua deserta, só o cão rói o seu
osso, à luz de outro lampião. A carruagem do-
brou a Rua do Mocambo, e seu rumor se afas-
ta no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo
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tempo que o piano se cala, e volta a ressoar,
um pouco mais distante, o baticum dos tambo-
res, na Casa Grande das Minas.
Damião se lembrou que Donana Jansen saía
de seu túmulo, nas noites de sexta-feira, e dava
uma volta comprida pela cidade, numa carrua-
gem puxada por duas parelhas de cavalos sem
cabeça, com um esqueleto na boleia brandindo
o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das
ferraduras, despencando ladeira abaixo.
– Bobagem – reagiu Damião. – História inven-
tada pelos inimigos políticos da velha. Quem
morreu quer sossego.
E apalpando novamente o bolso da calça,
tirou fora um cigarro, que deixou no canto da
boca. Mais além, talvez ainda estivesse aberto
o botequim da esquina da Rua Grande. Como
fora esquecer de trazer a caixa de fósforos?
Logo ele que, depois de velho, não dispensava
os cigarrinhos da noite, para esperar o sono...
E nisto se viu saindo do quarto da Maria Qui-
téria, nos baixos de um sobradinho da Rua da
Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da
Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoan-
te de louça quebrada, a poucos passos, adian-
te da escadaria da Rua do Giz. Retardou o an-
dar, intrigado. Era uma louça atrás da outra,
e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas
pancadas firmes, que faziam voar para todos
os lados os cacos partidos.
Do patamar da escadaria, estendeu o olhar
para baixo.
Ao pé do último socalco, à porta do sobrado
do comendador Antônio Meireles, na claridade
do dia que ia rompendo, um bando de negros
em ação, cada qual com seu porrete de pau-
-roxo, quebrava depressa pilhas e pilhas de
vasos de louça empilhados na calçada.
Damião desceu os socalcos quase a correr, e
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antes de chegar cá embaixo começou a rir, adi-
vinhando o que se passava.
Dias e dias, já fazia alguns meses, era o as-
sunto de São Luís inteira, nas rodas do Largo
do Carmo, nas conversas do Passeio Público,
no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana
Jansen, com quem vivia às turras, o comenda-
dor Meireles tinha mandado preparar na Ingla-
terra, para vendê-los quase de graça, um mi-
lheiro de belos penicos de louça, com a cara da
velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube
do fato e suportou com paciência o riso da ci-
dade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo,
enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos
três, às dezenas, na loja do Comendador, os
penicos com seu retrato, até ter a certeza de
que, agora, sim, só ela os possuía.
Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo
de riso, Damião perguntou a um dos negros:
– De quem vocês são escravos?
– De Donana Jansen.
Eram mais de trinta negros, todos fortes, es-
padaúdos, e iam quebrando os urinóis com
uma fúria divertida, repetindo as cacetadas ri-
jas, que desfaziam a louça apenas com uma
pancada. A vizinhança ia despertando com a
zoadaria estranha. Caras estremunhadas en-
treabriam as rótulas, nas janelas dos sobra-
dos, e já algumas pessoas se debruçavam das
sacadas, enquanto outras, na rua, em chine-
los, no chambre de dormir, riam alto, vendo as
matanças dos penicos. Um cheiro insuportá-
vel de mijo podre desprendia-se de um vaso à
parte, por sinal que maior que os outros, quase
o triplo, e coberto com uma tampa também de
louça.
– E esse aí? – quis saber Damião.
– Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo
dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer
pra tomar satisfação.
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E sem interromper as pancadas seguras, o
negro abriu para Damião a dentadura farta,
que lhe encheu a boca feliz, rematando com
este comentário, entre um penico e outro:
– Donana Jansen não é gente. Tou cansa-
do de dizer. Quem se mete com ela tem sarna
muita pra se coçar. Ora se tem!
Ainda com o cigarro apagado no canto da
boca, Damião aproximou-se da Rua Grande,
pensando onde ia encontrar, ali perto, uma
caixa de fósforos para comprar. E não tinha
chegado à esquina, defronte de um casarão de
altas janelas ogivais, quando viu entreaberta
uma porta do botequim.
Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe
os passos, com a lua nova a se esconder e a
brilhar, na faiscação do céu estrelado. E agora
o assobio do vento, que disparava na rua de-
serta, varrendo as calçadas, para se desfazer
no giro doido de um remoinho.
Dentro do botequim, a única luz era a chama
de um candeeiro a óleo, suspenso da parede
esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz
mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por
cima do balcão, mal dando para clarear uma
parte da saleta pontilhada de mesas vazias.
Dentro do balcão, ninguém.
Damião subiu o degrau da porta, avançou
uns passos, bateu palmas. Enquanto espera-
va que o atendessem, olhou em volta, aproxi-
mando-se do balcão. E foi aí que viu por terra,
entre as duas primeiras mesas à sua direita,
o vulto de um negro magro, comprido, bem tra-
jado, caído de bruços numa poça de sangue,
com uma facada nas costas, à altura do co-
ração. Parado, ficou um momento a fitá-lo, de
olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a
nuca e uma parte do pescoço. Pela roupa, era
gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver
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se lhe restava um alento de vida, mas o corpo
permaneceu imóvel, com o busto achatando o
braço direito, na posição em que tinha caído.
Na claridade que ia esmorecendo, Damião
olhou em volta, de sobrancelhas travadas.
Numa das mesas, mais para o fundo da sale-
ta, acumulavam-se garrafas de bebida, quase
todas tombadas sobre o tampo de mármore,
juntamente com um copo quebrado e um cin-
zeiro atulhado de cinza e pontas de cigarro.
Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de
suas botinas, assim que deu outro passo, na
direção do candeeiro. E ali, com uma suspei-
ta, espiou para dentro do balcão. Outro morto
jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendi-
da por uma paulada. Estava de frente, com o
busto meio apoiado no ângulo entre o balcão e
a prateleira. E a luz que descia sobre ele, mui-
to tênue, levemente avermelhada, permitiu que
Damião prontamente identificasse, pelo rosto
coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de
bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo,
lhe tinha vendido um maço de cigarros.
***
Agora, deixado para trás o prédio da Cadeia
Pública, ele via a luz da casa da Biá, ao fim de
longo estirão baldio. Lá adiante, esparrama-
va-se a Fábrica da Gamboa, com seus teares
adormecidos. Do outro lado, a Quinta da Vitó-
ria, sem vivalma lá dentro, com o velho sobrado
invadido pelo mato, as pilastras do portão co-
bertas de hera e musgo, as janelas desmante-
ladas, e só o tamarindeiro do Dr. Sousândrade
ainda intacto, com as garras das raízes a se
contorcerem por entre pedras salgadas, resis-
tindo ao mar, ao abandono e aos ventos gerais.
Já fazia mais de dez anos que Damião tinha
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visto o poeta pela última vez, ali mesmo, arri-
mado à bengala, o rosto encovado, sem o tom
vermelho de outrora, um fulgor febril nos olhos
pensativos, caminhando com esforço, a voz fa-
tigada:
– Sabe de que vivo hoje, Professor? De pe-
dras. Estou vendendo as pedras da quinta
para comer.
E com a ponteira da bengala mostrou o muro
circundante, já quase todo desfeito sob os ra-
mos verdes de uma trepadeira.
No entanto, quando a República foi procla-
mada, ninguém mais feliz e lépido do que ele.
Andava depressa, de bengala sobraçada, as
abas do fraque a lhe festejarem as pernas ma-
gras, o cabelo liso caindo sob as abas da car-
tola, sempre com uma rosa branca na botoeira.
Nomeado intendente da capital, dispensara a
carruagem a que tinha direito, fazendo ques-
tão de andar a pé, da Quinta da Vitória ao ou-
tro lado da cidade, para dar o exemplo de que,
no novo regime, as autoridades eram o próprio
povo, sem regalias nem privilégios. Até mesmo
a sua velha traquitana ele a pusera de lado.
Depois de um silêncio, Damião aventurara a
pergunta:
– E a nossa universidade, Dr. Sousândrade?
O poeta cruzou as mãos enrugadas por cima
do castão da bengala, enquanto engolfava os
olhos na linha do horizonte:
– Longe... longe... longe... Mas, quando se
aproximar, será tudo uma outra cidade, uma
outra gente... Mas virá, e eu não verei.
E pôs-se a recitar, sempre com o olhar perdi-
do na distância, os ombros curvados:
Solitário vivi, porque arruinaram
Meu lar, meu Deus, e o amor que nele vive.
Depois, ainda a recitar baixinho, foi andando
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devagar, por um caminho aberto na relva quei-
mada, como alheado do mundo, sem despedir-
-se do Damião, que o acompanhou com o olhar
consternado, até vê-lo desaparecer, no mesmo
passo lento, os ombros caídos, apoiando-se na
bengala, entre as pilastras do portão da quin-
ta.
Lembrava-se bem de seu enterro, com o ataú-
de envolto na bandeira do Estado – idealizada
pelo próprio Sousândrade, com as listas bran-
ca, vermelha e negra, simbolizando a fusão das
raças na formação do povo brasileiro, e mais a
estrela branca sobre campo azul, representati-
va da unidade autônoma do Maranhão. Muita
gente, na tarde de sol. À frente do cortejo, a
carreta negra, com frisos doirados, levando o
esquife. E quando o féretro se aproximou do
portão do cemitério, uma revoada de andori-
nhas cortou o céu, por cima da capela, e duas
rolinhas se puseram a cantar, como a seguir o
lento rolar do coche fúnebre, até que este su-
miu, na volta da alameda.
Damião desce agora uma pequena ladeira,
perlongando o terreno baldio. Na luz escassa,
consegue ver o chão que vai pisando. Em re-
dor, silêncio, um grande silêncio, só interrompi-
do por um coaxar de sapos, junto ao túnel por
onde passa o trem. Aqui, ali, reluz um vaga-
-lume. E sempre o cansado arfar das águas do
rio que se misturam às águas do mar.
De cabeça baixa, redobrando de atenção
para não pisar em falso com a claridade es-
cassa, Damião torna a ver o Dr. Sousândrade
atravessando o Largo do Carmo, um livro con-
tra o peito, para dar a sua aula de grego no Li-
ceu Maranhense. Onde andariam os livros do
poeta? Que fora feito dos seus últimos versos?
E logo outros amigos lhe refluem à consciência:
o Aluísio Porto, o Silvino Peres, o Albino Frias, o
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Vítor Lobato. Ele sabe agora, com a longa expe-
riência de seus oitenta anos, que a vida é uma
coleção de mortos. Os nossos mortos. Os mor-
tos que só nós podemos ressuscitar nas ilumi-
nações de nossa consciência, e que carregamos
conosco, sem que nos pesem, constranjam ou
perturbem, até que sobrevenha para eles a
morte definitiva, que é a nossa própria morte.
Erguendo o olhar, divisou as cadeiras do al-
pendre, o pé de carambola ao lado da casa, o
lampião aceso defronte do portão. E tomando
por um atalho de terra, que subia em aclive,
encurtou mais o caminho, logo ouvindo o lati-
do do Veludo, que, ainda de longe, de orelhas
fitas, as patas em cima do muro, lhe sentira o
ranger dos passos.
E assim que ele se pôs a limpar os pés can-
sados no capacho da entrada, antes mesmo
de abrir o portão, ainda com o Veludo a saltar
no jardim sacudindo a cauda, a Benigna apa-
receu no alpendre, com a sua cabeça branca
bem penteada, a pele do rosto marcada com
as rugas dos olhos e dos cantos da boca, mas
ainda de ombros altos, elegante, a cintura fina,
o brinco nas orelhas.
Ela veio abrir-lhe o portão, com um xale pas-
sado nos ombros contra a friagem da noite:
– Graças a Deus que chegaste! – exclamou,
puxando o ferrolho. – Eu já estava assustada
com a tua demora. Na certa, resolveste ler de-
pois do jantar, e pegaste no sono. Foi o que
eu calculei. Até prometi uma novena para São
Cipriano. Se não chegasses agora, eu já tinha
pedido ao Tião que fosse lá em casa te acordar.
E Damião, depois de beijá-la:
– É que eu vim a pé, querida. Procurei um
carro, não achei: vim mesmo com as minhas
pernas.
– Damião! – ralhou ela, espantada, já no
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degrau do alpendre. – Isso é coisa que se faça
na tua idade? Vir a pé do Largo de Santiago
até à Gamboa! Não me faças mais isso!
E segurando-o pelo braço, como a ampará-lo
na subida do degrau, ajudou-o a dar impulso
ao corpo, ao mesmo tempo que a filha, duas
netas e quatro bisnetas acudiam ao alpendre,
saindo da sala iluminada e cercando o velho
com alvoroço.
Sem largar o braço do marido, a Benigna di-
rigiu-se à Janu, que arrastava os pés pesados,
muito gorda, amparando-se nos braços de uma
das netas:
– Teu pai não cria juízo. Nesta idade, parece
menino. Não é que ele veio a pé, lá de casa até
aqui?
E obrigando Damião a sentar na cadeira mais
próxima, ali mesmo no alpendre, continuou a
ralhar-lhe, num tom de voz que era mais de
ternura que de reprimenda:
– Como castigo, não te dou a grande notícia.
E depois de impor silêncio ao resto da famí-
lia, com o dedo em riste defronte dos lábios:
– Descansa um pouco aqui e tira logo as boti-
nas: deves estar com os pés ardendo, de tanto
andar.
Damião sentiu a cadeira de vime gemer com
os movimentos de seu corpo, e ia olhando em
volta, com ar de riso, vendo os rostos felizes
que o cercavam, enquanto um dos bisnetos,
que chegara por último, tentava puxar-lhe as
botinas, para calçar-lhe as chinelas do Tião.
O próprio Tião entrou no alpendre, risonho,
vermelho, um permanente ar alvissareiro, e
despejou a novidade:
– Já estávamos pensando que o senhor não
tinha pressa em conhecer o seu trineto. Ele já
está aqui à sua espera.
E Damião, radiante:
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– É homem? – indagou, após uma risada gos-
tosa.
– É – confirmou a Benigna. – A Biá teve um
parto feliz, sem muitas dores, desses em que
Deus põe a mão. E é um rapagão. Quatro quilos
e duzentas. Um menino e tanto. E já tem nome,
escolhido por mim. Desta vez, não vou deixar
que ponhas nas crianças os tais nomes bonitos
que tiras de teus livros. Nada de Plínios, nem
de Píndaros, nem de Eurípedes. Chega! Aqui,
queriam que fosse Alfredo. Que Alfredo coisa
nenhuma. Vai se chamar Damião, como o tri-
savô. Damião é nome que enche a boca: Da-mi-
-ão!
E Damião, quando ela se calou:
– Não – retrucou, com firmeza. – Fica para o
outro. Este vai ser Julião, que era o nome do
meu pai.
– Vá lá – concordou a Benigna depois de um
silêncio.
E para o Tião, muito séria:
– Assim que a Biá estiver mais descansada,
pode arranjar o outro. Quanto mais cedo, me-
lhor. E bonito, como o trisavô.
E enquanto a filha, os netos e os bisnetos cer-
cavam Damião, dando-lhe outras notícias do
parto e do trineto, a Benigna desapareceu pela
porta da sala, deixando no alpendre um pouco
de seu perfume, que se misturava ao cheiro ati-
vo da latada do jasmineiro, no muro do jardim.
Calçado nas chinelas do Tião, que eram gran-
des para seus pés, Damião sentia que a paz
da noite límpida o envolvia, com o sussurro do
vento, a lua nova no céu estrelado, o silêncio
da cidade adormecida e o choro de seu primei-
ro trineto. Chegaria ao tetraneto? Só se Deus
lhe conservasse a lucidez, a vista perfeita e a
companhia da Benigna. Sem isso, preferia a
outra paz, quieto no seu túmulo.
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E nisto a Benigna tornou a apontar no retân-
gulo da porta, chamando-o agora para conhe-
cer o Julião:
– É clarinho – preveniu-lhe.
E quando ele se curvou sobre o berço, muito
emocionado, sentindo os olhos úmidos, ela lhe
foi dizendo, enquanto erguia o candeeiro, para
dar mais luz sobre a criança:
– Tem tua cara, meu filho. Até o nariz chato
é teu. Olha a testa. Também é tua. E esse bei-
cinho espichado. Tudo teu. É mais para bran-
co que para preto: moreninho, como um bom
brasileiro.
Damião olhava embevecido aquela peque-
na massa humana, ainda mole, com uns fios
de cabelos úmidos, os olhinhos cerrados, os
bracinhos encolhidos na camisinha de linho, e
não podia deixar de lembrar-se do Barão, com
a sua famosa teoria de que só na cama, com o
rolar do tempo, se resolveria o conflito natural
de brancos e negros, no Brasil. Tinha ali mais
uma vez a prova, na sua própria família. Sua
neta mais velha casara com um mulato; sua
bisneta, com um branco, e ali estava seu trine-
to, moreninho claro, bem brasileiro. Apagara-
-se nele, é certo, a cor negra, de que ele, seu
trisavô, tanto se orgulhava. Mas também se
viera diluindo, de uma geração para outra, o
ressentimento do cativeiro. Daí a mais algum
tempo, ninguém lembraria, com um travo de
rancor, que, em sua pátria, durante três sécu-
los, tinham existido senhores e escravos, bran-
cos e pretos. Agora, ali em São Luís, já os ne-
gros entravam no Palácio do Governo, mesmo
os do povo, com os pés no chão, a camisa para
fora das calças, e iam falar com o governador
Luís Domingues, que se levantava de sua ca-
deira e vinha apertar-lhes a mão. No Liceu
Maranhense, além dele, Damião, ensinavam
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o Dr. Tibério e o Nascimento Moraes, ambos
negros. Viriato Correia, que ele vira menino,
de cabelinho espichado, muito serelepe, cole-
te, corrente de ouro, já lhe mandara do Rio de
Janeiro, com uma dedicatória feliz, o seu novo
livro, os Contos do Sertão. O Públio de Melo,
doutor formado no Recife, era agora o delegado
da capital. Na Biblioteca Pública, estava o As-
tolfo Marques. Todos negros, compenetrados
de sua origens, e abrindo caminho na vida,
sem que ninguém lhes perguntasse de quem
eram filhos, e ali em São Luís, na mesma terra
onde outrora o poeta Gonçalves Dias, por ser
bastardo e mestiço, não pudera casar com a
Ana Amélia Ferreira Vale – que ele também co-
nhecera, de cabelos longos, olhos negros, es-
belta, cintura fina, um mimo de mulher.
– Agora, chega! – interrompeu a Benigna,
puxando Damião pelo braço. – Vamos deixar o
menino dormir.
E foi pôr o candeeiro sobre a cômoda.
Damião tornou a olhar o trineto, desta vez na
penumbra, ainda emocionado. Depois correu
o cortinado de filó, para protegê-lo dos mos-
quitos. Na ponta dos pés, afofando os passos,
aproximou-se da bisneta, beijou-lhe a testa e
saiu do quarto sem ruído, cautelosamente.
No corredor, disse-lhe o Tião, na sua grossa
voz de dono da casa:
– O senhor dorme hoje aqui.
E a Benigna, atalhando:”
– Eu já te disse, Tião, que esse tu não dobras.
Eu, por mim, onde ponho a cabeça, aí durmo.
Mas ele, não: só dorme no cantinho dele, e as-
sim mesmo depois de ouvir o rangido da rede.
– O rangido da rede, não – corrigiu Damião,
dando o braço à Benigna. – O rangido da mi-
nha rede – acentuou. – É, Tião: velho é como
gato – só está bem no seu canto. Quando
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chegares à minha idade, verás que eu tenho
razão. Tem um pouco de paciência: dá um jeito
de nos levar.
Daí a pouco, encolhidos no fundo da carrua-
gem, com o próprio Tião a dirigir a parelha,
os dois velhos começaram a atravessar a ci-
dade, de mãos dadas, um junto do outro, a
caminho do Largo de Santiago. Na saída da
Rua do Passeio para a Rua Grande, Damião
se lembrou dos dois homens assassinados no
botequim da esquina. Lá dentro, as luzes es-
tavam acesas: sinal de que a Polícia já sabia
do crime. Quis contar o caso à Benigna; mas a
viu tão sonolenta, com a cabeça descansada
no seu ombro, que achou melhor só lhe falar
na manhã seguinte. Além do mais, não queria
que o Tião o escutasse: terminaria por dar com
a língua nos dentes, cedendo ao seu incorrigí-
vel pendor para contar novidades. Só na Be-
nigna podia mesmo confiar.
Retraído na extremidade do banco, com o
braço direito envolvendo as espáduas da com-
panheira, sentia no rosto e nas mãos a úmida
frialdade da madrugada, mais fria na longa
rua deserta ao galope dos cavalos. Já no Lar-
go do Quartel, também deserto, apenas com
a figura miúda da sentinela na sua guarita
de madeira, voltara a ouvir os tambores da
Casa Grande das Minas, e logo recordou as
noviches dançando, todas de branco, com um
lenço na cabeça, os colares tilintando ao ti-
lintar dos ogãs. Na esquina da Rua de Santa
Rita, sentira mais próximo o bater cadencia-
do. E mais uma vez reconheceu que, a des-
peito do muito que vivera, e também do muito
que lera e meditara, aqueles tambores tinham
ainda o dom de lhe descer às raízes da cons-
ciência, para lhe dar de novo o mundo mágico
de seus antepassados africanos, como se por
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Índice
eles falassem os voduns primitivos, princípio e
essência de todas as coisas.
Na manhã seguinte levantou tarde, contra
seu costume. A Benigna, ainda cedo, tinha saí-
do para pagar a promessa de uma vela benta
a São Benedito, na igreja de Santo Antônio,
por ter o parto da Biá corrido normal. Ele tomou
sozinho o seu café, que o aguardava na mesa
posta, com o bule e a leiteira dentro dos aba-
fadores. Depois, com uns restos de preguiça,
foi à sala, tirou da estante um de seus clássi-
cos latinos, e veio lê-lo na cadeira de balanço
da varanda, junto ao velho vaso de cerâmica
onde ainda se abriam as largas folhas de um
tinhorão. Ali, antes de começar a leitura, dei-
xou os olhos no ar, pensativo, com a sensação
de que ia fechando harmoniosamente a pará-
bola de seu destino, em paz com Deus e os
homens. Apesar do que sofrera na infância e
na juventude, e também dos reveses com que
a adversidade agride o homem em qualquer
tempo, a sorte lhe fora propícia. Tinha sido es-
cravo, era um homem livre. Socialmente, vie-
ra de muito baixo, e ali se achava, com a sua
casa, o seu nome, a sua família. Lutara pela
libertação de sua raça e vira raiar o dia da
almejada redenção. A rigor, só havia amado
realmente uma mulher, com todo o ardor das
paixões irreprimíveis, e era ela a companheira
perfeita de sua velhice. Em casa, quando es-
tava lendo ou escrevendo, não lhe sentia se-
quer os passos. E sempre disposta a servi-lo,
sem uma queixa, sem uma rusga, espalhan-
do alegria e confiança em seu redor. Da irmã,
acabara por saber que morrera em Minas Ge-
rais, para os lados de Congonhas do Campo,
já velha e muito chorada pelos antigos senho-
res, dos quais não se quisera separar depois
da abolição. No balanço da vida, pungia-lhe
60 / 58
Índice
apenas a tristeza de nunca ter tido notícias do
Balbino. Mas consolava-se com a certeza de
que, onde quer que estivesse, na Terra ou no
Céu, não andaria fazendo má figura.
– Que Deus olhe por ti, meu filho – suspirou.
E ainda com o dedo indicador interposto nas
folhas do livro, os olhos no ar, reclinou a ca-
beça no espaldar da cadeira, de coração re-
conhecido. Vira nascer agora o seu primeiro
trineto, e era ainda um homem de cabeça lúci-
da, passo firme e memória feliz. Vivia rodea-
do de lembranças, na velha casa onde duas
vezes se casara, e ali aprimorara a inclinação
para encontrar nos livros a complementação
da vida, com o gosto da leitura. Para ler, gra-
ças a Deus, nunca precisara de óculos. De vez
em quando, sem qualquer aviso, entrava-lhe
corredor adentro, com seu cavanhaque bem
aparado, os olhos faiscantes, muito bem ves-
tido, um cravo vermelho na lapela, o Dr. Luís
Domin- gues, governador do Estado, sempre
lhe trazendo um novo livro de presente, além
da lembrança de uma rosa ou de um vidro de
perfume para a Benigna, a quem chamava
de “minha madrinha”. Aos domingos, reunia
à sua volta, com os panelões que a Benigna
preparava como ninguém, a filha, os netos e
os bisnetos, com as mulheres e os maridos, e
ainda alguns amigos mais chegados, e era tão
grande a algazarra dentro de casa, que até
o papagaio protestava, ralhando todo mundo
de cima de seu poleiro. No Largo do Carmo,
dia sim, dia não, tinha a sua roda de compa-
nheiros, em volta de uma fonte onde cantava e
reluzia um repuxo. Nos outros dias, ia à Biblio-
teca Pública, e ali conversava com o seu ami-
go Astolfo Marques, que andava a coligir uma
seleta de autores maranhenses, a que dava
também a sua colaboração. Se mandava um
61 / 58
Índice
artigo para a Pacotilha, via-o sempre na pri-
meira página. Na rua, não eram apenas os
amigos que o saudavam, com mostras de re-
verência: até mesmo pessoas desconhecidas,
com as quais casualmente se encontrava, tira-
vam-lhe respeitosamente o chapéu. Da vida,
que mais podia querer?
Sentindo o ar abafado, levantou-se, abriu a
porta do meio, deixando correr o vento da rua
pela casa. E outra vez na cadeira de balan-
ço, abriu ao acaso uma das elegias de Oví-
dio. Depois, de olhos cerrados, repetiu-a, ver-
so a verso, parte pelo gosto de recordar, parte
para sentir que a memória ainda lhe era fiel.
E ia volver ao livro, para ler uma nova elegia,
quando ouviu os passos da Benigna, desta
vez soando alto nos ladrilhos do corredor. In-
terrompeu a leitura e ficou esperando por ela,
com uma certa ansiedade, ao perceber-lhe no
rosto contraído uma expressão nervosa.
Depois de uns momentos, não conteve mais
a pergunta:
– Que é que tens, minha filha?
Ela se deixou cair numa cadeira ao seu lado,
ainda ofegante. E de mãos frias, os olhos
assustados:
– Ah, meu filho, nem te conto. Aqui em São
Luís, ontem de noite, houve um crime medo-
nho. Morreram duas pessoas. Imagina que foi
assassinado o dono daquele botequim da Rua
Grande que faz esquina com a Rua do Passeio
e também um preto, de meia idade, que tinha
acabado de desembarcar, vindo de Liverpool,
para fazer surpresa ao pai, que não via desde
que saiu daqui. Ele desceu do vapor já meio
bêbado, com muito dinheiro na carteira, e foi
para o botequim da Rua Grande, levado por
um espanhol. Lá o espanhol matou ele com
uma punhalada, para lhe roubar a carteira,
62 / 58
Índice
e depois matou o dono do botequim com uma
paulada. Um horror. Me contaram tudo na
igreja. Na cidade, não se fala de outra coisa.
Damião tinha deixado cair as mãos sobre as
pernas, tomado de um pressentimento terrível,
que era quase uma certeza. Preto? De meia
idade? Que vinha ver o pai? E vindo de Liver-
pool? E se fosse mesmo seu filho? Ficou uns
momentos cm silêncio, o olhar parado, sem co-
ragem de comunicar o seu temor à companhei-
ra. A tragédia pareceu-lhe brutal demais para
o seu fim de vida. E ainda atordoado, com uma
sensação repentina de secura queimando-lhe
a boca, pediu à Benigna que lhe fosse buscar
um copo d’água.»
M.Sc Administração Universitária, University of Alabama; PhD em Literatura Latino
Americana, University Illinois, membro da Academia Maranhense de Letras.
Sebastião Moreira Duarte
63 / 58
Índice
Comemorado pelos cristãos de toda orbe, a festa do Na-
tal é tempo de corações abrandados pela presença de Deus
conosco, é tempo de fazer as pazes entre os que estão bri-
gados, pois o menino-Deus está no meio de nós e estando
Deus, ainda que Deus-criancinha, vivendo com os homens,
não se pode, nem se deve, viver com quizilas, futricas e
disse-me-disse. Devem-se deixar de lado os egoísmos que
durante o ano atrapalharam a comunhão com o próximo.
É tempo de viver em fraterna alegria com todos. É tempo de
partilha. É o tempo natalino! É ou não é?
João Dias Rezende Filho
O Natal ainda existe?
Foto:AlbaniRamos
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Índice
Como um escritor-cristão ou um cristão-escritor, ou pelo
menos um mero escrevinhador, já que escritor soa, certa-
mente, pretensioso e acadêmico, pois bem, como eu dizia,
como um escrevinhador e com algum apreço que tenho pela
História começo traçando brevemente as origens do Natal.
As primeiras notícias sobre a comemoração pelos cristãos
do nascimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus, datam,
pelo menos no Oriente, de fins do século I, ainda que fosse
comemorado no dia 06 de janeiro, em vez do hoje tradicio-
nal 25 de dezembro ocidental, em conexão com a festa dos
chamados Reis Magos, ou, em grego, festa da epifania, que
significa fenômeno milagroso, aparição maravilhosa. Cristo
se revela em seu nascimento, mas revela-se, de modo exce-
lente, às nações todas, representadas pelos três reis-magos
e suas peles branca, amarela e negra, quando lhe visitam
recém-nascido na estrebaria de Belém.
No Ocidente, o Mistério de um Deus que se encarna e
torna-se verdadeiro homem sem deixar de ser verdadeiro
Deus é comemorado, segundo a mais antiga “folhinha” de
que se tem notícia e que não é a do Sagrado Coração, tão
popular entre os católicos de hoje, e sim o cronógrafo de
354, pelo menos desde o século IV.
Fontes diversas, como os comentários de São Cipriano de
Cartago e São João Crisóstomo, ligam a origem da come-
moração natalina com uma festa em honra ao Solis invictus
(o sol invicto ou invencível); outras fontes ligam a festa do
Natal aos festivais de inverno em que se dançava até altas
horas da madrugada em honra de deuses pagãos. O certo
é que muita coisa da cultura dita pagã ou pré-cristã euro-
peia foi “batizada” e acolhida no seio do cristianismo em
um legítimo abraçar de culturas e costumes diversos que
resultou em um hibridismo muito natural e hoje familiar a
todos. Assim, o dia 25 de dezembro não é a data real, isto é,
histórica do nascimento de Cristo, mas uma data litúrgica,
de natureza cultual, que foi introduzida na Igreja Católica
no século IV para substituir o festival pagão do solstício de
inverno, cristianizando costumes antiquíssimos daqueles
povos.
65 / 58
Índice
Em seu Segundo Sermão no Natal do Senhor, o Papa Leão
Magno (por volta do ano 440 d.C.) condena o costume que
muitos ainda possuem no dia 25 de dezembro de cultua-
rem o sol e outros astros, ou seja, criaturas, em lugar do
Sol verdadeiro, o Cristo. Diz São Leão Magno: “Caríssimos,
animados da confiança que nasce de tão grande esperan-
ça, permanecei firmes na fé sobre a qual fostes estabeleci-
dos, para que esse mesmo tentador, de cujo domínio Cristo
vos subtraiu, não vos seduza novamente com algumas de
suas ciladas e não corrompa as alegrias próprias deste dia
mediante a habilidade de suas mentiras. Porque ele zom-
ba das almas simples, servindo-se da crença perniciosa
de alguns, para os quais a solenidade de hoje recebe sua
dignidade não tanto do nascimento de Cristo quanto do
levantar-se, como eles dizem, do ‘novo sol’. (...) Longe das
almas cristãs essa superstição ímpia e essa mentira mons-
truosa. Nenhuma medida poderia traduzir a distância que
separa o eterno das coisas temporais; o incorpóreo, das coi-
sas corporais; o Senhor, das coisas que lhe são submeti-
das, porque, embora elas tenham uma beleza admirável,
não tem a divindade, a única que deve ser adorada”. (1996:
42 e 43)
Sobre o ano exato do nascimento, sempre houve na Igreja
uma preocupação em datar os eventos importantes da vida
de Cristo, e com o Natal não seria diferente. Os Evangelhos
fornecem algumas pistas para a datação do nascimento de
Cristo, mas são insuficientes. Em Mateus, há a referência
ao governo de Herodes, o Grande (Mt 2,1); em Lucas, faz-
-se alusão a Quirino como governador da Síria (Lc 2,2). São
duas indicações muito vagas que necessitam do comple-
mento de outras fontes, como a do escritor e historiador ju-
deu Flávio Josefo. Segundo Josefo, Herodes morreu antes
da Páscoa do ano 750 da fundação de Roma ( em latim ab
Urbe condita). A Páscoa neste ano teria caído no dia 11 de
abril. Já Lucas faz referência ao censo convocado através
do edito do Imperador César Augusto. O censo foi reali-
zado no ano 746 da fundação de Roma. Se Cristo nasceu
na época do censo e quando Herodes ainda vivia, logo terá
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Brasileiros no Mundo

  • 1. ISSN2238-4413 número 7 dezembro 2012/janeiro 2013 São Luís, por seus romancistas Sebastião Moreira Duarte Brasileiros no mundo Álvaro Lima O Natal ainda existe? João Dias Rezende Filho Calçadas de São Luís Ricado Laender Perez “Seu” Google é o tal! Antôno Nelson Faria
  • 2. ÍNDICE NÚMERO 07 - DEZEMBRO 2012 / JANEIRO 2013 São Luís, por seus romancistas Calçadas de São Luís Ricardo Laender Perez Brasileiros no mundo Álvaro Lima Sebastião Moreira Duarte Apresentação Associados Expediente O Natal ainda existe? João Dias Rezende Filho é o tal! “Seu” Antônio Nelson Faria
  • 3. A sétima edição da revista Plural oferece aos leitores artigoscomtemasvariados,escritosporespecialistasdo naipe de Sebastião Moreira Duarte, dos mais assíduos em nossas páginas, que descreve, utilizando-se da literatura de Aluísio Azevedo, Nascimento Morais e Josué Montello, “um passeio pelas ruas de São Luís do Maranhão”; Ricardo Laender Perez brinda-nos com um atualíssimo e esclarecedor escrito sobre as dificuldades que os pedestres sofrem ao praticar uma das tarefas mais primárias da nossa vida: andar; Álvaro Lima trata da saga dos imigrantes brasileiros, presentes em um número cada vez maior de países; Antônio Nelson Faria, com seu costumeiro bom humor, apresenta-nos “Seu” Google e as maravilhas de que é capaz; finalmente, João Dias Rezende Filho, estreante em nossa revista, faz uma reflexão sobre o Natal, que se aproxima, e as adaptações que vem sofrendo com o passar do tempo. Esta é a última edição do ano. Boas festas e muito sucesso em 2013. Jorge Murad Presidente do Conselho Deliberativo Instituto Geia APRESENTAÇÃO
  • 4. SÃO LUÍS, POR SEUS ROMANCISTAS Sebastião Moreira Duarte 4 / 58 Foto:AlbaniRamos Índice
  • 5. 5 / 58 Índice Que outra cidade no Brasil terá sido tão celebrada, em prosa e verso, quanto São Luís do Maranhão? O Rio de Janeiro, talvez, por muito tempo capital política do País e, ainda hoje, centro de referência número um da cultura nacional. Talvez a Bahia, a cidade do Salvador, sobretudo através da recriação imaginária de Jorge Amado. O Recife, quem sabe... Que motivos encontraram, na capital maranhense, quan- tos por ela se encantaram, desde quando aqui se estabe- leceram os primeiros colonizadores? Falando bem, como Claude d’Abbeville e Simão Estácio da Silveira (um, dan- do por certo que esta era a melhor terra dos domínios portugueses, o outro, afirmando que por esses lados do mundo Deus inaugurara o Paraíso Terrestre), ou falando mal (conforme era o gosto do Padre Antônio Vieira, para quem o Maranhão e seus colonos faziam uma amostra do inferno, deixada na terra por Deus como aviso prévio aos pecadores), fato é que a cidade de São Luís poderia ser re- constituída, sem dificuldade, em sua paisagem física e so- cial, pelo que dela registraram os seus homens de letras, apagados quando fossem outros os vestígios que a distin- guem como das mais documentadas entre as criações ur- banas em chãos do Brasil. Mérito deles, escritores, desde as ficções do Padre Vieira, até Aluísio Azevedo e Josué Montello? Sim, sem dúvida, dado o pendor para as artes da escrita exibido pelos natu- rais da terra e por outros mais que para cá manobraram o próprio destino, a partir de João de Barros, donatário da Capitania do Maranhão, gramático e primeiro romancista da língua portuguesa. Certo, porém, a cidade mesma, por aliciamentos que remontam à memória de sua gente, sua antropologia, sua arquitetura, sua geografia, escancara-se como obra de arte ao sol do equador, cenário e convite a que a imaginação se acenda, e acrescente, à riqueza da histó- ria e de seu panorama largo, o teatro da invenção literária, cujas figuras nos levam ao reencontro dos atores reais que fizeram os quatro séculos da Cidade quatrocentona. É o que pretendemos demonstrar com esta recolta de trechos de romances maranhenses, que nos propiciarão o
  • 6. prazer de um passeio pelas ruas de São Luís do Maranhão, em meio às quais haveremos de flagrar, transcriados para a letra impressa, a formação civilizatória de nossa gente. Pode dizer-se que o prestígio da literatura maranhense faz paralelo à presença de São Luís nas páginas de nossa fic- ção. Alguns dos nossos melhores narradores – e cujo nome corre também entre os maiores do Brasil – encontraram aqui o meio e modo exatos para dar vida e movimento às suas criaturas ficcionais. E veja-se que nos restringimos à ficção extensa e passamos ao largo dos numerosos poetas de que o Maranhão tem sido pródigo. Neste primeiro segmento, trazemos amostras de três dos nossos melhores romancistas: Aluísio Azevedo (1857-1913), Nascimento Morais (1882-1958) e Josué Montello (1917- 2006), em cujas páginas é possível acompanhar, como em sequência cronológica, a presença do negro em nosso am- biente e sua contribuição para moldar, com feições singu- lares, o modus vivendi dos maranhenses. Foto:AlbaniRamos 6 / 58Índice
  • 7. Jornalista,caricaturista,romancista, inaugurou no Brasil a escola naturalis- ta, de que foi o melhor representante. Trocou depois a carreira literária pela diplomacia, tendo servido em países da América Latina, Europa, e Japão. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em Buenos Aires. Dei- xou obra numerosa, de que se desta- camosromancesOmulato(1881),Casa de pensão (1883) e O cortiço (1890). O mulato, objeto de escândalo e polêmica quando saiu em São Luís, foi alterado, em partes do texto e da trama, na edi- ção do Rio de Janeiro (B. L. Garnier, 1889), que passou a ser a mais conhe- cida. Demos preferência à edição ma- ranhense dessa obra (Maranhão, Tipo- grafia d’O País), de que transcrevemos o primeiro capítulo, com a atualização da ortografia, da pontuação e de algu- mas palavras: dois por dous; noite, por noute; coisa, por cousa; infantaria, por infanteria, etc. ALUÍSIOAZEVEDO (1857-1913) 7 / 58Índice
  • 8. 8 / 58 Índice “Era uma dia abafadiço e aborrecido. A cidade de São Luís do Maranhão parecia adormecida em um forno quente – as paredes tinham reverberações argentinas; as pedras das ruas escaldavam; as vidraças faiscavam ao sol, como enormes diamantes; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d’água, pesadas e ruidosas, passavam com grandes e sonoros estalos nas pedras da rua, e os agua- deiros, em mangas de camisa e pernas arrega- çadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos da cidade não se via viva alma na rua – estava tudo concentrado, ador- mecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho. A Praça d’Alegria tinha um aspecto fúne- bre e hipocondríaco – estava solitária, triste; de um casebre miserável, de porta e janela, ouviam- se gemer armadores enferrujados de rede, e uma voz tísica e aflautada de mulher cantar em falsete A gentil Carolina era bela; de um outro lado uma preta velha, vergada por um imenso tabuleiro, sujo, seboso, cheio de sangue coalhado e coberto por um enxame de moscas, apregoava em tom muito arrasta- do e melancólico: Fígado, rins e coração! Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar os quadris maternos, com as ca- beças avermelhadas pelo sol, a pele cresta- da, os ventres salientes e amarelos, corriam e guinchavam, empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua, suado, vermelho, afogueado, com o enorme chapéu de sol aber- to. Os cães, estendidos nas calçadas, tinham
  • 9. 9 / 58 Índice gemidos humanos, sensuais e movimentos irascíveis, mordiam freneticamente o ar, que- rendo morder os mosquitos. Ouvia-se apregoar ao longe “Arroz de Veneza, mangas e limões.” As quitandas vazias fermentavam um cheiro acre de sabão da terra e aguardente; o qui- tandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava seu aborrecimento pesado e morrinhento, aca- riciando o enorme pé descalço e espalmado. Da praia de Santo Antônio enchia a cidade um som monótono e invariável de uma buzi- na, que anunciava peixe; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixei- ras, negras, com os tabuleiros na cabeça, re- bolando os grandes quadris trêmulos e as te- tas opulentas. A Praia Grande e a Rua da Estrela contras- tavam com o resto da cidade – era a hora do movimento comercial; cruzavam-se em todas as direções homens apressados e vermelhos; pretos no carreto e caixeiros fumando cigarros de papel ordinário; avultavam os paletós-sa- cos de brim pardo, marcados nas espáduas e nos sovacos por grandes manchas de suor. Os corretores de escravos examinavam os pretos e moleques, revistando-lhes os dentes, os pés, as virilhas, fazendo-lhes perguntas sobre per- guntas, e como bons entendedores da merca- doria, batiam-lhes com a biqueira do chapéu nosombrosenaspernas,experimentando-lhes o vigor da musculatura, como se estivessem a comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo das amendoeiras ou nas portadas dos arma- zéns, discutia o câmbio, o preço do algodão, a taxa do açúcar, a tarifa dos gêneros nacio- nais; os volumosos comendadores resolviam negócios, faziam transações, perdiam, ganha- vam, tratavam de embarrilar uns aos outros
  • 10. 10 / 58 Índice com boa gíria comercial, gestos amigáveis e chalaças confiadas. Os leiloeiros cantavam os preços das mercadorias com grande e afetado abrimento de vogais – diziam mal rais em vez de mil réis; nas portas dos leilões aglomera- vam-se os que queriam comprar e os simples curiosos. Corria um sussurro baixo e reles de feira. O leiloeiro tinha piscos d’olhos significati- vos. De martelo em punho, entusiasmado, o ar teatral, mostrava com o braço erguido um cálice contendo a amostra da cachaça ou, comicamente acocorado, esbrocava com o fura- dor os paneiros de farinha e de milho E, quan- do chegava a vez de vender, repetia, gritando amiudadas vezes, o preço da mercadoria, e batia por fim com grande barulho na pipa de água-ardente ou no lote de caixões de batatas, arrastando muito a voz em um tom cantado e estridente. Viam-se deslizar imponentemente pela praça os monstruosos ventres dos capitalistas; en- contravam-se cabeças escarlates e descabela- das pingando suor por debaixo do chapéu alto de pelo – o sorriso de proteção, a boca dilatada pelo calor, a perninha lépida e suada na calça de brim de Hamburgo. Havia uma atividade convencional, porém cheia de movimento, fogo e agitação; até os ricos ociosos, os caixeiros que faziam cera e os simples curiosos afetavam preocupação e pressa. A varanda do sobrado de Manuel Pescada, uma varanda larga e sem forro no teto, mos- trando as ripas e os caibros que sustentavam as telhas, tinha um aspecto pitoresco, com sua vista para o rio Bacanga, suas rótulas
  • 11. 11 / 58 Índice pintadas de verde-paris, toda aberta para o quintal onde, à mingua de sol, mirravam-se duas pitangueiras anêmicas e esgalhadas, e passeava solenemente um pavão da terra. As paredes, barradas de azulejos portugueses e forradas para cima de papel pintado, mostra- vam nos grupos repetidos de zuavos franceses e chins caricatos, alguns lugares sem tinta, cujas manchas brancas lembravam joelheiras de calças surradas. Em uma das paredes la- terais um velho armário de jacarandá polido, bem cuidado, com as vidraças muito lustradas a cré, expunha as pratas e as porcelanas de gosto moderno; a um canto uma máquina de costura de Wilson, das primeiras que vieram ao Maranhão, dormia esquecida na sua cai- xa de pinho envernizado; nos intervalos das portas simetrizavam ridiculamente litografias vulgares representando estudos de Julien; em uma das cabeceiras da sala um relógio de ar- mário pulsava monotonamente os segundos e apontava flegmaticamente duas horas da tar- de. Sob a claridade reverberante que vinha do quintal, permaneciam ainda a louça do almoço, a garrafa oitavada com um resto de Colares e a toalha branca, cheia de côdeas de pão e pin- gos de chá, onde as moscas banqueteavam-se com grande zunido, prendendo-se nas facas sujas de manteiga. De uma gaiola pendurada chilrava um sa- biá. Fazia preguiça estar ali – a viração do Ba- canga refrescava o ar abafado da varanda e criava no ambiente um tom morno, que enerva- va os sentidos; sentia-se o quebranto dos dias inúteis, uma vontade de abrir a boca e esticar as pernas.
  • 12. 12 / 58 Índice De fronte, do outro lado do Bacanga, a ve- getação do Anjo da Guarda convidava a uma sesta descansada e feliz das mangueiras, dei- tado no capim. As árvores tinham estremeci- mentos voluptuosos e pareciam abrir de longe os braços, provocando amores. – Então, que me respondes, Ana Rosa? – dis- se Manuel, estendendo-se mais na cadeira à cabeceira da mesa. – Olha, filha! Sabes que não te contrario, desejo este casamento, mas em primeiro lugar quero saber se é de teu gosto. Vamos... fala!. E voltando-se para o interior da casa: – En- tão esta mesa não se levanta hoje, moleque?! Ana Rosa não respondeu, continuou assen- tada ao lado do pai, distraída a mexer com uma colherzinha os resíduos de chá e açúcar no fundo da xícara. Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por Manuel Pescada, era um português de uns cin- quenta anos, forte, vermelho, bom e sadio, ati- lado para o comércio e amigo do Brasil e dos brasileiros; dava-se à leitura constante dos jornais portugueses; em rapaz decorara res- peitosamente Camões e não ignorava de todo a existência do Garrett; sempre fora fanático pelo Marquês de Pombal, de quem sabia vá- rias anedotas e tinha uma assinatura no Ga- binete Português de Leitura, que chegava para ele e para a filha, que em compensação era uma devoradora de romances. Manuel Pedro fora casado com uma senho- ra brasileira, de Alcântara, chamada Mariana, muito virtuosa, rigorosíssima em coisas de re- ligião, como a maior parte das senhoras brasi- leiras. Quando morreu deixou em legado seis escravos para Nossa Senhora do Carmo. A filha ficou com dez anos e Manuel Pedro
  • 13. 13 / 58 Índice desamparado; foi uma época triste para am- bos. Moravam neste tempo no Caminho Gran- de, em uma casinha térrea, para onde a molés- tia da mão de Ana Rosa os levara em busca de novos ares; porém Manuel, que era negociante e tinha o seu armazém na Praia Grande, mu- dou-se logo para o sobrado em que o vimos na rua da Estrela, e em cujos baixos há dez anos prosperava. Para não ficar só com a filha que estava se fa- zendo uma mulher, convidou a sogra, D Maria Bárbara, a fazer companhia à neta e mesmo para guiá-la, encaminhá-la bem. – Um homem nunca servia para essas cousas e se fosse a chamar uma preceptora – o que não diriam por aí?... No Maranhão falava-se de tudo. D. Ma- ria Bárbara que viesse – estaria como em sua casa, bom quarto, boa mesa e plena liberdade. A sogra aceitou e lá foi, carregando seus cin- quenta e tantos anos, alojar-se em casa de Manuel com seus moleques, suas crias e os cacaréus ainda do tempo do defunto marido. Mas em breve, o bom português arrependeu- -se da má aquisição que fizera. – D. Maria Bár- bara, apesar de uma senhora piedosa, de não sair do quarto sem estar bem penteada; sem faltar-lhe nenhum dos cachinhos de seda pre- ta, com que emoldurava disparatadamente o rosto pálido e enrugado, apesar de seu grande fervor religioso e das missas que absorvia quo- tidianamente, saíra-lhe má dona de casa – era uma víbora! Dava nos escravos por hábito e por gosto, só falava a gritar e quando punha- -se a ralhar – Deus rios acuda! –, incomoda- va toda a vizinhança. Enfim, era insuportável, mas o que se pode chamar insuportável! Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das velhas maranhenses criadas na fazenda –
  • 14. 14 / 58 Índice tratava muito dos avós, eram quase todos portugueses, muito orgulhosa, muito cheia de escrúpulos de sangue; sempre que falava nos pretos dizia – os negros, os sujos! e quando se referia a um mulato, dizia – o cabra! Fora sempre devota; em Alcântara tivera uma ca- pela de Santa Bárbara e obrigava a escrava- tura a rezar todas as noites, em coro, com os braços abertos, às vezes algemados. Falava com grandes suspiros do marido – do seu João Hipólito –, um português fino, de olhos azuis e cabelos louros. Este João Hipólito fora brasileiro adotivo e alcançara boa posição oficial na Secretaria do Governo; morreu como posto de coronel. Maria Bárbara tinha grande admiração pe- los portugueses, falava deles com entusiasmo erótico, preferia-os aos brasileiros. Quando a filha foi pedida por Manuel Pedro, então princi- piante no comércio, dissera: – Bom! Ao menos tenho certeza de que é branco! Porém Manuel nunca fora amado pela mu- lher; a virtude fizera dela esposa dedicada, mãe extremosa, mas fria para o marido, foi tal- vez mártir. A mãe de Ana Rosa dedicara-se desde os quinze anos, com o entusiasmo do primeiro amor, ao nosso talentoso José Cândido de Mo- raes e Silva, conhecido popularmente pelo Fa- rol, mas não lograra casar com ele, nem só em razão das perseguições políticas que tão cedo atribularam a pequena vida dessa bela crian- ça, como também pela oposição inflexível que tal ideia encontrou na família de Mariana. Entretanto dizia ela amargamente – tinha sua felicidade presa à sorte do desventurado maranhense. É que sentira-lhe a mágica in- fluência que os homens superiores exercem
  • 15. 15 / 58 Índice sobre a mulher – vira-lhe os olhos claros e inte- ligentes, onde o amor deveria de ter um reflexo especial, ouvira a música que ele, nos serões de família, arrancava de seu violão inspirado e os bonitos versos que compunha para a na- morada –, naquela fronte tão nova e já tão im- ponente admirava a virilidade do talento revo- lucionário e o heroísmo brilhante de um gênio superior à época em que floresceu! E tudo isso, como é muito natural, arrebatava-a para ele com todo o ardor do primeiro desejo. Quando o grande herói morreu, na Rua dos Remédios, vítima de seu talento e de sua leal- dade, escondido, perseguido, cheio de neces- sidades, odiado, temido e adorado, tendo ape- nas vinte e cinco anos, a pobre senhora deitou luto e nunca mais se enfeitou. – Não tinha gos- to para nada – dizia. Ficou mais feia e entris- teceu até morrer, três anos depois. Ana Rosa era nesse tempo uma criança, porém a mãe ensinara-lhe a respeitar e com- preender a memória do talentoso revolucioná- rio, cujo nome despertava ainda entre os portu- gueses a raiva antiga do motim de 7 de agosto de 1831. – Minha filha – disse a mãe de Ana Rosa em vésperas da morte –, nunca te deixes casar sem sentires muito amor pelo homem que te destinarem. Pensa bem no que te estou dizen- do – não cases no ar! O casamento, filha de minh’alma, deve ser sempre a consequência de duas inclinações – a gente se deve casar porque ama, e nunca ter de amar porque se casou; se fizeres o que te digo, serás feliz! – concluiu, pedindo à filha que prometesse, no caso que viessem a obrigá-la a casar, de ar- rostar tudo, tudo, para evitar semelhante coi- sa, principalmente se ela já gostasse de outro;
  • 16. 16 / 58 Índice e então por esse outro, sim – fizesse sacrifícios, dedicasse-lhe toda a sua vida, porque isso era a verdadeira virtude. E foram estes os conselhos que a infeliz mu- lher de Manuel legou à filha. Ana Rosa não os compreendeu logo, decerto, nem tão cedo pro- curou compreendê-los, porém tão ligados esta- vam eles à morte da mãe, que não lhe acudia esta à memória sem as palavras da moribun- da. Manuel Pedro, apesar de bom, era um des- ses homens pouco susceptíveis aos sentimen- tos muito delicados; seria um bom esposo para outra mulher, nunca compreendeu porem a que lhe coube, e é de supor até que chegasse a aborrecê-la. Quando viu-se viúvo não sentiu, a despeito do coração, mais do que a falta de uma companheira com quem já se tinha habi- tuado; contudo não pensou em tornar a casar, convencido que o afeto da filha lhe chegaria de sobra para amenizar canseiras do trabalho, e os bons serviços da sogra para zelar pela de- cência de sua casa e pelos buracos de suas meias. Ana Rosa cresceu, como se pode calcular, entre os cuidados insuficientes do pai e o mau gênio da avó; ainda assim aprendera a gra- mática, lera alguma coisa, sabia rudimentos do francês e tocava modinhas sentimentais ao violão e ao piano. Era porém inteligente, tinha intuição da virtude, bonito modo e lamentava não se ter instruído mais. Conhecia muitos tra- balhos de agulha, bordava bem e tinha uma voz boa que era um gosto! Em pequena servira várias vezes de anjo da verônica nas procis- sões da quaresma; e os cônegos da Sé gaba- vam-lhe o metal da voz e davam-lhe grandes cartuchos de amêndoas de mendubim, muito
  • 17. 17 / 58 Índice enfeitados com suas pinturas toscas a goma arábica e tintas de botica. Ana Rosa, nessas ocasiões, sentia-se ra- diante, com as faces rubradas de carmim, os cabelos retorcidos em cachos artificiais, gran- de roda no vestido curto como uma dançarina francesa. E muito concha, ufana de seus ga- lões e de suas asas de papelão e escomilha, caminhava triunfante e feliz, entre as irman- dades, segurando a extremidade de um lenço que lhe dava a segurar o pai. Isto eram pro- messas feitas pela mãe ou pela avó em dias de grande enfermidade. Ana Rosa crescera bonita de formas, sadia, tinha os olhos pretos e os cabelos castanhos de Mariana e puxara os dentes fortes e as rijezas do pai. Aos vinte anos era o santo Antoninho de casa – senhores e escravos tinham-na por senhora –, mandava, resolvia a seu bel-prazer. Com a puberdade apareceram-lhe caprichos românticos e fantasias poéticas –gostava dos passeios ao luar, das serenatas, tinha um quarto de estudo, uma variada biblioteca de romancistas e poetas, à cabeceira da mezinha de trabalho o retrato do Farol, que herdara de Mariana, sobre a estante um Paulo e Virgínia de biscuits. Lera com entusiasmo a Graziella e o Raphaël de Lamartine, e à noite, antes de dor- mir, procurava construir o sorriso que possuía a procitana quando fitava o amante. Praticava bem com os pobres, adorava os passarinhos e não podia ver matar junto de si urna borbo- leta. Um bocadinho supersticiosa – não que- ria as chinelas emborcadas debaixo da rede e aparava os cabelos durante o quarto-cres- cente da lua –, não porque acreditasse nessas coisas! justificava-se ela – mas fazia porque os outros faziam. Tinha sobre a cômoda um
  • 18. 18 / 58 Índice cromo litográfico de Nossa Senhora dos Remé- dios e rezava-lhe todas as noites. Dava a vida por um passeio ao Cutim, e quando soube que se projetava uma linha férrea de bondes até lá teve uma alegria nervosa e feliz. Feitos os dezenove anos, Ana Rosa pouco e pouco principiara a descobrir em si sintomas esquisitos e crescentes, sentiu que qualquer transformação importante se operava em seu espírito e em seu corpo – sobressaltavam-na tristezas infundadas e temores ideais. Um dia acordou mais preocupada – assentou-se cis- mando na rede, e, com grande espanto, repa- rou que seus membros se tinham arredonda- do, que a linha curva suplantara a reta e que suas formas eram inteiramente de mulher –, veio-lhe um contentamento estranho e violen- to, porém pouco depois entristeceu – sentiu-se só, não lhe bastava o amor do pai e da avó, queria uma afeição mais exclusiva, um afeto mais dela. Lembrou-se então de seus namora- dos, riu-se – Coisas de criança! Aos doze anos namorara um estudante – conversaram três ou quatro vezes nas salas do pai e supunham-se deveras apaixonados um pelo outro; o estu- dante seguiu para a Escola Central da Corte e ela nunca mais pensou nele. Depois foi um ofi- cial de Marinha – como lhe ficava bem a farda! Que moço engraçado! Bonito! E como sabia se vestir!... Ana Rosa chegou a principiar a bor- dar um par de chinelas para oferecer ao gentil namorado, antes porém de terminar o primeiro pé, já ele tinha desaparecido na corveta Baia- na. O outro, um empregado do comércio – bom rapaz, cuidadoso da roupa e das unhas. Pa- recia que ainda o estava a ver: todo metódico, escolhendo palavras para pedir-lhe a subida honra de dançar com ela uma quadrilha no
  • 19. 19 / 58 Índice Clube União. Ah tempos, tempos! E não queria mais pensar nisso: criancices! Criancices! Hoje ela queria, mas era o marido, o seu! O verda- deiro! O legal homem de sua casa! O dono de seu corpo, a quem ela pudesse amar aberta- mente como amante e obedecer como escrava. Queria se dedicar a alguém, sentia necessida- de de aplicar sua atividade em governar uma casa e educar muitos filhos. E com estas ideias vinha-lhe sempre um arre- piozinho de febre – ficava excitada, idealizan- do um homem forte, corajoso, com um bonito talento, e capaz de se matar por amor dela! E debuchava em seus sonhos agitados um vulto confuso, que galgava a galope precipícios me- donhos para chegar onde ela estava – merecer- -lhe um sorriso, uma esperança de casamento. E sonhava o noivado – um banquete esplêndi- do e um mancebo formoso e impaciente, a seu lado, queixando-se com um olhar terno e varo- nil da demora dos convivas. Depois via-se dona de casa – pensando mui- to nos filhos, sonhava-se feliz, independen- te, presa ao ninho e às cadeias do marido, e imaginava umas criancinhas louras, engraça- das, dizendo ternas asneirinhas, chamando-a mamã. – Como devia ser bom!... Como havia mulheres que se não casavam!... Não podia admitir o celibato, o convento, principalmente para a mulher. Um homem, vá! Viveria triste, só! Mas enfim sempre era um homem! Teria outras distrações! Mas uma mulher! Que me- lhor futuro poderia ambicionar que o casamen- to? Que melhor prazer do que a maternidade! Que melhor companhia do que a dos filhos, esses diabinhos tão feiticeiros?! Além de tudo isso – ela sempre gostara muito de crianças –, pedia-as emprestado às mães e as demorava
  • 20. 20 / 58 Índice quanto fosse possível em sua companhia; ti- nha um afilhado de dois anos, para quem cosia camisas, com paciência, boa vontade, gostava de vestir bonecas e, quando alguma de suas amigas se casava, Ana Rosa sempre guarda- va um cravo do casamento, com muita fé – pre- gava-o no vestido com os alfinetes dourados da noiva, e, depois de tudo isto, suspirava lon- gamente, com o desânimo do viajante que já se sente cansado e não avista ainda o lar. Mas o noivo onde estava que não vinha?! Esse mancebo tão ardente, tão romântico, tão apaixonado, por que não se apresentava? Dos homens que conhecia nenhum decerto po- dia ser! E não obstante ela amava! A quem? Não sabia, mas amava! Sim! Fosse um ideal, fosse o que fosse, mas ela sentia estremeci- mentos pensando nele, chorava, ria, estorcia- -se, soluçava e chamava-se infeliz, desgraça- da. Os dias foram se passando no aborrecimento de seu celibato e nada!... Ana Rosa principiou a emagrecer a olhos vistos, dormia menos, à mesa mal tocava nos pratos. – Ó pequena! Tu tens alguma coisa! – disse- -lhe um dia o pai, já maçado com o ar doentio da filha. – Não me pareces a mesma! Que é isso, Anica?! – Não era nada!... E Ana Rosa sobressaltava-se, como se tives- se cometido uma falta. – Andaço! Incômodo de nervos! – Não era coisa que valesse a pena!... E chorava. – Olha! Aí temos! Agora estás a chorar! Nada! É preciso chamar o médico! – Chamar o médico?! Ora, papai! Não vale a pena! E tossia. – Que a deixassem em paz! Que
  • 21. 21 / 58 Índice não a estivessem apoquentando com pergun- tas!... E tossia mais, sufocada. – Vês?! Estás achacada! Levas nesse chrum chrum! chrum, chrum! E arremedava a tosse da filha: – E é só. – Não vale a pena! Não precisa chamar o médico! – Não, senhora, com moléstias não se brinca! O médico receitou banhos de mar na Pon- ta d’Areia. Foi um tempo delicioso para Ana Rosa os três meses que passou lá – os ares da costa, os banhos de choque, os passeios a pé abriram-lhe o apetite e trouxeram-lhe algum sangue; ficou mais forte, chegou a engordar. Na Ponta d’Areia travara uma nova amiza- de: D. Eufrasinha. Era viúva de um oficial do Quinto d’Infantaria, que morreu na guerra do Paraguai. Eufrásia era muito romântica – falava, reque- brando-se, do marido e poetizava-lhe a curta história. – Dez dias depois de casado partira para o campo de batalha e, no denodo de sua coragem, fora atravessado por uma bala de ar- tilharia, morrendo a balbuciar com o lábio en- sanguentado o nome da esposa estremecida! E com um enorme suspiro histérico a viúva concluía, pesarosa: – Que conhecera prazeres nesta vida apenas dez dias e dez noites!... Ana Rosa lamentava muito a amiga e ou- via-lhe de boa-fé as frioleiras, com atenção e recolhimento, cheia de ingênua sinceridade. Identificava-se facilmente com a história sin- gular daquele casamento tão triste e simpático – por mais de uma vez chegou a chorar pela morte do moço oficial de infantaria. D. Eufrasinha ensinou a sua nova amiga muitas cousas que esta ignorava –instruiu-a em certos segredinhos do casamento; pode- -se dizer que deu-lhe lições de amor. Falou-lhe
  • 22. 22 / 58 Índice muito dos homens – como a gente devia lidar com eles; ensinou-lhe a conhecer as manhas dos namorados; quais eram os tipos preferí- veis, o que queriam dizer olhos mortos, beiços grossos, nariz comprido. Ana Rosa ria-se – não ligava importância a essas cousas – bobagens! – dizia ela com um sorriso de dúvida. Contudo foi insensivelmente reconstruindo seu ideal pelas informações de Eufrásia – fê-lo mais material, mais homem, mais possível de ser encontrado, e, pensan- do só no corpo, corrigiu-o, reformou-o, poliu-o, deu-o por pronto, e então amou-o mais, muito mais!, tanto como si fosse uma realidade. Desde então começou a servir-se desse ideal como base de suas observações concernentes ao homem: era ele o termo de suas compara- ções, a bitola por onde media o merecimento de cada sujeito que lhe aparecia. E se o des- graçado não tivesse o nariz, o olhar, o gesto, o todo enfim, igual ou pelo menos semelhante à bitola, podia perder a esperança de cair nas graças da filha de Manuel Pedro. Eufrasinha mudou-se para a cidade. Ana Rosa já lá estava. Visitaram-se de parte a par- te – confidenciaram. E na intimidade de suas confidências acharam consolo mútuo para o celibato de uma e para a viuvez da outra. Havia, empregado no armazém do pai de Ana Rosa, um rapaz português, de nome Luís Dias – muito ativo, econômico, discreto, traba- lhador, boa letra e muito estimado da praça. Contavam dele invejáveis partidas de vive- za comercial, e ninguém se lembrava de dizer mal do Dias. Era um desses tipos incapazes de inspirar a alguém qualquer sentimento bem definido e dos quais em geral se diz: – É um ho- mem inofensivo. Quase sempre que falavam a
  • 23. 23 / 58 Índice respeito dele diziam: – Coitado! E este coitado não tinha uma razão de ser, porque ao Dias nada faltava – tinha casa, comida, roupa lava- da e engomada e cobres, mas é que o diabo do homem inspirava compaixão com o seu eterno ar de piedade, de súplica, de humilhação; fa- zia pena, incutia dó em quem o visse tão sub- misso, tão passivo! A graça é que ninguém se lembraria de levantar sobre ele o braço sem sentir a repugnância da covardia. Outros elogiavam-no. – Que não fossem atrás daquele ar modesto, porque ali estava um em- pregado de truz! Muito hábil! inteligente! Ex- pedito! Um entusiasta chamou-o de uma feita – gênio privilegiado do comércio! E a fórmula ficou! Respeitavam-no. Vários negociantes ofereciam-lhe boas van- tagens para deixar a casa de Manuel; o Dias recusava sempre, de cabeça baixa, humilde. E tão firmemente se negou às repetidas propos- tas, que todo o comércio, dando como certo o casamento dele com a filha do patrão, elogiou a escolha de Manuel, e profetizou ao novo ca- sal um futuro de riqueza. – Foi acertado, foi! – diziam com o olhar fito. De fado Manuel Pedro via naquela criatura, trabalhadora e passiva como um boi de canga, e econômico como um usurário, o homem mais habilitado para fazer a felicidade da filha. Que- ria-o para genro – apreciava-o, louvava-lhe a morigeração e contava a toda gente que o seu Dias retirava por ano apenas a quarta parte do ordenado. – Deve ler seu pecúlio! Deve! A mulher que o quisesse levava um bom marido! Aquele vem a possuir alguma cousa! – dizia ele com convicção. E pouco a pouco foi se habituando a julgá-lo da família e a estimá-lo como tal. Só faltava que
  • 24. 24 / 58 Índice a filha se inclinasse, se resolvesse, mas ela – qual! Tinha-lhe até como que repugnância – não o queria ver com seu cabelo curto, o bigode convencionalmente raspado, os dentes sujos, os movimentos acanhados e reles; a exagera- da economia do Dias causara-lhe tédio. – Um somítico! – dizia ela, franzindo o nariz. Um dia o pai falou-lhe no casamento. – Com o Dias?!... – perguntou espantada. – Sim. – Ora, papai! E soltou uma rizada. Manuel não se animou a dizer mais nada, porém à noite contou tudo em particular ao compadre, um amigo velho, íntimo da casa – o cônego Diogo. – Optima saepe despecta! – sentenciou o ami- go. – É preciso dar tempo ao tempo, seu com- padre! A coisa há de ser; deixe estar. No entanto o Dias não desanimava, espera- va pacificamente, calado, sem erguer os olhos, cheio de resignação e humildade.”
  • 25. 25 / 58 Índice Professor, crítico, polemista, poeta, ativista intelectual, e, sobretudo, jor- nalista, José do Nascimento Moraes foi “sem exagero o maior e mais fecun- do polígrafo maranhense deste sécu- lo (XX)” (Nauro Machado). Sua obra publicada inclui Puxos e repuxos, crí- tica (1910); Vencidos e degenerados, romance (1915; republicado, junto com Contos de Valério Santiago – São Luís: Secma/Sioge, 1982 ); Neurose do medo, crônicas (1923; republica- do em 1982, junto com 100 artigos do autor – São Luís: Secma; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), entre outros títulos. O texto abaixo foi extraído das pri- meiras páginas de Vencidos e degene- rados, (livro que, como diz Jean-Yves Mérian, “mais que um romance, é uma crônica da vida em São Luís do Maranhão em fins do século XIX e no começo do século XX.” Observe-se que a personagem principal do rela- to, José Maria Maranhense, foi um dos pseudônimos do Autor (Zé Mara- nhense). O texto foi levemente revis- to, além de atualizada a ortografia). NASCIMENTO MORAES (1882-1958)
  • 26. 26 / 58 Índice Às oito horas da manhã do dia 13 de maio de 1888, a residência de José Maria Maranhen- se, à Rua São Pantaleão, uma meia-morada de bons cômodos, regurgitava de gente. Ele, Ma- ranhense, membro saliente do Clube Abolicio- nista Maranhense, era um dos mais ardorosos e salientes cabos de guerra do abolicionismo e um dos que mais se expusera pela nobilíssima causa da liberdade, não poupando em favor dela as suas pequenas economias. Os que lá se achavam naquela gloriosa ma- nhã eram pessoas de diversas classes sociais, desde o funcionário público e o homem de le- tras, até artistas, operários livres, não faltan- do vagabundos e desclassificados. Principiara o reboliço na noite passada, du- rante a qual ansiosamente esperaram que chegasse o telegrama transmissor da grande e luminosa notícia da redenção dos cativos, de que, há muitos dias, já se vinha falando, ani- mados todos por vigorosas esperanças. Maranhense mandara vir, à noite, uma has- te tosca e grosseira, e a colocara numa das ja- nelas, sustentada na extremidade inferior pelo parapeito mais acima e por grossas cordas que se enrolavam fortemente em dois pregos enterrados na parede, dentro da sala. Com al- guns reparos que lhe fez, elevou-a à categoria de pau de bandeira. Nela se desfraldaria o pavilhão nacional as- sim que chegasse a promissora notícia. O movimento continuava intenso na residên- cia de Maranhense, como em muitos pontos da cidade, em todas as casas onde moravam abolicionistas decididos e afervorados. Os vizinhos, curiosos, estavam à janela, apreciado aquilo que não compreendiam mui- to bem...
  • 27. 27 / 58 Índice NasesquinascomaRuadoMonteiro,emfren- te da casa de Maranhense, populares comen- tavam os boatos e notavam os que entravam e os que saíam daquela formidável assembleia em que se reuniam tão variados elementos. Às nove horas, pouco mais ou menos, notou- se maior reboliço na sala; afluíram muitos ca- sacudos às janelas, ao mesmo tempo, com sensível curiosidade: era que se aproximava, descendo a rua, João Olivier, jornalista vibran- te e orador fluente, que pela imprensa muito trabalhava em favor dos oprimidos. João Olivier dirigia-se para a casa de Mara- nhense. Era um rapaz alto, magro, moreno, rosto lar- go, olhos negros e vivos, faiscando através das vidraças do pincenê. Envergava um fato azul claro; trazia um colarinho alto, gravata parda, a borboletear. Não dispensava uma flor qual- quer à botoeira, e exibia naquela manhã um desabrochado botão de rosa amarela, luvas no bolso do peito do paletó, e um palhinha airoso e leve. Caminhava com o passo largo e medi- do. Quando andava, metia o dedo polegar es- querdo na cava do colete, balanceava o corpo e a cabeça, jogando com as espáduas para a direita e para a esquerda, fronte alevantada, altiva, e, se porventura a baixava, era para se espelhar no verniz da botinha. Era mestiço e fora com dificuldade que se colocava na im- prensa e se fizera guarda-livros de importan- te casa comercial. Era um cronista excelente e sustentava no jornal as graças e as louçanias do dizer castiço e vernáculo. – Ilustradíssimo causeur! – cumprimentou-o à porta um dos que se apresentou a recebê-lo, sacudindo-lhe a mão com mãos ambas. – Pena bizarra do galanteio feminil, salve! –
  • 28. 28 / 58 Índice respondeu o moço jornalista, numa curvatura entre o grotesco e o irônico, descobrindo-se com elegância, pegando do chapéu e do leque com a mão esquerda em cima do peito. Passou entre filas e penetrou na sala, api- nhada de homens e senhoras. Olivier era uma figura simpática e insinuante. Seu nome era um florão de pérolas, na época, uma centelha. Por isso, à sua presença, quem não lhe vinha ao encontro compunha-se, voltava-se, para lhe examinar a figura original. Maranhense o le- vou para um canto da sala, e, em voz baixa, lhe falou assim: – A coisa está demorando. Que achas tu? – Acho que devemos estar tranquilos. A de- mora é um nada. Sou capaz de apostar que é hoje que a bomba arrebenta. – Eu de ânsias estou ficando doente. Acre- dita que não preguei olhos à noite passada. Este pessoal só me deixou depois das duas da madrugada. – E quem dormiu à noite passada? Nós não dormimos e eles não dormiram. – Eles?... – Escravos e senhores. – Ah, sim, percebo. E por que não vieste até cá? – Estive em casa do Freire, com o Vítor, até muito tarde. Quando saí de lá, fui beber um café no Zé Bento. Com quem me havia de en- contrar? Com João Reis. O resto, com certeza, adivinharás. – O patife, creio que ainda não chegou à casa, porque ainda há pouco o mandei procurar, e a velha me mandou dizer que dele não tem nem novas, nem mandadas... – É terrível... Olivier se abanava e conservava a mão
  • 29. 29 / 58 Índice esquerda no bolso da calça, espraiando o olhar observador por todos os circunstantes: uns for- mavam pequenos grupos e conversavam sobre os últimos acontecimentos relativos à liberdade dos escravos; outros, agitados, a fumar, pas- savam pelas salas, trocando palavras aqui e ali. José Maria recostou-se ao umbral da porta que comunicava ao quarto. Olivier fechou o le- que e acendeu um charuto fino, tendo antes dado outro ao fogoso abolicionista. José Maria não quis fumar e guardou o charuto no bolso de dentro do fraque. Olivier [lhe disse], depois de uma longa fumaça: – O Pereira e o Freire devem estar aborre- cidos, lá no telégrafo, a esperarem... Deixa lá que é uma cacetada... E depois de alguns instantes, como quem se recorda: – Que faz o teu vizinho, o Coronel Patusco? – Está danado... Temo que ele não resista ao golpe... Para te falar com franqueza, temo mais pela mulher dele. É medonha! Irra! – Horrorosa!... Coronel Patusco era o Coronel Lousada, a quem Olivier pregou aquele apelido canalha, por causa de suas maneiras e hábitos na so- ciedade. O povo, porém, ferindo outro alvo, o alcunhara de Alma Negra. Lousada era um terrível senhor de escravos, que abalava a cidade com suas torpezas, qua- se diariamente cometidas, com variantes de re- quintada selvageria. Lousada tinha especiais e originalíssimos instrumentos de suplício, como fossem: cabos preparados com estilha- ços de vidros, por onde forçadamente subiam e desciam os escravos, até cortarem inteira e profundamente as mãos; redes com lâminas lacerantes e pregos onde se embalavam, num
  • 30. 30 / 58 Índice horrível balanço, aqueles infelizes, até se re- talharem as carnes e se rasgarem os tecidos das costas e dos flancos; martelinhos para ba- terem na arcada do peito até o sangue espir- rar ou golfar pelo nariz e pela boca; espetos de ferros que se levavam ao fogo até o rubro, para queimarem os olhos, a língua, e os membros dos escravos, que endoideciam nas prisões úmidas e sufocantes do pavimento térreo. De noite, à placidez mórbida e pavorosa de seusilêncio,ouviam,osquemoravamnascasas contíguas ao sobrado do Coronel Lousada, ge- midos surdos que mãos de ferro violentamente estrangulavam na garganta, espanqueamento de corpos, de encontro às paredes e às lajes, queixas e ais, imprecações de almas desespe- radas, rugidos de corações intumescidos pela cólera, brados, pragas e vingança e, frequen- temente, uma frase cheia de terror, do terror nascida, repetida com precipitação e fervor, na agonia da dor e do martírio: “Ai, meu senhor! Ai, meu senhor!” – Principiando por casa – continu[ou] Olivier –, eu já disse a tia Rosa que ponha no olho da rua a sua pouca gente, antes que a coisa che- gue. É uma medida, José Maria, que, a meu ver, algo de moral e prudência... – E a velha está pelos autos? – Com a maior carga de resignação que pode concentrar. Porque, na verdade te digo eu – coordenou Olivier com um sorriso em que a pi- lhéria se debruçava graciosa –, esta pobreza fidalga daqui já ia pegando a moda (notaste o ia de minha frase?), e não viria longe o dia em que os escravos, os próprios escravos, procu- rariam ter escravos!... José Maria não pôde conter o riso ante o sé- rio com que o Olivier proferiu estas palavras.
  • 31. 31 / 58 Índice Olivier sorriu e foi-se pelos grupos que enchiam a sala, apimentando e salgando a prosa alheia com epigramas que ele lançava com muito chis- te e superior agudez de espírito. Olivier era uma prosa encantadora, fluente, salpicada de notas alegres e leves, até quan- do tratava de fatos, por sua natureza, graves e sérios. Suas crônicas eram as mais aprecia- das da Província e, fora dela, corria o seu nome em evidência, recomendado pela pureza da linguagem, muito parecida, pela forma e pela ironia, com a do afamado folhetinista e poeta maranhense Gentil Homem de Almeida Braga, a cuja leitura Olivier, arrebatado por sua ad- miração incondicional, muito se entregara, de modo que os seus primorosos lavores saíam impregnados daquele suave perfume que ain- da se evola dos períodos do folhetinista de Entre o céu e a terra, recordando o fino gosto artístico com que aquele excelso cinzelador de tão boa prosa escreveu o memorável folhetim que ele intitulou: Se os Holandeses não tives- sem perdido a Batalha dos Guararapes!... Olivier, colocado com desassombro num dos mais afamados periódicos da Província, foi um dos maiores elementos contra a escravidão, e, como se não bastasse a sua ação na impren- sa, onde ele, com vigor, e até certa violência, doutrinava, repisava o assunto na conversa- ção, descrevendo negras cenas de selvageria desconhecida na capital e que se davam no interior, nas fazendas, e cujas notícias lhe che- gavam por intermédio de cartas que raríssimos amigos lhe escreviam de lá, ou que escravos vendidos e que vinham para a capital conta- vam a tremer e espavoridos. Maranhense enfiou pelo quarto e foi ter à varanda a repetir pausadamente a seus
  • 32. 32 / 58 Índice auxiliares as ordens já dadas sobre os fogue- tes e a bebida. O que não queria era que, à hora em que se recebesse o telegrama, nada estivesse em seu lugar e houvesse atrapalhos e descontentamentos. Maranhense era mulato, mais baixo que alto, e careca. Contava quarenta e tantos anos, gri- salho, gordo e simpático. Marceneiro de pro- fissão, e estudante nas horas vagas. Tinha decidido gosto pelas letras, pela ciência, por tudo enfim que fosse do domínio da inteligên- cia humana. Se bem não lhe fosse possível cultivar o espírito com o trato constante do es- tudo, em disciplinas regulares, fazia, contudo, o que estava ainda à altura de suas forças: procurava relacionar-se com os literatos da ter- ra, chegava-se àqueles de quem se apregoava um espírito esclarecido; e, como era inteligen- te, de uma assimilação fácil, deu força à sua loquacidade. José Maria discutia, argumenta- va, tinha ideias e pensamentos, e os expunha sempre, defendendo-os, quando se fazia preci- so, ajudado do bom senso que sempre tivera. Entusiasta, impressionável, agitador e cheio de resolução entre os abolicionistas do grupo, tomou posição evidente, e sua casa, que já era um ponto de conservação assiduamente fre- quentado por muitos dos intelectuais da épo- ca, tornou-se um dos centros de reuniões de abolicionistas. Os escravos o consideravam como um dos seus protetores, e, porque ele era sincero na causa que defendia, eles o procuravam a todo o momento, para tratarem da liberdade deles. Os abolicionistas estavam preparados para festejar a grande e áurea Lei, salientando-se, entre todos os preparativos, os do Clube Artís- tico [sic] Maranhense, que eram caprichosos,
  • 33. 33 / 58 Índice sem igual. A passeata do Clube devia sair de uma casa, à Rua de Santaninha, onde já se achavam to- dos os aprestos, ornamentos e dourados que tinham de figurar na “sensacional”, segundo se expressava Santana Reis, um dos mais va- lentes, inteligentes e prestimosos membros do Clube. À Rua de Santaninha já estavam o retrato de José do Patrocínio e os de Nabuco, João Al- fredo e outros do gabinete libertador e de ga- binetes que o precederam, trabalhando para a liberdade dos negros. Da casa de Maranhense ainda tinham de ir muitas dúzias de foguetes, de balões, peque- nos andores para os retratos, velas, alguns archotes, e um retrato da Princesa Isabel, já colocado com andor lantejoulado, trabalho im- perfeito quanto às particularidades, mas tra- tável e completo nas linhas gerais. Depois de ter recomendado a seus discípulos um transporte cuidadoso de tudo aquilo, como quem diz uma oração, voltou à sala, onde o reboliço crescia momento a momento com os boatos desordenados que corriam. Olivier continuava a palrar, saboreando de- licioso charuto. Maranhense acendeu o seu e foi-se, pensativo, a olhar o movimento da rua, que a mais e mais se aumentava, e a cumpri- mentar com rasgados cheios os transeuntes. O telegrama chegou às três horas da tarde. Os da comissão destacada no telégrafo de- ram o sinal convencionado, fazendo subir aos ares girândolas e foguetes. O pessoal de prontidão na casa de José Maria respondeu tocando também outras tan- tas girândolas. A sala do velho abolicionista tremeu de vivas atroadores, que romperam do
  • 34. 34 / 58 Índice peito ansioso de toda a assembleia. As moças correram às cestas de flores, e José Maria, com ar marcial, foi postar-se em frente a um retrato coberto de gaze transparente, co- locado na sala, por cima do sofá. Ouviu-se, após, o tocar de foguetes em todos os bairros. Um grupo de populares, vindo da Rua do Pas- seio pela Travessa do Monteiro, desembocou em frente da casa de Maranhense, invadindo- -a depois. Olivier, a um sinal de José Maria, subiu a uma cadeira, impondo a sua estatura simpática e atraente, estendeu o braço direito, com a mão aberta, pedindo silêncio. Súbito o burburinho estancou. O orador começou o dis- curso. O causeur era um tribuno elegante e vee- mente. Palavra fácil, fluente, cativante dicção, imagens fortes e cheias de vida, voz áspera, gesto nervoso, dominou o auditório, comoveu-o, entusiasmou-o, lançou a chama encantadora do arroubo, e perorou entre frenéticos e tumultuosos aplausos. Foi um discurso de conceitos, de pensamen- tos, sentimental, que tocou ao auge de beleza e forma, quando falou na Princesa Isabel. Foi nesse ponto que Maranhense, repuxando a gaze com o correr do cordel que se lhe ligava, fez aparecer o retrato dela, feito a craiom, por um talentoso artista plástico. Uma orquestra composta de conhecidos professores, dirigida pelo clarinetista Evaristo da Conceição, exe- cutou um Hino da Liberdade, composição do mesmo Evaristo. Maranhense não se tinha em si de alegria: a todos abraçava, atabalhoadamente, derra- mando uma verbosidade sem fim. Olivier, ufa- no, chega à janela e fala ao povo que se aper- tava na rua estreita. Nesta ocasião, rebenta
  • 35. 35 / 58 Índice um grupo de abolicionistas, companheiros de Maranhense, rompendo violentamente a mul- tidão. Levantou-se novo aranzel: novos discur- sos, novos abraços. José Maria não se contém: lança-se, por sua vez, à janela e saúda os seus irmãos de luta. Vítor Castelo responde, infla- mado, fogoso, sacudindo o chapéu ao ar, num estrondoso viva a Isabel! E em frente da casa de José Maria, e dentro dela, se erguem exal- tados ânimos, entusiásticas falas, e perene reina uma indizível e eloquente comunicação de ideias e pensamentos, por muito tempo en- freados e subjugados. Eram cinco horas da tarde, e a cidade ful- gia de delírio, ardia na febre ruidosa e empol- gante de sugestionadora alegria. Pelas ruas, cruzavam-se grupos e grupos de escravos, a gritar, loucos de satisfação; outros berravam obscenidades que, como pedradas, iam bater nas janelas dos escravocratas: insultos soe- zes, ofensas terríveis contra a família dos ex- -senhores que, temendo violências físicas, fe- chavam as portas, apenas acabavam de sair os últimos libertos. Momentos depois de proclamada a Lei, co- meçou a divulgar-se a notícia de que uma es- crava, ao passar pela Rua dos Afogados, dera uma bofetada numa senhora que estava à ja- nela. Esta senhora passava por amarga decep- ção: viu saírem, portas a fora, sem um adeus, desvairados pela comoção da notícia, todos os seus escravos. Diziam os que a conheciam que era uma mulher má, sedenta de cruéis casti- gos, e que se apontava, distinta, pela impieda- de de sua cólera, pelo arrebatamento do gênio irascível e impensadas ações. Aarrebatadaquelhebateranorostoforauma das suas escravas. Era um carafuza ainda nova, farta de carne, sensual, de bem talhadas
  • 36. 36 / 58 Índice formas sedutoras, que fascinara o marido da senhora, um velho comendador, bonacheirão, roído de reumatismo, constrangido de acha- ques próprios da velhice, mas que ainda tinha vista para os atrativos do gozo. As olhadelas furtivas do velho libidinoso deitavam chispas que feriram a retina de D. Amandra. A crioula começou a ser espiada e por vezes maltratada. Fatos tais eram comuns e provocavam sem- pre a indignação popular. Por isso comenta- vam a bofetada, com chacotas e sarcasmo pungente. Provocaram fortes gargalhadas e pilhérias picantes os inesperados cômicos que se deram: cozinheiras que abandonavam os patrões, sem lhes apresentar o jantar; outras, que faziam compras e que se foram com dinheiro e balde. E em muitas casas, se passaram cenas depri- mentes e tristes: escravos dando expansão à raiva e ao ódio cometeram desatinos de toda a espécie, quebrando móveis e louças, e mais objetos que se lhes deparavam, e deixavam, a blasfemar, o teto onde tão desgraçados dias viveram, atirando ferinos e brutos impropérios que se iam quebrar, como garrafas e vidros, nas rótulas das janelas, nas portas, e na alma aniquilada dos infelizes ricaços de ontem, que se viram, em grande parte, pobres de um mo- mento para outro. Não obstante, alguns dos ex-senhores não ficaram completamente abandonados, porque não eram maus. Ao abrirem as portas, ao fran- quearem a saída aos de há pouco escravos, ofereceram abrigo aos que quisessem conti- nuar na sua companhia. Muitos aceitaram os convites, na maioria os velhos, já inválidos para uma existência laboriosa, e moças que eram crias de muito estima e algum conforto,
  • 37. 37 / 58 Índice em geral filhos [sic] de escravas com senhores moços. Mais que os ricos, sofreram, porém, os pobres que tinham escravos. Os pobres pre- sumidos. Faziam economias, com prejuízo da alimentação, e ostentavam pequeno cabedal de negros. Os escravos dos pobres sofriam as mais ridículas vexações, porque o espírito pe- quenino dos seus senhores se deliciava em os ocupar a todo instante com as coisas mais in- significantes, bagatelas, que, à vista da falta de meios neles patentes, tomavam aspectos bem deslavados e grotescos. Pertencer à primeira sociedade era possuir, pelo menos, duas ou três cabeças de negros. Imagina-se facilmente o desconsolo em que fi- caram esses pequenos proprietários, quando se viram, num minuto, abandonados pelos es- cravos que eles tinham comprado à custa de mil sacrifícios e inúmeras necessidades, aque- les servidores que trabalhavam diariamente à chuva e ao sol expostos, e que lhes garantiam, com o produto das energias gastas, o pão de cada dia.”
  • 38. Voltado, desde os bancos escola- res, às plúrimas facetas da vida inte- lectual, Josué Montello destacou-se pela numerosa bibliografia de que foi autor (mais de cem títulos), da qual sobressai a obra romanesca, em lar- ga parte ambientada em cenário ma- ranhense. Seus romances Os tambores de São Luís (Rio de Janeiro: José Olympio, 1975) e Noite sobre Alcântara perma- necem entre as grandes realizações da literatura brasileira do século XX. O texto abaixo foi extraído das pági- nas iniciais e finais de Os tambores de São Luís. JOSUÉ MONTELLO (1917-2006) AcervodoarquivodaCasadeCulturaJosuéMontello 38 / 58Índice
  • 39. 39 / 58 Índice “Até ali os tambores da Casa Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumen- tos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Ma- ria deixava cair o xale para os antebraços, re- cebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar. Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tam- bores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de di- reção. Daí a pouco Damião tomava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas novi- ches vestidas de branco, lhe refluía à consciên- cia, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear. Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sen- tado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras per- maneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair do banco um dos assistentes, e ele ali se aco- modou, em posição realmente privilegiada, po- dendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças. Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou ex- plicar. O certo é que, ouvindo bater os tambo- res rituais, como que se reintegrava no mundo
  • 40. 40 / 58 Índice mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profun- da essência de seu ser. Dali saía misteriosa- mente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro. Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estre- las que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apres- sado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o baticum dos tambores, ora fugindo, ora vol- tando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das ferraduras. No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira, Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás. Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do governador Luís Domingues no último Natal, parecia mais comprido, a es- pinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os om- bros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levan- tada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobra- çando a sua pasta de solicitador, para defen- der outro negro. Agora, trajava com simplicida- de, muito limpo, a barba escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro
  • 41. 41 / 58 Índice junto ao laço da gravata. – Faça favor... Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do Mocambo. Não tinha sentido rumor de pas- sos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pe- quenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado, bigode, nos negros olhos uma faísca de loucu- ra, e que logo lhe disse, com um pedaço de pa- pel impresso na ponta dos dedos: – É o convite para o meu próximo espetáculo. – Outra vez A queda da bandeira? – É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda. Damião quis ainda saber por que o velho má- gico preferia aquela hora da noite, com as ca- sas fechadas, para distribuir os seus convites. – De dia – redarguiu ele, dando-lhe outro con- vite – os moleques vêm atrás de mim, me cha- mando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os mo- leques estão dormindo. E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído, apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio. Já fazia alguns anos que Damião vira apa- recer na cidade aquela figura caricata, de- baixo de uma cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e apresentan- do-se no Largo do Carmo, no Palácio do Gover- no, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em
  • 42. 42 / 58 Índice diante se repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: “O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa que o A do alfabeto em por- tuguês, com a diferença de que se escreve de cabeça para baixo e tem o som de bé.” Em se- guida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pól- vora seca estrondava, assustando a plateia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arre- messo, como se fosse voar, e caía pesadamen- te cá embaixo, nas tábuas do chão. – Bis, bis – gritavam-lhe da torrinha. E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, vá- rias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar – Chega! Chega! – e o má- gico afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e assobios. Antes que ele desaparecesse, sempre a en- fiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou de calçada, ainda ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipa- peiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua
  • 43. 43 / 58 Índice bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar. O próprio Tião, no mesmo carro em que fora buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de que, antes do anoitecer, a Biá começara a sen- tir fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz o primeiro filho. – Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está cheia de parentes. É bom que o senhor também esteja lá, para receber o seu trineto. – Sim, irei – concordara. – Mas não já. O pri- meiro parto dá muito rebate falso. Isso é coisa para o meio da noite. E antes do Tião sair: – Eu sou do tempo em que os mais moços es- peravam pelos mais velhos. – Hoje, tá tudo mudando – emendou o Tião. E como o tinham deixado só, no rebuliço do primeiro trineto da família, apenas com a cria- da que lhe servira apressadamente o jantar (e também se fora para a casa da Biá), Damião se vestiu devagar, sabendo que não adiantava ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na cadeira de balanço da varanda, antes de dei- xar a casa entregue ao Veludo, que andava na fase de latir e correr, próprio do cio insatisfeito. Levara bom tempo na esquina da Rua das Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o transportasse à Gamboa. Terminara reconhe- cendo que, se dependesse mesmo de um carro, só iria conhecer o trineto depois de grande. O jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite. Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distan- te do Cemitério dos Ingleses, experimentou de repente uma sensação de frio, que lhe desceu da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o tivesse apanhado por trás, em toda a extensão do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu caminho, sem aumentar nem diminuir o passo,
  • 44. 44 / 58 Índice ao mesmo tempo que procurava convencer-se de que a rajada viera da Rua da Cotovia. Pa- rou adiante, apalpando os bolsos da calça, à procura do maço de cigarros. Tinha trazido os cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos. – Velho é assim mesmo: quando se lembra de uma coisa, esquece outra. Paciência. Senhor de si, voltou a caminhar, procurando espairecer os olhos no ermo da rua longa. De novo o vento soprou, agora mais forte, como se o tempo fosse mudar. O céu limpo tranquilizou Damião. Uma janela bateu; por cima de um muro, estalou um galho de árvore, que resva- lou para a calçada; adiante, uma vidraça par- tiu, no bater violento de outra janela; uma lata vazia rolou pelo meio-fio. Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele teve a impressão de que algo estranho, que se associava à sua pessoa, estaria ocorrendo naquele momento. Tentou sacudir de si a im- pressão aborrecida, e esta retornou, insidiosa, opressiva, com a teimosia de um mau pressá- gio. Pensou na Biá. Não, não seria nada com ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e asse- gurara que seu parto seria normal. Tudo bem, e a criança no seu lugar; era só esperar agora pela reação da natureza, sob a vigilância expe- riente da Comadre Ludovina. – E a Comadre Ludovina já está lá. Foi então que escutou o romper dos tambores, ali perto, na Casa Grande das Minas. Quase no mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram as cabaças, mas não suplantaram os tambo- res, que iam acelerando o tantantã nervoso que obriga as noviches a girarem sobre si mesmas. Dir-se-ia que uma batida queria alcançar a se- guinte, sem que um tamboreiro destoasse dos outros na vertigem do compasso. E só esse ba- ticum frenético se impunha agora, apagando o
  • 45. 45 / 58 Índice som dos outros instrumentos, e também só ele o vento levava, rua abaixo e rua acima, dis- persando-o na grande noite de agosto que se fechava sobre a cidade. Depois de passar para o outro lado da rua, Damião deu consigo na calçada do querebetã, e ali retardou a caminhada, querendo entrar. Era uma casa baixa, de beiral saliente, caia- da de novo, na esquina do Beco das Crioulas, com janelas de rótulas e porta de duas folhas, sobre a Rua de São Pantaleão. Só uma banda da porta estava aberta. Parado na soleira, ele olhou para dentro, e viu o corredor e a varanda já repletos, com as noviches dançando em vol- ta da nochê Andreza Maria. E ia dar o primei- ro passo no corredor, quando a nochê subiu o xale para os ombros, compelindo os tamborei- ros a uma pausa brusca, logo interrompida por um bater mais forte, em outro ritmo, e veio ca- minhando para a porta, no espaço que se ia abrindo para lhe dar passagem. Damião tinha dado outro passo, e ali esperou que ela o levas- se. Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos? Meia hora? Ou mais ainda? Mais ainda, cer- tamente. O importante é que, depois de ouvir os tamboreiros e assistir às danças rituais, se sentia preparado para ir ao encontro de seu trineto. Sentado no banco, a olhar as noviches dançando rodeadas de velas, era outra vez o negro puro, filho de sua raça, em contato com as remotas raízes africanas. E assim entrou na Rua do Passeio, descendo pelo Beco das Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã dos tambores. A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de outro, com grades de ferro rendilhadas, vidros
  • 46. 46 / 58 Índice coloridos no leque das janelas, um ou outro portal de pedra. Sem relógio para ver as ho- ras (o seu andava na loja do Maneco Ourives, para limpeza geral da máquina, já fazia uma semana), era debalde que Damião consultava de vez em quando a posição da lua, que ora se escondia por trás dos mirantes mais altos, ora repontava adiante, curva e pontuda como um chavelho de bumba-meu-boi entrando no terreiro. No canto da Rua de Santana, o bico de gás do lampião estava prestes a apagar, reduzido a uma chamazinha débil, que se encolhia no bocal empoeirado, com medo da noite, a escu- ridão a se fechar à sua volta. E outra vez Da- mião se assustou, agora com a zoada de uma lata de lixo, que ia sendo arrastada nas pedras do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com uma pata traseira pendurada, que a arrastava com o focinho, enquanto o lixo se esparramava na calçada escura. Ao pressentir os passos de Damião, já bem perto, o cão assustou-se tam- bém, retirou depressa a cabeça de dentro da lata, e correu para o outro lado da rua, capen- gando, com um osso na boca. Um pouco além, Damião ouve o som de um piano mal tocado, para os lados da Rua do Oiteiro. E enquanto apura a orelha, tentando identificar os compassos da valsa, uma car- ruagem dispara pela Rua do Passeio, à altura do Hospital Português, e é tão próximo o tropel dos cavalos e o estrondo das rodas, que ele fica esperando que ela passe ao seu lado, seguin- do a toda brida na direção do Largo do Quar- tel; como demore passar, ele se volta para trás, e não a vê: na rua deserta, só o cão rói o seu osso, à luz de outro lampião. A carruagem do- brou a Rua do Mocambo, e seu rumor se afas- ta no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo
  • 47. 47 / 58 Índice tempo que o piano se cala, e volta a ressoar, um pouco mais distante, o baticum dos tambo- res, na Casa Grande das Minas. Damião se lembrou que Donana Jansen saía de seu túmulo, nas noites de sexta-feira, e dava uma volta comprida pela cidade, numa carrua- gem puxada por duas parelhas de cavalos sem cabeça, com um esqueleto na boleia brandindo o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das ferraduras, despencando ladeira abaixo. – Bobagem – reagiu Damião. – História inven- tada pelos inimigos políticos da velha. Quem morreu quer sossego. E apalpando novamente o bolso da calça, tirou fora um cigarro, que deixou no canto da boca. Mais além, talvez ainda estivesse aberto o botequim da esquina da Rua Grande. Como fora esquecer de trazer a caixa de fósforos? Logo ele que, depois de velho, não dispensava os cigarrinhos da noite, para esperar o sono... E nisto se viu saindo do quarto da Maria Qui- téria, nos baixos de um sobradinho da Rua da Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoan- te de louça quebrada, a poucos passos, adian- te da escadaria da Rua do Giz. Retardou o an- dar, intrigado. Era uma louça atrás da outra, e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas pancadas firmes, que faziam voar para todos os lados os cacos partidos. Do patamar da escadaria, estendeu o olhar para baixo. Ao pé do último socalco, à porta do sobrado do comendador Antônio Meireles, na claridade do dia que ia rompendo, um bando de negros em ação, cada qual com seu porrete de pau- -roxo, quebrava depressa pilhas e pilhas de vasos de louça empilhados na calçada. Damião desceu os socalcos quase a correr, e
  • 48. 48 / 58 Índice antes de chegar cá embaixo começou a rir, adi- vinhando o que se passava. Dias e dias, já fazia alguns meses, era o as- sunto de São Luís inteira, nas rodas do Largo do Carmo, nas conversas do Passeio Público, no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana Jansen, com quem vivia às turras, o comenda- dor Meireles tinha mandado preparar na Ingla- terra, para vendê-los quase de graça, um mi- lheiro de belos penicos de louça, com a cara da velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da ci- dade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que, agora, sim, só ela os possuía. Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos negros: – De quem vocês são escravos? – De Donana Jansen. Eram mais de trinta negros, todos fortes, es- padaúdos, e iam quebrando os urinóis com uma fúria divertida, repetindo as cacetadas ri- jas, que desfaziam a louça apenas com uma pancada. A vizinhança ia despertando com a zoadaria estranha. Caras estremunhadas en- treabriam as rótulas, nas janelas dos sobra- dos, e já algumas pessoas se debruçavam das sacadas, enquanto outras, na rua, em chine- los, no chambre de dormir, riam alto, vendo as matanças dos penicos. Um cheiro insuportá- vel de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros, quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça. – E esse aí? – quis saber Damião. – Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra tomar satisfação.
  • 49. 49 / 58 Índice E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro: – Donana Jansen não é gente. Tou cansa- do de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra se coçar. Ora se tem! Ainda com o cigarro apagado no canto da boca, Damião aproximou-se da Rua Grande, pensando onde ia encontrar, ali perto, uma caixa de fósforos para comprar. E não tinha chegado à esquina, defronte de um casarão de altas janelas ogivais, quando viu entreaberta uma porta do botequim. Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe os passos, com a lua nova a se esconder e a brilhar, na faiscação do céu estrelado. E agora o assobio do vento, que disparava na rua de- serta, varrendo as calçadas, para se desfazer no giro doido de um remoinho. Dentro do botequim, a única luz era a chama de um candeeiro a óleo, suspenso da parede esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por cima do balcão, mal dando para clarear uma parte da saleta pontilhada de mesas vazias. Dentro do balcão, ninguém. Damião subiu o degrau da porta, avançou uns passos, bateu palmas. Enquanto espera- va que o atendessem, olhou em volta, aproxi- mando-se do balcão. E foi aí que viu por terra, entre as duas primeiras mesas à sua direita, o vulto de um negro magro, comprido, bem tra- jado, caído de bruços numa poça de sangue, com uma facada nas costas, à altura do co- ração. Parado, ficou um momento a fitá-lo, de olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a nuca e uma parte do pescoço. Pela roupa, era gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver
  • 50. 50 / 58 Índice se lhe restava um alento de vida, mas o corpo permaneceu imóvel, com o busto achatando o braço direito, na posição em que tinha caído. Na claridade que ia esmorecendo, Damião olhou em volta, de sobrancelhas travadas. Numa das mesas, mais para o fundo da sale- ta, acumulavam-se garrafas de bebida, quase todas tombadas sobre o tampo de mármore, juntamente com um copo quebrado e um cin- zeiro atulhado de cinza e pontas de cigarro. Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de suas botinas, assim que deu outro passo, na direção do candeeiro. E ali, com uma suspei- ta, espiou para dentro do balcão. Outro morto jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendi- da por uma paulada. Estava de frente, com o busto meio apoiado no ângulo entre o balcão e a prateleira. E a luz que descia sobre ele, mui- to tênue, levemente avermelhada, permitiu que Damião prontamente identificasse, pelo rosto coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo, lhe tinha vendido um maço de cigarros. *** Agora, deixado para trás o prédio da Cadeia Pública, ele via a luz da casa da Biá, ao fim de longo estirão baldio. Lá adiante, esparrama- va-se a Fábrica da Gamboa, com seus teares adormecidos. Do outro lado, a Quinta da Vitó- ria, sem vivalma lá dentro, com o velho sobrado invadido pelo mato, as pilastras do portão co- bertas de hera e musgo, as janelas desmante- ladas, e só o tamarindeiro do Dr. Sousândrade ainda intacto, com as garras das raízes a se contorcerem por entre pedras salgadas, resis- tindo ao mar, ao abandono e aos ventos gerais. Já fazia mais de dez anos que Damião tinha
  • 51. 51 / 58 Índice visto o poeta pela última vez, ali mesmo, arri- mado à bengala, o rosto encovado, sem o tom vermelho de outrora, um fulgor febril nos olhos pensativos, caminhando com esforço, a voz fa- tigada: – Sabe de que vivo hoje, Professor? De pe- dras. Estou vendendo as pedras da quinta para comer. E com a ponteira da bengala mostrou o muro circundante, já quase todo desfeito sob os ra- mos verdes de uma trepadeira. No entanto, quando a República foi procla- mada, ninguém mais feliz e lépido do que ele. Andava depressa, de bengala sobraçada, as abas do fraque a lhe festejarem as pernas ma- gras, o cabelo liso caindo sob as abas da car- tola, sempre com uma rosa branca na botoeira. Nomeado intendente da capital, dispensara a carruagem a que tinha direito, fazendo ques- tão de andar a pé, da Quinta da Vitória ao ou- tro lado da cidade, para dar o exemplo de que, no novo regime, as autoridades eram o próprio povo, sem regalias nem privilégios. Até mesmo a sua velha traquitana ele a pusera de lado. Depois de um silêncio, Damião aventurara a pergunta: – E a nossa universidade, Dr. Sousândrade? O poeta cruzou as mãos enrugadas por cima do castão da bengala, enquanto engolfava os olhos na linha do horizonte: – Longe... longe... longe... Mas, quando se aproximar, será tudo uma outra cidade, uma outra gente... Mas virá, e eu não verei. E pôs-se a recitar, sempre com o olhar perdi- do na distância, os ombros curvados: Solitário vivi, porque arruinaram Meu lar, meu Deus, e o amor que nele vive. Depois, ainda a recitar baixinho, foi andando
  • 52. 52 / 58 Índice devagar, por um caminho aberto na relva quei- mada, como alheado do mundo, sem despedir- -se do Damião, que o acompanhou com o olhar consternado, até vê-lo desaparecer, no mesmo passo lento, os ombros caídos, apoiando-se na bengala, entre as pilastras do portão da quin- ta. Lembrava-se bem de seu enterro, com o ataú- de envolto na bandeira do Estado – idealizada pelo próprio Sousândrade, com as listas bran- ca, vermelha e negra, simbolizando a fusão das raças na formação do povo brasileiro, e mais a estrela branca sobre campo azul, representati- va da unidade autônoma do Maranhão. Muita gente, na tarde de sol. À frente do cortejo, a carreta negra, com frisos doirados, levando o esquife. E quando o féretro se aproximou do portão do cemitério, uma revoada de andori- nhas cortou o céu, por cima da capela, e duas rolinhas se puseram a cantar, como a seguir o lento rolar do coche fúnebre, até que este su- miu, na volta da alameda. Damião desce agora uma pequena ladeira, perlongando o terreno baldio. Na luz escassa, consegue ver o chão que vai pisando. Em re- dor, silêncio, um grande silêncio, só interrompi- do por um coaxar de sapos, junto ao túnel por onde passa o trem. Aqui, ali, reluz um vaga- -lume. E sempre o cansado arfar das águas do rio que se misturam às águas do mar. De cabeça baixa, redobrando de atenção para não pisar em falso com a claridade es- cassa, Damião torna a ver o Dr. Sousândrade atravessando o Largo do Carmo, um livro con- tra o peito, para dar a sua aula de grego no Li- ceu Maranhense. Onde andariam os livros do poeta? Que fora feito dos seus últimos versos? E logo outros amigos lhe refluem à consciência: o Aluísio Porto, o Silvino Peres, o Albino Frias, o
  • 53. 53 / 58 Índice Vítor Lobato. Ele sabe agora, com a longa expe- riência de seus oitenta anos, que a vida é uma coleção de mortos. Os nossos mortos. Os mor- tos que só nós podemos ressuscitar nas ilumi- nações de nossa consciência, e que carregamos conosco, sem que nos pesem, constranjam ou perturbem, até que sobrevenha para eles a morte definitiva, que é a nossa própria morte. Erguendo o olhar, divisou as cadeiras do al- pendre, o pé de carambola ao lado da casa, o lampião aceso defronte do portão. E tomando por um atalho de terra, que subia em aclive, encurtou mais o caminho, logo ouvindo o lati- do do Veludo, que, ainda de longe, de orelhas fitas, as patas em cima do muro, lhe sentira o ranger dos passos. E assim que ele se pôs a limpar os pés can- sados no capacho da entrada, antes mesmo de abrir o portão, ainda com o Veludo a saltar no jardim sacudindo a cauda, a Benigna apa- receu no alpendre, com a sua cabeça branca bem penteada, a pele do rosto marcada com as rugas dos olhos e dos cantos da boca, mas ainda de ombros altos, elegante, a cintura fina, o brinco nas orelhas. Ela veio abrir-lhe o portão, com um xale pas- sado nos ombros contra a friagem da noite: – Graças a Deus que chegaste! – exclamou, puxando o ferrolho. – Eu já estava assustada com a tua demora. Na certa, resolveste ler de- pois do jantar, e pegaste no sono. Foi o que eu calculei. Até prometi uma novena para São Cipriano. Se não chegasses agora, eu já tinha pedido ao Tião que fosse lá em casa te acordar. E Damião, depois de beijá-la: – É que eu vim a pé, querida. Procurei um carro, não achei: vim mesmo com as minhas pernas. – Damião! – ralhou ela, espantada, já no
  • 54. 54 / 58 Índice degrau do alpendre. – Isso é coisa que se faça na tua idade? Vir a pé do Largo de Santiago até à Gamboa! Não me faças mais isso! E segurando-o pelo braço, como a ampará-lo na subida do degrau, ajudou-o a dar impulso ao corpo, ao mesmo tempo que a filha, duas netas e quatro bisnetas acudiam ao alpendre, saindo da sala iluminada e cercando o velho com alvoroço. Sem largar o braço do marido, a Benigna di- rigiu-se à Janu, que arrastava os pés pesados, muito gorda, amparando-se nos braços de uma das netas: – Teu pai não cria juízo. Nesta idade, parece menino. Não é que ele veio a pé, lá de casa até aqui? E obrigando Damião a sentar na cadeira mais próxima, ali mesmo no alpendre, continuou a ralhar-lhe, num tom de voz que era mais de ternura que de reprimenda: – Como castigo, não te dou a grande notícia. E depois de impor silêncio ao resto da famí- lia, com o dedo em riste defronte dos lábios: – Descansa um pouco aqui e tira logo as boti- nas: deves estar com os pés ardendo, de tanto andar. Damião sentiu a cadeira de vime gemer com os movimentos de seu corpo, e ia olhando em volta, com ar de riso, vendo os rostos felizes que o cercavam, enquanto um dos bisnetos, que chegara por último, tentava puxar-lhe as botinas, para calçar-lhe as chinelas do Tião. O próprio Tião entrou no alpendre, risonho, vermelho, um permanente ar alvissareiro, e despejou a novidade: – Já estávamos pensando que o senhor não tinha pressa em conhecer o seu trineto. Ele já está aqui à sua espera. E Damião, radiante:
  • 55. 55 / 58 Índice – É homem? – indagou, após uma risada gos- tosa. – É – confirmou a Benigna. – A Biá teve um parto feliz, sem muitas dores, desses em que Deus põe a mão. E é um rapagão. Quatro quilos e duzentas. Um menino e tanto. E já tem nome, escolhido por mim. Desta vez, não vou deixar que ponhas nas crianças os tais nomes bonitos que tiras de teus livros. Nada de Plínios, nem de Píndaros, nem de Eurípedes. Chega! Aqui, queriam que fosse Alfredo. Que Alfredo coisa nenhuma. Vai se chamar Damião, como o tri- savô. Damião é nome que enche a boca: Da-mi- -ão! E Damião, quando ela se calou: – Não – retrucou, com firmeza. – Fica para o outro. Este vai ser Julião, que era o nome do meu pai. – Vá lá – concordou a Benigna depois de um silêncio. E para o Tião, muito séria: – Assim que a Biá estiver mais descansada, pode arranjar o outro. Quanto mais cedo, me- lhor. E bonito, como o trisavô. E enquanto a filha, os netos e os bisnetos cer- cavam Damião, dando-lhe outras notícias do parto e do trineto, a Benigna desapareceu pela porta da sala, deixando no alpendre um pouco de seu perfume, que se misturava ao cheiro ati- vo da latada do jasmineiro, no muro do jardim. Calçado nas chinelas do Tião, que eram gran- des para seus pés, Damião sentia que a paz da noite límpida o envolvia, com o sussurro do vento, a lua nova no céu estrelado, o silêncio da cidade adormecida e o choro de seu primei- ro trineto. Chegaria ao tetraneto? Só se Deus lhe conservasse a lucidez, a vista perfeita e a companhia da Benigna. Sem isso, preferia a outra paz, quieto no seu túmulo.
  • 56. 56 / 58 Índice E nisto a Benigna tornou a apontar no retân- gulo da porta, chamando-o agora para conhe- cer o Julião: – É clarinho – preveniu-lhe. E quando ele se curvou sobre o berço, muito emocionado, sentindo os olhos úmidos, ela lhe foi dizendo, enquanto erguia o candeeiro, para dar mais luz sobre a criança: – Tem tua cara, meu filho. Até o nariz chato é teu. Olha a testa. Também é tua. E esse bei- cinho espichado. Tudo teu. É mais para bran- co que para preto: moreninho, como um bom brasileiro. Damião olhava embevecido aquela peque- na massa humana, ainda mole, com uns fios de cabelos úmidos, os olhinhos cerrados, os bracinhos encolhidos na camisinha de linho, e não podia deixar de lembrar-se do Barão, com a sua famosa teoria de que só na cama, com o rolar do tempo, se resolveria o conflito natural de brancos e negros, no Brasil. Tinha ali mais uma vez a prova, na sua própria família. Sua neta mais velha casara com um mulato; sua bisneta, com um branco, e ali estava seu trine- to, moreninho claro, bem brasileiro. Apagara- -se nele, é certo, a cor negra, de que ele, seu trisavô, tanto se orgulhava. Mas também se viera diluindo, de uma geração para outra, o ressentimento do cativeiro. Daí a mais algum tempo, ninguém lembraria, com um travo de rancor, que, em sua pátria, durante três sécu- los, tinham existido senhores e escravos, bran- cos e pretos. Agora, ali em São Luís, já os ne- gros entravam no Palácio do Governo, mesmo os do povo, com os pés no chão, a camisa para fora das calças, e iam falar com o governador Luís Domingues, que se levantava de sua ca- deira e vinha apertar-lhes a mão. No Liceu Maranhense, além dele, Damião, ensinavam
  • 57. 57 / 58 Índice o Dr. Tibério e o Nascimento Moraes, ambos negros. Viriato Correia, que ele vira menino, de cabelinho espichado, muito serelepe, cole- te, corrente de ouro, já lhe mandara do Rio de Janeiro, com uma dedicatória feliz, o seu novo livro, os Contos do Sertão. O Públio de Melo, doutor formado no Recife, era agora o delegado da capital. Na Biblioteca Pública, estava o As- tolfo Marques. Todos negros, compenetrados de sua origens, e abrindo caminho na vida, sem que ninguém lhes perguntasse de quem eram filhos, e ali em São Luís, na mesma terra onde outrora o poeta Gonçalves Dias, por ser bastardo e mestiço, não pudera casar com a Ana Amélia Ferreira Vale – que ele também co- nhecera, de cabelos longos, olhos negros, es- belta, cintura fina, um mimo de mulher. – Agora, chega! – interrompeu a Benigna, puxando Damião pelo braço. – Vamos deixar o menino dormir. E foi pôr o candeeiro sobre a cômoda. Damião tornou a olhar o trineto, desta vez na penumbra, ainda emocionado. Depois correu o cortinado de filó, para protegê-lo dos mos- quitos. Na ponta dos pés, afofando os passos, aproximou-se da bisneta, beijou-lhe a testa e saiu do quarto sem ruído, cautelosamente. No corredor, disse-lhe o Tião, na sua grossa voz de dono da casa: – O senhor dorme hoje aqui. E a Benigna, atalhando:” – Eu já te disse, Tião, que esse tu não dobras. Eu, por mim, onde ponho a cabeça, aí durmo. Mas ele, não: só dorme no cantinho dele, e as- sim mesmo depois de ouvir o rangido da rede. – O rangido da rede, não – corrigiu Damião, dando o braço à Benigna. – O rangido da mi- nha rede – acentuou. – É, Tião: velho é como gato – só está bem no seu canto. Quando
  • 58. 58 / 58 Índice chegares à minha idade, verás que eu tenho razão. Tem um pouco de paciência: dá um jeito de nos levar. Daí a pouco, encolhidos no fundo da carrua- gem, com o próprio Tião a dirigir a parelha, os dois velhos começaram a atravessar a ci- dade, de mãos dadas, um junto do outro, a caminho do Largo de Santiago. Na saída da Rua do Passeio para a Rua Grande, Damião se lembrou dos dois homens assassinados no botequim da esquina. Lá dentro, as luzes es- tavam acesas: sinal de que a Polícia já sabia do crime. Quis contar o caso à Benigna; mas a viu tão sonolenta, com a cabeça descansada no seu ombro, que achou melhor só lhe falar na manhã seguinte. Além do mais, não queria que o Tião o escutasse: terminaria por dar com a língua nos dentes, cedendo ao seu incorrigí- vel pendor para contar novidades. Só na Be- nigna podia mesmo confiar. Retraído na extremidade do banco, com o braço direito envolvendo as espáduas da com- panheira, sentia no rosto e nas mãos a úmida frialdade da madrugada, mais fria na longa rua deserta ao galope dos cavalos. Já no Lar- go do Quartel, também deserto, apenas com a figura miúda da sentinela na sua guarita de madeira, voltara a ouvir os tambores da Casa Grande das Minas, e logo recordou as noviches dançando, todas de branco, com um lenço na cabeça, os colares tilintando ao ti- lintar dos ogãs. Na esquina da Rua de Santa Rita, sentira mais próximo o bater cadencia- do. E mais uma vez reconheceu que, a des- peito do muito que vivera, e também do muito que lera e meditara, aqueles tambores tinham ainda o dom de lhe descer às raízes da cons- ciência, para lhe dar de novo o mundo mágico de seus antepassados africanos, como se por
  • 59. 59 / 58 Índice eles falassem os voduns primitivos, princípio e essência de todas as coisas. Na manhã seguinte levantou tarde, contra seu costume. A Benigna, ainda cedo, tinha saí- do para pagar a promessa de uma vela benta a São Benedito, na igreja de Santo Antônio, por ter o parto da Biá corrido normal. Ele tomou sozinho o seu café, que o aguardava na mesa posta, com o bule e a leiteira dentro dos aba- fadores. Depois, com uns restos de preguiça, foi à sala, tirou da estante um de seus clássi- cos latinos, e veio lê-lo na cadeira de balanço da varanda, junto ao velho vaso de cerâmica onde ainda se abriam as largas folhas de um tinhorão. Ali, antes de começar a leitura, dei- xou os olhos no ar, pensativo, com a sensação de que ia fechando harmoniosamente a pará- bola de seu destino, em paz com Deus e os homens. Apesar do que sofrera na infância e na juventude, e também dos reveses com que a adversidade agride o homem em qualquer tempo, a sorte lhe fora propícia. Tinha sido es- cravo, era um homem livre. Socialmente, vie- ra de muito baixo, e ali se achava, com a sua casa, o seu nome, a sua família. Lutara pela libertação de sua raça e vira raiar o dia da almejada redenção. A rigor, só havia amado realmente uma mulher, com todo o ardor das paixões irreprimíveis, e era ela a companheira perfeita de sua velhice. Em casa, quando es- tava lendo ou escrevendo, não lhe sentia se- quer os passos. E sempre disposta a servi-lo, sem uma queixa, sem uma rusga, espalhan- do alegria e confiança em seu redor. Da irmã, acabara por saber que morrera em Minas Ge- rais, para os lados de Congonhas do Campo, já velha e muito chorada pelos antigos senho- res, dos quais não se quisera separar depois da abolição. No balanço da vida, pungia-lhe
  • 60. 60 / 58 Índice apenas a tristeza de nunca ter tido notícias do Balbino. Mas consolava-se com a certeza de que, onde quer que estivesse, na Terra ou no Céu, não andaria fazendo má figura. – Que Deus olhe por ti, meu filho – suspirou. E ainda com o dedo indicador interposto nas folhas do livro, os olhos no ar, reclinou a ca- beça no espaldar da cadeira, de coração re- conhecido. Vira nascer agora o seu primeiro trineto, e era ainda um homem de cabeça lúci- da, passo firme e memória feliz. Vivia rodea- do de lembranças, na velha casa onde duas vezes se casara, e ali aprimorara a inclinação para encontrar nos livros a complementação da vida, com o gosto da leitura. Para ler, gra- ças a Deus, nunca precisara de óculos. De vez em quando, sem qualquer aviso, entrava-lhe corredor adentro, com seu cavanhaque bem aparado, os olhos faiscantes, muito bem ves- tido, um cravo vermelho na lapela, o Dr. Luís Domin- gues, governador do Estado, sempre lhe trazendo um novo livro de presente, além da lembrança de uma rosa ou de um vidro de perfume para a Benigna, a quem chamava de “minha madrinha”. Aos domingos, reunia à sua volta, com os panelões que a Benigna preparava como ninguém, a filha, os netos e os bisnetos, com as mulheres e os maridos, e ainda alguns amigos mais chegados, e era tão grande a algazarra dentro de casa, que até o papagaio protestava, ralhando todo mundo de cima de seu poleiro. No Largo do Carmo, dia sim, dia não, tinha a sua roda de compa- nheiros, em volta de uma fonte onde cantava e reluzia um repuxo. Nos outros dias, ia à Biblio- teca Pública, e ali conversava com o seu ami- go Astolfo Marques, que andava a coligir uma seleta de autores maranhenses, a que dava também a sua colaboração. Se mandava um
  • 61. 61 / 58 Índice artigo para a Pacotilha, via-o sempre na pri- meira página. Na rua, não eram apenas os amigos que o saudavam, com mostras de re- verência: até mesmo pessoas desconhecidas, com as quais casualmente se encontrava, tira- vam-lhe respeitosamente o chapéu. Da vida, que mais podia querer? Sentindo o ar abafado, levantou-se, abriu a porta do meio, deixando correr o vento da rua pela casa. E outra vez na cadeira de balan- ço, abriu ao acaso uma das elegias de Oví- dio. Depois, de olhos cerrados, repetiu-a, ver- so a verso, parte pelo gosto de recordar, parte para sentir que a memória ainda lhe era fiel. E ia volver ao livro, para ler uma nova elegia, quando ouviu os passos da Benigna, desta vez soando alto nos ladrilhos do corredor. In- terrompeu a leitura e ficou esperando por ela, com uma certa ansiedade, ao perceber-lhe no rosto contraído uma expressão nervosa. Depois de uns momentos, não conteve mais a pergunta: – Que é que tens, minha filha? Ela se deixou cair numa cadeira ao seu lado, ainda ofegante. E de mãos frias, os olhos assustados: – Ah, meu filho, nem te conto. Aqui em São Luís, ontem de noite, houve um crime medo- nho. Morreram duas pessoas. Imagina que foi assassinado o dono daquele botequim da Rua Grande que faz esquina com a Rua do Passeio e também um preto, de meia idade, que tinha acabado de desembarcar, vindo de Liverpool, para fazer surpresa ao pai, que não via desde que saiu daqui. Ele desceu do vapor já meio bêbado, com muito dinheiro na carteira, e foi para o botequim da Rua Grande, levado por um espanhol. Lá o espanhol matou ele com uma punhalada, para lhe roubar a carteira,
  • 62. 62 / 58 Índice e depois matou o dono do botequim com uma paulada. Um horror. Me contaram tudo na igreja. Na cidade, não se fala de outra coisa. Damião tinha deixado cair as mãos sobre as pernas, tomado de um pressentimento terrível, que era quase uma certeza. Preto? De meia idade? Que vinha ver o pai? E vindo de Liver- pool? E se fosse mesmo seu filho? Ficou uns momentos cm silêncio, o olhar parado, sem co- ragem de comunicar o seu temor à companhei- ra. A tragédia pareceu-lhe brutal demais para o seu fim de vida. E ainda atordoado, com uma sensação repentina de secura queimando-lhe a boca, pediu à Benigna que lhe fosse buscar um copo d’água.» M.Sc Administração Universitária, University of Alabama; PhD em Literatura Latino Americana, University Illinois, membro da Academia Maranhense de Letras. Sebastião Moreira Duarte
  • 63. 63 / 58 Índice Comemorado pelos cristãos de toda orbe, a festa do Na- tal é tempo de corações abrandados pela presença de Deus conosco, é tempo de fazer as pazes entre os que estão bri- gados, pois o menino-Deus está no meio de nós e estando Deus, ainda que Deus-criancinha, vivendo com os homens, não se pode, nem se deve, viver com quizilas, futricas e disse-me-disse. Devem-se deixar de lado os egoísmos que durante o ano atrapalharam a comunhão com o próximo. É tempo de viver em fraterna alegria com todos. É tempo de partilha. É o tempo natalino! É ou não é? João Dias Rezende Filho O Natal ainda existe? Foto:AlbaniRamos
  • 64. 64 / 58 Índice Como um escritor-cristão ou um cristão-escritor, ou pelo menos um mero escrevinhador, já que escritor soa, certa- mente, pretensioso e acadêmico, pois bem, como eu dizia, como um escrevinhador e com algum apreço que tenho pela História começo traçando brevemente as origens do Natal. As primeiras notícias sobre a comemoração pelos cristãos do nascimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus, datam, pelo menos no Oriente, de fins do século I, ainda que fosse comemorado no dia 06 de janeiro, em vez do hoje tradicio- nal 25 de dezembro ocidental, em conexão com a festa dos chamados Reis Magos, ou, em grego, festa da epifania, que significa fenômeno milagroso, aparição maravilhosa. Cristo se revela em seu nascimento, mas revela-se, de modo exce- lente, às nações todas, representadas pelos três reis-magos e suas peles branca, amarela e negra, quando lhe visitam recém-nascido na estrebaria de Belém. No Ocidente, o Mistério de um Deus que se encarna e torna-se verdadeiro homem sem deixar de ser verdadeiro Deus é comemorado, segundo a mais antiga “folhinha” de que se tem notícia e que não é a do Sagrado Coração, tão popular entre os católicos de hoje, e sim o cronógrafo de 354, pelo menos desde o século IV. Fontes diversas, como os comentários de São Cipriano de Cartago e São João Crisóstomo, ligam a origem da come- moração natalina com uma festa em honra ao Solis invictus (o sol invicto ou invencível); outras fontes ligam a festa do Natal aos festivais de inverno em que se dançava até altas horas da madrugada em honra de deuses pagãos. O certo é que muita coisa da cultura dita pagã ou pré-cristã euro- peia foi “batizada” e acolhida no seio do cristianismo em um legítimo abraçar de culturas e costumes diversos que resultou em um hibridismo muito natural e hoje familiar a todos. Assim, o dia 25 de dezembro não é a data real, isto é, histórica do nascimento de Cristo, mas uma data litúrgica, de natureza cultual, que foi introduzida na Igreja Católica no século IV para substituir o festival pagão do solstício de inverno, cristianizando costumes antiquíssimos daqueles povos.
  • 65. 65 / 58 Índice Em seu Segundo Sermão no Natal do Senhor, o Papa Leão Magno (por volta do ano 440 d.C.) condena o costume que muitos ainda possuem no dia 25 de dezembro de cultua- rem o sol e outros astros, ou seja, criaturas, em lugar do Sol verdadeiro, o Cristo. Diz São Leão Magno: “Caríssimos, animados da confiança que nasce de tão grande esperan- ça, permanecei firmes na fé sobre a qual fostes estabeleci- dos, para que esse mesmo tentador, de cujo domínio Cristo vos subtraiu, não vos seduza novamente com algumas de suas ciladas e não corrompa as alegrias próprias deste dia mediante a habilidade de suas mentiras. Porque ele zom- ba das almas simples, servindo-se da crença perniciosa de alguns, para os quais a solenidade de hoje recebe sua dignidade não tanto do nascimento de Cristo quanto do levantar-se, como eles dizem, do ‘novo sol’. (...) Longe das almas cristãs essa superstição ímpia e essa mentira mons- truosa. Nenhuma medida poderia traduzir a distância que separa o eterno das coisas temporais; o incorpóreo, das coi- sas corporais; o Senhor, das coisas que lhe são submeti- das, porque, embora elas tenham uma beleza admirável, não tem a divindade, a única que deve ser adorada”. (1996: 42 e 43) Sobre o ano exato do nascimento, sempre houve na Igreja uma preocupação em datar os eventos importantes da vida de Cristo, e com o Natal não seria diferente. Os Evangelhos fornecem algumas pistas para a datação do nascimento de Cristo, mas são insuficientes. Em Mateus, há a referência ao governo de Herodes, o Grande (Mt 2,1); em Lucas, faz- -se alusão a Quirino como governador da Síria (Lc 2,2). São duas indicações muito vagas que necessitam do comple- mento de outras fontes, como a do escritor e historiador ju- deu Flávio Josefo. Segundo Josefo, Herodes morreu antes da Páscoa do ano 750 da fundação de Roma ( em latim ab Urbe condita). A Páscoa neste ano teria caído no dia 11 de abril. Já Lucas faz referência ao censo convocado através do edito do Imperador César Augusto. O censo foi reali- zado no ano 746 da fundação de Roma. Se Cristo nasceu na época do censo e quando Herodes ainda vivia, logo terá