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DESCRIMINANTES PUTATIVAS FÁTICAS


          Ameleto Masini Neto*


          Primeiramente, vale destacar que o termo “descriminante”, em Direito
penal, significa excludente de antijuridicidade ou ilicitude.
          Todo fato típico é, em princípio, antijurídico, salvo se presente alguma
causa que lhe retire a ilicitude (teoria da ratio cognoscendi).
          Na Parte Geral do Código Penal (art. 23) encontram-se as quatro célebres
descriminantes legais: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento
do dever legal e exercício regular de direito.
          Por sua vez, putativo origina-se do termo latino putare, que significa errar,
ou putativum (algo que se supõe verdadeiro ou aquilo que aparenta ser autêntico).
          Assim, descriminantes putativas são excludentes de ilicitude que
aparentam estar presentes em uma determinada situação, quando, na realidade,
não estão.
          Cumpre observar que, apesar de as descriminantes significarem
excludentes de ilicitude, quando associadas à situação de putatividade, como se
verá, excluirão ora a tipicidade, ora a culpabilidade.
          Ponto crucial para a compreensão do tema é perceber que, nesses casos,
o agente supõe estar diante de uma descriminante em razão de um erro.
          E esse equívoco pode ocorrer, na mente do autor, de duas maneiras
distintas, razão pela qual existem duas espécies de descriminantes putativas:
          1) o agente pode imaginar-se na situação justificante em razão de erro
quanto à existência ou limites da descriminante (erro de proibição indireto ou erro de
permissão) e
          2) o agente pode enganar-se quanto aos pressupostos fáticos do evento
(descriminante putativa fática ou erro de tipo permissivo - art. 20, §1.° do CP).
                                                                         ,


          Com efeito, percebe-se que o art. 20, §1.° do Código Penal fala
                                                    ,
genericamente em “descriminantes putativas”, quando, na realidade, trata apenas de
uma de suas espécies, qual seja, a descriminante putativa fática, também conhecida
como erro de tipo permissivo.
2



          Em outras palavras, apesar da rubrica imprecisa do art. 20, § 1° existem
                                                                          ,
duas espécies de descriminantes putativas: o erro de proibição indireto e o erro de
tipo permissivo.
          Constituindo uma das vertentes das descriminantes putativas, o erro de
proibição indireto ou erro de permissão ocorre quando, no caso concreto, o agente
desconhece a ilicitude do fato em razão da errônea suposição acerca da existência
ou limites de uma norma permissiva.
          Nesse caso, não há qualquer equívoco com relação à situação fática. No
entanto, malgrado todo o conhecimento da realidade dos fatos, acredita que, ainda
assim, pode agir acobertado por uma das excludentes de ilicitude.
          É o caso, por exemplo, do homem espancado e humilhado na presença
da esposa e filhos, porém ainda com forças para reagir, que se supõe no direito de
esfaquear o agressor pelas costas, após já ter cessado a agressão.
          Remansosa é a doutrina no sentido de considerar essa descriminante
putativa como erro de proibição.
          Sendo assim, deverão ter as mesmas consequências do erro de proibição
direto (art. 21, caput, do CP), ou seja, o agente responderá pelo resultado com pena
reduzida, se o erro for evitável (inescusável), ou ficará isento de pena, se o equívoco
for inevitável (escusável).
          Grande polêmica, no entanto, reside no erro de tipo permissivo
(descriminantes putativas fáticas).
          Nessa modalidade de descriminante imaginária, diferentemente do que
ocorre no erro de proibição indireto, a falsa percepção da realidade recai sobre os
pressupostos fáticos e não sobre a existência ou limites da excludente.
          A indagação que se faz é: essa espécie de descriminante constitui erro de
tipo ou erro de proibição? Irradia os seus efeitos sobre a tipicidade, pela exclusão do
dolo, ou sobre a culpabilidade, pela carência da consciência potencial da ilicitude?
          A teoria limitada da culpabilidade – atualmente predominante – afirma que
a descriminante putativa fática possui natureza jurídica de erro de tipo, excluindo,
por óbvio, o dolo; se vencível, deverá subsistir o crime culposo, desde que previsto e
lei.
          Assevera     que    o   erro   evitável   sobre   os   pressupostos   de   uma
descriminante, por força de sua similitude com o erro de tipo, deve resultar no
mesmo tratamento deste.
3



          Parece-nos, no entanto, que o erro sobre os pressupostos fáticos das
causas de justificação deve irradiar os seus efeitos sobre a culpabilidade e não
sobre a tipicidade, senão vejamos.
          No erro de tipo permissivo “invencível”, o agente é isento de pena (CP –
art. 20, § 1.° Em sua parte final, o mencionado dispositivo ressalva que se o erro
              ).
derivar de culpa, o agente deverá ser responsabilizado por crime culposo, se
previsto em lei.
          Ocorre que, em todos os casos de erro de tipo permissivo vencível, o
agente incorre na denominada culpa imprópria que, como se sabe, é uma
modalidade de culpa que tem nela inserida o dolo de produzir o resultado.
          A pessoa que efetua disparos contra terceiro, supondo que está prestes a
ser injustamente agredida, o faz dolosamente.
          Com isso, é possível inferir que a teoria limitada da culpabilidade admite a
existência de uma espécie de erro de tipo que não acarreta a verdadeira exclusão
do dolo, o que não nos parece aceitável.
          Ora, a principal consequência, em nossa ordenação jurídica, do erro de
tipo, seja vencível ou invencível, é justamente a exclusão completa do dolo.
          Sendo assim, mostra-se paradoxal a afirmação de que o erro de tipo
permissivo vencível exclui o dolo, remanescendo a culpa se o crime comportar
modalidade culposa.
          Isso porque, no caso, a culpa remanescente será imprópria que, reitere-
se, tem nela inserida o dolo.
          Aceitar que essa modalidade de descriminante putativa constitui erro de
tipo significa, por outro lado, aceitar a existência de uma espécie de erro de tipo que
não exclui verdadeiramente o dolo, raciocínio que não tem lugar em nossa
ordenação jurídico-penal.
          O erro nas descriminantes putativas fáticas constitui, na verdade, um erro
de proibição eclético ou sui generis (teoria que remete à consequência jurídica). Isso
porque, pela leitura do art. 20, § 1.° do CP, percebe-se nítida fusão entre as
                                      ,
consequências do erro de tipo e do erro de proibição.
          Se o equívoco for inevitável ocorrerá a isenção da pena (erro de proibição
escusável – art. 21, caput, 1.ª parte); se evitável, o agente responderá com as penas
correspondentes a um crime culposo (erro de tipo inescusável – art. 20, caput, 2.ª
parte).
4



          Existe, portanto, uma figura híbrida tida como sui generis, já que constitui
um misto entre erro de tipo e erro de proibição.
          Assim, o que temos, no caso das descriminantes putativas fáticas, é a falta
de consciência da ilicitude, com os corolários, no entanto, do art. 20, § 1.° e não do
art. 21 do Código Penal.


          Ameleto Masini Neto – Analista Judiciário do TRF da 3.ª Região, Pós-
Graduado em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura e Professor de
Direito Penal.

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DESCRIMINANTES PUTATIVAS FÁTICAS: ERRO DE PROIBIÇÃO SUI GENERIS

  • 1. DESCRIMINANTES PUTATIVAS FÁTICAS Ameleto Masini Neto* Primeiramente, vale destacar que o termo “descriminante”, em Direito penal, significa excludente de antijuridicidade ou ilicitude. Todo fato típico é, em princípio, antijurídico, salvo se presente alguma causa que lhe retire a ilicitude (teoria da ratio cognoscendi). Na Parte Geral do Código Penal (art. 23) encontram-se as quatro célebres descriminantes legais: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito. Por sua vez, putativo origina-se do termo latino putare, que significa errar, ou putativum (algo que se supõe verdadeiro ou aquilo que aparenta ser autêntico). Assim, descriminantes putativas são excludentes de ilicitude que aparentam estar presentes em uma determinada situação, quando, na realidade, não estão. Cumpre observar que, apesar de as descriminantes significarem excludentes de ilicitude, quando associadas à situação de putatividade, como se verá, excluirão ora a tipicidade, ora a culpabilidade. Ponto crucial para a compreensão do tema é perceber que, nesses casos, o agente supõe estar diante de uma descriminante em razão de um erro. E esse equívoco pode ocorrer, na mente do autor, de duas maneiras distintas, razão pela qual existem duas espécies de descriminantes putativas: 1) o agente pode imaginar-se na situação justificante em razão de erro quanto à existência ou limites da descriminante (erro de proibição indireto ou erro de permissão) e 2) o agente pode enganar-se quanto aos pressupostos fáticos do evento (descriminante putativa fática ou erro de tipo permissivo - art. 20, §1.° do CP). , Com efeito, percebe-se que o art. 20, §1.° do Código Penal fala , genericamente em “descriminantes putativas”, quando, na realidade, trata apenas de uma de suas espécies, qual seja, a descriminante putativa fática, também conhecida como erro de tipo permissivo.
  • 2. 2 Em outras palavras, apesar da rubrica imprecisa do art. 20, § 1° existem , duas espécies de descriminantes putativas: o erro de proibição indireto e o erro de tipo permissivo. Constituindo uma das vertentes das descriminantes putativas, o erro de proibição indireto ou erro de permissão ocorre quando, no caso concreto, o agente desconhece a ilicitude do fato em razão da errônea suposição acerca da existência ou limites de uma norma permissiva. Nesse caso, não há qualquer equívoco com relação à situação fática. No entanto, malgrado todo o conhecimento da realidade dos fatos, acredita que, ainda assim, pode agir acobertado por uma das excludentes de ilicitude. É o caso, por exemplo, do homem espancado e humilhado na presença da esposa e filhos, porém ainda com forças para reagir, que se supõe no direito de esfaquear o agressor pelas costas, após já ter cessado a agressão. Remansosa é a doutrina no sentido de considerar essa descriminante putativa como erro de proibição. Sendo assim, deverão ter as mesmas consequências do erro de proibição direto (art. 21, caput, do CP), ou seja, o agente responderá pelo resultado com pena reduzida, se o erro for evitável (inescusável), ou ficará isento de pena, se o equívoco for inevitável (escusável). Grande polêmica, no entanto, reside no erro de tipo permissivo (descriminantes putativas fáticas). Nessa modalidade de descriminante imaginária, diferentemente do que ocorre no erro de proibição indireto, a falsa percepção da realidade recai sobre os pressupostos fáticos e não sobre a existência ou limites da excludente. A indagação que se faz é: essa espécie de descriminante constitui erro de tipo ou erro de proibição? Irradia os seus efeitos sobre a tipicidade, pela exclusão do dolo, ou sobre a culpabilidade, pela carência da consciência potencial da ilicitude? A teoria limitada da culpabilidade – atualmente predominante – afirma que a descriminante putativa fática possui natureza jurídica de erro de tipo, excluindo, por óbvio, o dolo; se vencível, deverá subsistir o crime culposo, desde que previsto e lei. Assevera que o erro evitável sobre os pressupostos de uma descriminante, por força de sua similitude com o erro de tipo, deve resultar no mesmo tratamento deste.
  • 3. 3 Parece-nos, no entanto, que o erro sobre os pressupostos fáticos das causas de justificação deve irradiar os seus efeitos sobre a culpabilidade e não sobre a tipicidade, senão vejamos. No erro de tipo permissivo “invencível”, o agente é isento de pena (CP – art. 20, § 1.° Em sua parte final, o mencionado dispositivo ressalva que se o erro ). derivar de culpa, o agente deverá ser responsabilizado por crime culposo, se previsto em lei. Ocorre que, em todos os casos de erro de tipo permissivo vencível, o agente incorre na denominada culpa imprópria que, como se sabe, é uma modalidade de culpa que tem nela inserida o dolo de produzir o resultado. A pessoa que efetua disparos contra terceiro, supondo que está prestes a ser injustamente agredida, o faz dolosamente. Com isso, é possível inferir que a teoria limitada da culpabilidade admite a existência de uma espécie de erro de tipo que não acarreta a verdadeira exclusão do dolo, o que não nos parece aceitável. Ora, a principal consequência, em nossa ordenação jurídica, do erro de tipo, seja vencível ou invencível, é justamente a exclusão completa do dolo. Sendo assim, mostra-se paradoxal a afirmação de que o erro de tipo permissivo vencível exclui o dolo, remanescendo a culpa se o crime comportar modalidade culposa. Isso porque, no caso, a culpa remanescente será imprópria que, reitere- se, tem nela inserida o dolo. Aceitar que essa modalidade de descriminante putativa constitui erro de tipo significa, por outro lado, aceitar a existência de uma espécie de erro de tipo que não exclui verdadeiramente o dolo, raciocínio que não tem lugar em nossa ordenação jurídico-penal. O erro nas descriminantes putativas fáticas constitui, na verdade, um erro de proibição eclético ou sui generis (teoria que remete à consequência jurídica). Isso porque, pela leitura do art. 20, § 1.° do CP, percebe-se nítida fusão entre as , consequências do erro de tipo e do erro de proibição. Se o equívoco for inevitável ocorrerá a isenção da pena (erro de proibição escusável – art. 21, caput, 1.ª parte); se evitável, o agente responderá com as penas correspondentes a um crime culposo (erro de tipo inescusável – art. 20, caput, 2.ª parte).
  • 4. 4 Existe, portanto, uma figura híbrida tida como sui generis, já que constitui um misto entre erro de tipo e erro de proibição. Assim, o que temos, no caso das descriminantes putativas fáticas, é a falta de consciência da ilicitude, com os corolários, no entanto, do art. 20, § 1.° e não do art. 21 do Código Penal. Ameleto Masini Neto – Analista Judiciário do TRF da 3.ª Região, Pós- Graduado em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura e Professor de Direito Penal.