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Um discurso sobre as Ciências
na transição para uma
ciência pós-moderna
Boaventura de Sousa Santos



Estamos a doze anos do final do século    uma sociedade de comunicação e
XX. Vivemos num tempo atônito que ao      interativa libertada das carências e
debruçar-se sobre si próprio descobre     inseguranças que ainda hoje compõem
que os seus pés são um cruzamento de      os dias de muitos de nós: o século XXI
sombras, sombras que vêm do passado       a começar antes de começar. Por outro
que ora pensamos já não sermos, ora       lado, uma reflexão cada vez mais
pensamos não termos ainda deixado de      aprofundada sobre os limites do rigor
ser, sombras que vêm do futuro que ora    científico combinada com os perigos
pensamos já sermos, ora pensamos nunca cada vez mais verossímeis da catástrofe
virmos a ser. Quando, ao procurarmos      ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos
analisar a situação presente das ciências temer que o século XXI termine antes de
no seu conjunto, olhamos para o passado   começar.
a primeira imagem é talvez a de que os
progressos científicos dos últimos trinta Recorrendo à teoria sinergética do físico
anos são de tal ordem dramáticos que os   teórico Hermann Haken, podemos dizer
séculos que nos precederam — desde o      que vivemos num sistema visual muito
século XVI, onde todos nós, cientistas    instável em que a mínima flutuação da
modernos, nascemos, até ao próprio        nossa percepção visual provoca rupturas
século XIX — não são mais que uma         na simetria do que vemos. Assim, olhando
pré-história longínqua. Mas se fecharmos  a mesma figura, ora vemos um vaso
os olhos e os voltarmos a abrir,          grego branco recortado sobre um fundo
verificamos com surpresa que os grandes   preto, ora vemos dois rostos gregos de
cientistas que estabeleceram e            perfil, frente a frente, recortados sobre
mapearam o campo teórico em que ainda um fundo branco. Qual das imagens é
hoje nos movemos viveram ou               verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta
trabalharam entre o século XVIII e os     a ambigüidade e a complexidade da
primeiros vinte anos do século XX, de     situação do tempo presente, um tempo
Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e        de transição, síncrone com muita coisa
Darwin, de Marx e Durkheim a Max          que está além ou aquém dele, mas
Weber e Pareto, de Humboldt e Planck      descompassado em relação a tudo o
a Poincaré e Einstein. E de tal modo é    que o habita.
assim que é possível dizer que em
termos científicos vivemos ainda no       Tal como noutros períodos de transição,
século XIX e que o século XX ainda não    difíceis de entender e de percorrer, é
começou, nem talvez comece antes de       necessário voltar às coisas simples, à
terminar. E se, em vez de no passado,     capacidade de formular perguntas simples,
centrarmos o nosso olhar no futuro, do    perguntas que, como Einstein costumava
mesmo modo duas imagens contraditórias dizer, só uma criança pode fazer mas que,
nos ocorrem alternadamente. Por um        depois de feitas, são capazes de trazer
lado, as potencialidades da tradução      uma luz nova à nossa perplexidade.
tecnológica dos conhecimentos             Tenho comigo uma criança que há
acumulados fazem-nos crer no limiar de    precisamente duzentos e trinta e oito

* A visita do prof. Boaventura contou com o apoio da FAPESP. As reflexões
  epistemológicas deste texto estão tratadas com maior amplitude no livro Introdução
  a uma Ciência Pós-Moderna, a ser publicado pela Editora Graal.
anos fez algumas perguntas simples                  Contudo, não o somos, em 1988, do
sobre as ciências e os cientistas. Fê-las           mesmo modo que o éramos há quinze ou
no início de um ciclo de produção                   vinte anos. Por razões que alinho adiante,
científica que muitos de nós julgam                 estamos de novo perplexos, perdemos a
estar agora a chegar ao fim. Essa criança           confiança epistemológica; instalou-se em
é Jean-Jacques Rousseau. No seu célebre             nós uma sensação de perda irreparável
Discours sur les Sciences et les Arts (1750)        tanto mais estranha quanto não sabemos
Rousseau formula várias questões                    ao certo o que estamos em vias de perder;
enquanto responde à que, também                     admitimos mesmo, noutros momentos,
razoavelmente infantil, lhe fora posta              que essa sensação de perda seja apenas a
pela Academia de Dijon1. Esta última                cortina de medo atrás da qual se
questão rezava assim: o progresso das               escondem as novas abundancias da nossa
ciências e das artes contribuirá para               vida individual e coletiva. Mas mesmo
purificar ou para corromper os nossos               aí volta a perplexidade de não sabermos
costumes? Trata-se de uma pergunta                  o que abundará em nós nessa abundância.
elementar, ao mesmo tempo profunda e
fácil de entender. Para lhe dar resposta -          Daí a ambigüidade e complexidade do
do modo eloqüente que lhe mereceu o                 tempo científico presente a que comecei
primeiro prêmio e algumas inimizades -              por aludir. Daí também a idéia, hoje
Rousseau fez as seguintes perguntas não             partilhada por muitos, de estarmos
menos elementares: há alguma relação                numa fase de transição. Daí finalmente
entre a ciência e a virtude? Há alguma              a urgência de dar resposta a perguntas
razão de peso para substituirmos o                  simples, elementares, inteligíveis. Uma
conhecimento vulgar que temos da                    pergunta elementar é uma pergunta que
natureza e da vida e que partilhamos                atinge o magma mais profundo da nossa
com os homens e mulheres de nossa                   perplexidade individual e coletiva com
sociedade pelo conhecimento científico              a transparência técnica de uma fisga.
produzido por poucos e inacessível à                Foram assim as perguntas de Rousseau;
maioria? Contribuirá a ciência para                 terão de ser assim as nossas. Mais do que
diminuir o fosso crescente na nossa                 isso, duzentos e tal anos depois, as nossas
sociedade entre o que se é e o que se               perguntas continuam a ser as de Rousseau.
aparenta ser, o saber dizer e o saber               Estamos de novo regressados à
fazer, entre a teoria e a prática? Perguntas        necessidade de perguntar pelas relações
simples a que Rousseau responde, de                 entre a ciência e a virtude, pelo valor do
modo igualmente simples, com um                     conhecimento dito ordinário ou vulgar
redondo não.                                        que nós, sujeitos individuais ou
                                                    coletivos, criamos e usamos para dar
Estávamos então em meados do século                 sentido às nossas práticas e que a ciência
XVIII, numa altura em que a ciência                 teima em considerar irrelevante, ilusório
moderna, saída da revolução científica do           e falso; e temos finalmente de perguntar
século XVI pelas mãos de Copérnico,                 pelo papel de todo o conhecimento
Galileu e Newton, começava a deixar os              científico acumulado no enriquecimento
cálculos esotéricos dos seus cultores para          ou no empobrecimento prático das nossas
se transformar no fermento de uma                   vidas, ou seja, pelo contributo positivo
transformação técnica e social sem                  ou negativo da ciência para a nossa
precedentes na história da humanidade.              felicidade. A nossa diferença existencial
Uma fase de transição, pois, que deixava            em relação a Rousseau é que, se as nossas
perplexos os espíritos mais atentos e os            perguntas são simples, as respostas
fazia refletir sobre os fundamentos da              sê-lo-ão muito menos. Estamos no fim de
sociedade em que viviam e sobre o                   um ciclo de hegemonia de uma certa
impacto das vibrações a que eles iam ser            ordem científica. As condições
sujeitos por via da ordem científica                epistêmicas das nossas perguntas estão
emergente. Hoje, duzentos anos volvidos,            inscritas no avesso dos conceitos que
somos todos protagonistas e produtos                utilizamos para lhes dar resposta. É
dessa nova ordem, testemunhos vivos das             necessário um esforço de desvendamento
transformações que ela produziu.                    conduzido sobre um fio de navalha entre
l
    Jean-Jacques Rousseau, Discours sur les Sciences et les Arts, in Oeuvres Completes, vol. 2,
    Paris, Seuil, 1971, p. 52 e segs.
a lucidez e a ininteligibilidade da resposta.    basicamente no domínio das ciências
São igualmente diferentes e muito mais           naturais. Ainda que com alguns
complexas as condições sociológicas e            prenúncios no século XVIII, é só no
psicológicas do nosso perguntar. É               século XIX que este modelo de
muito diferente perguntar pela utilidade         racionalidade se estende às ciências sociais
ou pela felicidade que o automóvel               emergentes. A partir de então pode
me pode proporcionar se a pergunta é             falar-se de um modelo global de
feita quando ninguém na minha                    racionalidade científica que admite
vizinhança tem automóvel, quando toda            variedade interna mas que se distingue e
a gente tem exceto eu ou quando eu               defende, por via de fronteiras ostensivas e
próprio tenho carro há mais de vinte             ostensivamente policiadas, de duas formas
anos.                                            de conhecimento não-científico (e,
                                                 portanto, irracional) potencialmente
                                                perturbadoras e intrusas: o senso comum e
Teremos forçosamente de ser mais                 as chamadas humanidades ou estudos
rousseaunianos no perguntar do que no           humanísticos (em que se incluíram, entre
responder. Começarei por caracterizar           outros, os estudos históricos, filológicos,
sucintamente a ordem cientifica                 jurídicos, literários, filosóficos e
hegemônica. Analisarei depois os sinais         teológicos).
da crise dessa hegemonia, distinguindo
entre as condições teóricas e as condições
sociológicas da crise. Finalmente               Sendo um modelo global, a nova
especularei sobre o perfil de uma nova          racionalidade científica é também um
ordem científica emergente, distinguindo        modelo totalitário, na medida em que
de novo entre as condições teóricas e as        nega o caráter racional a todas as formas
condições sociológicas da sua                   de conhecimento que se não pautarem
emergência. Este percurso analítico será        pelos seus princípios epistemológicos e
balizado pelas seguintes hipóteses de           pelas suas regras metodológicas. É esta
trabalho: primeiro, começa a deixar de          a sua característica fundamental e a que
fazer sentido a distinção entre ciências        melhor simboliza a ruptura do novo
naturais e ciências sociais; segundo, a         paradigma científico com os que o
síntese que há que operar entre elas tem        precedem. Está consubstanciada, com
como pólo catalisador as ciências               crescente definição, na teoria heliocéntrica
sociais; terceiro, para isso, as ciências       do movimento dos planetas de Copérnico,
sociais terão de recusar todas as formas        nas leis de Kepler sobre as órbitas dos
de positivismo lógico ou empírico ou            planetas, nas leis de Galileu sobre a queda
de mecanicismo materialista ou                  dos corpos, na grande síntese da ordem
idealista com a conseqüente revalorização       cósmica de Newton e finalmente na
do que se convencionou chamar                   consciência filosófica que lhe conferem
humanidades ou estudos humanísticos;            Bacon e sobretudo Descartes. Esta
quarto, esta síntese não visa uma ciência       preocupação em testemunhar uma
unificada nem sequer uma teoria geral,          ruptura fundante que possibilita uma e só
mas tão-só um conjunto de galerias              uma forma de conhecimento verdadeiro
temáticas onde convergem linhas de água         está bem patente na atitude mental dos
que até agora concebemos como                   protagonistas, no seu espanto perante as
objetos teóricos estanques; quinto, à           próprias descobertas e a extrema e ao
medida que se der esta síntese, a distinção     mesmo tempo serena arrogância com
hierárquica entre conhecimento científico       que se medem com os seus
e conhecimento vulgar tenderá a                                                                 O modelo de
                                                contemporâneos. Para citar apenas dois          racionalidade que
desaparecer e a prática será o fazer e o        exemplos, Kepler escreve no seu livro
dizer da filosofia da prática.                                                                  preside à ciência
                                                sobre a Harmonia do Mundo publicado             moderna constituiu-se a
                                                em 1619, a propósito das harmonias              partir da revolução
O Paradigma Dominante                           naturais que descobrira nos movimentos          científica do século
                                                celestiais: "Perdoai-me mas estou feliz;        XVI e foi desenvolvido
O modelo de racionalidade que preside à         se vos zangardes eu perseverarei; (...)         nos séculos seguintes
ciência moderna constituiu-se a partir da       O meu livro pode esperar muitos séculos         basicamente no
revolução científica do século XVI e foi        pelo seu leitor. Mas mesmo Deus teve de         domínio das ciências
desenvolvido nos séculos seguintes              esperar seis mil anos por aqueles que           naturais.
pudessem contemplar o seu trabalho"2.     distinções fundamentais, entre
Por outro lado, Descartes, nessa          conhecimento científico e
maravilhosa autobiografia espiritual que  conhecimento do senso comum, por
é o Discurso do Método e a que voltarei   um lado, e entre natureza e pessoa
mais tarde, diz, referindo-se ao método   humana, por outro. Ao contrário da
por si encontrado: "Porque já colhi dele  ciência aristotélica, a ciência moderna
tais frutos que embora no juízo que faço  desconfia sistematicamente das
de mim próprio procure sempre             evidências da nossa experiência imediata.
inclinar-me mais para o lado da           Tais evidências, que estão na base do
desconfiança do que para o da presunção, conhecimento vulgar, são ilusórias. Como
e embora, olhando com olhar de            bem salienta Einstein no prefácio ao
filósofo as diversas ações e              Diálogo sobre os Grandes Sistemas do
empreendimentos de todos os homens,       Mundo, Galileu esforça-se denodadamente
não haja quase nenhuma que não me         por demonstrar que a hipótese dos
pareça vã e inútil, não deixo de receber  movimentos de rotação e de translação
uma extrema satisfação com o              da terra não é refutada pelo fato de
progresso que julgo ter feito em busca    não observarmos quaisquer efeitos
da verdade e de conceber tais esperanças  mecânicos desses movimentos, ou seja,
para o futuro que, se entre as ocupações  pelo fato de a terra nos parecer parada e
dos homens, puramente homens, alguma      quieta 5 . Por outro lado, é total a
há que seja solidamente boa e importante, separação entre a natureza e o ser
ouso crer que é aquela que escolhi".3     humano. A natureza é tão-só extensão e
                                          movimento; é passiva, eterna e reversível,
Para compreender esta confiança           mecanismos cujos elementos se podem
epistemológica é necessário descrever,    desmontar e depois relacionar sob a
ainda que sucintamente, os principais     forma de leis; não tem qualquer outra
traços do novo paradigma científico.      qualidade ou dignidade que nos impeça
Cientes de que o que os separa do saber   de desvendar os seus mistérios,
aristotélico e medieval ainda dominante   desvendamento que não é contemplativo,
não é apenas nem tanto uma melhor         mas antes ativo, já que visa conhecer a
observação dos fatos como sobretudo       natureza para a dominar e controlar.
uma nova visão do mundo e da vida,        Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa
os protagonistas do novo paradigma        humana" o senhor e o possuidor da
conduzem uma luta apaixonada contra       natureza" 6 .
todas as formas de dogmatismo e de
autoridade. O caso de Galileu é           Com base nestes pressupostos o
particularmente exemplar, e é ainda       conhecimento científico avança pela
Descartes que afirma: "Eu não podia       observação descomprometida e livre,
escolher ninguém cujas opiniões me        sistemática e tanto quanto possível
parecessem dever ser preferidas às dos    rigorosa dos fenômenos naturais. O
outros, e encontrava-me como que          Novum Organum opõe a incerteza da
obrigado a procurar conduzir-me a         razão entregue a si mesma à certeza da
mim próprio" 4 . Esta nova visão do       experiência ordenada 7 . Ao contrário do
mundo e da vida reconduz-se a duas        que pensa Bacon, a experiência não

2
    Consultada a edição alemã (introdução e tradução de Max Caspar), Johannes Kepler,
    Welt-Harmonik. Munique, Verlag Oldenbourg, 1939, p. 280.
3
    Descartes, Discurso do Método e as Paixões da Alma. Lisboa, Sá da Costa, 1984, p. 6.
4
    Descartes, ob. cit.,p. 16.
5
    Einstein in Galileu, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems. Berkeley, University
    of California Press, 1970, p. xviii.
6
    Consultada a edição espanhola (preparada e traduzida por Gallach Palés), F. Bacon, Novum
    Organum. Madrid, Nueva Biblioteca Filosófica, 1933. Para Bacon "a senda que conduz o
    homem ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas, sendo quase a mesma"
    (p. 110). Se o objetivo da ciência é dominar a natureza não é menos verdade que "só
    podemos vencer a natureza obedecendo-lhe" (p. 6, grifo meu), o que nem sempre tem
    sido devidamente salientado nas interpretações da teoria de Bacon sobre a ciência.
7
     Cf. A. Koyré, Considerações sobre Descartes. Lisboa, Presença, 1981, p. 30.
dispensa a teoria prévia, o pensamento            pelo rigor das medições. As qualidades
dedutivo ou mesmo a especulação, mas              intrínsecas do objeto são, por assim
força qualquer deles a não dispensarem,            dizer, desqualificadas e em seu lugar
enquanto instância de confirmação                 passam a imperar as quantidades em que
última, a observação dos fatos. Galileu           eventualmente se podem traduzir. O
só refuta as deduções de Aristóteles na           que não é quantificável é cientificamente
medida em que as acha insustentáveis e é           irrelevante. Em segundo lugar, o método
ainda Einstein quem nos chama a atenção           científico assenta na redução da
para o fato de os métodos experimentais           complexidade. O mundo é complicado
de Galileu serem tão imperfeitos que só           e a mente humana não o pode
por via de especulações ousadas poderia           compreender completamente. Conhecer
preencher as lacunas entre os dados               significa dividir e classificar para depois
empíricos (basta recordar que não havia           poder determinar relações sistemáticas
medições de tempo inferiores ao                   entre o que se separou. Já em Descartes
segundo)8. Descartes, por seu turno,              uma das regras do Método consiste
vai inequivocamente das idéias para as            precisamente em "dividir cada uma das
coisas e não das coisas para as idéias e          dificuldades . . . em tantas parcelas
estabelece a prioridade da metafísica             quanto for possível e requerido para
enquanto fundamento último da ciência.            melhor as resolver" 11 . A divisão
                                                  primordial é a que distingue entre
As idéias que presidem à observação e à            "condições iniciais" e "leis da natureza".
experimentação são as idéias claras e             As condições iniciais são o reino da
simples a partir das quais se pode                complicação, do acidente e onde é
ascender a um conhecimento mais                   necessário selecionar as que estabelecem
profundo e rigoroso da natureza. Essas            as condições relevantes dos fatos a
idéias são as idéias matemáticas. A               observar; as leis da natureza são o reino
matemática fornece à ciência moderna,             da simplicidade e da regularidade onde é
não só o instrumento privilegiado de              possível observar e medir com rigor.
análise, como também a lógica da                  Esta distinção entre condições iniciais e
investigação, como ainda o modelo de              leis da natureza nada tem de "natural".
representação da própria estrutura da             Como bem observa Eugene Wigner, é
matéria. Para Galileu, o livro da                 mesmo completamente arbitrária 12 . No
natureza está inscrito em caracteres              entanto, é nela que assenta toda a ciência
geométricos9 e Einstein não pensa de              moderna.
modo diferente 10 . Deste lugar central
da matemática na ciência moderna                  A natureza teórica do conhecimento
derivam duas conseqüências principais.            científico decorre dos pressupostos
Em primeiro lugar, conhecer significa             epistemológicos e das regras
quantificar. O rigor científico afere-se          metodológicas já referidas. É um

 8
     Einstein, ob. cit., p. XIX.
 9
     Entre muitos outros passos do Diálogo sobre os Grandes Sistemas, cf. a seguinte fala de
     Salviati: "No que respeita à compreensão intensiva e na medida em que este termo denota a
     compreensão perfeita de alguma proposição, digo que a inteligência humana compreende
     algumas delas perfeitamente, e que, portanto, a respeito delas tem uma certeza tão absoluta
     quanto a própria natureza. Tais são as proposições das ciências matemáticas, isto é, da
     geometria e da aritmética nas quais a inteligência divina conhece infinitamente mais
     proposições porque as conhece todas. Mas no que respeita àquelas poucas que a inteligência
     humana compreende, penso que o seu conhecimento é igual ao Divino em certeza objetiva
     porque, nesses casos, consegue compreender a necessidade para além da qual não há maior
     certeza". Galileu, ob. cit., p. 103.
10
     A admiração de Einstein por Galileu está bem expressa no prefácio referido na nota 5. O
     modo radical (e instintivo) como Einstein "vê" a natureza matemática da estrutura da
     matéria explica em parte a sua longa batalha sobre a interpretação da mecânica quântica
     (especialmente contra a interpretação de Copenhague). Cf. B. Hoffmann, Albert Einstein,
     Creator and Rebel, Nova Iorque, New A merican Library, 19 73, p. 173 e segs.
11
     Descartes, ob. cit., p. 1 7.
12
     E. Wigner, Symmetries and Reflections. Scientific Essays. Cambridge, Cambridge University
     Press, 19 70, p. 3.
conhecimento causal que aspira à                   no futuro. Segundo a mecânica
                         formulação de leis, à luz de regularidades         newtoniana, o mundo da matéria é uma
                         observadas, com vista a prever o                   máquina cujas operações se podem
                         comportamento futuro dos fenômenos.                determinar exatamente por meio de leis
                         A descoberta das leis da natureza assenta,         físicas e matemáticas, um mundo
                         por um lado, e como já se referiu, no              estático e eterno a flutuar num espaço
                         isolamento das condições iniciais                  vazio, um mundo que o racionalismo
                         relevantes (por exemplo, no caso da                cartesiano toma cognoscível por via da
                         queda dos corpos, a posição inicial e a            sua decomposição nos elementos que o
                         velocidade do corpo em queda) e, por               constituem. Esta idéia do mundo-máquina
                         outro lado, no pressuposto de que o                é de tal modo poderosa que se vai
                         resultado se produzirá independentemente           transformar na grande hipótese universal
                         do lugar e do tempo em que se realizarem           da época moderna, o mecanicismo. Pode
                         as condições iniciais. Por outras palavras,        parecer surpreendente e até paradoxal
                         a descoberta das leis da natureza assenta          que uma forma de conhecimento, assente
                         no princípio de que a posição absoluta             numa tal visão do mundo, tenha vindo
                         e o tempo absoluto nunca são condições             a constituir um dos pilares da idéia de
                         iniciais relevantes. Este principio é,             progresso que ganha corpo no
                         segundo Wigner, o mais importante                  pensamento europeu a partir do século
                         teorema da invariância na física                   XVIII e que é o grande sinal intelectual
                         clássica 13 .                                      da ascensão da burguesia 14. Mas a
                                                                            verdade é que a ordem e a estabilidade do
                         As leis, enquanto categorias de                    mundo são a pré-condição da
                         inteligibilidade, repousam num conceito            transformação tecnológica do real.
                         de causalidade escolhido, não
                         arbitrariamente, entre os oferecidos pela          O determinismo mecanicista é o
                         física aristotélica. Aristóteles distingue         horizonte certo de uma forma de
                         quatro tipos de causa: a causa material, a         conhecimento que se pretende utilitário
                         causa formal, a causa eficiente e a causa          e funcional, reconhecido menos pela
                         final. As leis da ciência moderna são um           capacidade de compreender
          O determinismo tipo de causa formal que privilegia o              profundamente o real do que pela .
           mecanicista é o
                         como funciona das coisas em detrimento             capacidade de o dominar e transformar.
       horizonte certo dede qual o agente ou qual o fim das coisas.         No plano social, é esse também o
            uma forma de É por esta via que o conhecimento                  horizonte cognitivo mais adequado aos
    conhecimento que se  científico rompe com o conhecimento do             interesses da burguesia ascendente que
       pretende utilitário
                         senso comum. É que, enquanto no                    via na sociedade em que começava a
               e funcional,
                         senso comum, e portanto no                         dominar o estádio final da evolução da
      reconhecido menos  conhecimento prático em que ele se                 humanidade (o estado positivo de
       pela capacidade detraduz, a causa e a intenção convivem              Comte; a sociedade industrial de Spencer;
             compreender sem problemas, na ciência a determinação           a solidariedade orgânica de Durkheim).
        profundamente o  da causa formal obtém-se com a expulsão            Daí que o prestígio de Newton e das
          real do que pela
                         da intenção. É este tipo de causa formal           leis simples a que reduzia toda a
          capacidade de oque permite prever e, portanto, intervir           complexidade da ordem cósmica tenham
 dominar e transformar.  no real e que, em última instância,                convertido a ciência moderna no modelo
  No plano social, é essepermite à ciência moderna responder à              de racionalidade hegemônica que a pouco
     também e horizonte  pergunta sobre os fundamentos do seu               e pouco transbordou do estudo da
            cognitivo mais
                         rigor e da sua verdade com o elenco dos            natureza para o estudo da sociedade. Tal
             adequado aosseus êxitos na manipulação e na                    como foi possível descobrir as leis da
  interesses da burguesiatransformação do real.                             natureza, seria igualmente possível
   ascendente que via na                                                    descobrir as leis da sociedade. Bacon,
        sociedade em que Um conhecimento baseado na formulação              Vico e Montesquieu são os grandes
     começava a dominar de leis tem como pressuposto metateórico            precursores. Bacon afirma a plasticidade
         o estádio final da a idéia de ordem e de estabilidade do           da natureza humana e, portanto, a sua
evolução da humanidade mundo, a idéia de que o passado se repete            perfectibilidade, dadas as condições

                         13
                              E. Wigner, ob. cit., p. 226.
                         14
                              Cf., entre muitos, S. Pollard, The Idea of Progress. Londres, Penguin, 1971, p. 39.
sociais, jurídicas e políticas adequadas,        liberta dele, e qualquer delas
condições que é possível determinar com          reivindicando o monopólio do
rigor15. Viço sugere a existência de leis        conhecimento científico-social.
que governam deterministicamente a               Apresentarei adiante uma interpretação
evolução das sociedades e tornam possível        diferente, mas para já caracterizarei
prever os resultados das ações coletivas.        sucintamente cada uma destas variantes.
Com extraordinária premonição Vico
identifica e resolve a contradição entre a  A primeira variante — cujo compromisso
liberdade e a imprevisibilidade da ação     epistemológico está bem simbolizado no
humana individual e a determinação e        nome de "física social" com que
previsibilidade da ação coletiva16.         inicialmente se designaram os estudos
Montesquieu pode ser considerado um         científicos da sociedade — parte do
precursor da sociologia do direito ao       pressuposto que as ciências naturais são
estabelecer a relação entre as leis do      uma aplicação ou concretização de um
sistema jurídico, feitas pelo homem, e as   modelo de conhecimento universalmente
leis inescapáveis da natureza17.            válido e, de resto, o único válido.
                                            Portanto, por maiores que sejam as
No século XVIII este espírito precursor     diferenças entre os fenômenos naturais e
é ampliado e aprofundado e o fermento       os fenômenos sociais é sempre possível
intelectual que daí resulta, as luzes, vai  estudar os últimos como se fossem os
criar as condições para a emergência das    primeiros. Reconhece-se que essas
ciências sociais no século XIX. A          diferenças atuam contra os fenômenos
consciência filosófica da ciência moderna, sociais, ou seja, tornam mais difícil o
que tivera no racionalismo cartesiano e no cumprimento do cânone
empirismo baconiano as suas primeiras      metodológico e menos rigoroso o
formulações, veio a condensar-se no        conhecimento a que se chega, mas não
positivismo oitocentista. Dado que,        há diferenças qualitativas entre o
segundo este, só há duas formas de         processo científico neste domínio e o
conhecimento científico — as disciplinas   que preside ao estudo dos fenômenos
formais da lógica e da matemática e as     naturais. Para estudar os fenômenos
ciências empíricas segundo o modelo        sociais como se fossem fenômenos
mecanicista das ciências naturais — as     naturais, ou seja, para conceber os
ciências sociais nasceram para ser         fatos sociais, como coisas, como
empíricas. O modo como o modelo            pretendia Durkheim18, o fundador da
mecanicista foi assumido foi, no entanto, sociologia acadêmica, é necessário
diverso. Distingo duas vertentes           reduzir os fatos sociais às suas
principais: a primeira, sem dúvida         dimensões externas, observáveis e
dominante, consistiu em aplicar, na        mensuráveis. As causas do aumento da
medida do possível, ao estudo da           taxa de suicídio na Europa do virar do
sociedade todos os princípios              século não são procuradas nos motivos
epistemológicos e metodológicos que        invocados pelos suicidas e deixados em
presidiam ao estudo da natureza desde o    cartas, como é costume, mas antes a
século XVI; a segunda, durante muito       partir da verificação de regularidades em
tempo marginal mas hoje cada vez mais      função de condições tais como o sexo,
seguida, consistiu em reivindicar para as  o estado civil, a existência ou não de
ciências sociais um estatuto               filhos, a religião dos suicidas19.
epistemológico e metodológico próprio,
com base na especificidade do ser          Porque essa redução nem sempre é fácil
humano e sua distinção polar em relação    e nem sempre se consegue sem distorcer
à natureza. Estas duas concepções têm      grosseiramente os fatos ou sem os
sido consideradas antagônicas, a primeira, reduzir à quase irrelevância, as ciências
sujeita ao jugo positivista, a segunda,    sociais têm um longo caminho a percorrer
15
      Bacon, ob. cit.
16
    Vico, Scienza Nuova, in Opere. Milão Riccardi, 1953.
 17
     Montesquieu, L'Esprit des Lois. Paris, Les Belles-Lettres, 1950.
18
19
     E. Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Lisboa, Presença, 1980.
     E. Durkheim, O Suicídio. Lisboa, Presença, 1973.
no sentido de se compatibilizarem com os          sim, paradigmáticas. Enquanto, nas
critérios de cientificidade das ciências          ciências naturais, o desenvolvimento
naturais. Os obstáculos são enormes mas           do conhecimento tornou possível a
não são insuperáveis. Ernest Nagel, em            formulação de um conjunto de
The Structure of Science, simboliza bem           princípios e de teorias sobre a estrutura
o esforço desenvolvido nesta variante             da matéria que são aceites sem
para identificar os obstáculos e apontar          discussão por toda a comunidade
as vias da sua superação. Eis alguns dos          científica, conjunto esse que designa
principais obstáculos: as ciências sociais        por paradigma, nas ciências sociais não
não dispõem de teorias explicativas               há consenso paradigmático, pelo que o
que lhes permitam abstrair do real para           debate tende a atravessar verticalmente
depois buscar nele, de modo                       toda a espessura do conhecimento
metodológicamente controlado, a prova             adquirido. O esforço e o desperdício
adequada; as ciências sociais não podem           que isso acarreta é simultaneamente
estabelecer leis universais porque os             causa e efeito do atraso das ciências
fenômenos sociais são historicamente              sociais.
condicionados e culturalmente
determinados; as ciências sociais não             A segunda vertente reivindica para as
podem produzir previsões fiáveis porque           ciências sociais um estatuto metodológico
os seres humanos modificam o seu                  próprio. Os obstáculos que há pouco
comportamento em função do                        enunciei são, segundo esta vertente,
conhecimento que sobre ele se adquire;            intransponíveis. Para alguns, é
os fenômenos sociais são de natureza              a própria idéia de ciência da sociedade
subjetiva e como tal não se deixam                que está em causa, para outros trata-se
captar pela objetividade do                       tão-só de empreender uma ciência
comportamento; as ciências sociais não            diferente. O argumento fundamental é
são objetivas porque o cientista social           que a ação humana é radicalmente
não pode libertar-se, no ato de                   subjetiva. O comportamento humano,
observação, dos valores que informam              ao contrário dos fenômenos naturais,
a sua prática em geral e, portanto,               não pode ser descrito e muito menos
também a sua prática de cientista 20 .            explicado com base nas suas
                                                  características exteriores e objetiváveis,
Em relação a cada um destes obstáculos,           uma vez que o mesmo ato externo
Nagel tenta demonstrar que a oposição             pode corresponder a sentidos de ação
entre as ciências sociais e as ciências           muito diferentes. A ciência social será
naturais não é tão linear quanto se               sempre uma ciência subjetiva e não
julga e que, na medida em que há                  objetiva como as ciências naturais;
diferenças, elas são superáveis ou                tem de compreender os fenômenos
negligenciáveis. Reconhece, no entanto,           sociais a partir das atitudes mentais e do
que a superação dos obstáculos nem                sentido que os agentes conferem às suas
sempre é fácil e que essa é a razão               ações, para o que é necessário utilizar
principal do atraso das ciências sociais          métodos de investigação e mesmo
em relação às ciências naturais. A idéia          critérios epistemológicos diferentes dos
do atraso das ciências sociais é a idéia          correntes nas ciências naturais, métodos
central da argumentação metodológica              qualitativos em vez de quantitativos, com
nesta variante, e, com ela, a idéia de que        vista à obtenção de um conhecimento
esse atraso, com tempo e dinheiro,                intersubjetivo, descritivo e compreensivo,
poderá vir a ser reduzido ou mesmo                em vez de um conhecimento objetivo,
eliminado.                                        explicativo e nomotético.

Na teoria das revoluções científicas de           Esta concepção de ciência social
Thomas Kuhn o atraso das ciências                 reconhece-se numa postura antipositivista
sociais é dado pelo caráter                       e assenta na tradição filosófica da
pré-paradigmático destas ciências, ao             fenomenologia e nela convergem
contrário das ciências naturais, essas            diferentes variantes, desde as mais

20
     Ernest Nagel, The Structure of Science. Problems in the Logic of Scientific Explanation. Nova
     Iorque, Harcourt, Brace & World, 1961, p. 447 e segs.
moderadas (como a de Max Weber)21 até pode afirmar com segurança que
 às mais extremistas (como a de              colapsarão as distinções básicas em que
Peter Winch)22. Contudo, numa reflexão assenta o paradigma dominante e a que
 mais aprofundada, esta concepção, tal       aludi na seção precedente.
 como tem vindo a ser elaborada, revela-se A crise do paradigma dominante é o
 mais subsidiária do modelo de               resultado interativo de uma pluralidade
 racionalidade das ciências naturais do      de condições. Distingo entre condições
 que parece. Partilha com este modelo a      sociais e condições teóricas. Darei mais
distinção natureza/ser humano e tal          atenção às condições teóricas e por elas
como ele tem da natureza uma visão           começo. A primeira observação, que •
mecanicista à qual contrapõe, com            não é tão trivial quanto parece, é que a
evidência esperada, a especificidade do      identificação dos limites, das
ser humano. A esta distinção, primordial     insuficiências estruturais do paradigma
na revolução científica do século XVI,       científico moderno é o resultado do
vão-se sobrepor nos séculos seguintes       grande avanço no conhecimento que
outras, tal como a distinção natureza/      ele propiciou. O aprofundamento do
cultura e a distinção ser humano/           conhecimento permitiu ver a fragilidade
animal, para no século XVIII se poder       dos pilares em que se funda.
celebrar o caráter único de ser
humano. A fronteira que então se            Einstein constitui o primeiro rombo
estabelece entre o estudo do ser humano     no paradigma da ciência moderna, um
e o estudo da natureza não deixa de ser     rombo, aliás, mais importante do que o
prisioneira do reconhecimento da            que Einstein foi subjetivamente capaz
prioridade cognitiva das ciências naturais, de admitir. Um dos pensamentos mais
pois, se, por um lado, se recusam os        profundos de Einstein é o da
 condicionantes biológicos do               relatividade da simultaneidade. Einstein
comportamento humano, pelo outro            distingue entre a simultaneidade de
usam-se argumentos biológicos para          acontecimentos presentes no mesmo lugar
fixar a especificidade do ser humano.       e a simultaneidade de acontecimentos
Pode, pois, concluir-se que ambas as        distantes, em particular de acontecimentos
concepções de ciência social a que          separados por distâncias astronômicas.
aludi pertencem ao paradigma da             Em relação a estes últimos, o problema
ciência moderna, ainda que a concepção      lógico a resolver é o seguinte: como é
mencionada em segundo lugar represente, que o observador estabelece a ordem                         A crise do paradigma
 dentro deste paradigma, um sinal de        temporal de acontecimentos no
                                            espaço? Certamente por medições da                      dominante é o
 crise e contenha alguns dos componentes                                                            resultado interativo de
 da transição para um outro paradigma       velocidade da luz, partindo do
                                            pressuposto, que é fundamental à                         uma pluralidade de
científico.                                                                                         condições. Distingo
                                            teoria de Einstein, que não há na
                                            natureza velocidade superior à da luz. No               entre condições sociais
A Crise do Paradigma Dominante                                                                      e condições
                                            entanto, ao medir a velocidade numa
São hoje muitos e fortes os sinais de que   direção única (de A a B), Einstein                      teóricas. ( . . . )
o modelo de racionalidade científica        defronta-se com um círculo vicioso: a fim               a identificação dos
que acabo de descrever em alguns dos        de determinar a simultaneidade dos                      limites, das
seus traços principais atravessa uma        acontecimentos distantes é necessário                   insuficiências
profunda crise. Defenderei nesta seção: . conhecer a velocidade; mas para                           estruturais do
primeiro, que essa crise é não só           medir a velocidade é necessário                         paradigma científico
profunda como irreversível; segundo, que conhecer a simultaneidade dos                              moderno é o resultado
estamos a viver um período de revolução acontecimentos. Com um golpe de                             do grande avanço no
científica que se iniciou com Einstein e a gênio, Einstein rompe com este                           conhecimento que
mecânica quântica e não se sabe ainda       círculo, demonstrando que a                             ele propiciou. O
quando acabará; terceiro, que os sinais     simultaneidade de acontecimentos                        aprofundamento do
nos permitem tão-só .especular acerca.do    distantes não pode ser verificada,                      conhecimento permitiu
paradigma que emergirá deste período        pode tão-só ser definida. É, portanto,                  ver a fragilidade dos
revolucionário mas que, desde já, se        arbitrária e daí que, como salienta                     pilares em que se funda.
21
     Max Weber, Methodologischen Schriften. Frankfurt, Fischer, 1968.
22
     Peter Winch, The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy. Londres, Routledge
     e Kegan Paul, 1970.
Reichenbach, quando fazemos                        princípio da incerteza de Heisenberg: não
medições não pode haver contradições               se podem reduzir simultaneamente os
nos resultados uma vez que estes nos               erros da medição da velocidade e da
devolverão a simultaneidade que                    posição das partículas; o que for feito
nós introduzimos por definição no                  para reduzir o erro de uma das medições
sistema de medição 23 . Esta teoria                aumenta o erro da outra 26 . Este
veio revolucionar as nossas concepções             princípio, e, portanto, a demonstração
de espaço e de tempo. Não havendo                  da interferência estrutural do sujeito
simultaneidade universal, o tempo e o              no objeto observado, tem implicações
espaço absolutos de Newton deixam                  de vulto. Por um lado, sendo
de existir. Dois acontecimentos                    estruturalmente limitado o rigor do
simultâneos num sistema de referência              nosso conhecimento, só podemos
não são simultâneos noutro sistema de              aspirar a resultados aproximados e por
referência. As leis da física e da geometria       isso as leis da física são tão-só
assentam em medições locais. "Os                   probabilísticas. Por outro lado, a
instrumentos de medida, sejam relógios             hipótese do determinismo mecanicista é
ou metros, não têm magnitudes                      inviabilizada uma vez que a totalidade
independentes, ajustam-se ao campo                 do real não se reduz à soma das partes
métrico do espaço, a estrutura do qual             em que a dividimos para observar e
se manifesta mais claramente nos                   medir. Por último, a distinção sujeito/
raios de luz" 24 .                                 objeto é muito mais complexa do que à
O caráter local das medições e, portanto,          primeira vista pode parecer. A distinção
do rigor do conhecimento que com base              perde os seus contornos dicotômicos e
nelas se obtém, vai inspirar o surgimento          assume a forma de um continuum.
da segunda condição teórica da crise do            O rigor da medição posto em causa pela
paradigma dominante, a mecânica                    mecânica quântica será ainda mais
quântica. Se Einstein relativizou o rigor          profundamente abalado se se questionar o
das leis de Newton no domínio da                   rigor do veículo formal em que a medição
astrofísica, a mecânica quântica fê-lo             é expressa, ou seja, o rigor da matemática.
no domínio da microfísica. Heisenberg              É isso o que sucede com as investigações
e Bohr demonstram que não é possível               de Godel e que por essa razão considero
observar ou medir um objeto sem                    serem a terceira condição da crise do
interferir nele, sem o alterar, e a tal            paradigma. O teorema da incompletude
ponto que o objeto que sai de um                   (ou do não-completamento) e os
processo de medição não é o mesmo que              teoremas sobre a impossibilidade, em
lá entrou. Como ilustra Wigner, "a                 certas circunstâncias, de encontrar
medição da curvatura do espaço causada             dentro de um dado sistema formal a
por uma partícula não pode ser levada              prova da sua consistência vieram mostrar
a cabo sem criar novos campos que são              que, mesmo seguindo à risca as regras da
bilhões de vezes maiores que o campo               lógica matemática, é possível formular
sob investigação"25. A idéia de que não            proposições indecidíveis, proposições que
conhecemos do real senão o que nele                se não podem demonstrar nem refutar,
introduzimos, ou seja, que não                     sendo que uma dessas proposições é
conhecemos do real senão a nossa                   precisamente a que postula o caráter
intervenção nele, está bem expressa no             não-contraditório do sistema 27 . Se as
23
     H. Reichenbach, From Copernicus to Einstein, Nova Iorque, Dover Publications, 1970, p. 60.
24
     H. Reichenbach, ob. cit., p. 68.
25
     E. Wigner, ob. cit., p. 7.
26
     W. Heisenberg, A Imagem da Natureza na Física Moderna. Lisboa, Livros do Brasil, s. d.;
     W. Heisenberg, Physics and Beyond. Londres, Allen and Unwin, 1971.
27
     O impacto dos teoremas de Godel na filosofia da ciência tem sido diversamente avaliado.
     Cf., por exemplo, J. Ladrière, "Les Limites de la Formalization ", in J. Piaget (org),
     Logique et Connaissance Scientifique. París, Gallimard, 1967, p. 312 e segs.; R. Jones,
     Physics as Metaphor. Nova Iorque, New American Library, 1982, p. 158; J. Parain-Vial,
     Philosophic des Sciences de la Nature. Tendances Nouvelles. Paris, Klincksieck, 1983, p. 52 e
     segs.; R. Thom, Parábolas e Catástrofes. Lisboa, D. Quixote, 1985, p. 36; J. Briggs e F. D.
     Peat, Looking Glass Universe. The Emerging Science of Wholeness. Londres, Fontana,
     1985, p. 22.
leis da natureza fundamentam o seu rigor           segundo uma lógica de auto-organização
no rigor das formalizações matemáticas             numa situação de não-equilíbrio. A
em que se expressam, as investigações              situação de bifurcação, ou seja, o ponto
de Godel vêm demonstrar que o rigor da             crítico em que a mínima flutuação de
matemática carece ele próprio de                   energia pode conduzir a um novo estado,
fundamento. A partir daqui é possível              representa a potencialidade do sistema
não só questionar o rigor da matemática            em ser atraído para um novo estado de
como também redefini-lo enquanto forma             menor entropia. Deste modo a
de rigor que se opõe a outras formas de            irreversibilidade nos sistemas abertos
rigor alternativo, uma forma de rigor cujas        significa que estes são produto da sua
condições de êxito na ciência moderna              historiais.
não podem continuar a ser concebidas               A importância desta teoria está na nova
como naturais e óbvias. A própria filosofia        concepção da matéria e da natureza que
da matemática, sobretudo a que incide              propõe, uma concepção dificilmente
sobre a experiência matemática, tem                compaginada com a que herdamos da
vindo a problematizar criativamente estes          física clássica. Em vez da eternidade, a
temas e reconhece hoje que o rigor                 história; em vez do determinismo, a
matemático, como qualquer outra forma              imprevisibilidade; em vez do mecanicismo,
de rigor, assenta num critério de                  a interpenetração, a espontaneidade e a
seletividade e que, como tal, tem um lado          auto-organização; em vez da
construtivo e um lado destrutivo.                  reversibilidade, a irreversibilidade e a
A quarta condição teórica da crise do              evolução; em vez da ordem, a desordem;
paradigma newtoniano é constituída                 em vez da necessidade, a criatividade e o
pelos avanços do conhecimento nos                  acidente. A teoria de Prigogine recupera
domínios da microfísica, da química e              inclusivamente conceitos aristotélicos
da biologia nos últimos vinte anos. A              tais como os conceitos de potencialidade
título de exemplo, menciono as                     e virtualidade que a revolução científica
investigações do físico-químico Ilya               do século XVI parecia ter atirado
Prigogine. A teoria das estruturas                 definitivamente para o lixo da história.
dissipativas e o princípio da "ordem
através de flutuações"' estabelecem que            Mas a importância maior desta teoria
em sistemas abertos, ou seja, em                   está em que ela não é um fenômeno
sistemas que funcionam nas margens da              isolado. Faz parte de um movimento
estabilidade, a evolução explica-se por            convergente, pujante sobretudo a partir
flutuações de energia que em                       da última década, que atravessa as
determinados momentos, nunca                       várias ciências da natureza e até as .
inteiramente previsíveis, desencadeiam             ciências sociais, um movimento de
espontaneamente reações que, por via               vocação transdisciplinar que Jantsch
de mecanismos não-lineares, pressionam o           designa por paradigma da
sistema para além de um limite máximo              auto-organização e que tem aflorações,
de instabilidade e o conduzem a um                 entre outras, na teoria de Prigogine, na
novo estado macroscópico. Esta                     sinergética de Haken 29 , no conceito de
transformação irreversível e                       hiperciclo e na teoria da origem da vida
termodinâmica é o resultado da                     de Eigen 30 , no conceito de autopoiesis
interação de processos microscópicos               de Maturana e Varela 31 , na teoria das
28
     I. Prigogine el. Stengers, La Nouvelle Alliance. Metamorphose de la Science. Paris,
       Gallimard, 1979; I. Prigogine, From Being to Becoming. 5. Francisco, Freeman, 1980;
       I. Prigogine, "Time, Irreversibuity and Randomness", in E. Jantsch (orgj, The Evolutionary
       Vision. Boulder, Westview Press, p. 73 e segs.
29
      H. Han/en, Synergetics: an introduction. Heidelberg, Springer 19 77; H. Haken, "Synergetics -
      An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization", Geoforum 16 (1985),
       205.
30
       M. Eigen e P. Schuster, The Hypercyde: a principle of natural self-organization. Heidelberg,
       Springer, 1979.
31
      H. R. Maturana e F. J. Varela, De Maquinas y Seres Vivos. Santiago do Chile, Editorial
      Universitária, 1973; H. R. Maturana e J. F. Varela, Autopoietic Systems. Urbana, Biological
      Computer Laboratory University of Illinois, 1975. Cf., também, F. Benseler, P. Hejl e W.
      Koch (orgs.), Autopoiesis. Communication and Society. The Theory of Autopoietic Systems
      in the Social Sciences. Frankfurt, Campus, 1980.
catástrofes de Thorn 32 , na teoria da            principais. Em primeiro lugar, são
                              evolução de Jantsch33, na teoria da               questionados o conceito de lei e o
                              "ordem implicada" de David Bohm34                 conceito de causalidade que lhe está
                              ou na.teoria da matriz-S de Geoffrey              associado. A formulação das leis da
                              Chew e na filosofia do "bootstrap"                natureza funda-se na idéia de que os
                              que lhe subjaz35. Este movimento                  fenômenos observados independem de
                              científico e as demais inovações teóricas         tudo exceto de um conjunto
                              que atrás defini como outras tantas               razoavelmente pequeno de condições
                              condições teóricas da crise do paradigma          (as condições iniciais) cuja interferência
                              dominante têm vindo a propiciar uma               é observada e medida. Esta idéia,
                              profunda reflexão epistemológica sobre            reconhece-se hoje, obriga a separações
                              o conhecimento científico, uma reflexão           grosseiras entre os fenômenos,
                              de tal modo rica e diversificada que,             separações que, aliás, são sempre
                              melhor do que qualquer outra                      provisórias e precárias uma vez que a
                              circunstância, caracteriza exemplarmente          verificação da não-interferência de
                              a situação intelectual do tempo presente.         certos fatores é sempre produto de
 Mas acima de tudo, a         Esta reflexão apresenta duas facetas              um conhecimento imperfeito, por
  simplicidade das leis       sociológicas importantes. Em primeiro             mais perfeito que seja. As leis têm
            constitui uma     lugar, a reflexão é levada a cabo                 assim um caráter probabilístico,
             simplificação    predominantemente pelo próprios                   aproximativo e provisório, bem
arbitrária da realidade       cientistas, por cientistas que adquiriram         expresso no princípio da falsificabilidade
 que nos confina a um         uma competência e um interesse                    de Popper. Mas acima de tudo, a
    horizonte mínimo          filosóficos para problematizar a sua              simplicidade das leis constitui uma
      para além do qual       prática científica. Não é arriscado               simplificação arbitrária da realidade que
outros conhecimentos          dizer que nunca houve tantos                      nos confina a um horizonte mínimo
              da natureza,    cientistas-filósofos como atualmente, e           para além do qual outros conhecimentos
  provavelmente mais          isso não se deve a uma evolução                   da natureza, provavelmente mais ricos
        ricos e com mais      arbitrária do interesse intelectual. Depois       e com mais interesse humano, ficam por
     interesse humano,        da euforia cientista do século XIX e da           conhecer. Na biologia, onde as
  ficam por conhecer.         conseqüente aversão à reflexão filosófica,        interações entre fenômenos e formas
  Na biologia, onde as        bem simbolizada pelo positivismo,                 de auto-organização em totalidades
         interações entre     chegamos a finais do século XX possuídos          não-mecânicas são mais visíveis, mas
             fenômenos e      pelo desejo quase desesperado de                  também nas demais ciências, a noção de
                formas de     complementarmos o conhecimento das                lei tem vindo a ser parcial e sucessivamente
 auto-organização em          coisas com o conhecimento do                     substituída pelas noções de sistema, de
               totalidades    conhecimento das coisas, isto é, com o           estrutura, de modelo e, por último, pela
    não-mecânicas são         conhecimento de nós próprios. A                  noção de processo. O declínio da
      mais visíveis, mas      segunda faceta desta reflexão é que ela          hegemonia da legalidade é concomitante
  também nas demais           abrange questões que antes eram deixadas         do declínio da hegemonia da
  ciências, a noção de        aos sociólogos. A análise das condições          causalidade. O questionamento da
    lei tem vindo a ser       sociais, dos contextos culturais, dos            causalidade nos tempos modernos vem
                  parcial e   modelos organizacionais da investigação          de longe, pelo menos desde David Hume
          sucessivamente      científica, antes acantonada no campo            e do positivismo lógico. A reflexão
       substituída pelas      separado e estanque da sociologia da             crítica tem incidido tanto no problema
    noções de sistema,        ciência, passou a ocupar papel de relevo         ontológico da causalidade (quais as
        de estrutura, de      na reflexão epistemológica.                      características do nexo causal?; esse
modelo e, por último,                                                          nexo existe na realidade?) como sobre o
           pela noção de      Do conteúdo desta reflexão respigarei,           problema metodológico da causalidade
                 processo.    a título ilustrativo, alguns dos temas           (quais os critérios de causalidade?; como
                              32
                                   R. Thom, ob. cit., p. 85 e segs.
                              33
                                   E. Jantsch, The Self-Organizing Universe: scientific and human implications of the emerging
                                   paradigm of evolution. Oxford, Pergamon, 1980; E. Jantsch. "Unifying Principles of
                                   Evolution" E. Jantsch (org), The Evolutionary Vision, cit., p. 83 e segs.
                              34
                                   D. Bohm, Wholeness and the Implicate Order. Londres, Ark Paperbacks, 1984.
                              35
                                   G. Chew, "Bootstraps scientific idea?", Science 167 (1968), p. 762 e segs;G. Chew, "Hardon
                                   bootstrap: triumph or frustration?", Physics Today, 23 (1970) p. 23 e segs; f. Capra, "Quark
                                   physics without quarks: a review of recent developments in S-matrix theory", American
                                   Journal of Physics, 47 (1979), p. 11 e segs.
reconhecer um nexo causal ou testar                rigor que, ao afirmar a personalidade
uma hipótese causal?). Hoje, a                     do cientista, destrói a personalidade da
relativização do conceito de causa parte           natureza. Nestes termos, o conhecimento
sobretudo do reconhecimento de que o               ganha em rigor o que perde em riqueza
lugar central que ele tem ocupado na               e a retumbância dos êxitos da intervenção
ciência moderna se explica menos por               tecnológica esconde os limites da nossa
razões ontológicas ou metodológicas                compreensão do mundo e reprime a
do que por razões pragmáticas. O                   pergunta pelo valor humano do afã
conceito de causalidade adequa-se bem a            científico assim concebido. Esta pergunta
uma ciência que visa intervir no real              está, no entanto, inscrita na própria
e que mede o seu êxito pelo âmbito                 relação sujeito/objeto que preside
dessa intervenção. Afinal, causa é tudo            à ciência moderna, uma relação que
aquilo sobre que se pode agir. Mesmo os            interioriza o sujeito à custa da
defensores da causalidade, como Mario              exteriorização do objeto, tornando-os
Bunge, reconhecem que ela é apenas                 estanques e incomunicáveis.
uma das formas do determinismo e que
por isso tem um lugar limitado, ainda que
insubstituível, no conhecimento                    Os limites deste tipo de conhecimento
científico36. A verdade é que, sob a               são, assim, qualitativos, não são
égide da biologia e também da microfísica,         superáveis com maiores quantidades de
o causalismo, enquanto categoria de                investigação ou maior precisão dos
inteligibilidade do real, tem vindo a              instrumentos. Aliás, a própria precisão
perder terreno em favor do finalismo.              quantitativa do conhecimento é
                                                   estruturalmente limitada. Por exemplo,
O segundo grande tema de reflexão                  no domínio das teorias da informação o
epistemológica versa mais sobre o                  teorema de Brillouin demonstra que a
conteúdo do conhecimento científico do             informação não é gratuita 38 . Qualquer
que sobre a sua forma. Sendo um                    observação efetuada sobre um sistema
conhecimento mínimo que fecha as                   físico aumenta a entropia do sistema no
portas a muitos outros saberes sobre o             laboratório, O rendimento de uma dada
mundo, o conhecimento científico                   experiência deve assim ser definido
moderno é um conhecimento                          pela relação entre a informação obtida
desencantado e triste que transforma a             e o aumento concomitante da entropia.
natureza num autômato, ou, como                    Ora, segundo Brillouin, esse rendimento
diz Prigogine, num interlocutor                    é sempre inferior à unidade e só em
terrivelmente estúpido 37 . Este                   casos raros é próximo dela. Nestes
aviltamento da natureza acaba por                  termos, a experiência rigorosa é
aviltar o próprio cientista na medida              irrealizável pois que exigiria um dispendio
em que reduz o suposto diálogo                     infinito de atividades humanas. Por
experimental ao exercício de uma                   último, a precisão é limitada porque, se é
prepotência sobre a natureza. O rigor              verdade que o conhecimento só sabe
científico, porque fundado no rigor                avançar pela via da progressiva
matemático, é um rigor que quantifica              parcelização do objeto, bem
e que, ao quantificar, desqualifica, um            representada nas crescentes
rigor que, ao objetivar os fenômenos,              especializações da ciência, é
os objetualiza e os degrada, que, ao               exatamente por essa via que melhor se
caracterizar os fenômenos, os caricaturiza.        confirma a irredutibilidade das
É, em suma e finalmente, uma forma de              totalidades orgânicas ou inorgânicas às

36
       M. Bunge, Causality and Modem Science. Nova Iorque, Dover Publications, 3a edição, 1979,
       p. 353: "The causal principle is, in short, neither a panacea nor a myth; it is a general
       hypothesis subsumed under the universal principle of determinacy, and having an
       approximate validity in its proper domain". Em Portugal é justo salientar neste domínio a
       notável obra teórica de Armando Castro. Cf. Teoria do Conhecimento Científico, vols. I-IV,
       Porto Limiar, 1975, 1978, 1980, 1982; vol V, Porto, Afrontamento, 1987.
37
     I. Prigogine e I. Stengers, ob. cit., p. 13.
38
      L. Brillouin, La Science et la Theorie de l'Information. Paris, Masson, 1959. Cf., também,
      Parain-Vial, ob. cit., p. 122 e segs.
partes que as constituem e, portanto, o            "A ciência e a tecnologia têm vindo
                         caráter distorsivo do conhecimento                 a revelar-se as duas faces de um processo
                         centrado na observação destas últimas.             histórico em que os interesses militares
                         Os fatos observados têm vindo a                    e os interesses econômicos vão
                         escapar ao regime de isolamento prisional          convergindo até quase à indistinção"40.
                         a que a ciência os sujeita. Os objetos têm         No domínio da organização do trabalho
                         fronteiras cada vez menos definidas; são           científico, a industrialização da ciência
                         constituídos por anéis que se entrecruzam          produziu dois efeitos principais. Por um
                         em teias complexas com os dos restantes            lado, a comunidade científica
                         objetos, a tal ponto que os objetos em             estratificou-se, as relações de poder entre
                         si são menos reais que as relações entre           cientistas tornaram-se mais autoritárias
                         eles.                                              e desiguais e a esmagadora maioria dos
                                                                            cientistas foi submetida a um processo
                          Ficou dito no início desta parte que a            de proletarização no interior dos
                          crise do paradigma da ciência moderna             laboratórios e dos centros de
                          se explica por condições teóricas, que            investigação. Por outro lado, a
                          acabei ilustrativamente de apontar, e             investigação capital-intensiva (assente em
                          por condições sociais. Estas últimas não          instrumentos caros e raros) tornou
                          podem ter aqui tratamento detalhado59.            impossível o livre acesso ao equipamento,
                          Referirei tão-só que, quaisquer que sejam         o que contribuiu para o aprofundamento
                          os limites estruturais de rigor científico,       do fosso, em termos de desenvolvimento
                          não restam dúvidas que o que a ciência            científico e tecnológico, entre os países
                          ganhou em rigor nos últimos quarenta              centrais e os países periféricos.
                          ou cinqüenta anos perdeu em capacidade
                          de auto-regulação. As idéias da autonomia         Pautada pelas condições teóricas e sociais
                          da ciência e do desinteresse do                   que acabei de referir, a crise do
                          conhecimento científico, que durante              paradigma da ciência moderna não
                          muito tempo constituíram a ideologia              constitui um pântano cinzento de
                          espontânea dos cientistas, colapsaram             ceticismo ou de irracionalismo. É antes
                          perante o fenômeno global da                      o retrato de uma família intelectual
                          industrialização da ciência a partir              numerosa e instável, mas também
                          sobretudo das décadas de trinta e                 criativa e fascinante, no momento de se
                          quarenta. Tanto nas sociedades                    despedir, com alguma dor, dos lugares
                          capitalistas como nas sociedades                  conceituais, teóricos c epistemológicos,
                          socialistas de Estado do leste europeu, a         ancestrais e íntimos, mas não mais
                          industrialização da ciência acarretou o           convincentes e securizantes, uma
                          compromisso desta com os centros de               despedida em busca de uma vida melhor a
                          poder econômico, social e político, os            caminho doutras paragens onde o
As idéias da autonomia                                                      otimismo seja mais fundado e a
                           quais passaram a ter um papel decisivo
          da ciência e do                                                   racionalidade mais plural e onde
                           na definição das prioridades científicas.
        desinteresse do                                                     finalmente o conhecimento volte a ser
          conhecimento A industrialização da ciência                        uma aventura encantada. A
         científico, que manifestou-se tanto ao nível das                   caracterização da crise do paradigma
         durante muito aplicações da ciência como ao nível da               dominante traz consigo o perfil do
 tempo constituíram a organização da investigação científica.               paradigma emergente. É esse o perfil
  ideologia espontânea Quanto às aplicações, as bombas de                   que procurarei desenhar a seguir.
          dos cientistas, Hiroshima e Nagasaki foram um sinal
  colapsaram perante o trágico, a princípio visto como acidental            O Paradigma Emergente
    fenômeno global da e fortuito, mas hoje, perante a catástrofe
     industrialização da ecológica e o perigo do holocausto                 A configuração do paradigma que se
         ciência a partir nuclear, cada vez mais visto como                 anuncia no horizonte só pode obter-se
          sobretudo das manifestação de um modo de produção                 por via especulativa. Uma especulação
     décadas de trinta e da ciência inclinado a transformar                 fundada nos sinais que a crise do
               quarenta. acidentes em ocorrências sistemáticas.             paradigma atual emite mas nunca por

                          39
                               Sobre este tema cf. Boaventura de Sousa Santos, "Da Sociologia da Ciência à Política
                               Científica", Revista Crítica de Ciências Sociais, l (1978), p. 11 e segs.
                          40
                               Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 26.
eles determinada. Aliás, como diz René      da matéria e da natureza a que contrapõe,
Poirier e antes dele disseram Hegel e       com pressuposta evidência, os conceitos
Heidegger, "a coerência global das          de ser humano, cultura e sociedade. Os
nossas verdades físicas e metafísicas só    avanços recentes da física e da biologia
se conhece retrospectivamente"41. Por       põem em causa a distinção entre o
isso, ao falarmos do futuro, mesmo que      orgânico e o inorgânico, entre seres vivos
seja de um futuro que já nos sentimos       e matéria inerte e mesmo entre o humano
a percorrer, o que dele dissermos é         e o não-humano. As características da
sempre o produto de uma síntese pessoal auto-organização, do metabolismo e da
embebida na imaginação, no meu caso         auto-reprodução, antes consideradas
na imaginação sociológica. Não espanta,     específicas dos seres vivos, são hoje
pois, que ainda que com alguns pontos       atribuídas aos sistemas pré-celulares de
de convergência, sejam diferentes as        moléculas. E quer num quer noutros
sínteses até agora apresentadas. Ilya       reconhecem-se propriedades e
Prigogine, por exemplo, fala da nova        comportamentos antes considerados
aliança e da metamorfose da ciência42.      específicos dos seres humanos e das
Fritjof Capra fala da "nova física" e do    relações sociais. A teoria das estruturas
Taoísmo da física43, Eugene Wigner          dissipativas de Prigogine, ou a teoria
de "mudanças do segundo tipo"44,            sinergética de Haken já citadas, mas
Erich Jantsch do paradigma da auto-         também a teoria da ordem implicada
organização45, Daniel Bell da sociedade     de David Bohm, a teoria da matriz-S de
pos-industrial46, Habermas da sociedade     Geoffrey Chew e a filosofia do
comunicativa47. Eu falarei, por agora, do "bootstrap" que lhe subjaz e ainda a
paradigma de um conhecimento prudente teoria do encontro entre a física
para uma vida decente. Com esta             contemporânea e o misticismo oriental
designação quero significar que a natureza de Fritjof Capra, todas elas de vocação
da revolução científica que atravessamos    holística e algumas especificamente
é estruturalmente diferente da que          orientadas para superar as inconsistências
ocorreu no século XVI. Sendo uma            entre a mecânica quântica e a teoria da
revolução científica que ocorre numa        relatividade de Einstein, todas estas
sociedade ela própria revolucionada pela    teorias introduzem na matéria os
ciência, o paradigma a emergir dela não     conceitos de historicidade e de processo,
pode ser apenas um paradigma científico     de liberdade, de auto-determinação e até
(o paradigma de um conhecimento             de consciência que antes o homem e a
prudente), tem de ser também um             mulher tinham reservado para si. É como            A distinção dicotômica
paradigma social (o paradigma de uma        se o homem e a mulher se tivessem                  entre ciências naturais
vida decente). Apresentarei o               lançado na aventura de conhecer os                 e ciências sociais
paradigma emergente através de um           objetos mais distantes e diferentes de             começa a deixar
conjunto de teses seguidas de justificação. si próprios, para, uma vez aí chegados,            de ter sentido e
                                            se descobrirem refletidos como num                 utilidade. Esta distinção
                                            espelho. Já no princípio da década de              assenta numa concepção
Todo o conhecimento                         sessenta e extrapolando a partir da                mecanicista da matéria
científico-natural é científico-social      mecânica quântica, Eugene Wigner                   e da natureza a que
                                            considerava que o inanimado não era uma            contrapõe, com
A distinção dicotômica entre ciências       qualidade diferente mas apenas um caso-            pressuposta evidência,
naturais e ciências sociais começa a deixar limite, que a distinção corpo/alma deixara         os conceitos de ser
de ter sentido e utilidade. Esta distinção  de ter sentido e que a física e a psicologia       humano, cultura e
 assenta numa concepção mecanicista         acabariam por se fundir numa única                 sociedade.

41
      R. Poirier, prefácio a Parain-Vial, ob. cit.,p. 10.
42
      L Prigogine, obs. cits.
43
      F. Capra, The Tao of Physics, Nova Iorque, Bantam Books, (1976), 1984; F. Capra, The
      Turning Point. Nova Iorque, Bantam Books, 1983.
44
      E. Wigner, ob. cit., p.215 e segs.
45
      E. Jantsch, obs. cits.
46
      D. Bell, The Coming Crisis of Post-Industrial Society. Nova Iorque, Basic Books, 1976.
47
     J. Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns, 2 vols. Frankfut, Suhrkamp, 1982.
ciência48. Hoje é possível ir muito além        interdependentes sem, no entanto,
 da mecânica quântica. Enquanto esta             estarem ligadas por nexo de causalidade.
 introduziu a consciência no ato do              São antes duas projeções, mutuamente
 conhecimento, nós temos hoje de a               envolventes, de uma realidade mais alta
 introduzir no próprio objeto do                 que não é nem matéria nem consciência.
 conhecimento, sabendo que, com isso, a          O conhecimento do paradigma emergente
 distinção sujeito/objeto sofrerá uma            tende assim a ser um conhecimento não-
 transformação radical. Num certo                dualista, um conhecimento que se funda
 regresso ao pan-psiquismo leibniziano,          na superação das distinções tão familiares
 começa hoje a reconhecer-se uma                 e óbvias que até há pouco considerávamos
 dimensão psíquica na natureza, "a mente         insubstituíveis, tais como natureza/
mais ampla" de que fala Bateson, da qual         cultura, natural/artificial, vivo/inanimado,
 a mente humana é apenas uma parte, uma          mente/matéria, observador/observado,
mente imanente ao sistema social global          subjetivo/objetivo, coletivo/individual,
e à ecologia planetária que alguns               animal/pessoa. Este relativo colapso das
chamam Deus49. Geoffrey Chew postula             distinções dicotômicas repercute-se nas
a existência de consciência na natureza          disciplinas científicas que sobre elas se
como um elemento necessário à                    fundaram. Aliás, sempre houve ciências
autoconsistência desta última e, se              que se reconheceram mal nestas
assim for, as futuras teorias da matéria         distinções e tanto que se tiveram de
terão de incluir o estudo da consciência         fraturar internamente para se lhes
humana. Convergentemente, assiste-se a           adequarem minimamente. Refiro-me à
 um renovado interesse pelo "inconsciente        antropologia, à geografia e também à
coletivo", imanente à humanidade no              psicologia. Condensaram-se nelas
seu todo, de Jung. Aliás, Capra pretende         privilegiadamente as contradições da
ver as idéias de Jung — sobretudo a idéia        separação ciências naturais/ciências
da sincronicidade para explicar a relação        sociais. Daí que, num período de
entre a realidade exterior e a realidade         transição entre paradigmas, seja
interior — confirmadas pelos recentes            particularmente importante, do ponto de
conceitos de interações locais e não-            vista epistemológico, observar o que se
locais na física das partículas 50 . Tal         passa nessas ciências.
como na sincronia jungiana, as
interações não-locais são instantâneas           Não basta, porém, apontar a tendência
e não podem ser previstas em termos              para a superação da distinção entre
matemáticos precisos. Não são, pois,             ciências naturais e ciências sociais, é
produzidas por causas locais e, quando           preciso conhecer o sentido e conteúdo
muito, poder-se-á falar da causalidade           dessa superação. Recorrendo de novo à
estatística. Capra vê em Jung uma das            física, trata-se de saber qual será o
alternativas teóricas às concepções              "parâmetro de ordem", segundo Haken,
mecanicistas de Freud e Bateson afirma           ou o "atractor", segundo Prigogine,
que enquanto Freud ampliou o                     dessa superação, se as ciências naturais,
conceito de mente para dentro                    se as ciências sociais. Precisamente
(permitindo-nos abranger o                       porque vivemos um estado de
subsconsciente e o inconsciente) é               turbulência, as vibrações do novo
necessário agora ampliá-lo para fora             paradigma repercutem-se desigualmente
(reconhecendo a existência de fenômenos          nas várias regiões do paradigma vigente
mentais para além dos individuais e              e por isso os sinais do futuro são
humanos). Semelhantemente, a teoria da           ambíguos. Alguns lêem neles a
ordem implicada, que, segundo o seu              emergência de um novo naturalismo
autor, David Bohm, pode constituir uma           centrado no privilegiamento dos
base comum tanto à teoria quântica como          pressupostos biológicos do
à teoria da relatividade, concebe a              comportamento humano. Assim
consciência e a matéria como                     Konrad Lorenz ou a sociobiologia. Para
48
     E. Wigner, ob. cit., p. 271.
49
     G. Bateson, Mind and Nature, Londres, Fontana, 1985.
50
     Cf. também M. Bowen, "The Ecology of Knowledge: linking the natural and social sciences",
     Geoforum 16 (1985), p. 213 e segs.
estes, a superação da dicotomia ciências        nas últimas décadas prova-se, além do
naturais/ciências sociais ocorre sob a          mais, pela facilidade com que as teorias
égide das ciências naturais. Contra esta        físico-naturais, uma vez formuladas no
posição pode objetar-se que ela tem             seu domínio específico, se aplicam ou
do futuro a mesma concepção com que             aspiram aplicar-se no domínio social.
as ciências naturais autojustificam, no         Assim, por exemplo, Peter Allen, um dos
seio do paradigma dominante, o seu              mais estreitos colaboradores de Prigogine,
prestígio científico, social e político e,      tem vindo a aplicar a teoria das estruturas
por isso, só vê do futuro aquilo em que         dissipativas aos processos econômicos e
ele repete o presente. Se, pelo contrário,      à evolução das cidades e das regiões52.
numa reflexão mais aprofundada,                 E Haken salienta as potencialidades da
atentarmos no conteúdo teórico das              sinergética para explicar situações
ciências que mais têm progredido no             revolucionárias na sociedade53. É como
conhecimento da matéria, verificamos            se o dito de Durkheim se tivesse invertido
que a emergente inteligibilidade da             e em vez de serem os fenômenos sociais
natureza é presidida por conceitos,             a ser estudados como se fossem
teorias, metáforas e analogias das              fenômenos naturais, são os fenômenos
ciências sociais. Para não irmos mais           naturais estudados como se fossem
longe, quer a teoria das estruturas             fenômenos sociais.
dissipativas de Prigogine quer a teoria
sinergética de Haken explicam o                 O fato de a superação da dicotomia
comportamento das partículas através             ciências naturais/ciências sociais ocorrer
dos conceitos de revolução social,              sob a égide das ciências sociais não é,
violência, escravatura, dominação,               contudo, suficiente para caracterizar o
democracia nuclear, todos eles                  modelo de conhecimento no
originários das ciências sociais (da            paradigma emergente. É que, como
sociologia, da ciência política, da história,    disse atrás, as próprias ciências sociais
etc.). O mesmo sucede, ainda no campo           constituíram-se no século XIX segundo
da física teórica, com as teorias de             os modelos de racionalidade das ciências
Capra sobre a relação entre física e            naturais clássicas e, assim, a égide das
psicanálise, os padrões da matéria e os         ciências sociais, afirmada sem mais, pode
padrões da mente concebidos como                revelar-se ilusória. Referi contudo que a
reflexos uns dos outros. Apesar de              constituição das ciências sociais teve
estas teorias diluírem as fronteiras            lugar segundo duas vertentes: uma mais
entre os objetos da física e os                 diretamente vinculada à epistemologia
objetos da biologia, foi sem dúvida no          e à metodologia positivistas das ciências
domínio desta última que os modelos             naturais, e outra, de vocação
explicativos das ciências sociais mais          antipositivista, caldeada numa tradição
se enraizaram nas décadas recentes. Os          filosófica complexa, fenomenológica,
conceitos de teleomorfismo, autopoiesis,        interacionista, mito-simbólica,
auto-organização, potencialidade                hermenêutica, existencialista, pragmática,
organizada, originalidade, individualidade,     reivindicando a especificidade do estudo
historicidade, atribuem à natureza um           da sociedade mas tendo de, para isso,
comportamento humano. Lovelock, em              pressupor uma concepção mecanicista
livro recente sobre as ciências da vida,        da natureza. A pujança desta segunda
afirma que os nossos corpos são                 vertente nas duas últimas décadas é
constituídos por cooperativas de                indicativa de ser ela o modelo de
células 51 .                                    ciências sociais que, numa época de
                                                revolução científica, transporta a marca
Que os modelos explicativos das ciências        pós-moderna do paradigma emergente.
sociais vêm subjazendo ao                       Trata-se, como referi também, de um
desenvolvimento das ciências naturais           modelo de transição, uma vez que define
51
   J. E. Lovelock, Gaia: a New Look at Life on Earth. Oxford, Oxford University Press.
52
   P. Allen, "The Evolutionary Paradigm of Dissipative Structures", in E. Jantsch (org),
   The Evolutionary Vision, cit., p. 25 e segs.
53 H. Haken, "Synergetics — An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization",
   Geoforum 16 (1985), p. 205 e segs.
a especificidade do humano por                             preferido a compreensão do mundo à
                             contraposição a uma concepção da                           manipulação do mundo. Este núcleo
                             natureza que as ciências naturais hoje                     genuíno foi, no entanto, envolvido num
                             consideram ultrapassada, mas é um                          anel de preocupações mistificatórias (o
                             modelo em que aquilo que o prende ao                       esoterismo nefelibata e a erudição
                             passado é menos forte do que aquilo                        balofa). O ghetto a que as humanidades
                             que o prende ao futuro. Em resumo, à                       se remeteram foi em parte uma estratégia
                             medida que as ciências naturais se                         defensiva contra o assédio das ciências
                             aproximam das ciências sociais estas                       sociais, armadas do viés cientista
                             aproximam-se das humanidades. O                            triunfalmente brandido. Mas foi também
                             sujeito, que a ciência moderna lançara                     o produto do esvaziamento que sofreram
                             na diáspora do conhecimento irracional,                    em face da ocupação do seu espaço pelo
                             regressa investido da tarefa de fazer                      modelo cientista. Foi assim nos estudos
                             erguer sobre si uma nova ordem                             históricos com a história quantitativa,
                             científica.                                                nos estudos jurídicos com a ciência pura
                             Que este é o sentido global da revolução                   do direito e a dogmática jurídica, nos
                             científica que vivemos, é também                           estudos filológicos, literários e
                             sugerido pela reconceptualização em curso                  lingüísticos com o estruturalismo. Há
                             das condições epistemológicas e                            que recuperar esse núcleo genuíno e
                             metodológicas do conhecimento científico                   pô-lo ao serviço de uma reflexão global
                             social. Referi acima alguns dos obstáculos à               sobre o mundo. O texto sobre que sempre
                             cientificidade das ciências sociais, os                    se debruçou a filologia é uma das
                             quais, segundo o paradigma ainda                           analogias matriciais com que se construirá
                             dominante, seriam responsáveis pelo                        no paradigma emergente o conhecimento
                             atraso das ciências sociais em relação                     sobre a sociedade e a natureza.
                             às ciências naturais. Sucede contudo que,
                             também como referi, o avanço do                            A concepção humanística das ciências
                             conhecimento das ciências naturais e a                     sociais enquanto agente catalisador da
                             reflexão epistemológica que ele tem                        progressiva fusão das ciências naturais e
                             suscitado têm vindo a mostrar que os                       ciências sociais coloca a pessoa, enquanto
                             obstáculos ao conhecimento científico                      autor e sujeito do mundo, no centro do
                             da sociedade e da cultura são de fato                      conhecimento, mas, ao contrário das
            A concepção      condições do conhecimento em geral,                        humanidades tradicionais, coloca o que
        humanística das      tanto científico-social como científico-                   hoje designamos por natureza no centro
          ciências sociais   natural. Ou seja, o que antes era a causa                  da pessoa. Não há natureza humana
        enquanto agente      do maior atraso das ciências sociais é                     porque toda a natureza é humana. É pois
           catalisador da    hoje o resultado do maior avanço das                       necessário descobrir categorias de
  progressiva fusão das      ciências naturais. Daí também que a                        inteligibilidade globais, conceitos quentes
      ciências naturais e    concepção de Thomas Kuhn sobre o                           que derretam as fronteiras em que a
ciências sociais coloca      caráter pré-paradigmático (isto é,                         ciência moderna dividiu e encerrou a
    a pessoa, enquanto       menos desenvolvido) das ciências                           realidade. A ciência pós-moderna é uma
      autor e sujeito do     sociais54, que eu, aliás, subscrevi e                      ciência assumidamente analógica que
 mundo, no centro do         reformulei noutros escritos55, tenha de                    conhece o que conhece pior através do
   conhecimento, mas,        ser abandonada ou profundamente                            que conhece melhor. Já mencionei a
        ao contrário das     revista.                                                   analogia textual e julgo que tanto a
            humanidades                                                                 analogia lúdica como a analogia
    tradicionais, coloca     A superação da dicotomia ciências                          dramática, como ainda a analogia
o que hoje designamos        naturais/ciências sociais tende assim a                    biográfica, figurarão entre as categorias
         por natureza no     revalorizar os estudos humanísticos. Mas                   matriciais do paradigma emergente: o
       centro da pessoa.     esta revalorização não ocorrerá sem que                    mundo, que hoje é natural ou social e
        Não há natureza      as humanidades sejam, elas também,                         amanhã será ambos, visto como um
  humana porque toda         profundamente transformadas. O que                         texto, como um jogo, como um palco
             a natureza é    há nelas de futuro é o terem resistido à                   ou ainda como autobiografia. Clifford
                 humana.     separação sujeito/objeto e o terem                         Geertz refere algumas destas analogias

                             54
                                  T. Kuhn, The Structureof Scientific Revolutions. Chicago, University of Chicago Press,
                                  1962, passim.
                             55
                                  Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 29 e segs.
humanísticas e restringe o seu uso às     especializado e que isso acarreta efeitos
 ciências sociais, enquanto eu as concebo  negativos. Esses efeitos são sobretudo
 como categorias de inteligibilidade       visíveis no domínio das ciências aplicadas.
 universais56. Não virá longe o dia em que As tecnologias preocupam-se hoje com o
 a física das partículas nos fale do jogo  seu impacto destrutivo nos ecossistemas;
 entre as partículas, ou a biologia nos    a medicina verifica que a
 fale do teatro molecular ou a astrofísica hiperespecialização do saber médico
 do texto celestial, ou ainda a química    transformou o doente numa quadrícula
 da biografía das reações químicas. Cada   sem sentido quando, de fato, nunca
 uma destas analogias desvela uma ponta    estamos doentes senão em geral; a
 do mundo. A nudez total, que será         farmácia descobre o lado destrutivo dos
 sempre a de quem se vê no que vê,         medicamentos, tanto mais destrutivos
 resultará das configurações de analogias  quanto mais específicos, e procura uma
 que soubermos imaginar: afinal, o jogo    nova lógica de combinação química
 pressupõe um palco, o palco exercita-se   atenta aos equilibrios orgânicos; o direito,
com um texto e o texto é a autobiografia que reduziu a complexidade da vida
do seu autor. Jogo, palco, texto ou        jurídica à secura da dogmática,
biografia, o mundo é comunicação e         redescobre o mundo filosófico e
por isso a lógica existencial da ciência   sociológico em busca da prudência
pós-moderna é promover a "situação         perdida; a economia, que legitimara o
comunicativa" tal como Habermas a          reducionismo quantitativo e tecnocrático
concebe. Nessa situação confluem           com o pretendido êxito das previsões
sentidos e constelações de sentido         econômicas, é forçada a reconhecer,
vindos, tal qual rios, das nascentes das   perante a pobreza dos resultados, que a
nossas práticas locais e arrastando        qualidade humana e sociológica dos
consigo as areias dos nossos percursos     agentes e processos econômicos entra
moleculares, individuais, comunitários,    pela janela depois de ter sido expulsa pela
sociais e planetários. Não se trata de     porta; para grangear o reconhecimento
uma amálgama de sentido (que não           dos utentes (que, públicos ou privados,
seria sentido mas ruído), mas antes de     institucionais ou individuais, sempre
interações e de intertextualidades         estiveram numa posição de poder em
organizadas em torno de projetos           relação aos analisados) a psicologia
locais de conhecimento indiviso. Daqui     aplicada privilegiou instrumentos
decorre a segunda característica do        expeditos e facilmente manuseáveis,
conhecimento científico pós-moderno.       como sejam os testes, que reduziram a
                                           riqueza da personalidade às exigências
Todo o conhecimento é local e total        funcionais de instituições unidimensionais.

Na ciência moderna o conhecimento                Os males desta parcelização do
avança pela especialização. O                    conhecimento e do reducionismo
conhecimento é tanto mais rigoroso               arbitrário que transporta consigo são
quanto mais restrito é o objeto sobre            hoje reconhecidos, mas as medidas
que incide. Nisso reside, aliás, o que hoje      propostas para os corrigir acabam em
se reconhece ser o dilema básico da              geral por os reproduzir sob outra forma.
ciência moderna: o seu rigor aumenta             Criam-se novas disciplinas para resolver
na proporção direta da arbitrariedade            os problemas produzidos pelas antigas e
com que espartilha o real. Sendo um              por essa via reproduz-se o mesmo modelo
conhecimento disciplinar, tende a ser um         de cientificidade. Apenas para dar um
conhecimento disciplinado, isto é, segrega       exemplo, o médico generalista, cuja
uma organização do saber orientada para          ressurreição visou compensar a
policiar as fronteiras entre as disciplinas      hiperespecialização médica, corre o risco
e reprimir os que as quiserem transpor.          de ser convertido num especialista ao
É hoje reconhecido que a excessiva               lado dos demais. Este efeito perverso
parcelização e disciplinarização do saber        revela que não há solução para este
científico faz do cientista um ignorante         problema no seio do paradigma
56
     C. Geertz, Local Knowledge. Further Essays in Interpretative Anthropology. Nova Iorque,
     Basic Books, 1983, p. 19 e segs.
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Boaventura

  • 1. Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-moderna Boaventura de Sousa Santos Estamos a doze anos do final do século uma sociedade de comunicação e XX. Vivemos num tempo atônito que ao interativa libertada das carências e debruçar-se sobre si próprio descobre inseguranças que ainda hoje compõem que os seus pés são um cruzamento de os dias de muitos de nós: o século XXI sombras, sombras que vêm do passado a começar antes de começar. Por outro que ora pensamos já não sermos, ora lado, uma reflexão cada vez mais pensamos não termos ainda deixado de aprofundada sobre os limites do rigor ser, sombras que vêm do futuro que ora científico combinada com os perigos pensamos já sermos, ora pensamos nunca cada vez mais verossímeis da catástrofe virmos a ser. Quando, ao procurarmos ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos analisar a situação presente das ciências temer que o século XXI termine antes de no seu conjunto, olhamos para o passado começar. a primeira imagem é talvez a de que os progressos científicos dos últimos trinta Recorrendo à teoria sinergética do físico anos são de tal ordem dramáticos que os teórico Hermann Haken, podemos dizer séculos que nos precederam — desde o que vivemos num sistema visual muito século XVI, onde todos nós, cientistas instável em que a mínima flutuação da modernos, nascemos, até ao próprio nossa percepção visual provoca rupturas século XIX — não são mais que uma na simetria do que vemos. Assim, olhando pré-história longínqua. Mas se fecharmos a mesma figura, ora vemos um vaso os olhos e os voltarmos a abrir, grego branco recortado sobre um fundo verificamos com surpresa que os grandes preto, ora vemos dois rostos gregos de cientistas que estabeleceram e perfil, frente a frente, recortados sobre mapearam o campo teórico em que ainda um fundo branco. Qual das imagens é hoje nos movemos viveram ou verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta trabalharam entre o século XVIII e os a ambigüidade e a complexidade da primeiros vinte anos do século XX, de situação do tempo presente, um tempo Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e de transição, síncrone com muita coisa Darwin, de Marx e Durkheim a Max que está além ou aquém dele, mas Weber e Pareto, de Humboldt e Planck descompassado em relação a tudo o a Poincaré e Einstein. E de tal modo é que o habita. assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no Tal como noutros períodos de transição, século XIX e que o século XX ainda não difíceis de entender e de percorrer, é começou, nem talvez comece antes de necessário voltar às coisas simples, à terminar. E se, em vez de no passado, capacidade de formular perguntas simples, centrarmos o nosso olhar no futuro, do perguntas que, como Einstein costumava mesmo modo duas imagens contraditórias dizer, só uma criança pode fazer mas que, nos ocorrem alternadamente. Por um depois de feitas, são capazes de trazer lado, as potencialidades da tradução uma luz nova à nossa perplexidade. tecnológica dos conhecimentos Tenho comigo uma criança que há acumulados fazem-nos crer no limiar de precisamente duzentos e trinta e oito * A visita do prof. Boaventura contou com o apoio da FAPESP. As reflexões epistemológicas deste texto estão tratadas com maior amplitude no livro Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, a ser publicado pela Editora Graal.
  • 2. anos fez algumas perguntas simples Contudo, não o somos, em 1988, do sobre as ciências e os cientistas. Fê-las mesmo modo que o éramos há quinze ou no início de um ciclo de produção vinte anos. Por razões que alinho adiante, científica que muitos de nós julgam estamos de novo perplexos, perdemos a estar agora a chegar ao fim. Essa criança confiança epistemológica; instalou-se em é Jean-Jacques Rousseau. No seu célebre nós uma sensação de perda irreparável Discours sur les Sciences et les Arts (1750) tanto mais estranha quanto não sabemos Rousseau formula várias questões ao certo o que estamos em vias de perder; enquanto responde à que, também admitimos mesmo, noutros momentos, razoavelmente infantil, lhe fora posta que essa sensação de perda seja apenas a pela Academia de Dijon1. Esta última cortina de medo atrás da qual se questão rezava assim: o progresso das escondem as novas abundancias da nossa ciências e das artes contribuirá para vida individual e coletiva. Mas mesmo purificar ou para corromper os nossos aí volta a perplexidade de não sabermos costumes? Trata-se de uma pergunta o que abundará em nós nessa abundância. elementar, ao mesmo tempo profunda e fácil de entender. Para lhe dar resposta - Daí a ambigüidade e complexidade do do modo eloqüente que lhe mereceu o tempo científico presente a que comecei primeiro prêmio e algumas inimizades - por aludir. Daí também a idéia, hoje Rousseau fez as seguintes perguntas não partilhada por muitos, de estarmos menos elementares: há alguma relação numa fase de transição. Daí finalmente entre a ciência e a virtude? Há alguma a urgência de dar resposta a perguntas razão de peso para substituirmos o simples, elementares, inteligíveis. Uma conhecimento vulgar que temos da pergunta elementar é uma pergunta que natureza e da vida e que partilhamos atinge o magma mais profundo da nossa com os homens e mulheres de nossa perplexidade individual e coletiva com sociedade pelo conhecimento científico a transparência técnica de uma fisga. produzido por poucos e inacessível à Foram assim as perguntas de Rousseau; maioria? Contribuirá a ciência para terão de ser assim as nossas. Mais do que diminuir o fosso crescente na nossa isso, duzentos e tal anos depois, as nossas sociedade entre o que se é e o que se perguntas continuam a ser as de Rousseau. aparenta ser, o saber dizer e o saber Estamos de novo regressados à fazer, entre a teoria e a prática? Perguntas necessidade de perguntar pelas relações simples a que Rousseau responde, de entre a ciência e a virtude, pelo valor do modo igualmente simples, com um conhecimento dito ordinário ou vulgar redondo não. que nós, sujeitos individuais ou coletivos, criamos e usamos para dar Estávamos então em meados do século sentido às nossas práticas e que a ciência XVIII, numa altura em que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório moderna, saída da revolução científica do e falso; e temos finalmente de perguntar século XVI pelas mãos de Copérnico, pelo papel de todo o conhecimento Galileu e Newton, começava a deixar os científico acumulado no enriquecimento cálculos esotéricos dos seus cultores para ou no empobrecimento prático das nossas se transformar no fermento de uma vidas, ou seja, pelo contributo positivo transformação técnica e social sem ou negativo da ciência para a nossa precedentes na história da humanidade. felicidade. A nossa diferença existencial Uma fase de transição, pois, que deixava em relação a Rousseau é que, se as nossas perplexos os espíritos mais atentos e os perguntas são simples, as respostas fazia refletir sobre os fundamentos da sê-lo-ão muito menos. Estamos no fim de sociedade em que viviam e sobre o um ciclo de hegemonia de uma certa impacto das vibrações a que eles iam ser ordem científica. As condições sujeitos por via da ordem científica epistêmicas das nossas perguntas estão emergente. Hoje, duzentos anos volvidos, inscritas no avesso dos conceitos que somos todos protagonistas e produtos utilizamos para lhes dar resposta. É dessa nova ordem, testemunhos vivos das necessário um esforço de desvendamento transformações que ela produziu. conduzido sobre um fio de navalha entre l Jean-Jacques Rousseau, Discours sur les Sciences et les Arts, in Oeuvres Completes, vol. 2, Paris, Seuil, 1971, p. 52 e segs.
  • 3. a lucidez e a ininteligibilidade da resposta. basicamente no domínio das ciências São igualmente diferentes e muito mais naturais. Ainda que com alguns complexas as condições sociológicas e prenúncios no século XVIII, é só no psicológicas do nosso perguntar. É século XIX que este modelo de muito diferente perguntar pela utilidade racionalidade se estende às ciências sociais ou pela felicidade que o automóvel emergentes. A partir de então pode me pode proporcionar se a pergunta é falar-se de um modelo global de feita quando ninguém na minha racionalidade científica que admite vizinhança tem automóvel, quando toda variedade interna mas que se distingue e a gente tem exceto eu ou quando eu defende, por via de fronteiras ostensivas e próprio tenho carro há mais de vinte ostensivamente policiadas, de duas formas anos. de conhecimento não-científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e Teremos forçosamente de ser mais as chamadas humanidades ou estudos rousseaunianos no perguntar do que no humanísticos (em que se incluíram, entre responder. Começarei por caracterizar outros, os estudos históricos, filológicos, sucintamente a ordem cientifica jurídicos, literários, filosóficos e hegemônica. Analisarei depois os sinais teológicos). da crise dessa hegemonia, distinguindo entre as condições teóricas e as condições sociológicas da crise. Finalmente Sendo um modelo global, a nova especularei sobre o perfil de uma nova racionalidade científica é também um ordem científica emergente, distinguindo modelo totalitário, na medida em que de novo entre as condições teóricas e as nega o caráter racional a todas as formas condições sociológicas da sua de conhecimento que se não pautarem emergência. Este percurso analítico será pelos seus princípios epistemológicos e balizado pelas seguintes hipóteses de pelas suas regras metodológicas. É esta trabalho: primeiro, começa a deixar de a sua característica fundamental e a que fazer sentido a distinção entre ciências melhor simboliza a ruptura do novo naturais e ciências sociais; segundo, a paradigma científico com os que o síntese que há que operar entre elas tem precedem. Está consubstanciada, com como pólo catalisador as ciências crescente definição, na teoria heliocéntrica sociais; terceiro, para isso, as ciências do movimento dos planetas de Copérnico, sociais terão de recusar todas as formas nas leis de Kepler sobre as órbitas dos de positivismo lógico ou empírico ou planetas, nas leis de Galileu sobre a queda de mecanicismo materialista ou dos corpos, na grande síntese da ordem idealista com a conseqüente revalorização cósmica de Newton e finalmente na do que se convencionou chamar consciência filosófica que lhe conferem humanidades ou estudos humanísticos; Bacon e sobretudo Descartes. Esta quarto, esta síntese não visa uma ciência preocupação em testemunhar uma unificada nem sequer uma teoria geral, ruptura fundante que possibilita uma e só mas tão-só um conjunto de galerias uma forma de conhecimento verdadeiro temáticas onde convergem linhas de água está bem patente na atitude mental dos que até agora concebemos como protagonistas, no seu espanto perante as objetos teóricos estanques; quinto, à próprias descobertas e a extrema e ao medida que se der esta síntese, a distinção mesmo tempo serena arrogância com hierárquica entre conhecimento científico que se medem com os seus e conhecimento vulgar tenderá a O modelo de contemporâneos. Para citar apenas dois racionalidade que desaparecer e a prática será o fazer e o exemplos, Kepler escreve no seu livro dizer da filosofia da prática. preside à ciência sobre a Harmonia do Mundo publicado moderna constituiu-se a em 1619, a propósito das harmonias partir da revolução O Paradigma Dominante naturais que descobrira nos movimentos científica do século celestiais: "Perdoai-me mas estou feliz; XVI e foi desenvolvido O modelo de racionalidade que preside à se vos zangardes eu perseverarei; (...) nos séculos seguintes ciência moderna constituiu-se a partir da O meu livro pode esperar muitos séculos basicamente no revolução científica do século XVI e foi pelo seu leitor. Mas mesmo Deus teve de domínio das ciências desenvolvido nos séculos seguintes esperar seis mil anos por aqueles que naturais.
  • 4. pudessem contemplar o seu trabalho"2. distinções fundamentais, entre Por outro lado, Descartes, nessa conhecimento científico e maravilhosa autobiografia espiritual que conhecimento do senso comum, por é o Discurso do Método e a que voltarei um lado, e entre natureza e pessoa mais tarde, diz, referindo-se ao método humana, por outro. Ao contrário da por si encontrado: "Porque já colhi dele ciência aristotélica, a ciência moderna tais frutos que embora no juízo que faço desconfia sistematicamente das de mim próprio procure sempre evidências da nossa experiência imediata. inclinar-me mais para o lado da Tais evidências, que estão na base do desconfiança do que para o da presunção, conhecimento vulgar, são ilusórias. Como e embora, olhando com olhar de bem salienta Einstein no prefácio ao filósofo as diversas ações e Diálogo sobre os Grandes Sistemas do empreendimentos de todos os homens, Mundo, Galileu esforça-se denodadamente não haja quase nenhuma que não me por demonstrar que a hipótese dos pareça vã e inútil, não deixo de receber movimentos de rotação e de translação uma extrema satisfação com o da terra não é refutada pelo fato de progresso que julgo ter feito em busca não observarmos quaisquer efeitos da verdade e de conceber tais esperanças mecânicos desses movimentos, ou seja, para o futuro que, se entre as ocupações pelo fato de a terra nos parecer parada e dos homens, puramente homens, alguma quieta 5 . Por outro lado, é total a há que seja solidamente boa e importante, separação entre a natureza e o ser ouso crer que é aquela que escolhi".3 humano. A natureza é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, Para compreender esta confiança mecanismos cujos elementos se podem epistemológica é necessário descrever, desmontar e depois relacionar sob a ainda que sucintamente, os principais forma de leis; não tem qualquer outra traços do novo paradigma científico. qualidade ou dignidade que nos impeça Cientes de que o que os separa do saber de desvendar os seus mistérios, aristotélico e medieval ainda dominante desvendamento que não é contemplativo, não é apenas nem tanto uma melhor mas antes ativo, já que visa conhecer a observação dos fatos como sobretudo natureza para a dominar e controlar. uma nova visão do mundo e da vida, Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa os protagonistas do novo paradigma humana" o senhor e o possuidor da conduzem uma luta apaixonada contra natureza" 6 . todas as formas de dogmatismo e de autoridade. O caso de Galileu é Com base nestes pressupostos o particularmente exemplar, e é ainda conhecimento científico avança pela Descartes que afirma: "Eu não podia observação descomprometida e livre, escolher ninguém cujas opiniões me sistemática e tanto quanto possível parecessem dever ser preferidas às dos rigorosa dos fenômenos naturais. O outros, e encontrava-me como que Novum Organum opõe a incerteza da obrigado a procurar conduzir-me a razão entregue a si mesma à certeza da mim próprio" 4 . Esta nova visão do experiência ordenada 7 . Ao contrário do mundo e da vida reconduz-se a duas que pensa Bacon, a experiência não 2 Consultada a edição alemã (introdução e tradução de Max Caspar), Johannes Kepler, Welt-Harmonik. Munique, Verlag Oldenbourg, 1939, p. 280. 3 Descartes, Discurso do Método e as Paixões da Alma. Lisboa, Sá da Costa, 1984, p. 6. 4 Descartes, ob. cit.,p. 16. 5 Einstein in Galileu, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems. Berkeley, University of California Press, 1970, p. xviii. 6 Consultada a edição espanhola (preparada e traduzida por Gallach Palés), F. Bacon, Novum Organum. Madrid, Nueva Biblioteca Filosófica, 1933. Para Bacon "a senda que conduz o homem ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas, sendo quase a mesma" (p. 110). Se o objetivo da ciência é dominar a natureza não é menos verdade que "só podemos vencer a natureza obedecendo-lhe" (p. 6, grifo meu), o que nem sempre tem sido devidamente salientado nas interpretações da teoria de Bacon sobre a ciência. 7 Cf. A. Koyré, Considerações sobre Descartes. Lisboa, Presença, 1981, p. 30.
  • 5. dispensa a teoria prévia, o pensamento pelo rigor das medições. As qualidades dedutivo ou mesmo a especulação, mas intrínsecas do objeto são, por assim força qualquer deles a não dispensarem, dizer, desqualificadas e em seu lugar enquanto instância de confirmação passam a imperar as quantidades em que última, a observação dos fatos. Galileu eventualmente se podem traduzir. O só refuta as deduções de Aristóteles na que não é quantificável é cientificamente medida em que as acha insustentáveis e é irrelevante. Em segundo lugar, o método ainda Einstein quem nos chama a atenção científico assenta na redução da para o fato de os métodos experimentais complexidade. O mundo é complicado de Galileu serem tão imperfeitos que só e a mente humana não o pode por via de especulações ousadas poderia compreender completamente. Conhecer preencher as lacunas entre os dados significa dividir e classificar para depois empíricos (basta recordar que não havia poder determinar relações sistemáticas medições de tempo inferiores ao entre o que se separou. Já em Descartes segundo)8. Descartes, por seu turno, uma das regras do Método consiste vai inequivocamente das idéias para as precisamente em "dividir cada uma das coisas e não das coisas para as idéias e dificuldades . . . em tantas parcelas estabelece a prioridade da metafísica quanto for possível e requerido para enquanto fundamento último da ciência. melhor as resolver" 11 . A divisão primordial é a que distingue entre As idéias que presidem à observação e à "condições iniciais" e "leis da natureza". experimentação são as idéias claras e As condições iniciais são o reino da simples a partir das quais se pode complicação, do acidente e onde é ascender a um conhecimento mais necessário selecionar as que estabelecem profundo e rigoroso da natureza. Essas as condições relevantes dos fatos a idéias são as idéias matemáticas. A observar; as leis da natureza são o reino matemática fornece à ciência moderna, da simplicidade e da regularidade onde é não só o instrumento privilegiado de possível observar e medir com rigor. análise, como também a lógica da Esta distinção entre condições iniciais e investigação, como ainda o modelo de leis da natureza nada tem de "natural". representação da própria estrutura da Como bem observa Eugene Wigner, é matéria. Para Galileu, o livro da mesmo completamente arbitrária 12 . No natureza está inscrito em caracteres entanto, é nela que assenta toda a ciência geométricos9 e Einstein não pensa de moderna. modo diferente 10 . Deste lugar central da matemática na ciência moderna A natureza teórica do conhecimento derivam duas conseqüências principais. científico decorre dos pressupostos Em primeiro lugar, conhecer significa epistemológicos e das regras quantificar. O rigor científico afere-se metodológicas já referidas. É um 8 Einstein, ob. cit., p. XIX. 9 Entre muitos outros passos do Diálogo sobre os Grandes Sistemas, cf. a seguinte fala de Salviati: "No que respeita à compreensão intensiva e na medida em que este termo denota a compreensão perfeita de alguma proposição, digo que a inteligência humana compreende algumas delas perfeitamente, e que, portanto, a respeito delas tem uma certeza tão absoluta quanto a própria natureza. Tais são as proposições das ciências matemáticas, isto é, da geometria e da aritmética nas quais a inteligência divina conhece infinitamente mais proposições porque as conhece todas. Mas no que respeita àquelas poucas que a inteligência humana compreende, penso que o seu conhecimento é igual ao Divino em certeza objetiva porque, nesses casos, consegue compreender a necessidade para além da qual não há maior certeza". Galileu, ob. cit., p. 103. 10 A admiração de Einstein por Galileu está bem expressa no prefácio referido na nota 5. O modo radical (e instintivo) como Einstein "vê" a natureza matemática da estrutura da matéria explica em parte a sua longa batalha sobre a interpretação da mecânica quântica (especialmente contra a interpretação de Copenhague). Cf. B. Hoffmann, Albert Einstein, Creator and Rebel, Nova Iorque, New A merican Library, 19 73, p. 173 e segs. 11 Descartes, ob. cit., p. 1 7. 12 E. Wigner, Symmetries and Reflections. Scientific Essays. Cambridge, Cambridge University Press, 19 70, p. 3.
  • 6. conhecimento causal que aspira à no futuro. Segundo a mecânica formulação de leis, à luz de regularidades newtoniana, o mundo da matéria é uma observadas, com vista a prever o máquina cujas operações se podem comportamento futuro dos fenômenos. determinar exatamente por meio de leis A descoberta das leis da natureza assenta, físicas e matemáticas, um mundo por um lado, e como já se referiu, no estático e eterno a flutuar num espaço isolamento das condições iniciais vazio, um mundo que o racionalismo relevantes (por exemplo, no caso da cartesiano toma cognoscível por via da queda dos corpos, a posição inicial e a sua decomposição nos elementos que o velocidade do corpo em queda) e, por constituem. Esta idéia do mundo-máquina outro lado, no pressuposto de que o é de tal modo poderosa que se vai resultado se produzirá independentemente transformar na grande hipótese universal do lugar e do tempo em que se realizarem da época moderna, o mecanicismo. Pode as condições iniciais. Por outras palavras, parecer surpreendente e até paradoxal a descoberta das leis da natureza assenta que uma forma de conhecimento, assente no princípio de que a posição absoluta numa tal visão do mundo, tenha vindo e o tempo absoluto nunca são condições a constituir um dos pilares da idéia de iniciais relevantes. Este principio é, progresso que ganha corpo no segundo Wigner, o mais importante pensamento europeu a partir do século teorema da invariância na física XVIII e que é o grande sinal intelectual clássica 13 . da ascensão da burguesia 14. Mas a verdade é que a ordem e a estabilidade do As leis, enquanto categorias de mundo são a pré-condição da inteligibilidade, repousam num conceito transformação tecnológica do real. de causalidade escolhido, não arbitrariamente, entre os oferecidos pela O determinismo mecanicista é o física aristotélica. Aristóteles distingue horizonte certo de uma forma de quatro tipos de causa: a causa material, a conhecimento que se pretende utilitário causa formal, a causa eficiente e a causa e funcional, reconhecido menos pela final. As leis da ciência moderna são um capacidade de compreender O determinismo tipo de causa formal que privilegia o profundamente o real do que pela . mecanicista é o como funciona das coisas em detrimento capacidade de o dominar e transformar. horizonte certo dede qual o agente ou qual o fim das coisas. No plano social, é esse também o uma forma de É por esta via que o conhecimento horizonte cognitivo mais adequado aos conhecimento que se científico rompe com o conhecimento do interesses da burguesia ascendente que pretende utilitário senso comum. É que, enquanto no via na sociedade em que começava a e funcional, senso comum, e portanto no dominar o estádio final da evolução da reconhecido menos conhecimento prático em que ele se humanidade (o estado positivo de pela capacidade detraduz, a causa e a intenção convivem Comte; a sociedade industrial de Spencer; compreender sem problemas, na ciência a determinação a solidariedade orgânica de Durkheim). profundamente o da causa formal obtém-se com a expulsão Daí que o prestígio de Newton e das real do que pela da intenção. É este tipo de causa formal leis simples a que reduzia toda a capacidade de oque permite prever e, portanto, intervir complexidade da ordem cósmica tenham dominar e transformar. no real e que, em última instância, convertido a ciência moderna no modelo No plano social, é essepermite à ciência moderna responder à de racionalidade hegemônica que a pouco também e horizonte pergunta sobre os fundamentos do seu e pouco transbordou do estudo da cognitivo mais rigor e da sua verdade com o elenco dos natureza para o estudo da sociedade. Tal adequado aosseus êxitos na manipulação e na como foi possível descobrir as leis da interesses da burguesiatransformação do real. natureza, seria igualmente possível ascendente que via na descobrir as leis da sociedade. Bacon, sociedade em que Um conhecimento baseado na formulação Vico e Montesquieu são os grandes começava a dominar de leis tem como pressuposto metateórico precursores. Bacon afirma a plasticidade o estádio final da a idéia de ordem e de estabilidade do da natureza humana e, portanto, a sua evolução da humanidade mundo, a idéia de que o passado se repete perfectibilidade, dadas as condições 13 E. Wigner, ob. cit., p. 226. 14 Cf., entre muitos, S. Pollard, The Idea of Progress. Londres, Penguin, 1971, p. 39.
  • 7. sociais, jurídicas e políticas adequadas, liberta dele, e qualquer delas condições que é possível determinar com reivindicando o monopólio do rigor15. Viço sugere a existência de leis conhecimento científico-social. que governam deterministicamente a Apresentarei adiante uma interpretação evolução das sociedades e tornam possível diferente, mas para já caracterizarei prever os resultados das ações coletivas. sucintamente cada uma destas variantes. Com extraordinária premonição Vico identifica e resolve a contradição entre a A primeira variante — cujo compromisso liberdade e a imprevisibilidade da ação epistemológico está bem simbolizado no humana individual e a determinação e nome de "física social" com que previsibilidade da ação coletiva16. inicialmente se designaram os estudos Montesquieu pode ser considerado um científicos da sociedade — parte do precursor da sociologia do direito ao pressuposto que as ciências naturais são estabelecer a relação entre as leis do uma aplicação ou concretização de um sistema jurídico, feitas pelo homem, e as modelo de conhecimento universalmente leis inescapáveis da natureza17. válido e, de resto, o único válido. Portanto, por maiores que sejam as No século XVIII este espírito precursor diferenças entre os fenômenos naturais e é ampliado e aprofundado e o fermento os fenômenos sociais é sempre possível intelectual que daí resulta, as luzes, vai estudar os últimos como se fossem os criar as condições para a emergência das primeiros. Reconhece-se que essas ciências sociais no século XIX. A diferenças atuam contra os fenômenos consciência filosófica da ciência moderna, sociais, ou seja, tornam mais difícil o que tivera no racionalismo cartesiano e no cumprimento do cânone empirismo baconiano as suas primeiras metodológico e menos rigoroso o formulações, veio a condensar-se no conhecimento a que se chega, mas não positivismo oitocentista. Dado que, há diferenças qualitativas entre o segundo este, só há duas formas de processo científico neste domínio e o conhecimento científico — as disciplinas que preside ao estudo dos fenômenos formais da lógica e da matemática e as naturais. Para estudar os fenômenos ciências empíricas segundo o modelo sociais como se fossem fenômenos mecanicista das ciências naturais — as naturais, ou seja, para conceber os ciências sociais nasceram para ser fatos sociais, como coisas, como empíricas. O modo como o modelo pretendia Durkheim18, o fundador da mecanicista foi assumido foi, no entanto, sociologia acadêmica, é necessário diverso. Distingo duas vertentes reduzir os fatos sociais às suas principais: a primeira, sem dúvida dimensões externas, observáveis e dominante, consistiu em aplicar, na mensuráveis. As causas do aumento da medida do possível, ao estudo da taxa de suicídio na Europa do virar do sociedade todos os princípios século não são procuradas nos motivos epistemológicos e metodológicos que invocados pelos suicidas e deixados em presidiam ao estudo da natureza desde o cartas, como é costume, mas antes a século XVI; a segunda, durante muito partir da verificação de regularidades em tempo marginal mas hoje cada vez mais função de condições tais como o sexo, seguida, consistiu em reivindicar para as o estado civil, a existência ou não de ciências sociais um estatuto filhos, a religião dos suicidas19. epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser Porque essa redução nem sempre é fácil humano e sua distinção polar em relação e nem sempre se consegue sem distorcer à natureza. Estas duas concepções têm grosseiramente os fatos ou sem os sido consideradas antagônicas, a primeira, reduzir à quase irrelevância, as ciências sujeita ao jugo positivista, a segunda, sociais têm um longo caminho a percorrer 15 Bacon, ob. cit. 16 Vico, Scienza Nuova, in Opere. Milão Riccardi, 1953. 17 Montesquieu, L'Esprit des Lois. Paris, Les Belles-Lettres, 1950. 18 19 E. Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Lisboa, Presença, 1980. E. Durkheim, O Suicídio. Lisboa, Presença, 1973.
  • 8. no sentido de se compatibilizarem com os sim, paradigmáticas. Enquanto, nas critérios de cientificidade das ciências ciências naturais, o desenvolvimento naturais. Os obstáculos são enormes mas do conhecimento tornou possível a não são insuperáveis. Ernest Nagel, em formulação de um conjunto de The Structure of Science, simboliza bem princípios e de teorias sobre a estrutura o esforço desenvolvido nesta variante da matéria que são aceites sem para identificar os obstáculos e apontar discussão por toda a comunidade as vias da sua superação. Eis alguns dos científica, conjunto esse que designa principais obstáculos: as ciências sociais por paradigma, nas ciências sociais não não dispõem de teorias explicativas há consenso paradigmático, pelo que o que lhes permitam abstrair do real para debate tende a atravessar verticalmente depois buscar nele, de modo toda a espessura do conhecimento metodológicamente controlado, a prova adquirido. O esforço e o desperdício adequada; as ciências sociais não podem que isso acarreta é simultaneamente estabelecer leis universais porque os causa e efeito do atraso das ciências fenômenos sociais são historicamente sociais. condicionados e culturalmente determinados; as ciências sociais não A segunda vertente reivindica para as podem produzir previsões fiáveis porque ciências sociais um estatuto metodológico os seres humanos modificam o seu próprio. Os obstáculos que há pouco comportamento em função do enunciei são, segundo esta vertente, conhecimento que sobre ele se adquire; intransponíveis. Para alguns, é os fenômenos sociais são de natureza a própria idéia de ciência da sociedade subjetiva e como tal não se deixam que está em causa, para outros trata-se captar pela objetividade do tão-só de empreender uma ciência comportamento; as ciências sociais não diferente. O argumento fundamental é são objetivas porque o cientista social que a ação humana é radicalmente não pode libertar-se, no ato de subjetiva. O comportamento humano, observação, dos valores que informam ao contrário dos fenômenos naturais, a sua prática em geral e, portanto, não pode ser descrito e muito menos também a sua prática de cientista 20 . explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, Em relação a cada um destes obstáculos, uma vez que o mesmo ato externo Nagel tenta demonstrar que a oposição pode corresponder a sentidos de ação entre as ciências sociais e as ciências muito diferentes. A ciência social será naturais não é tão linear quanto se sempre uma ciência subjetiva e não julga e que, na medida em que há objetiva como as ciências naturais; diferenças, elas são superáveis ou tem de compreender os fenômenos negligenciáveis. Reconhece, no entanto, sociais a partir das atitudes mentais e do que a superação dos obstáculos nem sentido que os agentes conferem às suas sempre é fácil e que essa é a razão ações, para o que é necessário utilizar principal do atraso das ciências sociais métodos de investigação e mesmo em relação às ciências naturais. A idéia critérios epistemológicos diferentes dos do atraso das ciências sociais é a idéia correntes nas ciências naturais, métodos central da argumentação metodológica qualitativos em vez de quantitativos, com nesta variante, e, com ela, a idéia de que vista à obtenção de um conhecimento esse atraso, com tempo e dinheiro, intersubjetivo, descritivo e compreensivo, poderá vir a ser reduzido ou mesmo em vez de um conhecimento objetivo, eliminado. explicativo e nomotético. Na teoria das revoluções científicas de Esta concepção de ciência social Thomas Kuhn o atraso das ciências reconhece-se numa postura antipositivista sociais é dado pelo caráter e assenta na tradição filosófica da pré-paradigmático destas ciências, ao fenomenologia e nela convergem contrário das ciências naturais, essas diferentes variantes, desde as mais 20 Ernest Nagel, The Structure of Science. Problems in the Logic of Scientific Explanation. Nova Iorque, Harcourt, Brace & World, 1961, p. 447 e segs.
  • 9. moderadas (como a de Max Weber)21 até pode afirmar com segurança que às mais extremistas (como a de colapsarão as distinções básicas em que Peter Winch)22. Contudo, numa reflexão assenta o paradigma dominante e a que mais aprofundada, esta concepção, tal aludi na seção precedente. como tem vindo a ser elaborada, revela-se A crise do paradigma dominante é o mais subsidiária do modelo de resultado interativo de uma pluralidade racionalidade das ciências naturais do de condições. Distingo entre condições que parece. Partilha com este modelo a sociais e condições teóricas. Darei mais distinção natureza/ser humano e tal atenção às condições teóricas e por elas como ele tem da natureza uma visão começo. A primeira observação, que • mecanicista à qual contrapõe, com não é tão trivial quanto parece, é que a evidência esperada, a especificidade do identificação dos limites, das ser humano. A esta distinção, primordial insuficiências estruturais do paradigma na revolução científica do século XVI, científico moderno é o resultado do vão-se sobrepor nos séculos seguintes grande avanço no conhecimento que outras, tal como a distinção natureza/ ele propiciou. O aprofundamento do cultura e a distinção ser humano/ conhecimento permitiu ver a fragilidade animal, para no século XVIII se poder dos pilares em que se funda. celebrar o caráter único de ser humano. A fronteira que então se Einstein constitui o primeiro rombo estabelece entre o estudo do ser humano no paradigma da ciência moderna, um e o estudo da natureza não deixa de ser rombo, aliás, mais importante do que o prisioneira do reconhecimento da que Einstein foi subjetivamente capaz prioridade cognitiva das ciências naturais, de admitir. Um dos pensamentos mais pois, se, por um lado, se recusam os profundos de Einstein é o da condicionantes biológicos do relatividade da simultaneidade. Einstein comportamento humano, pelo outro distingue entre a simultaneidade de usam-se argumentos biológicos para acontecimentos presentes no mesmo lugar fixar a especificidade do ser humano. e a simultaneidade de acontecimentos Pode, pois, concluir-se que ambas as distantes, em particular de acontecimentos concepções de ciência social a que separados por distâncias astronômicas. aludi pertencem ao paradigma da Em relação a estes últimos, o problema ciência moderna, ainda que a concepção lógico a resolver é o seguinte: como é mencionada em segundo lugar represente, que o observador estabelece a ordem A crise do paradigma dentro deste paradigma, um sinal de temporal de acontecimentos no espaço? Certamente por medições da dominante é o crise e contenha alguns dos componentes resultado interativo de da transição para um outro paradigma velocidade da luz, partindo do pressuposto, que é fundamental à uma pluralidade de científico. condições. Distingo teoria de Einstein, que não há na natureza velocidade superior à da luz. No entre condições sociais A Crise do Paradigma Dominante e condições entanto, ao medir a velocidade numa São hoje muitos e fortes os sinais de que direção única (de A a B), Einstein teóricas. ( . . . ) o modelo de racionalidade científica defronta-se com um círculo vicioso: a fim a identificação dos que acabo de descrever em alguns dos de determinar a simultaneidade dos limites, das seus traços principais atravessa uma acontecimentos distantes é necessário insuficiências profunda crise. Defenderei nesta seção: . conhecer a velocidade; mas para estruturais do primeiro, que essa crise é não só medir a velocidade é necessário paradigma científico profunda como irreversível; segundo, que conhecer a simultaneidade dos moderno é o resultado estamos a viver um período de revolução acontecimentos. Com um golpe de do grande avanço no científica que se iniciou com Einstein e a gênio, Einstein rompe com este conhecimento que mecânica quântica e não se sabe ainda círculo, demonstrando que a ele propiciou. O quando acabará; terceiro, que os sinais simultaneidade de acontecimentos aprofundamento do nos permitem tão-só .especular acerca.do distantes não pode ser verificada, conhecimento permitiu paradigma que emergirá deste período pode tão-só ser definida. É, portanto, ver a fragilidade dos revolucionário mas que, desde já, se arbitrária e daí que, como salienta pilares em que se funda. 21 Max Weber, Methodologischen Schriften. Frankfurt, Fischer, 1968. 22 Peter Winch, The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy. Londres, Routledge e Kegan Paul, 1970.
  • 10. Reichenbach, quando fazemos princípio da incerteza de Heisenberg: não medições não pode haver contradições se podem reduzir simultaneamente os nos resultados uma vez que estes nos erros da medição da velocidade e da devolverão a simultaneidade que posição das partículas; o que for feito nós introduzimos por definição no para reduzir o erro de uma das medições sistema de medição 23 . Esta teoria aumenta o erro da outra 26 . Este veio revolucionar as nossas concepções princípio, e, portanto, a demonstração de espaço e de tempo. Não havendo da interferência estrutural do sujeito simultaneidade universal, o tempo e o no objeto observado, tem implicações espaço absolutos de Newton deixam de vulto. Por um lado, sendo de existir. Dois acontecimentos estruturalmente limitado o rigor do simultâneos num sistema de referência nosso conhecimento, só podemos não são simultâneos noutro sistema de aspirar a resultados aproximados e por referência. As leis da física e da geometria isso as leis da física são tão-só assentam em medições locais. "Os probabilísticas. Por outro lado, a instrumentos de medida, sejam relógios hipótese do determinismo mecanicista é ou metros, não têm magnitudes inviabilizada uma vez que a totalidade independentes, ajustam-se ao campo do real não se reduz à soma das partes métrico do espaço, a estrutura do qual em que a dividimos para observar e se manifesta mais claramente nos medir. Por último, a distinção sujeito/ raios de luz" 24 . objeto é muito mais complexa do que à O caráter local das medições e, portanto, primeira vista pode parecer. A distinção do rigor do conhecimento que com base perde os seus contornos dicotômicos e nelas se obtém, vai inspirar o surgimento assume a forma de um continuum. da segunda condição teórica da crise do O rigor da medição posto em causa pela paradigma dominante, a mecânica mecânica quântica será ainda mais quântica. Se Einstein relativizou o rigor profundamente abalado se se questionar o das leis de Newton no domínio da rigor do veículo formal em que a medição astrofísica, a mecânica quântica fê-lo é expressa, ou seja, o rigor da matemática. no domínio da microfísica. Heisenberg É isso o que sucede com as investigações e Bohr demonstram que não é possível de Godel e que por essa razão considero observar ou medir um objeto sem serem a terceira condição da crise do interferir nele, sem o alterar, e a tal paradigma. O teorema da incompletude ponto que o objeto que sai de um (ou do não-completamento) e os processo de medição não é o mesmo que teoremas sobre a impossibilidade, em lá entrou. Como ilustra Wigner, "a certas circunstâncias, de encontrar medição da curvatura do espaço causada dentro de um dado sistema formal a por uma partícula não pode ser levada prova da sua consistência vieram mostrar a cabo sem criar novos campos que são que, mesmo seguindo à risca as regras da bilhões de vezes maiores que o campo lógica matemática, é possível formular sob investigação"25. A idéia de que não proposições indecidíveis, proposições que conhecemos do real senão o que nele se não podem demonstrar nem refutar, introduzimos, ou seja, que não sendo que uma dessas proposições é conhecemos do real senão a nossa precisamente a que postula o caráter intervenção nele, está bem expressa no não-contraditório do sistema 27 . Se as 23 H. Reichenbach, From Copernicus to Einstein, Nova Iorque, Dover Publications, 1970, p. 60. 24 H. Reichenbach, ob. cit., p. 68. 25 E. Wigner, ob. cit., p. 7. 26 W. Heisenberg, A Imagem da Natureza na Física Moderna. Lisboa, Livros do Brasil, s. d.; W. Heisenberg, Physics and Beyond. Londres, Allen and Unwin, 1971. 27 O impacto dos teoremas de Godel na filosofia da ciência tem sido diversamente avaliado. Cf., por exemplo, J. Ladrière, "Les Limites de la Formalization ", in J. Piaget (org), Logique et Connaissance Scientifique. París, Gallimard, 1967, p. 312 e segs.; R. Jones, Physics as Metaphor. Nova Iorque, New American Library, 1982, p. 158; J. Parain-Vial, Philosophic des Sciences de la Nature. Tendances Nouvelles. Paris, Klincksieck, 1983, p. 52 e segs.; R. Thom, Parábolas e Catástrofes. Lisboa, D. Quixote, 1985, p. 36; J. Briggs e F. D. Peat, Looking Glass Universe. The Emerging Science of Wholeness. Londres, Fontana, 1985, p. 22.
  • 11. leis da natureza fundamentam o seu rigor segundo uma lógica de auto-organização no rigor das formalizações matemáticas numa situação de não-equilíbrio. A em que se expressam, as investigações situação de bifurcação, ou seja, o ponto de Godel vêm demonstrar que o rigor da crítico em que a mínima flutuação de matemática carece ele próprio de energia pode conduzir a um novo estado, fundamento. A partir daqui é possível representa a potencialidade do sistema não só questionar o rigor da matemática em ser atraído para um novo estado de como também redefini-lo enquanto forma menor entropia. Deste modo a de rigor que se opõe a outras formas de irreversibilidade nos sistemas abertos rigor alternativo, uma forma de rigor cujas significa que estes são produto da sua condições de êxito na ciência moderna historiais. não podem continuar a ser concebidas A importância desta teoria está na nova como naturais e óbvias. A própria filosofia concepção da matéria e da natureza que da matemática, sobretudo a que incide propõe, uma concepção dificilmente sobre a experiência matemática, tem compaginada com a que herdamos da vindo a problematizar criativamente estes física clássica. Em vez da eternidade, a temas e reconhece hoje que o rigor história; em vez do determinismo, a matemático, como qualquer outra forma imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, de rigor, assenta num critério de a interpenetração, a espontaneidade e a seletividade e que, como tal, tem um lado auto-organização; em vez da construtivo e um lado destrutivo. reversibilidade, a irreversibilidade e a A quarta condição teórica da crise do evolução; em vez da ordem, a desordem; paradigma newtoniano é constituída em vez da necessidade, a criatividade e o pelos avanços do conhecimento nos acidente. A teoria de Prigogine recupera domínios da microfísica, da química e inclusivamente conceitos aristotélicos da biologia nos últimos vinte anos. A tais como os conceitos de potencialidade título de exemplo, menciono as e virtualidade que a revolução científica investigações do físico-químico Ilya do século XVI parecia ter atirado Prigogine. A teoria das estruturas definitivamente para o lixo da história. dissipativas e o princípio da "ordem através de flutuações"' estabelecem que Mas a importância maior desta teoria em sistemas abertos, ou seja, em está em que ela não é um fenômeno sistemas que funcionam nas margens da isolado. Faz parte de um movimento estabilidade, a evolução explica-se por convergente, pujante sobretudo a partir flutuações de energia que em da última década, que atravessa as determinados momentos, nunca várias ciências da natureza e até as . inteiramente previsíveis, desencadeiam ciências sociais, um movimento de espontaneamente reações que, por via vocação transdisciplinar que Jantsch de mecanismos não-lineares, pressionam o designa por paradigma da sistema para além de um limite máximo auto-organização e que tem aflorações, de instabilidade e o conduzem a um entre outras, na teoria de Prigogine, na novo estado macroscópico. Esta sinergética de Haken 29 , no conceito de transformação irreversível e hiperciclo e na teoria da origem da vida termodinâmica é o resultado da de Eigen 30 , no conceito de autopoiesis interação de processos microscópicos de Maturana e Varela 31 , na teoria das 28 I. Prigogine el. Stengers, La Nouvelle Alliance. Metamorphose de la Science. Paris, Gallimard, 1979; I. Prigogine, From Being to Becoming. 5. Francisco, Freeman, 1980; I. Prigogine, "Time, Irreversibuity and Randomness", in E. Jantsch (orgj, The Evolutionary Vision. Boulder, Westview Press, p. 73 e segs. 29 H. Han/en, Synergetics: an introduction. Heidelberg, Springer 19 77; H. Haken, "Synergetics - An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization", Geoforum 16 (1985), 205. 30 M. Eigen e P. Schuster, The Hypercyde: a principle of natural self-organization. Heidelberg, Springer, 1979. 31 H. R. Maturana e F. J. Varela, De Maquinas y Seres Vivos. Santiago do Chile, Editorial Universitária, 1973; H. R. Maturana e J. F. Varela, Autopoietic Systems. Urbana, Biological Computer Laboratory University of Illinois, 1975. Cf., também, F. Benseler, P. Hejl e W. Koch (orgs.), Autopoiesis. Communication and Society. The Theory of Autopoietic Systems in the Social Sciences. Frankfurt, Campus, 1980.
  • 12. catástrofes de Thorn 32 , na teoria da principais. Em primeiro lugar, são evolução de Jantsch33, na teoria da questionados o conceito de lei e o "ordem implicada" de David Bohm34 conceito de causalidade que lhe está ou na.teoria da matriz-S de Geoffrey associado. A formulação das leis da Chew e na filosofia do "bootstrap" natureza funda-se na idéia de que os que lhe subjaz35. Este movimento fenômenos observados independem de científico e as demais inovações teóricas tudo exceto de um conjunto que atrás defini como outras tantas razoavelmente pequeno de condições condições teóricas da crise do paradigma (as condições iniciais) cuja interferência dominante têm vindo a propiciar uma é observada e medida. Esta idéia, profunda reflexão epistemológica sobre reconhece-se hoje, obriga a separações o conhecimento científico, uma reflexão grosseiras entre os fenômenos, de tal modo rica e diversificada que, separações que, aliás, são sempre melhor do que qualquer outra provisórias e precárias uma vez que a circunstância, caracteriza exemplarmente verificação da não-interferência de a situação intelectual do tempo presente. certos fatores é sempre produto de Mas acima de tudo, a Esta reflexão apresenta duas facetas um conhecimento imperfeito, por simplicidade das leis sociológicas importantes. Em primeiro mais perfeito que seja. As leis têm constitui uma lugar, a reflexão é levada a cabo assim um caráter probabilístico, simplificação predominantemente pelo próprios aproximativo e provisório, bem arbitrária da realidade cientistas, por cientistas que adquiriram expresso no princípio da falsificabilidade que nos confina a um uma competência e um interesse de Popper. Mas acima de tudo, a horizonte mínimo filosóficos para problematizar a sua simplicidade das leis constitui uma para além do qual prática científica. Não é arriscado simplificação arbitrária da realidade que outros conhecimentos dizer que nunca houve tantos nos confina a um horizonte mínimo da natureza, cientistas-filósofos como atualmente, e para além do qual outros conhecimentos provavelmente mais isso não se deve a uma evolução da natureza, provavelmente mais ricos ricos e com mais arbitrária do interesse intelectual. Depois e com mais interesse humano, ficam por interesse humano, da euforia cientista do século XIX e da conhecer. Na biologia, onde as ficam por conhecer. conseqüente aversão à reflexão filosófica, interações entre fenômenos e formas Na biologia, onde as bem simbolizada pelo positivismo, de auto-organização em totalidades interações entre chegamos a finais do século XX possuídos não-mecânicas são mais visíveis, mas fenômenos e pelo desejo quase desesperado de também nas demais ciências, a noção de formas de complementarmos o conhecimento das lei tem vindo a ser parcial e sucessivamente auto-organização em coisas com o conhecimento do substituída pelas noções de sistema, de totalidades conhecimento das coisas, isto é, com o estrutura, de modelo e, por último, pela não-mecânicas são conhecimento de nós próprios. A noção de processo. O declínio da mais visíveis, mas segunda faceta desta reflexão é que ela hegemonia da legalidade é concomitante também nas demais abrange questões que antes eram deixadas do declínio da hegemonia da ciências, a noção de aos sociólogos. A análise das condições causalidade. O questionamento da lei tem vindo a ser sociais, dos contextos culturais, dos causalidade nos tempos modernos vem parcial e modelos organizacionais da investigação de longe, pelo menos desde David Hume sucessivamente científica, antes acantonada no campo e do positivismo lógico. A reflexão substituída pelas separado e estanque da sociologia da crítica tem incidido tanto no problema noções de sistema, ciência, passou a ocupar papel de relevo ontológico da causalidade (quais as de estrutura, de na reflexão epistemológica. características do nexo causal?; esse modelo e, por último, nexo existe na realidade?) como sobre o pela noção de Do conteúdo desta reflexão respigarei, problema metodológico da causalidade processo. a título ilustrativo, alguns dos temas (quais os critérios de causalidade?; como 32 R. Thom, ob. cit., p. 85 e segs. 33 E. Jantsch, The Self-Organizing Universe: scientific and human implications of the emerging paradigm of evolution. Oxford, Pergamon, 1980; E. Jantsch. "Unifying Principles of Evolution" E. Jantsch (org), The Evolutionary Vision, cit., p. 83 e segs. 34 D. Bohm, Wholeness and the Implicate Order. Londres, Ark Paperbacks, 1984. 35 G. Chew, "Bootstraps scientific idea?", Science 167 (1968), p. 762 e segs;G. Chew, "Hardon bootstrap: triumph or frustration?", Physics Today, 23 (1970) p. 23 e segs; f. Capra, "Quark physics without quarks: a review of recent developments in S-matrix theory", American Journal of Physics, 47 (1979), p. 11 e segs.
  • 13. reconhecer um nexo causal ou testar rigor que, ao afirmar a personalidade uma hipótese causal?). Hoje, a do cientista, destrói a personalidade da relativização do conceito de causa parte natureza. Nestes termos, o conhecimento sobretudo do reconhecimento de que o ganha em rigor o que perde em riqueza lugar central que ele tem ocupado na e a retumbância dos êxitos da intervenção ciência moderna se explica menos por tecnológica esconde os limites da nossa razões ontológicas ou metodológicas compreensão do mundo e reprime a do que por razões pragmáticas. O pergunta pelo valor humano do afã conceito de causalidade adequa-se bem a científico assim concebido. Esta pergunta uma ciência que visa intervir no real está, no entanto, inscrita na própria e que mede o seu êxito pelo âmbito relação sujeito/objeto que preside dessa intervenção. Afinal, causa é tudo à ciência moderna, uma relação que aquilo sobre que se pode agir. Mesmo os interioriza o sujeito à custa da defensores da causalidade, como Mario exteriorização do objeto, tornando-os Bunge, reconhecem que ela é apenas estanques e incomunicáveis. uma das formas do determinismo e que por isso tem um lugar limitado, ainda que insubstituível, no conhecimento Os limites deste tipo de conhecimento científico36. A verdade é que, sob a são, assim, qualitativos, não são égide da biologia e também da microfísica, superáveis com maiores quantidades de o causalismo, enquanto categoria de investigação ou maior precisão dos inteligibilidade do real, tem vindo a instrumentos. Aliás, a própria precisão perder terreno em favor do finalismo. quantitativa do conhecimento é estruturalmente limitada. Por exemplo, O segundo grande tema de reflexão no domínio das teorias da informação o epistemológica versa mais sobre o teorema de Brillouin demonstra que a conteúdo do conhecimento científico do informação não é gratuita 38 . Qualquer que sobre a sua forma. Sendo um observação efetuada sobre um sistema conhecimento mínimo que fecha as físico aumenta a entropia do sistema no portas a muitos outros saberes sobre o laboratório, O rendimento de uma dada mundo, o conhecimento científico experiência deve assim ser definido moderno é um conhecimento pela relação entre a informação obtida desencantado e triste que transforma a e o aumento concomitante da entropia. natureza num autômato, ou, como Ora, segundo Brillouin, esse rendimento diz Prigogine, num interlocutor é sempre inferior à unidade e só em terrivelmente estúpido 37 . Este casos raros é próximo dela. Nestes aviltamento da natureza acaba por termos, a experiência rigorosa é aviltar o próprio cientista na medida irrealizável pois que exigiria um dispendio em que reduz o suposto diálogo infinito de atividades humanas. Por experimental ao exercício de uma último, a precisão é limitada porque, se é prepotência sobre a natureza. O rigor verdade que o conhecimento só sabe científico, porque fundado no rigor avançar pela via da progressiva matemático, é um rigor que quantifica parcelização do objeto, bem e que, ao quantificar, desqualifica, um representada nas crescentes rigor que, ao objetivar os fenômenos, especializações da ciência, é os objetualiza e os degrada, que, ao exatamente por essa via que melhor se caracterizar os fenômenos, os caricaturiza. confirma a irredutibilidade das É, em suma e finalmente, uma forma de totalidades orgânicas ou inorgânicas às 36 M. Bunge, Causality and Modem Science. Nova Iorque, Dover Publications, 3a edição, 1979, p. 353: "The causal principle is, in short, neither a panacea nor a myth; it is a general hypothesis subsumed under the universal principle of determinacy, and having an approximate validity in its proper domain". Em Portugal é justo salientar neste domínio a notável obra teórica de Armando Castro. Cf. Teoria do Conhecimento Científico, vols. I-IV, Porto Limiar, 1975, 1978, 1980, 1982; vol V, Porto, Afrontamento, 1987. 37 I. Prigogine e I. Stengers, ob. cit., p. 13. 38 L. Brillouin, La Science et la Theorie de l'Information. Paris, Masson, 1959. Cf., também, Parain-Vial, ob. cit., p. 122 e segs.
  • 14. partes que as constituem e, portanto, o "A ciência e a tecnologia têm vindo caráter distorsivo do conhecimento a revelar-se as duas faces de um processo centrado na observação destas últimas. histórico em que os interesses militares Os fatos observados têm vindo a e os interesses econômicos vão escapar ao regime de isolamento prisional convergindo até quase à indistinção"40. a que a ciência os sujeita. Os objetos têm No domínio da organização do trabalho fronteiras cada vez menos definidas; são científico, a industrialização da ciência constituídos por anéis que se entrecruzam produziu dois efeitos principais. Por um em teias complexas com os dos restantes lado, a comunidade científica objetos, a tal ponto que os objetos em estratificou-se, as relações de poder entre si são menos reais que as relações entre cientistas tornaram-se mais autoritárias eles. e desiguais e a esmagadora maioria dos cientistas foi submetida a um processo Ficou dito no início desta parte que a de proletarização no interior dos crise do paradigma da ciência moderna laboratórios e dos centros de se explica por condições teóricas, que investigação. Por outro lado, a acabei ilustrativamente de apontar, e investigação capital-intensiva (assente em por condições sociais. Estas últimas não instrumentos caros e raros) tornou podem ter aqui tratamento detalhado59. impossível o livre acesso ao equipamento, Referirei tão-só que, quaisquer que sejam o que contribuiu para o aprofundamento os limites estruturais de rigor científico, do fosso, em termos de desenvolvimento não restam dúvidas que o que a ciência científico e tecnológico, entre os países ganhou em rigor nos últimos quarenta centrais e os países periféricos. ou cinqüenta anos perdeu em capacidade de auto-regulação. As idéias da autonomia Pautada pelas condições teóricas e sociais da ciência e do desinteresse do que acabei de referir, a crise do conhecimento científico, que durante paradigma da ciência moderna não muito tempo constituíram a ideologia constitui um pântano cinzento de espontânea dos cientistas, colapsaram ceticismo ou de irracionalismo. É antes perante o fenômeno global da o retrato de uma família intelectual industrialização da ciência a partir numerosa e instável, mas também sobretudo das décadas de trinta e criativa e fascinante, no momento de se quarenta. Tanto nas sociedades despedir, com alguma dor, dos lugares capitalistas como nas sociedades conceituais, teóricos c epistemológicos, socialistas de Estado do leste europeu, a ancestrais e íntimos, mas não mais industrialização da ciência acarretou o convincentes e securizantes, uma compromisso desta com os centros de despedida em busca de uma vida melhor a poder econômico, social e político, os caminho doutras paragens onde o As idéias da autonomia otimismo seja mais fundado e a quais passaram a ter um papel decisivo da ciência e do racionalidade mais plural e onde na definição das prioridades científicas. desinteresse do finalmente o conhecimento volte a ser conhecimento A industrialização da ciência uma aventura encantada. A científico, que manifestou-se tanto ao nível das caracterização da crise do paradigma durante muito aplicações da ciência como ao nível da dominante traz consigo o perfil do tempo constituíram a organização da investigação científica. paradigma emergente. É esse o perfil ideologia espontânea Quanto às aplicações, as bombas de que procurarei desenhar a seguir. dos cientistas, Hiroshima e Nagasaki foram um sinal colapsaram perante o trágico, a princípio visto como acidental O Paradigma Emergente fenômeno global da e fortuito, mas hoje, perante a catástrofe industrialização da ecológica e o perigo do holocausto A configuração do paradigma que se ciência a partir nuclear, cada vez mais visto como anuncia no horizonte só pode obter-se sobretudo das manifestação de um modo de produção por via especulativa. Uma especulação décadas de trinta e da ciência inclinado a transformar fundada nos sinais que a crise do quarenta. acidentes em ocorrências sistemáticas. paradigma atual emite mas nunca por 39 Sobre este tema cf. Boaventura de Sousa Santos, "Da Sociologia da Ciência à Política Científica", Revista Crítica de Ciências Sociais, l (1978), p. 11 e segs. 40 Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 26.
  • 15. eles determinada. Aliás, como diz René da matéria e da natureza a que contrapõe, Poirier e antes dele disseram Hegel e com pressuposta evidência, os conceitos Heidegger, "a coerência global das de ser humano, cultura e sociedade. Os nossas verdades físicas e metafísicas só avanços recentes da física e da biologia se conhece retrospectivamente"41. Por põem em causa a distinção entre o isso, ao falarmos do futuro, mesmo que orgânico e o inorgânico, entre seres vivos seja de um futuro que já nos sentimos e matéria inerte e mesmo entre o humano a percorrer, o que dele dissermos é e o não-humano. As características da sempre o produto de uma síntese pessoal auto-organização, do metabolismo e da embebida na imaginação, no meu caso auto-reprodução, antes consideradas na imaginação sociológica. Não espanta, específicas dos seres vivos, são hoje pois, que ainda que com alguns pontos atribuídas aos sistemas pré-celulares de de convergência, sejam diferentes as moléculas. E quer num quer noutros sínteses até agora apresentadas. Ilya reconhecem-se propriedades e Prigogine, por exemplo, fala da nova comportamentos antes considerados aliança e da metamorfose da ciência42. específicos dos seres humanos e das Fritjof Capra fala da "nova física" e do relações sociais. A teoria das estruturas Taoísmo da física43, Eugene Wigner dissipativas de Prigogine, ou a teoria de "mudanças do segundo tipo"44, sinergética de Haken já citadas, mas Erich Jantsch do paradigma da auto- também a teoria da ordem implicada organização45, Daniel Bell da sociedade de David Bohm, a teoria da matriz-S de pos-industrial46, Habermas da sociedade Geoffrey Chew e a filosofia do comunicativa47. Eu falarei, por agora, do "bootstrap" que lhe subjaz e ainda a paradigma de um conhecimento prudente teoria do encontro entre a física para uma vida decente. Com esta contemporânea e o misticismo oriental designação quero significar que a natureza de Fritjof Capra, todas elas de vocação da revolução científica que atravessamos holística e algumas especificamente é estruturalmente diferente da que orientadas para superar as inconsistências ocorreu no século XVI. Sendo uma entre a mecânica quântica e a teoria da revolução científica que ocorre numa relatividade de Einstein, todas estas sociedade ela própria revolucionada pela teorias introduzem na matéria os ciência, o paradigma a emergir dela não conceitos de historicidade e de processo, pode ser apenas um paradigma científico de liberdade, de auto-determinação e até (o paradigma de um conhecimento de consciência que antes o homem e a prudente), tem de ser também um mulher tinham reservado para si. É como A distinção dicotômica paradigma social (o paradigma de uma se o homem e a mulher se tivessem entre ciências naturais vida decente). Apresentarei o lançado na aventura de conhecer os e ciências sociais paradigma emergente através de um objetos mais distantes e diferentes de começa a deixar conjunto de teses seguidas de justificação. si próprios, para, uma vez aí chegados, de ter sentido e se descobrirem refletidos como num utilidade. Esta distinção espelho. Já no princípio da década de assenta numa concepção Todo o conhecimento sessenta e extrapolando a partir da mecanicista da matéria científico-natural é científico-social mecânica quântica, Eugene Wigner e da natureza a que considerava que o inanimado não era uma contrapõe, com A distinção dicotômica entre ciências qualidade diferente mas apenas um caso- pressuposta evidência, naturais e ciências sociais começa a deixar limite, que a distinção corpo/alma deixara os conceitos de ser de ter sentido e utilidade. Esta distinção de ter sentido e que a física e a psicologia humano, cultura e assenta numa concepção mecanicista acabariam por se fundir numa única sociedade. 41 R. Poirier, prefácio a Parain-Vial, ob. cit.,p. 10. 42 L Prigogine, obs. cits. 43 F. Capra, The Tao of Physics, Nova Iorque, Bantam Books, (1976), 1984; F. Capra, The Turning Point. Nova Iorque, Bantam Books, 1983. 44 E. Wigner, ob. cit., p.215 e segs. 45 E. Jantsch, obs. cits. 46 D. Bell, The Coming Crisis of Post-Industrial Society. Nova Iorque, Basic Books, 1976. 47 J. Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns, 2 vols. Frankfut, Suhrkamp, 1982.
  • 16. ciência48. Hoje é possível ir muito além interdependentes sem, no entanto, da mecânica quântica. Enquanto esta estarem ligadas por nexo de causalidade. introduziu a consciência no ato do São antes duas projeções, mutuamente conhecimento, nós temos hoje de a envolventes, de uma realidade mais alta introduzir no próprio objeto do que não é nem matéria nem consciência. conhecimento, sabendo que, com isso, a O conhecimento do paradigma emergente distinção sujeito/objeto sofrerá uma tende assim a ser um conhecimento não- transformação radical. Num certo dualista, um conhecimento que se funda regresso ao pan-psiquismo leibniziano, na superação das distinções tão familiares começa hoje a reconhecer-se uma e óbvias que até há pouco considerávamos dimensão psíquica na natureza, "a mente insubstituíveis, tais como natureza/ mais ampla" de que fala Bateson, da qual cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, a mente humana é apenas uma parte, uma mente/matéria, observador/observado, mente imanente ao sistema social global subjetivo/objetivo, coletivo/individual, e à ecologia planetária que alguns animal/pessoa. Este relativo colapso das chamam Deus49. Geoffrey Chew postula distinções dicotômicas repercute-se nas a existência de consciência na natureza disciplinas científicas que sobre elas se como um elemento necessário à fundaram. Aliás, sempre houve ciências autoconsistência desta última e, se que se reconheceram mal nestas assim for, as futuras teorias da matéria distinções e tanto que se tiveram de terão de incluir o estudo da consciência fraturar internamente para se lhes humana. Convergentemente, assiste-se a adequarem minimamente. Refiro-me à um renovado interesse pelo "inconsciente antropologia, à geografia e também à coletivo", imanente à humanidade no psicologia. Condensaram-se nelas seu todo, de Jung. Aliás, Capra pretende privilegiadamente as contradições da ver as idéias de Jung — sobretudo a idéia separação ciências naturais/ciências da sincronicidade para explicar a relação sociais. Daí que, num período de entre a realidade exterior e a realidade transição entre paradigmas, seja interior — confirmadas pelos recentes particularmente importante, do ponto de conceitos de interações locais e não- vista epistemológico, observar o que se locais na física das partículas 50 . Tal passa nessas ciências. como na sincronia jungiana, as interações não-locais são instantâneas Não basta, porém, apontar a tendência e não podem ser previstas em termos para a superação da distinção entre matemáticos precisos. Não são, pois, ciências naturais e ciências sociais, é produzidas por causas locais e, quando preciso conhecer o sentido e conteúdo muito, poder-se-á falar da causalidade dessa superação. Recorrendo de novo à estatística. Capra vê em Jung uma das física, trata-se de saber qual será o alternativas teóricas às concepções "parâmetro de ordem", segundo Haken, mecanicistas de Freud e Bateson afirma ou o "atractor", segundo Prigogine, que enquanto Freud ampliou o dessa superação, se as ciências naturais, conceito de mente para dentro se as ciências sociais. Precisamente (permitindo-nos abranger o porque vivemos um estado de subsconsciente e o inconsciente) é turbulência, as vibrações do novo necessário agora ampliá-lo para fora paradigma repercutem-se desigualmente (reconhecendo a existência de fenômenos nas várias regiões do paradigma vigente mentais para além dos individuais e e por isso os sinais do futuro são humanos). Semelhantemente, a teoria da ambíguos. Alguns lêem neles a ordem implicada, que, segundo o seu emergência de um novo naturalismo autor, David Bohm, pode constituir uma centrado no privilegiamento dos base comum tanto à teoria quântica como pressupostos biológicos do à teoria da relatividade, concebe a comportamento humano. Assim consciência e a matéria como Konrad Lorenz ou a sociobiologia. Para 48 E. Wigner, ob. cit., p. 271. 49 G. Bateson, Mind and Nature, Londres, Fontana, 1985. 50 Cf. também M. Bowen, "The Ecology of Knowledge: linking the natural and social sciences", Geoforum 16 (1985), p. 213 e segs.
  • 17. estes, a superação da dicotomia ciências nas últimas décadas prova-se, além do naturais/ciências sociais ocorre sob a mais, pela facilidade com que as teorias égide das ciências naturais. Contra esta físico-naturais, uma vez formuladas no posição pode objetar-se que ela tem seu domínio específico, se aplicam ou do futuro a mesma concepção com que aspiram aplicar-se no domínio social. as ciências naturais autojustificam, no Assim, por exemplo, Peter Allen, um dos seio do paradigma dominante, o seu mais estreitos colaboradores de Prigogine, prestígio científico, social e político e, tem vindo a aplicar a teoria das estruturas por isso, só vê do futuro aquilo em que dissipativas aos processos econômicos e ele repete o presente. Se, pelo contrário, à evolução das cidades e das regiões52. numa reflexão mais aprofundada, E Haken salienta as potencialidades da atentarmos no conteúdo teórico das sinergética para explicar situações ciências que mais têm progredido no revolucionárias na sociedade53. É como conhecimento da matéria, verificamos se o dito de Durkheim se tivesse invertido que a emergente inteligibilidade da e em vez de serem os fenômenos sociais natureza é presidida por conceitos, a ser estudados como se fossem teorias, metáforas e analogias das fenômenos naturais, são os fenômenos ciências sociais. Para não irmos mais naturais estudados como se fossem longe, quer a teoria das estruturas fenômenos sociais. dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergética de Haken explicam o O fato de a superação da dicotomia comportamento das partículas através ciências naturais/ciências sociais ocorrer dos conceitos de revolução social, sob a égide das ciências sociais não é, violência, escravatura, dominação, contudo, suficiente para caracterizar o democracia nuclear, todos eles modelo de conhecimento no originários das ciências sociais (da paradigma emergente. É que, como sociologia, da ciência política, da história, disse atrás, as próprias ciências sociais etc.). O mesmo sucede, ainda no campo constituíram-se no século XIX segundo da física teórica, com as teorias de os modelos de racionalidade das ciências Capra sobre a relação entre física e naturais clássicas e, assim, a égide das psicanálise, os padrões da matéria e os ciências sociais, afirmada sem mais, pode padrões da mente concebidos como revelar-se ilusória. Referi contudo que a reflexos uns dos outros. Apesar de constituição das ciências sociais teve estas teorias diluírem as fronteiras lugar segundo duas vertentes: uma mais entre os objetos da física e os diretamente vinculada à epistemologia objetos da biologia, foi sem dúvida no e à metodologia positivistas das ciências domínio desta última que os modelos naturais, e outra, de vocação explicativos das ciências sociais mais antipositivista, caldeada numa tradição se enraizaram nas décadas recentes. Os filosófica complexa, fenomenológica, conceitos de teleomorfismo, autopoiesis, interacionista, mito-simbólica, auto-organização, potencialidade hermenêutica, existencialista, pragmática, organizada, originalidade, individualidade, reivindicando a especificidade do estudo historicidade, atribuem à natureza um da sociedade mas tendo de, para isso, comportamento humano. Lovelock, em pressupor uma concepção mecanicista livro recente sobre as ciências da vida, da natureza. A pujança desta segunda afirma que os nossos corpos são vertente nas duas últimas décadas é constituídos por cooperativas de indicativa de ser ela o modelo de células 51 . ciências sociais que, numa época de revolução científica, transporta a marca Que os modelos explicativos das ciências pós-moderna do paradigma emergente. sociais vêm subjazendo ao Trata-se, como referi também, de um desenvolvimento das ciências naturais modelo de transição, uma vez que define 51 J. E. Lovelock, Gaia: a New Look at Life on Earth. Oxford, Oxford University Press. 52 P. Allen, "The Evolutionary Paradigm of Dissipative Structures", in E. Jantsch (org), The Evolutionary Vision, cit., p. 25 e segs. 53 H. Haken, "Synergetics — An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization", Geoforum 16 (1985), p. 205 e segs.
  • 18. a especificidade do humano por preferido a compreensão do mundo à contraposição a uma concepção da manipulação do mundo. Este núcleo natureza que as ciências naturais hoje genuíno foi, no entanto, envolvido num consideram ultrapassada, mas é um anel de preocupações mistificatórias (o modelo em que aquilo que o prende ao esoterismo nefelibata e a erudição passado é menos forte do que aquilo balofa). O ghetto a que as humanidades que o prende ao futuro. Em resumo, à se remeteram foi em parte uma estratégia medida que as ciências naturais se defensiva contra o assédio das ciências aproximam das ciências sociais estas sociais, armadas do viés cientista aproximam-se das humanidades. O triunfalmente brandido. Mas foi também sujeito, que a ciência moderna lançara o produto do esvaziamento que sofreram na diáspora do conhecimento irracional, em face da ocupação do seu espaço pelo regressa investido da tarefa de fazer modelo cientista. Foi assim nos estudos erguer sobre si uma nova ordem históricos com a história quantitativa, científica. nos estudos jurídicos com a ciência pura Que este é o sentido global da revolução do direito e a dogmática jurídica, nos científica que vivemos, é também estudos filológicos, literários e sugerido pela reconceptualização em curso lingüísticos com o estruturalismo. Há das condições epistemológicas e que recuperar esse núcleo genuíno e metodológicas do conhecimento científico pô-lo ao serviço de uma reflexão global social. Referi acima alguns dos obstáculos à sobre o mundo. O texto sobre que sempre cientificidade das ciências sociais, os se debruçou a filologia é uma das quais, segundo o paradigma ainda analogias matriciais com que se construirá dominante, seriam responsáveis pelo no paradigma emergente o conhecimento atraso das ciências sociais em relação sobre a sociedade e a natureza. às ciências naturais. Sucede contudo que, também como referi, o avanço do A concepção humanística das ciências conhecimento das ciências naturais e a sociais enquanto agente catalisador da reflexão epistemológica que ele tem progressiva fusão das ciências naturais e suscitado têm vindo a mostrar que os ciências sociais coloca a pessoa, enquanto obstáculos ao conhecimento científico autor e sujeito do mundo, no centro do da sociedade e da cultura são de fato conhecimento, mas, ao contrário das A concepção condições do conhecimento em geral, humanidades tradicionais, coloca o que humanística das tanto científico-social como científico- hoje designamos por natureza no centro ciências sociais natural. Ou seja, o que antes era a causa da pessoa. Não há natureza humana enquanto agente do maior atraso das ciências sociais é porque toda a natureza é humana. É pois catalisador da hoje o resultado do maior avanço das necessário descobrir categorias de progressiva fusão das ciências naturais. Daí também que a inteligibilidade globais, conceitos quentes ciências naturais e concepção de Thomas Kuhn sobre o que derretam as fronteiras em que a ciências sociais coloca caráter pré-paradigmático (isto é, ciência moderna dividiu e encerrou a a pessoa, enquanto menos desenvolvido) das ciências realidade. A ciência pós-moderna é uma autor e sujeito do sociais54, que eu, aliás, subscrevi e ciência assumidamente analógica que mundo, no centro do reformulei noutros escritos55, tenha de conhece o que conhece pior através do conhecimento, mas, ser abandonada ou profundamente que conhece melhor. Já mencionei a ao contrário das revista. analogia textual e julgo que tanto a humanidades analogia lúdica como a analogia tradicionais, coloca A superação da dicotomia ciências dramática, como ainda a analogia o que hoje designamos naturais/ciências sociais tende assim a biográfica, figurarão entre as categorias por natureza no revalorizar os estudos humanísticos. Mas matriciais do paradigma emergente: o centro da pessoa. esta revalorização não ocorrerá sem que mundo, que hoje é natural ou social e Não há natureza as humanidades sejam, elas também, amanhã será ambos, visto como um humana porque toda profundamente transformadas. O que texto, como um jogo, como um palco a natureza é há nelas de futuro é o terem resistido à ou ainda como autobiografia. Clifford humana. separação sujeito/objeto e o terem Geertz refere algumas destas analogias 54 T. Kuhn, The Structureof Scientific Revolutions. Chicago, University of Chicago Press, 1962, passim. 55 Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 29 e segs.
  • 19. humanísticas e restringe o seu uso às especializado e que isso acarreta efeitos ciências sociais, enquanto eu as concebo negativos. Esses efeitos são sobretudo como categorias de inteligibilidade visíveis no domínio das ciências aplicadas. universais56. Não virá longe o dia em que As tecnologias preocupam-se hoje com o a física das partículas nos fale do jogo seu impacto destrutivo nos ecossistemas; entre as partículas, ou a biologia nos a medicina verifica que a fale do teatro molecular ou a astrofísica hiperespecialização do saber médico do texto celestial, ou ainda a química transformou o doente numa quadrícula da biografía das reações químicas. Cada sem sentido quando, de fato, nunca uma destas analogias desvela uma ponta estamos doentes senão em geral; a do mundo. A nudez total, que será farmácia descobre o lado destrutivo dos sempre a de quem se vê no que vê, medicamentos, tanto mais destrutivos resultará das configurações de analogias quanto mais específicos, e procura uma que soubermos imaginar: afinal, o jogo nova lógica de combinação química pressupõe um palco, o palco exercita-se atenta aos equilibrios orgânicos; o direito, com um texto e o texto é a autobiografia que reduziu a complexidade da vida do seu autor. Jogo, palco, texto ou jurídica à secura da dogmática, biografia, o mundo é comunicação e redescobre o mundo filosófico e por isso a lógica existencial da ciência sociológico em busca da prudência pós-moderna é promover a "situação perdida; a economia, que legitimara o comunicativa" tal como Habermas a reducionismo quantitativo e tecnocrático concebe. Nessa situação confluem com o pretendido êxito das previsões sentidos e constelações de sentido econômicas, é forçada a reconhecer, vindos, tal qual rios, das nascentes das perante a pobreza dos resultados, que a nossas práticas locais e arrastando qualidade humana e sociológica dos consigo as areias dos nossos percursos agentes e processos econômicos entra moleculares, individuais, comunitários, pela janela depois de ter sido expulsa pela sociais e planetários. Não se trata de porta; para grangear o reconhecimento uma amálgama de sentido (que não dos utentes (que, públicos ou privados, seria sentido mas ruído), mas antes de institucionais ou individuais, sempre interações e de intertextualidades estiveram numa posição de poder em organizadas em torno de projetos relação aos analisados) a psicologia locais de conhecimento indiviso. Daqui aplicada privilegiou instrumentos decorre a segunda característica do expeditos e facilmente manuseáveis, conhecimento científico pós-moderno. como sejam os testes, que reduziram a riqueza da personalidade às exigências Todo o conhecimento é local e total funcionais de instituições unidimensionais. Na ciência moderna o conhecimento Os males desta parcelização do avança pela especialização. O conhecimento e do reducionismo conhecimento é tanto mais rigoroso arbitrário que transporta consigo são quanto mais restrito é o objeto sobre hoje reconhecidos, mas as medidas que incide. Nisso reside, aliás, o que hoje propostas para os corrigir acabam em se reconhece ser o dilema básico da geral por os reproduzir sob outra forma. ciência moderna: o seu rigor aumenta Criam-se novas disciplinas para resolver na proporção direta da arbitrariedade os problemas produzidos pelas antigas e com que espartilha o real. Sendo um por essa via reproduz-se o mesmo modelo conhecimento disciplinar, tende a ser um de cientificidade. Apenas para dar um conhecimento disciplinado, isto é, segrega exemplo, o médico generalista, cuja uma organização do saber orientada para ressurreição visou compensar a policiar as fronteiras entre as disciplinas hiperespecialização médica, corre o risco e reprimir os que as quiserem transpor. de ser convertido num especialista ao É hoje reconhecido que a excessiva lado dos demais. Este efeito perverso parcelização e disciplinarização do saber revela que não há solução para este científico faz do cientista um ignorante problema no seio do paradigma 56 C. Geertz, Local Knowledge. Further Essays in Interpretative Anthropology. Nova Iorque, Basic Books, 1983, p. 19 e segs.