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Faculdade de Educação
                                Departamento de Ensino e Currículo

                                ESTÁGIO DE DOCÊNCIA EM HISTÓRIA III
                                EDUCAÇÃO PATRIMONIAL (EDU02X12)

                                Prof.ª Carmem Zeli de Vargas Gil




OS MITOS
EO
ENSINO DE
HISTÓRIA
UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA
NO ARQUIVO HISTÓRICO
MOYSÉS VELLINHO


Helio Antonio Rossi de Castro
turno: noite
2010



                                                                      1
INTRODUÇÃO
       Esse artigo pretende relacionar a experiência prática observada na Oficina Seres da
Natureza do Arquivo Histórico Moysés Vellinho com a base teórica de Giambatista Vico e
Lev Vygotsky. Outrossim, a análise da questão especificamente educacional foi desenvolvida
de acordo com as idéias de Evelina Grunberg, Heloísa Belloto e Maria de Lourdes Horta. Na
primeira parte do artigo faz-se uma apresentação da Oficina e dos principais elementos
teóricos. Na segunda parte, procura-se estabelecer as relações pertinentes entre os mitos
vivenciados pelos alunos, a história, a sociabilidade, a educação, o bem cultural e o ensino de
história. O trajeto percorrido partiu da observação do concreto, passou pela interpretação
teórica e retornou a aspectos práticos relacionados ao conhecimento de história.


APRESENTAÇÃO


OFICINA SERES DA NATUREZA
       A oficina seres da natureza faz parte de um conjunto de experiências dedicadas à
conscientização de alunos para a valorização dos bens naturais e culturais. Foi proposta para
alunos do ensino fundamental e através dela tais alunos entram em contato com o universo
natural, mitológico e histórico de modo integrado e integrador.




                                                      fonte: www.ahpoa.blogspot.com/



       A princípio as crianças são recebidas no arquivo por um monitor e apresentadas a uma
personagem denominada Rochinha. Ela está diante de uma grande pedra caracterizada com
telhado e janela – sua casa. Fala do planeta Terra, de suas características geológicas, das



                                                                                             2
rochas... Passeando com as crianças pela área aberta do arquivo, identifica e mostra a
importância das árvores. Apresenta os prédios do arquivo e salienta sua importância histórica.




                                           fonte: www.ahpoa.blogspot.com/




                                                                   fonte: www.ahpoa.blogspot.com/




       Num segundo momento os alunos são conduzidos ao arquivo climatizado. Ali são
recebidos por um segundo monitor que lhes apresenta o local como um “cofre do tesouro”.
Pede que fechem os olhos. Chama a atenção para a relevância dos documentos que estão
guardados naquele local, dirigindo a atenção para a história de Porto Alegre. Estabelece-se um
diálogo com as crianças em que é enfatizada a preservação do material relativo a Porto Alegre
desde quando era uma pequena vila: a vida da cidade, suas primeiras casas e ruas, os
trabalhadores, a iluminação, o transporte, os sistemas de água e esgoto, etc.

                                                                                                    3
fonte: www.ahpoa.blogspot.com/




                                                       fonte: www.ahpoa.blogspot.com/



       Após a conversa no arquivo climatizado, as crianças são conduzidas para a área
externa, a que Rochinha chama “jardim encantado”. Ali há gorros vermelhos e cachimbos que
as crianças devem procurar. Apenas um deles é o verdadeiro gorro do Saci-Pererê e nele está
seu poder.
       Em seguida, o Saci-Pererê aparece na porta do porão do Centro Cultural. As crianças
vão até ele e entram no porão. Entregam os gorros e os cachimbos para o Saci.
       Em um terceiro momento Saci-Pererê conversa com as crianças sentadas diante dele.
Fala de uma noite escura, que anunciava tormenta: Ouviram-se passos de um homem a pé.
Saci fez um pé de vento e assustou o homem. Diz que os humanos tinham medo dele devido
às suas brincadeiras - apagar o fogo dos fogões, assustar o gado, etc., mas que no fundo o que

                                                                                             4
ele quer é se divertir. Ás vezes, entretanto, ficava zangado. Aquele homem tinha pegado o
gorro do Saci e quis fazer um trato com o ele: devolveria o gorro e daria fumo de cachimbo
para ele tirá-lo da mata. Saci aceitou e ainda lhe deu uma moeda de ouro, bem no momento
que “o relâmpago clareou tudo e a chuva despencou com força”.
       Ouvem-se pancadas. Saci diz que é a Curupira batendo nos troncos das árvores.
Aparece a Curupira de trás de uma tapadeira. Saci diz que ela gosta da floresta e dos animais.
Fala que antigamente os humanos só caçavam para comer e cortavam as árvores só para fazer
canoas e casas e que agora caçam para vender a pele dos animais e mandá-los para o cativeiro
e cortam as árvores muito mais do que precisam. Isso deixa o Curupira furioso. Saci conta
para as crianças que o Curupira tem os pés virados para trás para enganar os caçadores. Suas
orelhas são pontudas como as de um gnomo, mas não é um gnomo. Ele tem medo de
tormentas e por isso bate nos troncos das árvores para ver se estão resistentes.
       O Saci diz que está indo embora quando surge o rabo de uma cobra por cima da
tapadeira. É a Boitatá. Saci conta sua história. Depois de uma “chuvarada tremenda” ficou
“tudo escuro e molhado”. A água entrou em tudo, inclusive na toca de uma cobra grande
chamada Boiguaçu (cobra grande). Ela estava com fome e comia os olhos dos outros bichos.
Esses olhos ainda guardavam a última luz do último sol. O corpo da Boiguaçu foi ficando
transparente e ficou igual a um clarão. Passou a ser chamada de Boitatá (cobra de fogo).
Boitatá morreu no dia que o sol voltou e a luz que estava dentro dela se espalhou. No verão a
luz se “enrosca como uma bola de fogo e sai correndo pelos campos”. Ela desaparece na terra
e reaparece. É considerada protetora dos campos. Não gosta de quem os incendeia.




                                            fonte: www.ahpoa.blogspot.com/




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Rochinha encerra o encontro com os alunos incitando-os a serem “guardiões do
planeta, amigos das artes e protetores do patrimônio”, promovendo-os a defensores de Gaia. 1


PENSAMENTO DE GIAMBATISTA VICO
          Segundo Giambatista Vico, filósofo napolitano da primeira metade de século XVIII,
as criações humanas – leis, instituições, religiões, rituais, obras de arte, linguagem, canções,
normas de conduta, etc. – não teriam sido criadas para agradar, nem como armas de
manipulação, nem para estabilizar a sociedade, mas como formas naturais de auto-expressão –
comunicação. As fábulas, os mitos, as cerimônias, os monumentos não são fantasias absurdas
ou invenções deliberadas para iludir as massas. Eram formas de transmitir uma visão coerente
do mundo. Para compreender aqueles homens é preciso penetrar em suas mentes, entender
seus métodos de expressão (mitos, rituais, cantos, danças, linguagens, religião, casamentos,
ritos funerários, etc.) 2.
          No contexto de uma modernidade tardia, relacionada a princípios cartesianos
racionalistas do século XVII e iluministas do século XVIII havia uma perda de energia. Do
ponto de vista histórico procurava-se a memória dos grandes feitos do passado. O mitológico,
porém, era central na narrativa de Vico como forma de alimentar a memória. A própria
narrativa histórica deveria assumir a função de costurar um novo todo3.
          Vico rememorou o homem criativo, artesão da palavra, à medida que resgatou o
significado do mito nas idades primitivas. A palavra modelou e humanizou a natureza. Isso
agora desaparecia, na época em que o homem declarava sua superioridade em relação à
natureza. Na modernidade a arte era técnica, mas não poética, não havia mais oposição entre
técnica e ciência.
          Descartes associara o erro dos entendimentos à memória. Todas as disciplinas
baseadas na memória seriam falsas. Vico quis reabilitar a memória, o que representou o
primeiro passo para a criação da ciência social. Era, no entanto, partidário da ciência
moderna. Foi adversário do formalismo cartesiano, porém próximo da mentalidade científica
de Galileu.
          Vico percebeu que a mentalidade primitiva seria entendida apenas se o investigador
abrisse mão da sua condição de civilizado para penetrar na mente dos primeiros homens. Essa
1
 Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal da Cultura, Coordenação da Memória Cultural. Programa de Educação
Patrimonial do Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Manual - Projeto Sensibilização para a vida no âmbito humano,
cultural e ambiental - Seres da Natureza - Literatura e os Arquétipos Brasileiros - texto não editado.

2
 Berlin, Isaiah. Vico e Herder. Brasília – Editora UNB, 1982. pg. 5 a 10.
3
 Diehl, Astor Antônio. “Vico e a História Cultural: uma tentativa de atualização”. In: Lopes, Marcos Antônio (org.) Grandes Nomes da
Cultura Intelectual. São Paulo - Editora Contexto, 2003, pg. 295 e ss.



                                                                                                                                       6
mente aturdida e ingênua criara deuses na Terra. Nesse sentido, foram criadas fábulas
adequadas ao entendimento popular. A poesia primitiva era o adorno do mito e foi produzida
quando a memória era confusa e a fala pobre. A linguagem não era de sons articulados e não
havia sinais gráficos. Os monumentos eram considerados religiosidade popular ou objetos
culturais. Vico os considerava um esforço vital para a geração e fixação da comunidade
humana no mundo. A interpretação do mito permitia compreender a razão bárbara4.
            Ele afirmou que a Ilíada não fora escrita por Homero, mas era o trabalho de um povo.
As figuras divinas e heróicas da história primitiva eram personificações de idéias. No século
XIX, Michelet – historiador francês – traduziu e incorporou a obra de Vico. Os traços que
tinham em comum eram aqueles usados para definir a concepção cultural denominada
romantismo: devir como processo, valorização das tradições populares e das épocas
primitivas, interesse pela poesia heróica e pela mitologia e refinamento da crítica filológica.
            Vico redefiniu a natureza humana e introduziu a idéia de processo histórico. A
natureza deveria ter um sentido anti-racionalista. A razão não deveria ser a base para a justiça.
A natureza das coisas correspondia a seu nascimento em certos tempos e de certos modos. A
definição da essência das coisas foi deslocada para o modo como elas vinham à existência.
Isso tudo historicizou a natureza humana.
            O homem nasceu através do ato de criação das instituições elementares. A natureza
humana é social e poética. Há um primado da imaginação sobre o da razão, mas depois da
idade da imaginação costuma surgir a idade da razão. Pela primeira vez na história das idéias
foi dito que a natureza humana era mutável5.
            Vico disse que era a fantasia que gerava nosso sentido do passado. A língua e a
mitologia eram as chaves para a interpretação das sociedades6.


PENSAMENTO DE LEV VYGOTSKY
            A base dos estudos do psicólogo russo Vygotsky – primeira metade do século XX –
pressupõe o homem como um ser que através do pensamento e da linguagem deixa de ser
biológico e passa a ser sócio-histórico. Portanto, sua teoria sobre o desenvolvimento humano
é histórico-social. O conhecimento advém da interação do sujeito com o meio.
4
 Guido, Humberto. “O tempo e a História como elaborações da memória: G. Vico e a história das idéias humanas”. In: Guido, H. e Sahd,
L.F.N. de A. e S. (org.). Tempo e História no Pensamento Ocidental. Ijuí – Unijuí, 2006, pg. 37 e ss.

5
    Lacerda, Sonia. “O Vero e o Certo: a Providência na História segundo Giambatista Vico”. In: Lopes, Marcos Antônio (org.) Grandes
Nomes da Cultura Intelectual. São Paulo - Editora Contexto, 2003, pg. 270 e ss.

6
 Saliba, Elias Thomé. “Vico: Clássico das Antinomias Interpretativas da História”. In: Lopes, Marcos Antônio (org.) Grandes Nomes da
Cultura Intelectual. São Paulo - Editora Contexto, 2003, pg. 285 e ss.



                                                                                                                                  7
Sua idéia-chave é a mediação. O acesso do sujeito aos objetos é mediado por recortes
no real, isto é, através de relações (mediações) com outros sujeitos. O uso do brinquedo
representa um estágio intermediário entre as restrições situacionais da primeira infância e o
pensamento adulto. Há dois níveis de desenvolvimento: um potencial – aquilo que a criança é
capaz de aprender com a ajuda de outra pessoa e um real – o que ela já é capaz de fazer por si
própria. A distância entre o desenvolvimento potencial e o real é denominada zona de
desenvolvimento proximal. Daí a importância das interações sociais, ou seja, a aprendizagem
interage com o desenvolvimento.

          O desenvolvimento cognitivo resulta da internalização da interação social, isto é, de
fora para dentro, primeiro no nível social e depois no individual.

          Em termos pedagógicos, o sócio-construtivismo de Vygotsky corresponde a uma
escola que desafia, estimula o aluno, o qual aprende com os outros – há uma interação com o
mundo. Nesse sentido, a vivência em sociedade é essencial para a transformação do ser
biológico no ser humano. O professor é um condutor do processo de aprendizagem – um
mediador, aquele que estimula a passagem de um nível de desenvolvimento potencial para um
nível real.

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

          De acordo com Evelina Grunberg, educação patrimonial é “o ensino centrado nos bens
culturais, como a metodologia que toma estes bens como ponto de partida para desenvolver a
tarefa pedagógica; que considera os bens culturais como fonte primária de ensino”. 7

          Bem cultural, segundo Garcia Belsunce (citado por Belloto8), é “o conjunto de
processos criadores e dos produtos criados que evidenciam as características distintas de
pertencerem a tal sociedade e permitir que seja conhecida e reconhecida através dele”. Há
muitos autores – embora não a maioria - que consideram três categorias de bens culturais: 1)
elementos da natureza (recursos naturais e paisagens); 2) bens móveis (livros, documentos,
criações artísticas, etc.) e 3) bens imóveis (monumentos, esculturas, sítios arqueológicos,
etc.).

          Por outro lado, Horta9 define patrimônio cultural como um conjunto de bens e valores,
tangíveis e intangíveis, expressos em palavras, imagens, objetos, monumentos e sítios, ritos e

7
  Grunberg; Evelina. “Educação Patrimonial: utilização dos bens culturais como recursos educacionais”. In: Museologia social, Porto Alegre,
UE – Secretaria Municipal de Cultura. 2002, pg. 101.
8
  Belloto, Heloísa Liberalli; “Patrimônio Cultural e ação educativa em artigos”; In: Ciências & Letras Revista da Faculdade Porto-Alegrense
de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n.27, jan/jun, 2000, pg. 154.
9
  Horta, Maria de Lourdes Parreiras; “Fundamentos de Educação patrimonial”; In: Ciências & Letras Revista da Faculdade Porto-Alegrense
de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n.27, jan/jun, 2000, pg. 29.

                                                                                                                                         8
celebrações, hábitos e atitudes, cuja manifestação é percebida por uma coletividade como
‘marca’ que a identifica, que adquire um sentido ‘comum’ e compartilhado por toda uma
‘comunidade’”.

          Em que pese tais conceitos serem aparentemente superponíveis, a idéia de bem
cultural é mais ampla do que a de patrimônio. Esse último pressupõe a idéia de
reconhecimento oficial através de tombamento. Em contrapartida, nem todo documento pode
ser considerado bem cultural (apenas quando armazenado em instituições) e nem todo bem
material é documento (apenas quando registrado em um suporte).

          Ademais, o patrimônio/bem cultural pode ser material ou imaterial. Vinham sendo
tradicionalmente valorizados os bens materiais, principalmente aqueles que diziam respeito à
formação e legitimação de suas respectivas nações. Os bens imateriais, isto é, conhecimentos
e modos de vida tradicionais, lendas, etc. tiveram seu reconhecimento no Brasil em 1989
                                                                                                                             10
através da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular                                                   . Tal
ampliação do conceito de patrimônio foi implementada através do Registro de Bens Culturais
                                                                    11
de Natureza Imaterial (Decreto n.3552/200)                            . Nele há espaço para a documentação e
preservação de saberes, de formas de expressão, de celebrações e de lugares.

          A educação escolar difere da educação patrimonial, especialmente no que tange ao
ensino de História. Na última o ensino é centrado no objeto cultural – na evidência material
ou imaterial da cultura. O objeto e o sujeito interagem e dessa interação a criança cresce. O
sujeito é observador e, simultaneamente, criador do objeto. Busca-se a lógica inconsciente da
cultura, isto é, a realidade.

          Do ponto de vista do aluno (a) do ensino fundamental, os interesses com questões do
tempo, da memória e da história são restritos. A idéia de tempo é limitada. O tempo é
dicotômico: muito distante ou muito próximo. A memória é mais pessoal do que coletiva. A
história de sua vida e de sua família têm mais significado que a história social. A apreensão
das realidades do presente e do passado se daria, preferencialmente, através de experiências,
de vivências e de práticas.

          A educação formal (escolar) parte de idéias e chega ao objeto, enquanto a não-formal
(patrimonial), pelo contrário, usa o objeto (material ou imaterial) como idéia. A primeira parte



10
   Sant’Anna, Márcia; “A face Imaterial do Patrimônio Cultural:os novos instrumentos de reconhecimento e valorização”; In: Memória e
Patrimônio: Ensaios Contemporâneos; Rio de Janeiro, Ed. DP&A; 2003, pg.53.
11
   Funari, Pedro Paulo & Pelegrini, Sandra C.A.; “Políticas Patrimoniais no Brasil: impasses e realizações”; In: Patrimônio Histórico e
Cultural; Rio de Janeiro; Zahar Ed.; 2006; pg. 54.

                                                                                                                                     9
do efeito e se aproxima das causas (método explicativo dedutivo); a última inicia com a causa
e alcança o efeito (método causal indutivo) 12. Na verdade uma complementa a outra.

             Maria de Lourdes Horta apresenta uma tipologia do ensino de História baseada na
cultura material e criada pelo historiador cultural americano Thomas Schlereth: 1) a História
do Professor seria aquela em que os objetos constituiriam ilustrações para a história literária;
2) a História do Profissional corresponderia aquela em que as interpretações prévias –
hipóteses – do historiador seriam apenas testadas através dos objetos e 3) a História do Poeta
emergiria da experiência interativa com os objetos. O passado seria sentido e conhecido, isto
é, teria um efeito sobre a mente, seria transformado em idéias do sujeito-aluno. Tais idéias
seriam criadas por ele.

             Além dos três tipos de história citados acima, a autora acrescenta um quarto: a história
da criança. Seria a história devolvida pelo aluno após a experiência educativa, ou seja, seriam
os desenhos, os escritos, os relatos e os comentários resultantes da vivência.

COMENTÁRIO

OS MITOS

             A OFICINA SERES DA NATUREZA oportuniza aos alunos do ensino fundamental
uma experiência no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho em três dimensões
diferentes e complementares da realidade: o contato com a natureza – rochas e árvores; o
contato com seres mitológicos – Saci-Pererê, Curupira e Boitatá e o contato com um arquivo
climatizado repleto de documentos históricos. A apresentação integrada dessas dimensões da
realidade em um mesmo momento permite que os alunos sintam que elas fazem parte de um
mesmo conjunto. A mensagem subjacente é que tudo é importante e tudo tem a mesma
origem, ou seja, a vida: a vida do planeta, a vida das árvores, a vida dos seres mitológicos
(que não são menos vivos por serem mitológicos), a vida dos animais e dos vegetais, a vida
construída pelos homens, a vida da cidade, a vida dos homens...a vida das crianças.

             A experiência inicia pelo planeta Terra. A rocha simboliza o suporte sobre o qual se
vive. O tempo de sua existência mostra sua importância e dá uma noção do próprio tempo. A
apresentação das árvores faz a ligação da Terra com seus produtos, os seres vivos. As noções
ecológicas surgem espontaneamente. Os prédios são mostrados dentro desse contexto de
construção. A natureza é antiga e dela surgem objetos importantes para nossa vida; o homem
é antigo – tem um passado – e também constrói. Suas construções devem ser preservadas
como aquelas da natureza. Tudo deve ser cuidado.
12
     Horta, M.L.P.; Seminário de Petrópolis; Museu Imperial de Petrópolis – não publicado.

                                                                                                   10
Quando as crianças adentram ao acervo passa-se à História da cidade – da sua cidade.
O ambiente é climatizado. A temperatura e o odor dos documentos (papéis velhos)
impressionam. Os alunos estão dentro do “cofre do tesouro”. Fecham os olhos, respiram
fundo. Pede-se que voltem no tempo. O lugar favorece para que realmente voltem no tempo –
no tempo que cada um individualmente tem capacidade de voltar. Perguntam. Imaginam.
Produzem imagens em suas cabeças. Criam. Exercitam suas primeiras idéias de história, de
uma história passada, mas também presente. Estão sentindo, olhando, cheirando o passado. A
cidade de Porto Alegre é visitada. Alguns aspectos são apresentados (ruas, casas, iluminação,
água, esgoto, etc.), mas a imaginação é dos alunos.

          A experiência com os seres arquetípicos também é uma vivência histórica. A história é
feita de estórias. O contato com o Saci-Pererê é mágico. O Saci é mágico, porém real. A
magia é real. As crianças vibram, se emocionam, ouvem atentamente. A figura do Saci foi
criada no século XVIII. Seu nome é indígena, mas começou como uma estória contada por
                                                                                  13
amas-secas e caboclos-velhos para assustar as crianças com suas travessuras         . O Saci é
poderoso – aparece e desaparece e produz redemoinhos de vento. Entretanto também é uma
criança: brinca e faz travessuras. Intimamente é um ser bom. Tem um gorro vermelho que é a
fonte do seu poder.

          Na verdade, o grande poder do Saci está em sua capacidade de se identificar com as
crianças e com a liberdade. Mesmo quando era usado para assustá-las essa característica
estava implícita nas atitudes que as crianças percebiam nele e nelas. O aparecer e desaparecer
lembra a brincadeira do esconde-esconde, o poder do vento sugere energia vital – o sopro da
vida, a alma. O gorro vermelho foi usado por seus ancestrais e contemporâneos europeus: na
Antiguidade, primeiramente pelos habitantes da Frigia (atual Turquia) e depois pelos escravos
romanos libertos (por isso sua relação com a liberdade); na Idade Média, no norte de Portugal,
foi componente da indumentária dos trasgos (também seres rebeldes e de baixa estatura) e no
mesmo século XVIII o barrete frígio foi usado pelos revolucionários franceses como símbolo
da liberdade. Na mesma época foi incorporado ao Saci-Pererê representando a liberdade e a
infância.

          O Curupira (corpo de menino) é outra figura mitológica indígena – a mais antiga. É o
guardião da floresta14. É o protetor das matas, das árvores e dos animais. Através dele é

13
 http://www.arteducacao.pro.br/Cultura/lendas.htm


14
 http://sitiocurupira.wordpress.com/a-lenda-do-curupira/



                                                                                             11
possível observar o inconsciente coletivo da população que o criou e daquela para quem sua
história faz sentido. Tem os pés virados – indício de que pode enganar os homens. Tem medo
das tempestades, por isso ele bate nos troncos das árvores para ver se estão fortes para
enfrentá-las. Sua figura representa o ideal ecológico. Sua esperteza faz com que seja
assimilado às crianças. Suas artimanhas ajudam-nas a superarem suas limitações diante do
desconhecido, isto é, de suas tempestades existenciais.
             O Boitatá é um mito indígena gaúcho – originário do século XVI. A proximidade
geográfica traz um significado especial para as crianças com as quais se envolve o mito. A
tempestade – agora como dilúvio – está outra vez presente nessa estória. Com efeito, o mito
do dilúvio aparece entre muitos povos (israelitas, indianos, babilônicos, havaianos, astecas,
gregos, etc.)·. Trata-se de fato de uma preocupação constante dos homens primitivos, que
também é compartilhada pelas crianças. A estória ajuda as crianças a elaborarem as
dicotomias sol-tempestade, claro-escuro, inverno-verão, mas também a relação indivíduo-
grupo (Quando a cobra engole os olhos dos outros animais transforma-se em Boitatá, mas
quando volta o sol sua luz se espalha e ela morre. A voracidade não é compensadora.). A
estória permite, a exemplo da do Saci, vivenciar o aparecer-desaparecer-reaparecer. Boitatá
surge novamente nos verões protegendo o campo das queimadas. Fica implícita a idéia
circular do tempo e a renovação da natureza, as quais certamente estimulam os alunos a
valorizarem o aspecto cíclico da vida.


OS MITOS E A HISTÓRIA
             Desde a Revolução Científica do século XVII, representada pelas figuras-chave de
Descartes e Newton, a visão de mundo ocidental passou a ser caracterizada
preponderantemente pelo culto à razão. O mundo foi visto como um relógio – mecânico. O
homem passou a apoderar-se cada vez mais da natureza. Essa deveria servi-lo. Nesse
contexto, o valorizado era o científico, o técnico, o que poderia fazer com que mais fosse
tirado da natureza. Tal paradigma cartesiano evoluiu no século XVIII para as idéias
iluministas de progresso e da superioridade da civilização ocidental em relação às demais e
prevalece até nossos dias.
             Entretanto já no século XVIII havia quem questionasse a razão cartesiana. Um desses
pensadores foi Giambatista Vico. Suas idéias sobre a história fizeram com que fosse
considerado o ”pai da consciência histórica moderna” 15.



15
     Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo – Perspectiva, 2007, pg. 88 e 89.

                                                                                               12
Vico percebeu que as fábulas e os mitos eram as maneiras que os homens primitivos
tinham de criar uma visão organizada do mundo que os cercava. E mais: seria apenas através
do entendimento desses mitos que poderíamos chegar a compreender esses homens. Tal
compreensão passava pelo entendimento de suas culturas, na mais ampla acepção da palavra.
Dependia do conhecimento de seus mitos, rituais, cantos, danças, linguagens, religião,
casamentos, sepultamentos, etc.
       Ele comparava o homem primitivo às crianças. Chamava a atenção para o fato de que
em inúmeras culturas manifestava-se explicitamente o medo e o respeito à natureza. Era
comum que os primeiros deuses estivessem relacionados à tempestade. Havia inúmeros
“Júpiteres”. O deus do raio era o pai dos deuses em várias culturas. O mito fora criado para
explicar a natureza, tanto planetária como humana – a tempestade e o medo da tempestade.
Tais aspectos são reincidentes ao longo da história e fazem parte da necessidade de organizar
o mundo. É precisamente através deles que é possível entender a realidade.
       Eram a memória, a poesia, o mito, a linguagem e a história os pontos essenciais na
teoria de Vico. A interpretação dos mitos levaria ao conhecimento histórico verdadeiro. Era
assim que faziam os homens primitivos. É assim que fazem as crianças. É a partir daí que
devem fazer os historiadores. A história deve ser processual e a natureza humana,
historicizada.


A HISTÓRIA, O SOCIAL E A EDUCAÇÃO
       Vygostsky, a exemplo de Vico, também desnaturaliza o comportamento humano. Em
suas pesquisas sobre o desenvolvimento infantil diverge de Piaget em muitos aspectos,
principalmente quando minimiza a dimensão biológica de sua teoria. Para Vygotsky o
desenvolvimento psicológico depende da interação da criança com o meio que a cerca.
Depende de como é estimulada, de como é acompanhada. O mais importante é o meio social,
representado pelos outros: pais, irmãos, professores, colegas, amigos, etc. Sua teoria é sócio-
histórica. Em determinada época do desenvolvimento serão os brinquedos os instrumentos da
educação. Serão os caminhos pelos quais a criança vai se aproximar do conhecimento.
       As oficinas desenvolvidas no arquivo histórico objetivam criar instrumentos de
contato entre o sujeito (criança) e o objeto (conhecimento). A oficina Seres da Natureza,
trabalhando mitos através de experiências lúdicas, busca a memória, o mito e a história nessas
crianças. Caso num primeiro momento muitas delas não consigam entender completamente os
significados das estórias, isso não tem a mínima importância. Nem mesmo os adultos os



                                                                                             13
entendem de modo absoluto. O importante é a experiência, a vivência, o compartilhar com os
outros e com o auxílio dos mesmos, momentos de memória coletiva, de novos significados.
       Vygotsky define dois tipos de desenvolvimento: um potencial e um real. A transição
entre ambos é denominada zona de desenvolvimento proximal. Nela a criança consegue saber,
fazer e compreender coisas, porém com ajuda dos outros, isto é, de seu meio. É aqui que está
a maior importância do processo educativo.
       Se for possível trabalhar com as crianças as estórias míticas, porém com significado
verdadeiro – o que, para elas, nada mais são do que a própria história –, e se esse trabalho
puder ser realizado com um grupo interativo, certamente estarão aprendendo e sendo
estimuladas a aprender mais, certamente a própria história dos homens.


A EDUCAÇÃO E O BEM CULTURAL
       Um arquivo público é uma instituição onde há bens culturais. Ali há documentos que,
exatamente por estarem ali, são bens culturais. O arquivo é responsável por seu
armazenamento e conservação. Entretanto, se esses bens forem interpretados em um sentido
amplo tudo o que existe no planeta pode ser considerado um bem cultural. Logo, se um
arquivo público assume o conceito de bem cultural nesse sentido ampliado, valorizando os
bens naturais, os bens imateriais e os bens imóveis, a eles deverá dedicar-se em suas
atividades.
       É isso que o faz o arquivo histórico Moysés Vellinho quando, numa mesma oficina
destinada a estudantes do ensino fundamental, contempla diversos tipos de bens culturais.
       A mensagem que se procura passar é que todos eles são importantes. Mais do que isso:
todos devem ser pensados juntos, pois estão interligados: o planeta, as árvores, os mitos, os
documentos...
       Quando o processo educativo sai do ambiente formal da escola e entra nas instituições,
a simples mudança de ambiente já traz novos significados. A experiência é nova, a memória
dela é facilitada. A vivência compartilhada em grupo permite que uns ajudem aos outros no
processo de aprendizagem.
       A apresentação dialogada com os seres arquetípicos é uma oportunidade de as crianças
ouvirem estórias, o que hoje é relativamente raro. O ouvir e o assistir uma dramatização é um
processo peculiar. Por um lado difere da aula expositiva na escola, onde os alunos
permanecem “presos” a suas carteiras escolares, com delimitação de seus espaços. A aula
expositiva pressupõe passividade. Por outro lado, também é diferente de outros processos de



                                                                                            14
conhecimento relacionados à mídia, seja a televisão, seja a internet. No teatro a vivência é
mais real, a relação é mais humana, mesmo em se tratando de seres imaginários.


O BEM CULTURAL E O ENSINO DE HISTÓRIA
             Do ponto de vista do ensino de história e sua relação com os bens culturais é preciso
esclarecer que há vários tipos de história. Já houve uma história providencialista (tudo era
causado por Deus), já houve uma história considerada mestre da vida, já houve e ainda há
uma história exclusivamente política (datas, reis, presidentes e mais datas). Essa história ainda
é muito ensinada nas escolas. Desde o início do século XX ocorreu um diversificação no
saber histórico. Passou-se a pensar no social, no cultural, nas mentalidades...
             É dentro desse contexto ampliado de história que se insere o ensino de história
possível em uma instituição que preserva bens culturais. Em particular a proposta
implementada pelo Arquivo Histórico Moysés Vellinho pode ser e é adequada a uma visão
holística não apenas da realidade, mas também da própria história, como parte dessa.
             No que diz respeito à oficina seres da natureza percebe-se que o contato das crianças
com as rochas e as árvores permite que se situem e que valorizem a natureza como habitação
do homem (a personagem Rochinha vive numa rocha).
             A exposição dialogada no acervo climatizado possibilita que usem o mesmo tipo de
raciocínio que mais tarde utilizarão nas aulas de história: Quando? Quem trabalhava? Como
era? Como faziam? Como mudou? As sensações experimentadas (frio, cheiro de papel velho,
prateleiras de documentos até o teto, etc.) fazem com que sejam envolvidos – literalmente –
pelo clima do local. Utilizando a chave proposta por Thomas Schlereth 16, é o que podemos
chamar de História do Poeta, pois a história é construída a partir dos objetos e do ambiente. O
processo educativo adviria de um conhecer e de um sentir o passado.
              A experiência com os seres arquetípicos também é um exercício de ensino de história.
O interesse despertado nos alunos da escola fundamental em ouvir e participar de estórias
como essas, por seu imenso significado simbólico, servirão de base para futuros interesses em
estudar história. Na verdade, naquele momento eles já estão de fato estudando história.
Certamente não a história tradicional, mas uma história dos mitos, da cultura, das
mentalidades... Com certeza, mais tarde, tal aprendizado os fará buscar as várias histórias
dentro da História, bem como as diversas dimensões da realidade,
             O ciclo pedagógico se fecha com o material produzido pelos alunos após a experiência
no arquivo. Isso pode ser desenvolvido no arquivo, em aula ou em casa. Não há nada mais

16
     Op. Cit. Maria de Lourdes Parreiras Horta – Seminário de Petrópolis.

                                                                                                15
importante do que a reflexão sobre o vivido (em qualquer idade) e a execução de trabalhos
livres (desenhos, escritos, encenações, etc.) acerca da experiência. Trata-se de uma
solidificação de conhecimentos e uma base para a memória, que pode se transformar em
história.




CONCLUSÃO

        Os mitos devem ser aproveitados no ensino de história. Eles são significativos para as
crianças e, ao invés de criar ilusões, representam a base sobre a qual seus conhecimentos
serão desenvolvidos. A apresentação em um mesmo momento pedagógico de mitos, da
natureza e de documentos históricos constitui uma estratégia perfeitamente válida para que
tais dimensões da realidade sejam percebidas como algo único e integrado.




                                                                                           16

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  • 1. Faculdade de Educação Departamento de Ensino e Currículo ESTÁGIO DE DOCÊNCIA EM HISTÓRIA III EDUCAÇÃO PATRIMONIAL (EDU02X12) Prof.ª Carmem Zeli de Vargas Gil OS MITOS EO ENSINO DE HISTÓRIA UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA NO ARQUIVO HISTÓRICO MOYSÉS VELLINHO Helio Antonio Rossi de Castro turno: noite 2010 1
  • 2. INTRODUÇÃO Esse artigo pretende relacionar a experiência prática observada na Oficina Seres da Natureza do Arquivo Histórico Moysés Vellinho com a base teórica de Giambatista Vico e Lev Vygotsky. Outrossim, a análise da questão especificamente educacional foi desenvolvida de acordo com as idéias de Evelina Grunberg, Heloísa Belloto e Maria de Lourdes Horta. Na primeira parte do artigo faz-se uma apresentação da Oficina e dos principais elementos teóricos. Na segunda parte, procura-se estabelecer as relações pertinentes entre os mitos vivenciados pelos alunos, a história, a sociabilidade, a educação, o bem cultural e o ensino de história. O trajeto percorrido partiu da observação do concreto, passou pela interpretação teórica e retornou a aspectos práticos relacionados ao conhecimento de história. APRESENTAÇÃO OFICINA SERES DA NATUREZA A oficina seres da natureza faz parte de um conjunto de experiências dedicadas à conscientização de alunos para a valorização dos bens naturais e culturais. Foi proposta para alunos do ensino fundamental e através dela tais alunos entram em contato com o universo natural, mitológico e histórico de modo integrado e integrador. fonte: www.ahpoa.blogspot.com/ A princípio as crianças são recebidas no arquivo por um monitor e apresentadas a uma personagem denominada Rochinha. Ela está diante de uma grande pedra caracterizada com telhado e janela – sua casa. Fala do planeta Terra, de suas características geológicas, das 2
  • 3. rochas... Passeando com as crianças pela área aberta do arquivo, identifica e mostra a importância das árvores. Apresenta os prédios do arquivo e salienta sua importância histórica. fonte: www.ahpoa.blogspot.com/ fonte: www.ahpoa.blogspot.com/ Num segundo momento os alunos são conduzidos ao arquivo climatizado. Ali são recebidos por um segundo monitor que lhes apresenta o local como um “cofre do tesouro”. Pede que fechem os olhos. Chama a atenção para a relevância dos documentos que estão guardados naquele local, dirigindo a atenção para a história de Porto Alegre. Estabelece-se um diálogo com as crianças em que é enfatizada a preservação do material relativo a Porto Alegre desde quando era uma pequena vila: a vida da cidade, suas primeiras casas e ruas, os trabalhadores, a iluminação, o transporte, os sistemas de água e esgoto, etc. 3
  • 4. fonte: www.ahpoa.blogspot.com/ fonte: www.ahpoa.blogspot.com/ Após a conversa no arquivo climatizado, as crianças são conduzidas para a área externa, a que Rochinha chama “jardim encantado”. Ali há gorros vermelhos e cachimbos que as crianças devem procurar. Apenas um deles é o verdadeiro gorro do Saci-Pererê e nele está seu poder. Em seguida, o Saci-Pererê aparece na porta do porão do Centro Cultural. As crianças vão até ele e entram no porão. Entregam os gorros e os cachimbos para o Saci. Em um terceiro momento Saci-Pererê conversa com as crianças sentadas diante dele. Fala de uma noite escura, que anunciava tormenta: Ouviram-se passos de um homem a pé. Saci fez um pé de vento e assustou o homem. Diz que os humanos tinham medo dele devido às suas brincadeiras - apagar o fogo dos fogões, assustar o gado, etc., mas que no fundo o que 4
  • 5. ele quer é se divertir. Ás vezes, entretanto, ficava zangado. Aquele homem tinha pegado o gorro do Saci e quis fazer um trato com o ele: devolveria o gorro e daria fumo de cachimbo para ele tirá-lo da mata. Saci aceitou e ainda lhe deu uma moeda de ouro, bem no momento que “o relâmpago clareou tudo e a chuva despencou com força”. Ouvem-se pancadas. Saci diz que é a Curupira batendo nos troncos das árvores. Aparece a Curupira de trás de uma tapadeira. Saci diz que ela gosta da floresta e dos animais. Fala que antigamente os humanos só caçavam para comer e cortavam as árvores só para fazer canoas e casas e que agora caçam para vender a pele dos animais e mandá-los para o cativeiro e cortam as árvores muito mais do que precisam. Isso deixa o Curupira furioso. Saci conta para as crianças que o Curupira tem os pés virados para trás para enganar os caçadores. Suas orelhas são pontudas como as de um gnomo, mas não é um gnomo. Ele tem medo de tormentas e por isso bate nos troncos das árvores para ver se estão resistentes. O Saci diz que está indo embora quando surge o rabo de uma cobra por cima da tapadeira. É a Boitatá. Saci conta sua história. Depois de uma “chuvarada tremenda” ficou “tudo escuro e molhado”. A água entrou em tudo, inclusive na toca de uma cobra grande chamada Boiguaçu (cobra grande). Ela estava com fome e comia os olhos dos outros bichos. Esses olhos ainda guardavam a última luz do último sol. O corpo da Boiguaçu foi ficando transparente e ficou igual a um clarão. Passou a ser chamada de Boitatá (cobra de fogo). Boitatá morreu no dia que o sol voltou e a luz que estava dentro dela se espalhou. No verão a luz se “enrosca como uma bola de fogo e sai correndo pelos campos”. Ela desaparece na terra e reaparece. É considerada protetora dos campos. Não gosta de quem os incendeia. fonte: www.ahpoa.blogspot.com/ 5
  • 6. Rochinha encerra o encontro com os alunos incitando-os a serem “guardiões do planeta, amigos das artes e protetores do patrimônio”, promovendo-os a defensores de Gaia. 1 PENSAMENTO DE GIAMBATISTA VICO Segundo Giambatista Vico, filósofo napolitano da primeira metade de século XVIII, as criações humanas – leis, instituições, religiões, rituais, obras de arte, linguagem, canções, normas de conduta, etc. – não teriam sido criadas para agradar, nem como armas de manipulação, nem para estabilizar a sociedade, mas como formas naturais de auto-expressão – comunicação. As fábulas, os mitos, as cerimônias, os monumentos não são fantasias absurdas ou invenções deliberadas para iludir as massas. Eram formas de transmitir uma visão coerente do mundo. Para compreender aqueles homens é preciso penetrar em suas mentes, entender seus métodos de expressão (mitos, rituais, cantos, danças, linguagens, religião, casamentos, ritos funerários, etc.) 2. No contexto de uma modernidade tardia, relacionada a princípios cartesianos racionalistas do século XVII e iluministas do século XVIII havia uma perda de energia. Do ponto de vista histórico procurava-se a memória dos grandes feitos do passado. O mitológico, porém, era central na narrativa de Vico como forma de alimentar a memória. A própria narrativa histórica deveria assumir a função de costurar um novo todo3. Vico rememorou o homem criativo, artesão da palavra, à medida que resgatou o significado do mito nas idades primitivas. A palavra modelou e humanizou a natureza. Isso agora desaparecia, na época em que o homem declarava sua superioridade em relação à natureza. Na modernidade a arte era técnica, mas não poética, não havia mais oposição entre técnica e ciência. Descartes associara o erro dos entendimentos à memória. Todas as disciplinas baseadas na memória seriam falsas. Vico quis reabilitar a memória, o que representou o primeiro passo para a criação da ciência social. Era, no entanto, partidário da ciência moderna. Foi adversário do formalismo cartesiano, porém próximo da mentalidade científica de Galileu. Vico percebeu que a mentalidade primitiva seria entendida apenas se o investigador abrisse mão da sua condição de civilizado para penetrar na mente dos primeiros homens. Essa 1 Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal da Cultura, Coordenação da Memória Cultural. Programa de Educação Patrimonial do Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Manual - Projeto Sensibilização para a vida no âmbito humano, cultural e ambiental - Seres da Natureza - Literatura e os Arquétipos Brasileiros - texto não editado. 2 Berlin, Isaiah. Vico e Herder. Brasília – Editora UNB, 1982. pg. 5 a 10. 3 Diehl, Astor Antônio. “Vico e a História Cultural: uma tentativa de atualização”. In: Lopes, Marcos Antônio (org.) Grandes Nomes da Cultura Intelectual. São Paulo - Editora Contexto, 2003, pg. 295 e ss. 6
  • 7. mente aturdida e ingênua criara deuses na Terra. Nesse sentido, foram criadas fábulas adequadas ao entendimento popular. A poesia primitiva era o adorno do mito e foi produzida quando a memória era confusa e a fala pobre. A linguagem não era de sons articulados e não havia sinais gráficos. Os monumentos eram considerados religiosidade popular ou objetos culturais. Vico os considerava um esforço vital para a geração e fixação da comunidade humana no mundo. A interpretação do mito permitia compreender a razão bárbara4. Ele afirmou que a Ilíada não fora escrita por Homero, mas era o trabalho de um povo. As figuras divinas e heróicas da história primitiva eram personificações de idéias. No século XIX, Michelet – historiador francês – traduziu e incorporou a obra de Vico. Os traços que tinham em comum eram aqueles usados para definir a concepção cultural denominada romantismo: devir como processo, valorização das tradições populares e das épocas primitivas, interesse pela poesia heróica e pela mitologia e refinamento da crítica filológica. Vico redefiniu a natureza humana e introduziu a idéia de processo histórico. A natureza deveria ter um sentido anti-racionalista. A razão não deveria ser a base para a justiça. A natureza das coisas correspondia a seu nascimento em certos tempos e de certos modos. A definição da essência das coisas foi deslocada para o modo como elas vinham à existência. Isso tudo historicizou a natureza humana. O homem nasceu através do ato de criação das instituições elementares. A natureza humana é social e poética. Há um primado da imaginação sobre o da razão, mas depois da idade da imaginação costuma surgir a idade da razão. Pela primeira vez na história das idéias foi dito que a natureza humana era mutável5. Vico disse que era a fantasia que gerava nosso sentido do passado. A língua e a mitologia eram as chaves para a interpretação das sociedades6. PENSAMENTO DE LEV VYGOTSKY A base dos estudos do psicólogo russo Vygotsky – primeira metade do século XX – pressupõe o homem como um ser que através do pensamento e da linguagem deixa de ser biológico e passa a ser sócio-histórico. Portanto, sua teoria sobre o desenvolvimento humano é histórico-social. O conhecimento advém da interação do sujeito com o meio. 4 Guido, Humberto. “O tempo e a História como elaborações da memória: G. Vico e a história das idéias humanas”. In: Guido, H. e Sahd, L.F.N. de A. e S. (org.). Tempo e História no Pensamento Ocidental. Ijuí – Unijuí, 2006, pg. 37 e ss. 5 Lacerda, Sonia. “O Vero e o Certo: a Providência na História segundo Giambatista Vico”. In: Lopes, Marcos Antônio (org.) Grandes Nomes da Cultura Intelectual. São Paulo - Editora Contexto, 2003, pg. 270 e ss. 6 Saliba, Elias Thomé. “Vico: Clássico das Antinomias Interpretativas da História”. In: Lopes, Marcos Antônio (org.) Grandes Nomes da Cultura Intelectual. São Paulo - Editora Contexto, 2003, pg. 285 e ss. 7
  • 8. Sua idéia-chave é a mediação. O acesso do sujeito aos objetos é mediado por recortes no real, isto é, através de relações (mediações) com outros sujeitos. O uso do brinquedo representa um estágio intermediário entre as restrições situacionais da primeira infância e o pensamento adulto. Há dois níveis de desenvolvimento: um potencial – aquilo que a criança é capaz de aprender com a ajuda de outra pessoa e um real – o que ela já é capaz de fazer por si própria. A distância entre o desenvolvimento potencial e o real é denominada zona de desenvolvimento proximal. Daí a importância das interações sociais, ou seja, a aprendizagem interage com o desenvolvimento. O desenvolvimento cognitivo resulta da internalização da interação social, isto é, de fora para dentro, primeiro no nível social e depois no individual. Em termos pedagógicos, o sócio-construtivismo de Vygotsky corresponde a uma escola que desafia, estimula o aluno, o qual aprende com os outros – há uma interação com o mundo. Nesse sentido, a vivência em sociedade é essencial para a transformação do ser biológico no ser humano. O professor é um condutor do processo de aprendizagem – um mediador, aquele que estimula a passagem de um nível de desenvolvimento potencial para um nível real. EDUCAÇÃO PATRIMONIAL De acordo com Evelina Grunberg, educação patrimonial é “o ensino centrado nos bens culturais, como a metodologia que toma estes bens como ponto de partida para desenvolver a tarefa pedagógica; que considera os bens culturais como fonte primária de ensino”. 7 Bem cultural, segundo Garcia Belsunce (citado por Belloto8), é “o conjunto de processos criadores e dos produtos criados que evidenciam as características distintas de pertencerem a tal sociedade e permitir que seja conhecida e reconhecida através dele”. Há muitos autores – embora não a maioria - que consideram três categorias de bens culturais: 1) elementos da natureza (recursos naturais e paisagens); 2) bens móveis (livros, documentos, criações artísticas, etc.) e 3) bens imóveis (monumentos, esculturas, sítios arqueológicos, etc.). Por outro lado, Horta9 define patrimônio cultural como um conjunto de bens e valores, tangíveis e intangíveis, expressos em palavras, imagens, objetos, monumentos e sítios, ritos e 7 Grunberg; Evelina. “Educação Patrimonial: utilização dos bens culturais como recursos educacionais”. In: Museologia social, Porto Alegre, UE – Secretaria Municipal de Cultura. 2002, pg. 101. 8 Belloto, Heloísa Liberalli; “Patrimônio Cultural e ação educativa em artigos”; In: Ciências & Letras Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n.27, jan/jun, 2000, pg. 154. 9 Horta, Maria de Lourdes Parreiras; “Fundamentos de Educação patrimonial”; In: Ciências & Letras Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n.27, jan/jun, 2000, pg. 29. 8
  • 9. celebrações, hábitos e atitudes, cuja manifestação é percebida por uma coletividade como ‘marca’ que a identifica, que adquire um sentido ‘comum’ e compartilhado por toda uma ‘comunidade’”. Em que pese tais conceitos serem aparentemente superponíveis, a idéia de bem cultural é mais ampla do que a de patrimônio. Esse último pressupõe a idéia de reconhecimento oficial através de tombamento. Em contrapartida, nem todo documento pode ser considerado bem cultural (apenas quando armazenado em instituições) e nem todo bem material é documento (apenas quando registrado em um suporte). Ademais, o patrimônio/bem cultural pode ser material ou imaterial. Vinham sendo tradicionalmente valorizados os bens materiais, principalmente aqueles que diziam respeito à formação e legitimação de suas respectivas nações. Os bens imateriais, isto é, conhecimentos e modos de vida tradicionais, lendas, etc. tiveram seu reconhecimento no Brasil em 1989 10 através da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular . Tal ampliação do conceito de patrimônio foi implementada através do Registro de Bens Culturais 11 de Natureza Imaterial (Decreto n.3552/200) . Nele há espaço para a documentação e preservação de saberes, de formas de expressão, de celebrações e de lugares. A educação escolar difere da educação patrimonial, especialmente no que tange ao ensino de História. Na última o ensino é centrado no objeto cultural – na evidência material ou imaterial da cultura. O objeto e o sujeito interagem e dessa interação a criança cresce. O sujeito é observador e, simultaneamente, criador do objeto. Busca-se a lógica inconsciente da cultura, isto é, a realidade. Do ponto de vista do aluno (a) do ensino fundamental, os interesses com questões do tempo, da memória e da história são restritos. A idéia de tempo é limitada. O tempo é dicotômico: muito distante ou muito próximo. A memória é mais pessoal do que coletiva. A história de sua vida e de sua família têm mais significado que a história social. A apreensão das realidades do presente e do passado se daria, preferencialmente, através de experiências, de vivências e de práticas. A educação formal (escolar) parte de idéias e chega ao objeto, enquanto a não-formal (patrimonial), pelo contrário, usa o objeto (material ou imaterial) como idéia. A primeira parte 10 Sant’Anna, Márcia; “A face Imaterial do Patrimônio Cultural:os novos instrumentos de reconhecimento e valorização”; In: Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos; Rio de Janeiro, Ed. DP&A; 2003, pg.53. 11 Funari, Pedro Paulo & Pelegrini, Sandra C.A.; “Políticas Patrimoniais no Brasil: impasses e realizações”; In: Patrimônio Histórico e Cultural; Rio de Janeiro; Zahar Ed.; 2006; pg. 54. 9
  • 10. do efeito e se aproxima das causas (método explicativo dedutivo); a última inicia com a causa e alcança o efeito (método causal indutivo) 12. Na verdade uma complementa a outra. Maria de Lourdes Horta apresenta uma tipologia do ensino de História baseada na cultura material e criada pelo historiador cultural americano Thomas Schlereth: 1) a História do Professor seria aquela em que os objetos constituiriam ilustrações para a história literária; 2) a História do Profissional corresponderia aquela em que as interpretações prévias – hipóteses – do historiador seriam apenas testadas através dos objetos e 3) a História do Poeta emergiria da experiência interativa com os objetos. O passado seria sentido e conhecido, isto é, teria um efeito sobre a mente, seria transformado em idéias do sujeito-aluno. Tais idéias seriam criadas por ele. Além dos três tipos de história citados acima, a autora acrescenta um quarto: a história da criança. Seria a história devolvida pelo aluno após a experiência educativa, ou seja, seriam os desenhos, os escritos, os relatos e os comentários resultantes da vivência. COMENTÁRIO OS MITOS A OFICINA SERES DA NATUREZA oportuniza aos alunos do ensino fundamental uma experiência no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho em três dimensões diferentes e complementares da realidade: o contato com a natureza – rochas e árvores; o contato com seres mitológicos – Saci-Pererê, Curupira e Boitatá e o contato com um arquivo climatizado repleto de documentos históricos. A apresentação integrada dessas dimensões da realidade em um mesmo momento permite que os alunos sintam que elas fazem parte de um mesmo conjunto. A mensagem subjacente é que tudo é importante e tudo tem a mesma origem, ou seja, a vida: a vida do planeta, a vida das árvores, a vida dos seres mitológicos (que não são menos vivos por serem mitológicos), a vida dos animais e dos vegetais, a vida construída pelos homens, a vida da cidade, a vida dos homens...a vida das crianças. A experiência inicia pelo planeta Terra. A rocha simboliza o suporte sobre o qual se vive. O tempo de sua existência mostra sua importância e dá uma noção do próprio tempo. A apresentação das árvores faz a ligação da Terra com seus produtos, os seres vivos. As noções ecológicas surgem espontaneamente. Os prédios são mostrados dentro desse contexto de construção. A natureza é antiga e dela surgem objetos importantes para nossa vida; o homem é antigo – tem um passado – e também constrói. Suas construções devem ser preservadas como aquelas da natureza. Tudo deve ser cuidado. 12 Horta, M.L.P.; Seminário de Petrópolis; Museu Imperial de Petrópolis – não publicado. 10
  • 11. Quando as crianças adentram ao acervo passa-se à História da cidade – da sua cidade. O ambiente é climatizado. A temperatura e o odor dos documentos (papéis velhos) impressionam. Os alunos estão dentro do “cofre do tesouro”. Fecham os olhos, respiram fundo. Pede-se que voltem no tempo. O lugar favorece para que realmente voltem no tempo – no tempo que cada um individualmente tem capacidade de voltar. Perguntam. Imaginam. Produzem imagens em suas cabeças. Criam. Exercitam suas primeiras idéias de história, de uma história passada, mas também presente. Estão sentindo, olhando, cheirando o passado. A cidade de Porto Alegre é visitada. Alguns aspectos são apresentados (ruas, casas, iluminação, água, esgoto, etc.), mas a imaginação é dos alunos. A experiência com os seres arquetípicos também é uma vivência histórica. A história é feita de estórias. O contato com o Saci-Pererê é mágico. O Saci é mágico, porém real. A magia é real. As crianças vibram, se emocionam, ouvem atentamente. A figura do Saci foi criada no século XVIII. Seu nome é indígena, mas começou como uma estória contada por 13 amas-secas e caboclos-velhos para assustar as crianças com suas travessuras . O Saci é poderoso – aparece e desaparece e produz redemoinhos de vento. Entretanto também é uma criança: brinca e faz travessuras. Intimamente é um ser bom. Tem um gorro vermelho que é a fonte do seu poder. Na verdade, o grande poder do Saci está em sua capacidade de se identificar com as crianças e com a liberdade. Mesmo quando era usado para assustá-las essa característica estava implícita nas atitudes que as crianças percebiam nele e nelas. O aparecer e desaparecer lembra a brincadeira do esconde-esconde, o poder do vento sugere energia vital – o sopro da vida, a alma. O gorro vermelho foi usado por seus ancestrais e contemporâneos europeus: na Antiguidade, primeiramente pelos habitantes da Frigia (atual Turquia) e depois pelos escravos romanos libertos (por isso sua relação com a liberdade); na Idade Média, no norte de Portugal, foi componente da indumentária dos trasgos (também seres rebeldes e de baixa estatura) e no mesmo século XVIII o barrete frígio foi usado pelos revolucionários franceses como símbolo da liberdade. Na mesma época foi incorporado ao Saci-Pererê representando a liberdade e a infância. O Curupira (corpo de menino) é outra figura mitológica indígena – a mais antiga. É o guardião da floresta14. É o protetor das matas, das árvores e dos animais. Através dele é 13 http://www.arteducacao.pro.br/Cultura/lendas.htm 14 http://sitiocurupira.wordpress.com/a-lenda-do-curupira/ 11
  • 12. possível observar o inconsciente coletivo da população que o criou e daquela para quem sua história faz sentido. Tem os pés virados – indício de que pode enganar os homens. Tem medo das tempestades, por isso ele bate nos troncos das árvores para ver se estão fortes para enfrentá-las. Sua figura representa o ideal ecológico. Sua esperteza faz com que seja assimilado às crianças. Suas artimanhas ajudam-nas a superarem suas limitações diante do desconhecido, isto é, de suas tempestades existenciais. O Boitatá é um mito indígena gaúcho – originário do século XVI. A proximidade geográfica traz um significado especial para as crianças com as quais se envolve o mito. A tempestade – agora como dilúvio – está outra vez presente nessa estória. Com efeito, o mito do dilúvio aparece entre muitos povos (israelitas, indianos, babilônicos, havaianos, astecas, gregos, etc.)·. Trata-se de fato de uma preocupação constante dos homens primitivos, que também é compartilhada pelas crianças. A estória ajuda as crianças a elaborarem as dicotomias sol-tempestade, claro-escuro, inverno-verão, mas também a relação indivíduo- grupo (Quando a cobra engole os olhos dos outros animais transforma-se em Boitatá, mas quando volta o sol sua luz se espalha e ela morre. A voracidade não é compensadora.). A estória permite, a exemplo da do Saci, vivenciar o aparecer-desaparecer-reaparecer. Boitatá surge novamente nos verões protegendo o campo das queimadas. Fica implícita a idéia circular do tempo e a renovação da natureza, as quais certamente estimulam os alunos a valorizarem o aspecto cíclico da vida. OS MITOS E A HISTÓRIA Desde a Revolução Científica do século XVII, representada pelas figuras-chave de Descartes e Newton, a visão de mundo ocidental passou a ser caracterizada preponderantemente pelo culto à razão. O mundo foi visto como um relógio – mecânico. O homem passou a apoderar-se cada vez mais da natureza. Essa deveria servi-lo. Nesse contexto, o valorizado era o científico, o técnico, o que poderia fazer com que mais fosse tirado da natureza. Tal paradigma cartesiano evoluiu no século XVIII para as idéias iluministas de progresso e da superioridade da civilização ocidental em relação às demais e prevalece até nossos dias. Entretanto já no século XVIII havia quem questionasse a razão cartesiana. Um desses pensadores foi Giambatista Vico. Suas idéias sobre a história fizeram com que fosse considerado o ”pai da consciência histórica moderna” 15. 15 Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo – Perspectiva, 2007, pg. 88 e 89. 12
  • 13. Vico percebeu que as fábulas e os mitos eram as maneiras que os homens primitivos tinham de criar uma visão organizada do mundo que os cercava. E mais: seria apenas através do entendimento desses mitos que poderíamos chegar a compreender esses homens. Tal compreensão passava pelo entendimento de suas culturas, na mais ampla acepção da palavra. Dependia do conhecimento de seus mitos, rituais, cantos, danças, linguagens, religião, casamentos, sepultamentos, etc. Ele comparava o homem primitivo às crianças. Chamava a atenção para o fato de que em inúmeras culturas manifestava-se explicitamente o medo e o respeito à natureza. Era comum que os primeiros deuses estivessem relacionados à tempestade. Havia inúmeros “Júpiteres”. O deus do raio era o pai dos deuses em várias culturas. O mito fora criado para explicar a natureza, tanto planetária como humana – a tempestade e o medo da tempestade. Tais aspectos são reincidentes ao longo da história e fazem parte da necessidade de organizar o mundo. É precisamente através deles que é possível entender a realidade. Eram a memória, a poesia, o mito, a linguagem e a história os pontos essenciais na teoria de Vico. A interpretação dos mitos levaria ao conhecimento histórico verdadeiro. Era assim que faziam os homens primitivos. É assim que fazem as crianças. É a partir daí que devem fazer os historiadores. A história deve ser processual e a natureza humana, historicizada. A HISTÓRIA, O SOCIAL E A EDUCAÇÃO Vygostsky, a exemplo de Vico, também desnaturaliza o comportamento humano. Em suas pesquisas sobre o desenvolvimento infantil diverge de Piaget em muitos aspectos, principalmente quando minimiza a dimensão biológica de sua teoria. Para Vygotsky o desenvolvimento psicológico depende da interação da criança com o meio que a cerca. Depende de como é estimulada, de como é acompanhada. O mais importante é o meio social, representado pelos outros: pais, irmãos, professores, colegas, amigos, etc. Sua teoria é sócio- histórica. Em determinada época do desenvolvimento serão os brinquedos os instrumentos da educação. Serão os caminhos pelos quais a criança vai se aproximar do conhecimento. As oficinas desenvolvidas no arquivo histórico objetivam criar instrumentos de contato entre o sujeito (criança) e o objeto (conhecimento). A oficina Seres da Natureza, trabalhando mitos através de experiências lúdicas, busca a memória, o mito e a história nessas crianças. Caso num primeiro momento muitas delas não consigam entender completamente os significados das estórias, isso não tem a mínima importância. Nem mesmo os adultos os 13
  • 14. entendem de modo absoluto. O importante é a experiência, a vivência, o compartilhar com os outros e com o auxílio dos mesmos, momentos de memória coletiva, de novos significados. Vygotsky define dois tipos de desenvolvimento: um potencial e um real. A transição entre ambos é denominada zona de desenvolvimento proximal. Nela a criança consegue saber, fazer e compreender coisas, porém com ajuda dos outros, isto é, de seu meio. É aqui que está a maior importância do processo educativo. Se for possível trabalhar com as crianças as estórias míticas, porém com significado verdadeiro – o que, para elas, nada mais são do que a própria história –, e se esse trabalho puder ser realizado com um grupo interativo, certamente estarão aprendendo e sendo estimuladas a aprender mais, certamente a própria história dos homens. A EDUCAÇÃO E O BEM CULTURAL Um arquivo público é uma instituição onde há bens culturais. Ali há documentos que, exatamente por estarem ali, são bens culturais. O arquivo é responsável por seu armazenamento e conservação. Entretanto, se esses bens forem interpretados em um sentido amplo tudo o que existe no planeta pode ser considerado um bem cultural. Logo, se um arquivo público assume o conceito de bem cultural nesse sentido ampliado, valorizando os bens naturais, os bens imateriais e os bens imóveis, a eles deverá dedicar-se em suas atividades. É isso que o faz o arquivo histórico Moysés Vellinho quando, numa mesma oficina destinada a estudantes do ensino fundamental, contempla diversos tipos de bens culturais. A mensagem que se procura passar é que todos eles são importantes. Mais do que isso: todos devem ser pensados juntos, pois estão interligados: o planeta, as árvores, os mitos, os documentos... Quando o processo educativo sai do ambiente formal da escola e entra nas instituições, a simples mudança de ambiente já traz novos significados. A experiência é nova, a memória dela é facilitada. A vivência compartilhada em grupo permite que uns ajudem aos outros no processo de aprendizagem. A apresentação dialogada com os seres arquetípicos é uma oportunidade de as crianças ouvirem estórias, o que hoje é relativamente raro. O ouvir e o assistir uma dramatização é um processo peculiar. Por um lado difere da aula expositiva na escola, onde os alunos permanecem “presos” a suas carteiras escolares, com delimitação de seus espaços. A aula expositiva pressupõe passividade. Por outro lado, também é diferente de outros processos de 14
  • 15. conhecimento relacionados à mídia, seja a televisão, seja a internet. No teatro a vivência é mais real, a relação é mais humana, mesmo em se tratando de seres imaginários. O BEM CULTURAL E O ENSINO DE HISTÓRIA Do ponto de vista do ensino de história e sua relação com os bens culturais é preciso esclarecer que há vários tipos de história. Já houve uma história providencialista (tudo era causado por Deus), já houve uma história considerada mestre da vida, já houve e ainda há uma história exclusivamente política (datas, reis, presidentes e mais datas). Essa história ainda é muito ensinada nas escolas. Desde o início do século XX ocorreu um diversificação no saber histórico. Passou-se a pensar no social, no cultural, nas mentalidades... É dentro desse contexto ampliado de história que se insere o ensino de história possível em uma instituição que preserva bens culturais. Em particular a proposta implementada pelo Arquivo Histórico Moysés Vellinho pode ser e é adequada a uma visão holística não apenas da realidade, mas também da própria história, como parte dessa. No que diz respeito à oficina seres da natureza percebe-se que o contato das crianças com as rochas e as árvores permite que se situem e que valorizem a natureza como habitação do homem (a personagem Rochinha vive numa rocha). A exposição dialogada no acervo climatizado possibilita que usem o mesmo tipo de raciocínio que mais tarde utilizarão nas aulas de história: Quando? Quem trabalhava? Como era? Como faziam? Como mudou? As sensações experimentadas (frio, cheiro de papel velho, prateleiras de documentos até o teto, etc.) fazem com que sejam envolvidos – literalmente – pelo clima do local. Utilizando a chave proposta por Thomas Schlereth 16, é o que podemos chamar de História do Poeta, pois a história é construída a partir dos objetos e do ambiente. O processo educativo adviria de um conhecer e de um sentir o passado. A experiência com os seres arquetípicos também é um exercício de ensino de história. O interesse despertado nos alunos da escola fundamental em ouvir e participar de estórias como essas, por seu imenso significado simbólico, servirão de base para futuros interesses em estudar história. Na verdade, naquele momento eles já estão de fato estudando história. Certamente não a história tradicional, mas uma história dos mitos, da cultura, das mentalidades... Com certeza, mais tarde, tal aprendizado os fará buscar as várias histórias dentro da História, bem como as diversas dimensões da realidade, O ciclo pedagógico se fecha com o material produzido pelos alunos após a experiência no arquivo. Isso pode ser desenvolvido no arquivo, em aula ou em casa. Não há nada mais 16 Op. Cit. Maria de Lourdes Parreiras Horta – Seminário de Petrópolis. 15
  • 16. importante do que a reflexão sobre o vivido (em qualquer idade) e a execução de trabalhos livres (desenhos, escritos, encenações, etc.) acerca da experiência. Trata-se de uma solidificação de conhecimentos e uma base para a memória, que pode se transformar em história. CONCLUSÃO Os mitos devem ser aproveitados no ensino de história. Eles são significativos para as crianças e, ao invés de criar ilusões, representam a base sobre a qual seus conhecimentos serão desenvolvidos. A apresentação em um mesmo momento pedagógico de mitos, da natureza e de documentos históricos constitui uma estratégia perfeitamente válida para que tais dimensões da realidade sejam percebidas como algo único e integrado. 16