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Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio




                             11
               (Corresponde ao décimo tópico do Capítulo 1,
                 intitulado No “lado de dentro” do abismo)




                 A chefia é contra a liderança

Hierarquia não é o mesmo que liderança

Toda hierarquia se erige pela materialização e repetição de passado. Na
tradicionalidade, essa operação (de ereção de hierarquias) legitimava-se
pela unção ou delegação proveniente de alguma instância extra-humana
(divina), que se transferia pelo “sangue” (ou pela genética: as linhas
sucessórias parentais, familiares, da nobreza: os herdeiros carregavam o
múnus originário, que podia ser delegado, em graus subordinados, a quem
a eles se submetesse). Era um objeto (como se os superiores possuíssem
um estoque de “células-tronco” para construir o “corpo” hierárquico) (27). A
própria palavra hierarquia (hieros + arché) designava esse poder sagrado.
Na modernidade, tentou-se substituir tal legado legitimatório pelo
reconhecimento de determinadas características intrínsecas do sujeito que
lhe confeririam a capacidade de exercer poder sobre os outros: sua vocação
administrativa ou seu carisma, sua gravitatem ou sua liderança.

Essas “explicações” impediam a percepção de que hierarquia é sinônimo de
centralização. Olhavam sempre para o indivíduo que, em virtude de ter sido
escolhido (the chosen one) ou por força de suas qualidades inatas ou
adquiridas (pelo “sangue” ou no “berço”), tinha o dever ou o direito de
mandar nos outros (sim, em última instância era disso que se tratava), mas
não olhavam para a rede, para a configuração do emaranhado de conexões
em que o chefe ou líder se inseria.

A liderança considerada por essas justificativas não é aquela que emerge
espontaneamente na rede, quando alguém toma uma iniciativa que é
seguida por outros, em circunstâncias sempre temporárias, mas a
“liderança” que se quer permanente de alguém que, tendo liderado algum
dia, tenta congelar a configuração que permitiu essa eventualidade para
enxertá-la continuamente no presente de sorte a poder liderar para sempre,
em todas as circunstâncias. Isto é: monoliderança, na verdade o contrário
da liderança, a qual, como fenômeno emergente, é sempre multiliderança
(possibilidade, aberta a qualquer um, de liderar em determinadas
circunstâncias fortuitas).

A liderança é fluzz, ela flui como um rio. Os líderes que se sucedem,
aparecem, desaparecem e reaparecem como “remoinhos num rio de água
sempre a correr” (para usar a bela imagem de Wiener) (28). A
monoliderança – na verdade uma justificativa para a centralização e para a
chefia – é sempre uma tentativa de represar o curso.

Redes mais distribuídas do que centralizadas (caracterizadas pela
abundância de caminhos) são ambientes favoráveis à emergência da
multiliderança. A monoliderança – do líder providencial e permanente, a
prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades – constitui-
se, porém, contra a liderança e só pode se constituir assim em estruturas
mais centralizadas do que distribuídas, ou seja, em estruturas onde foi
introduzida a escassez de caminhos.




                                    2
Notas

(27) Cf. Os ‘me’ in Nota (6) ao Capítulo 8 (infra).

(28) WIENER, Norbert (1950): Op. cit.




                                          3

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  • 1. Em pílulas Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio 11 (Corresponde ao décimo tópico do Capítulo 1, intitulado No “lado de dentro” do abismo) A chefia é contra a liderança Hierarquia não é o mesmo que liderança Toda hierarquia se erige pela materialização e repetição de passado. Na tradicionalidade, essa operação (de ereção de hierarquias) legitimava-se pela unção ou delegação proveniente de alguma instância extra-humana (divina), que se transferia pelo “sangue” (ou pela genética: as linhas sucessórias parentais, familiares, da nobreza: os herdeiros carregavam o múnus originário, que podia ser delegado, em graus subordinados, a quem a eles se submetesse). Era um objeto (como se os superiores possuíssem um estoque de “células-tronco” para construir o “corpo” hierárquico) (27). A própria palavra hierarquia (hieros + arché) designava esse poder sagrado.
  • 2. Na modernidade, tentou-se substituir tal legado legitimatório pelo reconhecimento de determinadas características intrínsecas do sujeito que lhe confeririam a capacidade de exercer poder sobre os outros: sua vocação administrativa ou seu carisma, sua gravitatem ou sua liderança. Essas “explicações” impediam a percepção de que hierarquia é sinônimo de centralização. Olhavam sempre para o indivíduo que, em virtude de ter sido escolhido (the chosen one) ou por força de suas qualidades inatas ou adquiridas (pelo “sangue” ou no “berço”), tinha o dever ou o direito de mandar nos outros (sim, em última instância era disso que se tratava), mas não olhavam para a rede, para a configuração do emaranhado de conexões em que o chefe ou líder se inseria. A liderança considerada por essas justificativas não é aquela que emerge espontaneamente na rede, quando alguém toma uma iniciativa que é seguida por outros, em circunstâncias sempre temporárias, mas a “liderança” que se quer permanente de alguém que, tendo liderado algum dia, tenta congelar a configuração que permitiu essa eventualidade para enxertá-la continuamente no presente de sorte a poder liderar para sempre, em todas as circunstâncias. Isto é: monoliderança, na verdade o contrário da liderança, a qual, como fenômeno emergente, é sempre multiliderança (possibilidade, aberta a qualquer um, de liderar em determinadas circunstâncias fortuitas). A liderança é fluzz, ela flui como um rio. Os líderes que se sucedem, aparecem, desaparecem e reaparecem como “remoinhos num rio de água sempre a correr” (para usar a bela imagem de Wiener) (28). A monoliderança – na verdade uma justificativa para a centralização e para a chefia – é sempre uma tentativa de represar o curso. Redes mais distribuídas do que centralizadas (caracterizadas pela abundância de caminhos) são ambientes favoráveis à emergência da multiliderança. A monoliderança – do líder providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades – constitui- se, porém, contra a liderança e só pode se constituir assim em estruturas mais centralizadas do que distribuídas, ou seja, em estruturas onde foi introduzida a escassez de caminhos. 2
  • 3. Notas (27) Cf. Os ‘me’ in Nota (6) ao Capítulo 8 (infra). (28) WIENER, Norbert (1950): Op. cit. 3