O documento discute como as pessoas tendem a formar redes distribuídas na ausência de poder centralizador. Afirma que a natureza humana é relacional e que as pessoas interagindo constituem redes ao invés de guerras. Também argumenta que instituições como escolas, igrejas e estados deformam as redes sociais de forma distribuída.
Deformando a rede-mãe: como o poder distorce as redes sociais
1. Em pílulas
Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio
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(Corresponde ao primeiro tópico do Capítulo 4,
intitulado Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos)
Deformando a rede-mãe
Na ausência do poder as redes tendem a permanecer distribuídas
A investigação das redes sociais leva-nos a uma nova hipótese
antropológica: uma outra visão da natureza humana (seja lá o que isso for),
que se afasta do que foi concebido como Homo economicus, para se
aproximar – como sugeriram Christakis e Fowler – do que eles chamaram
de Homo dictyous (do latim homo, “humano”, e do grego dicty, “rede”) (4).
Indivíduos biológicos da espécie humana se tornam Homo dictyous (seres
humanos), quando interagem. Mas quando interagem constituem rede.
Logo, sem essa rede não podemos ser humanos.
2. Em outras palavras: se, como pessoas, já somos rede – do contrário não
poderia haver a realidade biológico-cultural que chamamos de ‘ser humano’
– então, para nós, humanos, no princípio era a rede. Isso significa que
somos “filhos” da rede. Logo, podemos dizer que a rede é a nossa “mãe”.
Ou seja, que existe uma rede-mãe.
A interpretação que revela tal sentido é alegórica ou metafórica. Mas a
metáfora da rede-mãe pode revelar mais coisas do que imaginamos. Ela
sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão)
redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos
transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (5).
Os pensadores e os economistas que cunharam e trabalharam com a
concepção do homo economicus simplesmente partiram desse fundamento
hobbesiano para reificar a existência da abstração chamada indivíduo.
Trata-se de uma visão da natureza humana – na verdade quase uma tara –
baseada no egoísmo, para a qual, como escreveu Hobbes, na ausência de
“um poder que domestique os homens... não há sociedade; e o que é pior
do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta” (6).
Vivendo nesse “mundo cão brutal em que a preocupação com o bem-estar
dos outros não existe” (7) existiria, entretanto, paradoxalmente, o indivíduo
enquanto unidade isolada dos outros indivíduos. Evidentemente, diante de
tantos atos gratuitos de colaboração que praticamos e presenciamos no dia-
a-dia, essa construção intelectual só pode se revelar uma perversão. Daí a
tara individualista, tão freqüente e inadequadamente denominada de
liberalismo (econômico).
Não há nenhuma evidência científica de que os seres humanos
abandonados à sua própria sorte (como se pudesse haver outra sorte...)
poriam fim à sua convivência. As evidências apontam justamente o
contrário. Não havendo motivo para guerrear, as pessoas – seguindo o
fluxo da vida – viveriam sua convivência – ou seja, viveriam em rede. Como
disse Lynn Margulis (1986): “A vida não se apossa do globo pelo combate,
mas sim pela formação de redes” (8).
A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva deve
ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para
guerrear e a convivência fica ameaçada.
Na ausência de um poder que as domestique (para insistir na expressão de
Hobbes), pessoas interagindo com pessoas tendem a configurar redes
distribuídas em pequenos grupos, só não o fazendo, em grupos maiores,
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3. em virtude da falta de condições biológicas ou tecnológicas de interatividade
ampliada e à distância. Não haveria motivo para obstruírem fluxos,
separarem clusters ou excluírem nodos dessas redes (que é, exatamente, o
que faz o poder), a menos que queiramos lançar mão de uma hipótese
religiosa para vaticinar que o homem é inerentemente competitivo (ou em
parte competitivo, por sua própria natureza – seja lá o que isso for). Tal
hipótese é absurda neste contexto porque pressupõe que possam existir
seres humanos (entes biológico-culturais) como entes (biológicos) isolados.
Mas não existe no ser humano nenhum atributo cultural (comportamental)
que se possa dizer inerente. A “natureza” do Homo dictyous – se é que se
pode afirmar que exista uma ‘natureza da cultura’ – é relacional.
Todo poder acarreta anisotropias no espaço-tempo dos fluxos
(verticalizando a rede). E é por isso que o poder se define como uma
medida de não-rede (em termos de rede distribuída) (9). Na ausência do
poder (centralização) a rede tende a permanecer distribuída. Podemos dizer
que o bios (Basic Input-Output System) pré-gravado lá no firmware da
rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo simples
motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o que precisa
ser explicado é o processo de centralização, não o estado de distribuição.
São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam ser
justificados, não a convivência.
Por certo a rede-mãe não permanece com topologia distribuída na presença
de programas verticalizadores. Aqui é um daqueles casos – mais comuns do
que se pensa – em que o software modifica o hardware (como quando
aprendemos uma língua e alteramos para tanto nossas conexões
neuronais).
Programas verticalizadores deformam a rede-mãe, sejam programas
meméticos (como os que chamamos de deuses – quando lhes atribuímos
atributos super-humanos), sejam programas organizacionais (que rodam
comandos de ordem, hierarquia, disciplina e obediência – como escolas,
igrejas, partidos, corporações, Estados e outras instituições assemelhadas
com todos os seus aparatos).
No interior e no entorno dessas organizações hierárquicas o campo social é
profundamente perturbado. O espaço-tempo dos fluxos é deformado
obrigando as fluições a percorrerem caminhos estranhos. A interação é
disciplinada sem qualquer outra razão que a de manter tais estruturas
monstruosas funcionando e se reproduzindo. A imagem da Fig. 2 é
aterrorizante. Lembra à primeira vista aquelas naves de alienígenas
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4. predadores do filme de Roland Emmerich (1996) Independence Day. Talvez
não por acaso: organizações hierárquicas de seres humanos geram seres
não-humanos. Mas se trata apenas de uma outra maneira de representar o
diagrama (B) de Paul Baran (1964) já exposto aqui na Fig. 1.
Fig. 2 | Organograma de uma organização hierárquica
Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a
escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando outros
caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso que a
primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra suméria
Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”.
Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola?
Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz
soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para
que nação, para que Estado?
Um sinal de que fluzz está soprando é que tais instituições estão se
misturando e se confundindo, quer dizer, está ficando cada vez mais claro
que elas são aspectos das mesmas deformações ou do mesmo tronco de
programas verticalizadores que “rodam” na rede social provocando
anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.
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5. É assim que as perturbações no campo social que geram religiões revelam-
se as mesmas que geram nações. De sorte que, nos múltiplos mundos
altamente conectados que estão emergindo, os nômades optarão por essa
ou aquela nação por mera preferência individual, como há bastante tempo
já fazemos com as religiões que professamos quando nos convertemos
depois de adultos. Alguém preferirá ser brasileiro por simpatia ou por outras
razões afetivas, empáticas ou culturais; outro, por razões análogas,
preferirá se identificar com uma região ou cidade: será californiano ou
cidadão-cultural de Lyon.
Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também
seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na
condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de
perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O movimento
do homeschooling já começou e avançará para o communityschooling (na
linha do unschooling). Comunidades de aprendizagem em rede tendem a
florescer e se multiplicar nos Highly Connected Worlds substituindo as
atuais burocracias do ensinamento (chamadas de escolas).
Ainda: Estados (nacionais) dividirão com corporações (transnacionais) o
controle dos fluxos econômicos e políticos mundiais globalizados e essa
pulverização (dos 193 exemplares atuais do modelo europeu de Estado-
nação – um anacrônico fruto da guerra, da paz de Westfalia – para milhares
de centros com autonomia crescente), dará margem à configuração de
novos modelos glocais de governança baseados no localismo cosmopolita de
miríades de cidades como redes de comunidades interdependentes.
É claro que todas as velhas instituições perdurarão vestigialmente, como
remanescências do mundo único. Não serão destruídas, simplesmente se
tornarão inadequadas por não suportarem a fluição de alta intensidade que
atravessará os interworlds dos mundos altamente conectados do terceiro
milênio.
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6. Notas
(4) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James (2009): Connected: o poder das
conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
(5) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(6) HOBBES: Op. cit.
(7) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James: Op. cit.
(8) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion years of
microbial evolution. Los Angeles: University of California Press, 1997.
(9) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1893
views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a-
versao>
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