Este número da revista Fraude apresenta os seguintes destaques:
1) Um especial sobre cinema colaborativo e a Web 2.0, explorando como as novas tecnologias estão modificando a produção e distribuição de filmes.
2) Uma história em quadrinhos sobre a marcha pela liberação da maconha em Salvador, debatendo a proibição versus a liberação da Cannabis.
3) Um perfil sobre artistas que trabalham com brinquedos, explorando as práticas e consumos desta arte tanto na Bahia quanto
1. Ano 05 - nº 06 - Salvador/Bahia - 2008/09
cinema marcha
e web 2.0 brinquedos no ateliê da maconha
o filme colaborativo a Cannabis em HQ
a invasão da Toy Art
2.
3. 6
Editorial
Salve, salve! É com muito prazer que apresentamos a sexta edição da revista Fraude: ainda
sobre jornalismo cultural, ainda focada em Salvador, ainda completamente pensada e executada
pelos bolsistas do Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Comunicação da UFBA, com o
acompanhamento de sua tutora, mas repleta de novidades!
Se no número anterior inauguramos um novo projeto editorial, seguindo parâmetros mais
jornalísticos, dessa vez as mudanças tomaram conta do projeto gráfico. A idéia era manter o mesmo
tom divertido e experimental da diagramação, mas também aproximar o visual da Fraude ao de outras
revistas de cultura. E para consolidar sua identidade gráfica mudamos um monte de coisas – como
você irá perceber à medida que folhear esta nova edição.
Olhamos os bons exemplos – e copiamos. Estilo de títulos, colunas, rodapé, legendas... Aqui ninguém
se inspira, é Fraude mesmo. Afinal, como disse o antropólogo, escritor e fotógrafo Ted Polhemus:
“Quem é real? Quem é replicante? Quem se importa. Divirta-se”.
Equipe Fraude
FRAUDE 2008/09 03
4. um guia para a fraude
Desalinhado Artistas de Brinquedo
No mundo entediante da padronização, Dobraduras, costuras e caixas-supresa...
reinventar os clichês pode ser um bom Práticas e consumos de uma arte que, na
antídoto contra a monotonia p.06 Bahia ou no mundo, não está de brincadeira.
p.18
Hino de gratidão a Deus Cem mil em 1968
O canto dessa cidade é do Senhor: saiba como Saiba como Evandro Texeira fez a foto
a música religiosa obteve o maior crescimento símbolo da resistência à ditadura militar no
entre todos os estilos musicais vendidos no Brasil. p.22
país. p.08
Escrevo como respiro O homem de todos os cantos
Sem grandes editoras, sem muitos leitores: a A história de Dimitri Ganzelevitch, um
odisséia dos autores baianos para publicar colecionador de arte e agitador cultural que
seus livros. p.11 fez de Salvador a sua morada. p.26
Anima meu rei! Clica, clica... clica mais
Entre peixes cantores, línguas falantes e Internet e seres humanos: um conto sobre
ovelhas motoqueiras: por onde caminha como alguns cliques podem substituir – ou
o mercado de animação publicitária em arranjar – sexo facilmente. p.29
Salvador. p.13
editorias da fraude
Preliminares: Comece por aqui. Economia da Cultura: Quando a cultura de
página 06 consumo recria o consumo de cultura.
página 08
Cotidiano: No dia-a-dia da cidade há histórias que Ciber: -arte, -tecnologia e -cultura.
passam quase despercebidas... quase. página 29
página 18
Imaginando: Ler histórias, ouvir histórias... Agora
é hora de também vê-las.
página 38
agradecimentos
A todos os que colaboraram com texto, imagem, foto ou ilustração. A'Os Mizeravão pelo som e ao Balcão Botequim
pelo espaço de lançamento. Na foto de capa, ao fotógrafo Wendell Wagner pela disposição e boa vontade, além
da resistência ao sol, a Ricardo Borges por nos emprestar suas caras-e-bocas, e ao MAM - Museu de Arte Moderna
da Bahia - pela locação. À Fabiane Oiticica por atender o celular de madrugada e estar sempre disposta a fotografar
para nós. A Pedro Dell'Orto, que nos deixou fotografá-lo e espalhá-lo pela cidade nos cartazes e postais. A Filipe
Monte Verde, Tássio Carneiro e Vitor Barreto por enfeitarem nossas páginas.E à ajuda de Tarcízio Silva, que
continuou fraudando mesmo quando não era mais sua obrigação.
04 FRAUDE 2008/09
5. Colaboração é a chave Em poucas palavras
Cada vez mais aberta, democrática, anárquica É possível fazer literatura no Twitter? p.37
e livre: Fraude preparou um especial sobre
softwares livres e cinema em tempos de Web
2.0. p.30
Navegar é preciso, pagar não é preciso A marcha da maconha
Em que pé anda o embate entre softwares Proibição ou liberação? Em HQ, Fraude
livres e softwares proprietários em terras conta a história da controversa marcha pela
soteropolitanas. p.31 liberação da maconha em Salvador. p.38
As possibilidades são infinitas Picassos movem-se por Londres
Como as transformações trazidas pela Web Quando a arte invade as ruas, ela invade
2.0 vêm modificando o modo convencional também a vida das pessoas. p.42
de fazer cinema. p.34
Desconhecido sabor Agradoce
Uns cliques na web, umas páginas
observadas... Um perfil de uma pessoa que só
existe online. p.36
quem faz a fraude A revista Fraude é uma publicação do
Tutora Petcom: Graciela Natansohn Programa de Educação Tutorial da Faculdade
Editora-geral: Alana Camara de Comunicação (Petcom) da Universidade
Editor Ciber: Rodrigo Lessa Federal da Bahia. O PET é um programa
mantido pela Secretaria de Ensino Superior
Editora Cotidiano: Jéssica Passos do Ministério da Educação, e é através do
Editora Economia da Cultura: Alana Camara orçamento anual destinado ao Petcom que
Editor Imaginando: Marcel Ayres é paga a impressão da revista. As opiniões
expressas neste veículo são de inteira
Editora de fotografia: Alana Camara responsabilidade dos seus autores. Tiragem:
Diretor de arte: Rodrigo Lessa 1500 exemplares. Ano 5, número 6, Salvador
Diagramação: Alana Camara, Jéssica Passos, Marcel Ayres, Rodrigo Lessa, Samuel - Bahia.
End.: Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina,
Barros, Tarcízio Silva Salvador, Bahia - Brasil. Tel.: 3283-6186.
Assessoria de comunicação: Caio Sá Telles, Hortência Nepomuceno, Marcelo Lima, E-mail: petcom@ufba.br
Paula Janay Alves www.petcom.ufba.br
www.revistafraude.blogspot.com
Produção do lançamento: Carolina Guimarães, Cíntia Guedes, João Araújo
Redatores e colaboradores: Alana Camara, Bruno Santana, Caio Sá Telles, Carolina
Guimarães, Cíntia Guedes, Hortência Nepomuceno, Jéssica Passos, João Araújo, Marcel
Ayres, Marcelo Lima, Mariele Góes, Matheus Santos, Mirela Portugal, Paula Janay Alves,
Rodrigo Lessa, Samuel Barros, Tarcízio Silva
Colaboradores de imagem: Caio Sá Telles (p.28), Daiane Oliveira (42), Eder Maximiniano
(43), Evandro Texeira (22, 24, 25), Fabiane Oiticica (3, 8, 9, 10, 11, 12, 26, 27, 28,
29), Fabiano Gummo (38, 39, 40, 41), Gina Leite (18, 20), Lívia Argolo (43), Naara
Nascimento (43), Piero Carapiá (42), Rebecca Agra (36), Ricardo Falcão (13, 14, 15, 16),
Tulio Carapiá (43). Capa: Alana Camara (arte), Wendell Wagner (fotografia), Carolina
Guimarães, Cíntia Guedes e Rodrigo Lessa (produção).
FRAUDE 2008/09 05
6. Desalinhado texto Caio Sá Telles e Samuel Barros
A malícia de todo mass media
Herbert George Wells foi um escritor inglês que marcou o século XX
com seus romances de ficção científica. Uma de suas obras mais polêmicas
chama-se “A Guerra dos Mundos” e narra a invasão da Terra por forças
alienígenas provenientes do planeta vermelho. O que deveria ser uma
alegoria satírica sobre as políticas colonialistas européias tornou-se motivo
para um dos maiores episódios de histeria pública: à véspera do Dia das
Bruxas do ano de 1938, o texto adaptado do livro foi veiculado pela rede
CBS e os resultados da transmissão foram desastrosos. Com a hegemonia
informacional do rádio e o clima tenso que antecedeu a Segunda Guerra
Mundial, a história foi levada a sério demais em algumas regiões dos
Estados Unidos, gerando, por exemplo, vários casos de suicídio. Celebrou-
se, então, o poder arbitrário da manipulação midiática.
Já na década de 90, a imprensa européia começou a morder o próprio rabo
graças a um multi-víduo fictício chamado Luther Blisset. Uma identidade
coletiva que repousa como máscara flutuante sobre a cara de quem, mais
do que pretenda o anonimato, queira zombar da mídia sensacionalista.
Através das fraudes noticiosas assinadas por Blisset, jornais e televisões
veicularam notas escandalosas sobre desaparecimentos de artistas famosos
ou casos de horrorismo – nome eleito pelos jornalistas de Bolonha para
designar a aparição misteriosa de animais mortos nos espaços públicos da
comuna – sem o cuidado mínimo da apuração prévia. Tudo uma maneira
de ridicularizar os mass media através do seu próprio dom de iludir.
O Judas moderno
A venda de amigos nunca foi novidade. Desde Judas, este setor do
mercado de relacionamentos acompanhou a evolução do comércio.
Hoje, cobrar para apresentar amigos, sob o pretexto de consultoria, é
algo rotineiro nas interseções entre o mundo financeiro e o político.
Afinal, como avisou Manuel Bandeira, o amigo do rei tudo pode,
seja em Pasárgada ou em outro lugar qualquer.
Com a virtualização das relações, não era de se esperar
coisa diferente. A versão moderna do Judas coloca à venda
o amigo virtual. No Brasil, o maior balcão de negócio é o
Orkut, o site de relacionamento usado por sete em cada dez
internautas tupiniquins. O caso mais famoso foi a compra da
comunidade “Eu Amo Floripa” pelo grupo de comunicação RBS e
pela produtora Tudo Eventos & Conteúdo para promover um festival
de música. O valor da compra não foi divulgado, mas deve ter sido
maior do que as 30 moedas de prata que Judas recebeu.
12
06 FRAUDE 2008/09
7. S´existe luz, a quem será
que se destina?
Por detrás da orquestra ensurdecedora que assina a
trilha sonora de uma vida urbana, canários assobiam de
uma copa alta enquanto folhagens secas sussurram sob
passos apressados. Para as pinceladas impressionistas
que invadem o céu na morte do dia ou para a flauta
que o vento toca, somos todos cegos em certa medida.
Através de seus pensamentos e fotografias, Evgen Bavcar
convida-nos a um desvelar desconcertante do mundo em
que vivemos e que, ao mesmo tempo, somos tentados a
esquecer.
Bavcar considera-se um escritor cujas tintas de
impressão são extraídas da luz. Em sua obra, a imagem
e o verbo caminham para um horizonte mesmo e
comum: seus registros fotográficos brotam, sobretudo,
da enunciação. No quintal de sua infância, ao povoado
esloveno de Lokavec, o pequeno Evgen perdeu a visão
do seu olho esquerdo quando brincava com um galho de árvore.
Ele tinha apenas 10 anos e nem esperava que, pouco antes de
chegar aos 12, seu olho direito também teria a visão roubada por
outra fatalidade. Hoje, seu trabalho é um relicário de nostalgias
construído através de palavras alheias sobre seus próprios objetos
de desejo. Bavcar encontra, nas trevas, o decalque de suas imagens
sob o olhar tátil que revela a potencialidade perceptiva de seu
corpo para além do visível. Ele provavelmente sorriria ao ouvir
Chico Buarque cantar: “saiba que os poetas, como os cegos, sabem
ver na escuridão”.
O eterno retorno do que já foi e ainda é
Como já disse Balzac, em “A menina dos olhos de ouro”: o reino do se em passado para alcançar o
verdadeiro amor é principalmente a memória. Se assim não fosse, seriam futuro. E a memória se refaz a cada
apenas sensações físicas. Sem a força dos sonhos, o amor seria simplesmente folha que murcha. O significado da
o curto-circuito de terminações nervosas e a ebulição de adrenalina. Antes, floresta se amplia, ao tempo que o
a memória é um constante escrever, de um modo menos dolorido, o que já outono forra o chão. No entanto,
foi: é uma interpretação íntima de uma história particular, a fim de permitir infeliz o que rejeita a chegada das
algum sorriso sincero, mesmo nas manhãs chuvosas. flores, por saudade do botão. Sem
Um acordo entre passado e presente para tornar possível a esperança no lembranças terminará, sem nada.
futuro. A memória é a confluência das emoções, num segundo que não
termina. É a sedimentação do que foi e do que poderia ter sido, enquanto o
braço se ergue. Preso na lógica irredutível do tempo, o presente transforma-
FRAUDE 2008/09 07
12
8. Hino a
de gratidão
Deus
texto Bruno Villa e Marcel Ayres
fotos Fabiane Oiticica
De acordo com informações da
Associação Brasileira dos Produtores de
Discos (ABPD), no ano de 2003, a música
religiosa conquistou o maior crescimento
entre todos os estilos musicais vendidos
no país, chegando a ocupar, inclusive,
o segundo lugar nas vendagens. Esses
resultados são fruto do crescimento
da população praticante das religiões
pentecostais. Dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) prevêem
que, em 2020, o número de evangélicos
vivendo no Brasil deve chegar a 50
milhões.
Neste contexto de expansão da demanda
por produtos, através dos dízimos, as igrejas
montaram uma estrutura empresarial.
Elas adaptaram às particularidades e
necessidades do mercado evangélico
os mecanismos de gestão de uma
empresa capitalista. Assim como suas
similares mundanas, denominação criada
pelos próprios evangélicos, a indústria
fonográfica gospel montou uma imensa
estrutura que envolve grandes gravadoras,
distribuidoras de discos espalhadas por
todos o país, pontos de venda dentro e fora
das igrejas e fortes ações de marketing,
segundo a pesquisa desenvolvida pela
produtora cultural Rebeca Caldas.
No Brasil, as grandes gravadoras em
atuação são a Line Records, vinculada à
Iurd (Igreja Universal do Reino de Deus),
a Gospel Records, da Renascer em Cristo,
e a MK Records, a mais antiga, atuando no
mercado há 20 anos, sem vínculos com
nenhuma igreja.
08 FRAUDE 2008/09
9. ‘ Quan
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O grupo MK, que além da gravadora
engloba a rádio 93 FM, o portal ElNet,
a revista Enfoque Gospel, de circulação
nacional, e o programa televisivo Conexão
Gospel, é a empresa mais forte no
mercado. Com um casting de 38 artistas música no estado são a Primeira Igreja
e mais de 200 títulos comercializados Batista do Brasil e a Renascer em Cristo.
– que vão da música sertaneja ao Hip- A Iurd, no contexto baiano, ainda ensaia
Hop – a MK controla todos os setores os primeiros passos para a formação de
da comercialização de discos. Além bandas. A igreja criou o projeto “Força igreja desempenha o papel das gravadoras
da gravação, o empreendimento é Jovem”, que promove atividades voltadas ao abocanhar uma considerável fatia do
responsável pela distribuição e divulgação à educação, à arte e ao lazer. Dentro lucro obtido com as vendas do disco:
do material que produz. deste projeto, os organizadores estão cerca de 80% do valor é direcionado ao
Já a Line Records, há 16 anos no mercado, montando duas bandas, a Jovem Bahia, ministério.
produz atualmente 35 artistas dos mais que prepara a gravação do primeiro disco, Uma das dificuldades enfrentadas pelas
variados gêneros musicais, dentre eles e a Restauração. bandas baianas é o baixo consumo de
Mara Maravilha e Salgadinho, da extinta A Igreja Batista, segundo o ministro discos por parte do público evangélico.
banda de pagode Katinguelê. A gravadora Hélio Souza, já dava ênfase à importância De acordo com lojistas, além de o alto
conta também com uma mega-estrutura da música no processo de evangelização. preço dificultar o acesso à população de
de distribuição, divulgação e vendagem A instituição criou até uma diretoria baixa renda, os fiéis preferem adquirir
de discos, alcançando, inclusive, países musical, que funciona como uma espécie outros produtos. Segundo André Porto,
da Europa e da África. Como espaço para de fundação para financiar atividades gerente da Casa de Publicadora da
divulgação de seus trabalhos e janela para culturais e eventos evangélicos e que Assembléia de Deus (CPAD), a venda de
ampliar o consumo da música gospel, administra a Casa de Oração Mundial, discos representa apenas 4% do total. Os
a Line tem um o programa televisivo um ministério da igreja. Hélio Souza, que artigos mais vendidos são Bíblias e revistas,
chamado “A Noite é Nossa”, exibido também é o diretor musical da instituição, que representam cerca de 50%. Outro
todos os sábados à noite pela Rede Record explicou que o ministério engloba três problema apontado pelo Pastor Marinho,
e apresentado pela cantora Isis Regina. categorias de bandas – infantil, juvenil e da Igreja Batista, é que os baianos não
oficial. Das quatro bandas vinculadas à consomem os trabalhos de artistas do
O louvor na Bahia Casa de Oração Mundial, somente uma, estado, eles preferem as bandas de fora. A
Apesar da força crescente da música o grupo oficial, batizado com o mesmo exceção à regra é o cantor Lázaro.
evangélica no país, principalmente na nome do ministério, gravou disco e tem Outro problema oriundo dos preços
região sudeste, a Bahia ainda tem uma o privilégio de representar a igreja em dos discos é a pirataria. Questionado
estrutura precária para o trabalho dos eventos musicais. sobre o assunto, Souza afirmou nunca ter
artistas. Nenhuma banda baiana tem De acordo com Souza, vocalista da visto seus discos serem vendidos pelos
contrato com gravadora, elas dependem banda, o disco de doze faixas, gravado ambulantes. “Já encontrei duas ou três
do suporte financeiro das respectivas em Salvador e masterizado e mixado no músicas disponíveis na internet, mas nada
igrejas para gravar discos e fazer shows. Rio de Janeiro, custou cerca de R$ 50 mil. gritante”, completa.
Até o grande recordista de vendas dentre Na primeira tiragem foram colocadas à De acordo com Rebeca Caldas, a
os artistas gospel baianos, o cantor Lázaro, venda oito mil cópias, todas esgotadas, pirataria existe, mas numa intensidade
ex-vocalista do Olodum, segue carreira com promessa de nova remessa, de cinco muito menor à do mercado secular. De
independente. A diferença entre Lázaro e as mil exemplares, chegarem este ano. Os acordo com a pesquisadora, o consumidor
demais bandas é que o cantor conquistou discos podem ser adquiridos em pontos de passa por um processo de convencimento
mais facilmente espaço no mercado vendas dentro das próprias igrejas Batistas, dentro das igrejas, que os orienta a não
evangélico, devido ao reconhecimento a R$ 19, e nos shows da banda, a R$ 15. comprar produtos pirateados. “As pessoas
anterior à carreira gospel. Em semelhança ao que ocorre na indústria são incentivadas a consumir aquilo que é
As igrejas que mais investem em musical secular, no mercado evangélico a da igreja. Tudo que não vem dela é visto
FRAUDE 2008/09 09
10. como nocivo. No caso do consumo de nacional. O compositor Ramon Costa Algumas igrejas promovem seus próprios
discos piratas, além de constituir um confessa que ainda hoje há preconceitos encontros, a exemplo do realizado pela
crime, é também pecado”, explica. em relação ao estilo da banda, mas está Primeira Igreja Batista. Outros eventos
convencido de que ela cumpre a sua não estão vinculados a nenhuma igreja
Para todos os gostos missão “pois os jovens que alcançamos específica, como é o caso do “Clama
Dentre a quantidade de artistas que possivelmente não dariam atenção se o Bahia”, em que artistas consagrados
despontam no mercado de música evangelho fosse pregado de outra maneira. no mercado gospel, como as cantoras
gospel nacional, alguns são considerados Tenho certeza que Jesus usaria a mesma Aline Barros e Cassiane já participaram.
blockbusters nas vendagens. É o caso de estratégia!”, completa. Contudo, não há rivalidade entre os fiéis
Aline Barros. A cantora, recordista de das diferentes vertentes protestantes, é
vendas, recebeu disco de platina triplo O Louvorzão possível encontrar freqüentadores da
pelo álbum “Som de Adoradores” – 750 “Tem uma famosa cantora baiana que, igreja Batista em eventos promovidos pela
mil cópias vendidas. Além disso, Aline em uma de suas músicas, diz assim: ‘o Renascer e vice-versa. A palavra de ordem
participou da trilha sonora da novela canto dessa cidade é meu'. Mas sabem o é misturar música à louvação.
Global “Duas Caras”. Outro destaque é que eu digo a essa moça? Eu digo que o Os eventos evangélicos estão cada vez
Marcelo Crivella, bispo da Iurd, que foi o canto dessa cidade é do senhor!”. Foi com mais freqüentes e mobilizam, a cada ano,
único artista da Line Records a alcançar este discurso exaltado que um pastor abriu um número maior de pessoas. A “Marcha
a marca de 1 milhão de discos vendidos. a festa “Explosão de Louvor e Adoração”, para Jesus”, por exemplo, realizada
Bandas e artistas como Oficina G3, André organizada pela Primeira Igreja Batista do anualmente em diversos estados do país
Valadão, Diante do Trono e Fernanda Brasil. pela Igreja Renascer em Cristo, reuniu este
Brum são mais exemplos da vasta indústria Durante o evento, cerca de oito mil ano, em São Paulo, cerca de cinco milhões
fonográfica da fé. pessoas se amontoaram no Parque de de pessoas. Em Salvador, o evento contou
O mercado gospel baiano também Exposições para prestigiar artistas de com a presença de aproximadamente 500
lança nacionalmente talentos da música projeção nacional e local. Dentre as mil pessoas, que percorreram o trajeto
evangélica. Quem está investindo nesse principais atrações estavam o grupo Fat Barra-Ondina em ritmo de carnaval,
seguimento são cantores como Lázaro, Family, que fez sucesso no final dos anos acompanhando trios elétricos animados
Xanddy, que está gravando o primeiro CD 90, e a banda de pagode gospel Átrios do por bandas de todo o país e de diversos
evangélico de sua carreira e Gil Melândia, Rei, que levantou o público cantando: “a gêneros musicais.
ex-cantora da Banda Beijo. Em Salvador, vida sem o senhor é um bolo doido”. O
algumas bandas menores buscam a sucesso do evento levou o pastor Carlos
valorização de seus trabalhos unindo o Ribas, um dos organizadores, a declarar
culto ao Senhor a ritmos bem inusitados. que aquele festivo 8 de março de 2008
É dessa maneira que o grupo de pagode seria a data inaugural para a cruzada
Átrios do Rei, que atua no cenário gospel evangelizadora que pretende “conquistar
baiano há 13 anos, tenta crescer na esfera a Bahia para o Senhor”.
10 FRAUDE 2008/09
11. escrevo
respiro
como
Nenhuma grande editora e poucos leitores:
qual a solução para quem é escritor na Bahia?
texto Mariele Góes e Paula Janay Alves
fotos Fabiane Oiticica
Na Bahia, ser escritor e publicar livros através de editoras não é
tarefa fácil. Além de existirem poucas editoras baianas, elas trabalham
com segmentos muito específicos do mercado - como auto-ajuda,
livros jurídicos, acadêmicos, evangélicos. São poucas as que publicam
literatura. Segundo Paulo Conceição Rocha, editor-chefe da Cispoesia,
nova no mercado, existe covardia por parte do setor privado em apoiar
projetos que não dependam exclusivamente da chancela do governo.
“Há uma descrença geral no ramo literário da Bahia. Não há
ciclo suficiente de oferta e procura que possa delimitar
o mercado claramente”. A solução para os
autores, então, é bancar o próprio livro -
tirando do bolso o dinheiro da publicação
- ou buscar um dos poucos editais de
incentivo do governo.
A Fundação Cultural era o órgão responsável
pelas políticas culturais de literatura na Bahia.
Com a mudança do governo do Estado, essa
responsabilidade foi transferida para a Fundação
Pedro Calmon. Segundo Geraldo Maia, integrante
do Núcleo do Livro, Leitura e Literatura da
Fundação, a política adotada pelo governo
anterior, em que todo o processo de produção do livro
ficava concentrado nas mãos do Estado, enfraqueceu
a indústria editorial baiana. “Houve uma retração, um
enfraquecimento, uma quase anulação da indústria editorial.
Como alguém vai investir numa editora pra concorrer com o
Estado? Isso fez com que a cadeia produtiva do livro ficasse emperrada,
porque diversos agentes dela ficaram sem função”, argumenta. Antes
os livros eram lançados pelo Selo Bahia. O original era entregue a uma
comissão e caso fosse aprovado, era editado pelo Estado. “O autor não
fazia nada e quando recebia o livro pronto não sabia o que fazer com
ele”, conta o também poeta e escritor.
FRAUDE 2008/09 1
1
12. O importante é não cruzar os braços
Mas a culpa da decadência do mercado
editorial baiano pode ser simplesmente
empurrada para o Estado? O escritor Lima
Trindade, autor de três livros e editor da
revista eletrônica “Verbo 21” [www.
‘‘ Eu faço poesia. Poesia não
‘‘
dá retorno financeiro. É prima
pobre da literatura.
verbo21.com.br], afirma que não, e aponta
a comodidade dos escritores como uma da Sandro Ornellas, escritor.
causas para o mercado ser tão restrito. “Os
escritores querem ser descobertos e querem
ser descobertos enquanto gênios. Há a
necessidade de deixar o papel de vítima. para que você tenha um mercado criado e E dá pra viver de literatura?
A responsabilidade é do próprio escritor; depois a coisa possa andar com as próprias A distribuição é mais um problema. As
se o autor quer ser publicado, tem que se pernas”, explica. livrarias cobram 50% do valor do livro
mexer. O mais importante é não cruzar os Alguns autores enxergam na iniciativa quando este é deixado em consignação.
braços, esperando que um edital vá salvar própria a maneira mais rápida de terem O valor parece abusivo para quem já
a sua vida”, reclama Lima. Wladimir Cazé, seus livros publicados e resolvem bancar bancou a editoração. “Por isso meu livro
autor do livro “Microafetos”, produzido todo o processo. No entanto, é preciso ter só está em duas livrarias, foram as que
de forma independente, acredita que dinheiro para investir. As editoras baianas se sensibilizaram com o fato de eu ter
depender do governo pode ser nocivo para especializadas em outros segmentos que bancado o livro sozinho. Cobrar 50%
quem escreve. “As políticas de incentivo não a literatura, publicam, eventualmente, de um livro que tem editora, tudo bem,
deveriam ser, como a própria palavra diz, obras de ficção de autores que têm mas cobrar de um escritor independente o
apenas um incentivo, um fomento inicial como pagar. A EDUFBA, que trabalha mesmo que se cobra de um Paulo Coelho
prioritariamente com livros técnicos e é ser cara-de-pau”, reclama Ricardo
científicos, é um exemplo disso. “Prestamos Cury, escritor iniciante que lançou seu
serviços. Não é uma publicação da nossa primeiro livro, “Para Colorir”, em 2008.
editora, é do autor. Normalmente são Cury não conseguiu retorno financeiro
livros de poesia”, explica Flávia Garcia imediato para seu investimento. “Depois
Rosa, diretora da EDUFBA. Uma tiragem de ter vendido quase 500 livros, a dívida
pequena, de 300 exemplares, pode custar ainda estava viva”, comenta. Ainda assim,
de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil. Pelo alto custo, o escritor vê o futuro de forma otimista.
os autores baianos acabam procurando “Acho que dá pra ganhar dinheiro. O que
gráficas e editoras do eixo Rio-São Paulo, não dá é para ficar rico, mas dá para, pelo
onde a concorrência é maior e, por menos, conseguir trabalhos com o livro”.
conseqüência, os preços menores. Nem todos pensam dessa maneira.
O escritor e professor de literatura da Ornellas é mais pessimista quando fala da
Faculdade de Letras da Universidade sua relação financeira com a literatura. “Eu
Federal da Bahia, Sandro Ornellas, é não estou pensando em retorno. Eu faço
um dos que bancou seu próprio livro, poesia. Poesia não dá retorno financeiro.
chamado “Trabalhos do Corpo”, através É prima pobre da literatura. Pode dar
da editora carioca Letra Capital, investindo prestígio, poder cultural, visibilidade, mas
aproximadamente R$ 3,5 mil. Segundo ele, dinheiro não dá”. Ernesto Diniz, escritor e
o maior problema do escritor, atualmente, blogueiro [www.sonhadores.org/ernesto],
nem é publicar um livro, e sim conseguir parece compartilhar da idéia. “Desde 2001
com que este tenha circulação. “Não é escrevo blogs e já senti muita vontade de
da noite para o dia que você consegue publicar um livro. Hoje, desencanei”,
mandar 800 livros para todo o Brasil. Além desabafa. “Minha relação com a literatura
de pagar o livro, você tem que enviar para é a mesma relação que temos com a
quem interessa”, conta Ornellas. respiração: eu respiro. Ponto”.
12 FRAUDE 2008/09
13. Anima
meu re
i!
texto Marcel Ayres e Rodrigo Lessa
ilustrações Ricardo Falcão
O horário nobre da televisão comprova: é cada vez mais comum assistir a
comerciais em que desenhos ganham vida e roubam a cena principal. Peixes
cantores, línguas falantes, ovelhas motoqueiras e até uma tartaruga que
joga futebol são exemplos conhecidos do universo ilimitado da animação.
Personagens fictícios que marcam época, lançam vocabulários e se consolidam
no imaginário do consumidor – um diferencial e tanto em uma era de mercados
competitivos. Por trás dessas propagandas, estão envolvidos profissionais de
diversos campos, que, munidos de muita criatividade, conseguem prender
alguns minutos de atenção do público. Na Bahia, onde o setor publicitário não
apresenta o mesmo desenvolvimento que no Sudeste do país, a situação se
revela menos “animadora”. Sem verbas nem demandas de produção atraentes,
os profissionais locais se vêem sem muitas opções de trabalho, embora atestem:
pelo menos na mão-de-obra, não falta qualidade.
FRAUDE 2008/09 13
14. Para entender o mercado de animação Obstáculos no caminho do país, não apenas no Sudeste. Embora
publicitária na Bahia, primeiramente Em Salvador, quem resolve investir em a animação não seja uma tradição na
temos que recorrer ao seu passado. animação para a publicidade tem que Bahia, o estado é berço de profissionais
Na segunda metade da década de 90, enfrentar alguns agravantes. A demanda reconhecidos e que estão ávidos por uma
a animação era novidade no estado. por serviços, por exemplo, oscila com oportunidade. “Somos tão bons quanto os
Isso fez com que os profissionais que o próprio mercado publicitário que, de animadores de fora!”, exclama Falcão. A
atuavam na área criassem expectativas acordo com o ilustrador e empresário qualidade das produções baianas, quando
“glamourosas” sobre o seu futuro. No Adriano Dias, “está fraco em todos os há investimento, em nada deixa a desejar
entanto, dez anos depois, percebe-se que quesitos, pois a maioria dos trabalhos é de se comparada com outras regiões. O que
os rumos da animação baiana não foram campanhas institucionais para empresas e a determina, no final das contas, são o
exatamente os previstos. A coisa esfriou não de peças publicitárias mesmo”. Há, dinheiro e o tempo despendidos, e não o
e, para muitos, não houve o crescimento também, um excesso de profissionais que, estado em que as peças foram executadas.
esperado. As regiões economicamente anualmente, se formam e não conseguem “Quanto mais clientes com capacidade de
mais estáveis, com grandes anunciantes, oportunidade de emprego. Além disso, investimento, mais estimula o crescimento
agências e produtoras, ainda concentram em alguns casos, a animação requer mais da produção de animação”, opina o
as maiores contas publicitárias do país. “A tempo de produção, contrariando a lógica publicitário Leonardo Capello, que atua
publicidade baiana de forma geral não vai de rapidez do mercado. na área de design e vídeo há 15 anos.
bem. As decisões estratégicas estão cada Mesmo com os problemas encontrados Mesmo que haja demanda de serviços,
vez mais centralizadas no Sul e Sudeste na prática profissional, animadores mais pode surgir uma outra dificuldade, desta
do país, o que faz com que as estruturas otimistas como Ricardo Falcão – digital vez, associada às características do próprio
se ‘enxuguem' por aqui”, lamenta Ducca designer que já trabalhou para a TV Aratu, trabalho solicitado. Em Salvador, dominam
Rios, publicitário e designer baiano que TVE, TV Bahia e Propeg – apontam que os anunciantes varejistas, que mesmo com
já fez trabalhos para Tim, Oi, Braskem, a animação publicitária vem dando grandes campanhas oferecem orçamento
Petrobrás e Coca-Cola, entre outros. sinais de crescimento em outras regiões reduzido e exigem substituições quase
‘‘O profissional de animação não deve
ser um mero operador de softwares.
‘‘
Ducca Rios, publicitário e designer.
15. diárias das peças veiculadas. É o caso, Filmes, que faz serviços de animação 2D, manter a marca ativa no mercado e,
por exemplo, de estabelecimentos que 3D e efeitos visuais em Salvador. Fundada de quebra, movimentar os caixas das
trabalham com promoções diárias e ofertas em 1993, a empresa já foi responsável empresas. Nos últimos anos, os editais
relâmpagos. Para Jorge Nascimento, pela criação de peças de animação para também vêm se revelando como uma
desenhista animador com mais de 30 diversos estabelecimentos comerciais da alternativa interessante. Exemplo disso
anos de experiência, essas peças que cidade, além de vinhetas institucionais para é a TV Brasil - rede de televisão pública
exigem pressa e trocas constantes “talvez a Coelba, Petrobrás e redes de televisão brasileira pertencente à Empresa Brasil
sejam as maiores inimigas da animação como a TV Itapoan (filiada ao SBT, na de Comunicação (EBC) –, que abriu trinta
publicitária”, que solicita mais tempo de época), Rede Bahia e TVE. Questionado editais no início de 2008 para escolher
feitura. O resultado do impasse é facilmente sobre porque resolveu investir no mercado filmes de animação, dentre outros, para
visto na maioria das propagandas baiano, Dias é enfático. “Embora tenha as TVs educativas. Para o desenhista Jorge
locais: desprovidas de animações mais permanecido em Salvador por amor à Nascimento, que começou a trabalhar
elaboradas, as peças contam apenas com cidade, o que me motivou a vir para cá com animação no início da década de 70,
pequenas inserções do tipo table top – foi a vontade de desbravar um mercado iniciativas como essa têm contribuído para
animação feita a partir de filmagens ou novo”, revela. que as empresas locais e seus profissionais
gravação de um letreiro, arte ou fotografia No entanto, quando não há uma ganhem um maior prestígio e o mercado
estática, simulando, através da câmera, o valorização da mão-de-obra, corre-se o se aqueça gradativamente.
movimento desse objeto. risco de surgirem os “faztudo”, que são
aqueles profissionais não-especializados Onde eu aprendo, hein?
Por conta própria que, a preços baixíssimos, desenvolvem Para quem pretende trabalhar com
Diante de um mercado que não oferece materiais de qualidade duvidosa. O animação publicitária, a formação é
atrativos para as empresas locais, muitos publicitário e ilustrador Rafael Borges, uma etapa fundamental. Uma busca que
profissionais resolvem agir por conta que vê tal prática como uma desvantagem requer dedicação, paciência e, por que
própria. Ao realizar trabalhos esporádicos para o crescimento da profissão, é não, uma pitada de talento. Mas esse não
e sem vínculos institucionais, os freelancers contundente. “Tem muita gente quebra- é um caminho fácil; por se tratar de uma
garantem a sua independência, o que galho por aí, mas são pouquíssimas as área profissional que é recente no país,
muitas vezes pode até significar um ganho pessoas que estão realmente qualificadas os desafios enfrentados no processo de
maior pelo serviço prestado. A prova de pra fazer animação”, alfineta. capacitação se tornam ainda maiores.
que a ousadia pode dar certo é vista na Para sobreviver nesse cenário, o jeito Como no Brasil não há um curso superior
história de Adriano Dias, que iniciou é se virar. Na falta de outras opções, específico para a profissão, os iniciantes
a carreira como freelancer na capital muitos profissionais enxergam nos têm que buscar alternativas para suprir
paulista e hoje é um dos donos da Olhar materiais institucionais uma saída para essa deficiência. Uma das saídas é investir
Em 2008, Salvador
Bahia animada
sediou o Animaí -
II encontro Baiano
de Animação – evento
que reuniu estudantes e
profissionais da área para
participarem de atividades
de criação, aprendizagem,
desenvolvimento técnico e
exibição de obras. O encontro
ofereceu oficinas e seminários
sobre os rumos da animação
baiana, além de promover
o encontro Animação
Nordeste: ações para o
fortalecimento regional.
FRAUDE 2008/09 15
16. em graduações afins, como Publicidade não deve ser um mero operador de
& Propaganda, Cinema e Design, que softwares. Ele deve também entender de
oferecem disciplinas tangenciais ao comunicação, de roteiro, de linguagem
campo desejado. cinematográfica e, se possível, de
Nos últimos anos, vem se delineando ilustração”, aponta.
uma outra possibilidade. Embora ainda Diante de tantas dificuldades, muitos
seja um movimento tímido, algumas iniciantes optam por um percurso
universidades começaram a dialogar mais ainda mais alternativo para a sua
diretamente com a animação e criaram formação profissional. Motivados pelas
cursos nessa área. É o caso do curso de possibilidades da internet, eles constróem
Belas Artes com habilitação em Cinema um caminho autodidata, em que tutoriais,
de animação da UFMG (Universidade listas de discussão e comunidades virtuais
Federal de Minas Gerais), e das Graduações se convertem em uma espécie de guia para
Tecnológicas de Design de animação da a carreira a ser seguida. Outra possibilidade
Universidade Anhembi Morumbi, de São está em cursos online, como o Animation
Paulo, e de Design Gráfico - Ilustração Mentor[www.animationmentor.com],
e Animação Digital 3D da Universidade que permitem, a qualquer um que esteja
Veiga de Almeida, do Rio de Janeiro. interessado, produzir as suas próprias
Em 2004, mais um avanço: a PUC-RJ animações. Além de contribuir para a
(Pontifícia Universidade Católica) lançou formação desses futuros profissionais, a
a primeira pós-graduação brasileira em Internet seria ainda uma solução para
animação. entrar no mercado e driblar a baixa
Na Bahia, no entanto, não há demanda de serviços. “Embora ainda não
especializações ou cursos superiores seja uma realidade significativa em nosso
específicos na área, restando poucas estado, a web permite que se prospecte
opções para a capacitação. Além de clientes em qualquer lugar do planeta”,
oficinas realizadas em eventos esporádicos, aponta Rios.
algumas escolas locais de informática
oferecem cursos profissionalizantes, que
ensinam os alunos a mexer em softwares
essenciais ao trabalho do animador. Mas,
para Ducca Rios, que trabalha há 15
anos com publicidade, uma formação de
?
qualidade exige mais do que um ‘saber
iu
manejar'. “O profissional de animação
rg
su
do
n
ua
Q
A jovem animação
brasileira nasceu na
segunda metade do
séc. XX. Após algumas
experiências, em 1953
foi lançado o primeiro longa-
metragem de animação em terras
tupiniquins, o “Sinfonia Amazônica”,
de Anélio Lattini Filho. A partir de 1960 a
animação passa a ter presença na publicidade
e começam a surgir os primeiros profissionais
da área como, por exemplo, o chargista
japonês, Ypê Nakashima, autor de “Piconzé”,
primeira animação colorida produzida no Brasil.
16 FRAUDE 2008/09
17. Salada de estilos, com muito rock
e bom humor
Contatos para show:
João Carlos - joao@maniacrecords.com.br
(71) 8896-1735
www.labfoto.ufba.br
3283-6185
18. Artistas de
brinquedo texto Alana Camara e Tarcízio Silva
I - Marcelo tem dezenove anos. Acorda e vai para a
faculdade, como tantos jovens. Na saída, se encaminha
para uma loja. Aproxima-se do balcão e escolhe uma
dentre dezenas de pequenas caixas, todas com a
mesma embalagem. Passa a mão sobre os envoltórios
de papel cartão, como se tateasse um tesouro.
Finalmente escolhe uma. A apreensão enquanto
abre a caixa logo se transforma em um sorriso
de satisfação. Ao chegar em casa, coloca sobre
a estante o mais novo item de sua coleção.
II - Juliana e Márcio observam
atentamente a máquina de costura
tremer sobre o tecido. A agulha
encontra resistência demais. Lá
se vai mais uma viagem à loja
de materiais. Outra visita, mais
experiência. Buscam perfeição
de peso, textura e cor. Cada
detalhe da criação deles,
por menor que seja, deve
sair exatamente como
imaginaram.
18 FRAUDE 2008/09
19. III - Deitada no chão de seu quarto
entre dezenas de papéis, Lívia se diverte,
concentrada em pintar uma das folhas
de papel cartão. Trabalho pronto, pega
uma tesoura. Recorta minuciosamente algumas
formas estranhas. Começa a dobrar e a montar
os pedacinhos de papel, agora coloridos. Encaixadas
todas as aparas, a menina cria um novo objeto.
As ligações entre os três personagens transmitir uma mensagem. Cada toy deve exemplo foi o “Original Fake Companion”,
são mais estreitas do que parecem à ter características e design singulares, por do artista Kaws, vendido por esse valor.
primeira vista. Papel, pano ou resina. isso a novidade é fundamental. As peças Quanto ao aspecto comercial, as práticas
Colecionismo, dobraduras, costuras, são feitas em séries pequenas, sempre também variam muito. As peças podem
caixas-surpresa... Elementos pertencentes trazendo uma visão diferenciada daquilo ser encontradas em galerias de arte ou em
às práticas e consumos de uma mesma que representam, o que lhes garante um lojas, e a compra pode ser convencional,
atividade: a Toy Art. quê de raridade e de colecionismo. aquela em que o consumidor escolhe a
Definido pelo dicionário, um brinquedo peça que quer levar, ou através da chamada
é “um objeto ou uma atividade lúdica, Corta, molda, encaixa blind box ou caixa cega – caixas vendidas
voltada única e especialmente para Com as peculiaridades de cada lugar, lacradas, de modo que o comprador não
o lazer”. A Toy Art seria outra forma as cenas narradas se repetem por todo sabe que toy está dentro. Nesse caso,
de criar e de consumir brinquedos. o mundo. Em pouco menos de 15 anos, pode vir tanto um de tiragem de 5.000
Ela se apropria desse formato para a Toy Art surgiu, virou febre e ganhou exemplares, quanto um raríssimo, do qual
ir além: o brinquedo deixa de algum reconhecimento artístico. Tudo exista apenas uma dúzia no mundo todo.
ser mero objeto de diversão e se começou com a tendência crescente de Mas não são apenas os brinquedos de
transforma também em suporte colecionismo de brinquedos por adultos, plástico, fabricados industrialmente, que
para a expressão artística. mas o nome e o conceito de Toy Art só encantam artistas e colecionadores. Outra
Andréa May, artista plástica foram cunhados de fato em 1996, quando categoria da Toy Art é a chamada têxtil
baiana e criadora de Toy Art , o artista Michael Lau, de Hong Kong, ou artesanal. Inspirados em bichinhos de
define a prática como “a idéia criou uma série de toys em resina. Os pelúcia, os criadores utilizam diferentes
e a imagem materializadas em toyarts nasceram, assim como acontece tipos de tecidos, costuras e botões para
forma de brinquedo”. A Toy Art, com a arte urbana dos países mais ricos criar personagens bem particulares. É o
no entanto, vai além do apelo do sudeste asiático, bebendo das mais tipo de toy mais difundido no Brasil, tanto
lúdico e visual. O seu plus está diferentes fontes estéticas e temáticas, pela facilidade de produção, quanto pelas
justamente em carregar também um indo da pop art e do grafite ao folclore ou influências do artesanato.
conceito, um valor. A idéia é trazer uma às lendas urbanas. Há, ainda, um outro tipo de toyart que
história associada ao brinquedo, que tem Os toys mais famosos são os de vinyl vale à pena citar: os paper toys, ou os
como característica ironizar, criticar e (um tipo de plástico) e geralmente toys de papel. Facilmente encontrados
satirizar a realidade, fazendo, em geral, representam animais antropomorfizados. na internet, distribuídos por artistas e
referências à cultura contemporânea e à Coelhos, macacos e raposas estão entre coletivos, são arte sobre papel dobrável,
pop art. os mais criados. Como cada artista cujos arquivos - de download geralmente
Os toyarts expressam, assim, uma visão costuma produzir poucos exemplares gratuito - qualquer pessoa do mundo
única do artista, que converte uma coisa de cada toyart, o valor pode chegar, em pode imprimir, customizar e se divertir
comum – o brinquedo – em algo capaz de alguns casos, a mais de 5 mil dólares. Um cortando, dobrando e montando. Lívia
FRAUDE 2008/09 19
20. Argolo, estudante de design, conta costureira”, conta Márcio. A proposta era Janeiro, e na Casa de La Madre, em Porto
que conheceu a Toy Art assistindo à trabalhar com todo o tipo de referências, Alegre, por exemplo. Sobre seus clientes,
série Mundos Invisíveis, do Fantástico, não ter nenhum limite. “A gente queria Iana fala que nem todos sabem o que é
realizada inteiramente com animações colocar a nossa vivência. Então tem de Toy Art. “Alguns pensam que é apenas
de personagens feitos de papel. Ao buscar tudo. Coisas que são regionais, coisas que um bonequinho estranho ou bonitinho e
as referências do trabalho, descobriu os são mais pop”, afirma Márcio. outros nos descobrem por ter uma noção
paper toys. Para Lívia, que não coleciona Quanto aos materiais utilizados pela da tendência”, diz. Quanto às referências,
outros tipos de toyarts, é justamente a dupla, não houve restrição, como explica ela conta que procura não ter influências,
etapa lúdica de recorte e de dobragem Juliana: “Ainda estávamos tateando. pois quer ser reconhecida pelo seu traço
que a fazem preferir essa categoria. “No A gente pensava em um material, e desenho.
final das contas, vale mais o conceito do comprava e botava na máquina. Se a Outra marca baiana que chama
toy do que o material em si”, conclui a máquina costurasse, beleza”. A coleção a atenção é a Íons, concebida pelos
estudante. dos Brinquedos Pândegos contou com designers Andrea Sagiorato e Igor
doze toys, com referências que iam de Bittencourt. O casal teve acesso à Toy Art
No tabuleiro da baiana tem também elementos típicos da cultura baiana, pela primeira vez também na oficina do
Em terras brasileiras, como não como o candomblé, à lenda-urbana do NDesign, onde cada participante recebeu
poderia deixar de ser, a Toy Art sofreu punhal dentro do boneco Fofão. Uma tecidos, enchimento, agulha e linha para
reapropriações e influências. A produção forma de arte ainda quase desconhecida fazer seu próprio toy. Mas somente depois
nacional concentra-se no uso de materiais no universo acadêmico, os toyarts de que Andrea fez, de presente de namoro,
alternativos e na confecção artesanal, Juliana e Márcio chamaram a atenção de dois bonecos de plush (um tipo de tecido
um reflexo das nossas especificidades professores e colegas e tiveram excelente aveludado) representando ela e Igor, é
culturais. É enorme a presença de toys repercussão. que surgiu o projeto da Íons. Ao discutir
handmade ou, numa tradução literal, Por se tratar de uma prática ainda pouco qual seria a sua proposta, os dois optaram
feitos à mão e utilizando como matérias- disseminada, foi uma surpresa descobrir por desenvolver algo que fosse novo no
primas o tecido, a resina ou o papel. em Juazeiro, cidade do sertão baiano, cenário brasileiro. “Vimos que, apesar
Márcio Campos e Juliana Castro, uma marca já consolidada de Toy Art: a de ser um movimento recente, os toyarts
formados em design pela UFBA, Iaiá BA. A pequena empresa foi idealizada de plush estavam muito comuns entre os
fizeram uma coleção de toyarts como pelas irmãs Iana Barbosa – artista plástica que se produziam e por isso optamos por
projeto experimental de conclusão de responsável pela criação e produção dos criar algo diferente”, conta Igor. Fizeram,
curso. Optaram por peças artesanais, toys – e Dandara Almeida, designer, que então, um molde em clay (material
costuradas, considerando principalmente cuida dos contatos e da identidade gráfica utilizado pelas montadoras para modelar
a disponibilidade de materiais e a maior da marca. As duas conheceram a Toy carros em tamanho real) e produziram as
facilidade para trabalhar. “Na época a Art em 2006, numa oficina realizada no peças em resina. “Acredito que a resina
gente via que os toys no Brasil tinham essa 16º Encontro Nacional de Estudantes de não seja o melhor material para os toys,
forte tendência e para nós seria o melhor, Design (NDesign), em Brasília. mas fazer em vinyl tem um custo muito
porque já conhecíamos uma ótima Como em casa de ferreiro, o espeto é alto”, afirma o designer. Os toys da Íons
de pau, Iana afirma que os produtos não são vendidos através do Flickr [www.
são tão valorizados em Juazeiro, mas flickr.com/photos/ionsartbr] e podem ser
que fazem sucesso em outros lugares e encontrados em branco – para que o dono
são vendidos em lojas de todo o Brasil - o customize – ou já pintados por Igor e
na Sementinhas de Amarena, no Rio de Andrea. As influências do trabalho são de
20 FRAUDE 2008/09
21. ilustradores e de toyzeiros, à Empecilhos à parte, a
exemplo de Simone Legno, Toy Art vai, pouco a pouco,
de John Burgerman e de encontrando seu espaço,
Hiroshi Yoshi. se firmando como estética
contemporânea e conquistando
Disseminando & uma legião de aficcionados. Para
Aprendendo Marcelo Almeida, fã de Gary Baseman
Muito embora a produção e dono de uma coleção que não pára
nacional e baiana de toys esteja de crescer, os toyarts estão invadindo a
crescendo, é ainda difícil encontrar mídia, a publicidade e a vida das pessoas.
no país lojas especializadas e que “Estão entrando em nossa cultura e eu
vendam também artigos importados. A acho muito legal ter um pouco mais de
mais conhecida é a paulista Plastik, além Juazeiro, para adolescentes carentes, cor, de criatividade e de inspiração no dia-
de existirem algumas lojas virtuais. Em que culminaram num coquetel para a a-dia”, afirma o estudante, que substituiu
Salvador, no entanto, não há nenhum exposição dos trabalhos à imprensa, os potes, as estátuas de madeiras e as
empreendimento deste tipo. Andrea May aos representantes locais do BNB e aos caixinhas com folhas perfumadas - que
conta que até sonhou em abrir uma loja familiares dos participantes do curso. a mãe havia comprado para decorar sua
dedicada à Toy Art quando montou sua Iniciativas que comprovam que a arte casa - por “bonequinhos de 6 cm, muito
primeira coleção, mas que seria muito está em expansão, mesmo que ainda mais legais e baratos”, hoje distribuídos
utópico, pois as vendas seriam mínimas. timidamente. em móveis e prateleiras.
Andrea comprovou sua teoria ao colocar Para quem quer ingressar no mundo * Feira realizada dentro do projeto Aparelho Cultura, cuja
stands do Toy Centro (ver box) na Feira da Toy Art, seja como criador, seja como idéia era, além de comercializar diversos produtos, favorecer
o intercâmbio entre os segmentos da cultura pop/tech de
Hype*, experimento que classificou colecionador, nada como uma boa Salvador.
como desentusiasmante. Para ela, “se pesquisa. Há alguns excelentes livros
existe uma lacuna nesse comércio é sobre a temática, como “Full Vinyl: The
porque as pessoas não viajam na idéia Subversive Art of Designer Toys”, de
e não costumam investir em coisas Ivan Vartanian, “I Am Plastic: The
lúdicas e artísticas. Preferem roupas de Designer Toy Explosion”, de Mais Toys!
grife”. Ao invés de cruzar os braços, May Paul Budnitz e “Plastic Culture: Toy Centro: foi criado no início de 2006, por
considerou os problemas como desafio. How Japanese Toys Conquered Andrea May, para ser um local de compartilhamento
Em 2005, carregando a experiência de the World”, de Woodrow de idéias, contatos, ações e eventos envolvendo a Toy
Art, seja na Bahia ou em outros cantos do Brasil. Pode ser
exposições individuais de suas obras Phoenix. Infelizmente, são acessado em [www.toycentro.blogspot.com]
em Toy Art, ela levou à frente a I Mostra encontrados apenas em Para mais informações e para fazer os seus próprios é só
Imagética de Art Toy, a versão brasileira inglês e, importados, custam acessar:
Vinyl Abyse [www.vinylabuse.com]: Referência em toys
de “ToyWallArtShow”, reunindo vários mais de 100 reais por de resina
artistas de todo o Brasil. exemplar. Mas na web é Toypaper [www.toypaper.co.uk]: Baixe e monte seus
Outro evento relevante para a possível encontrar uma próprios paper toys
Paper Critters [www.papercritters.com]: Crie,
disseminação da Toy Art foi o curso lista sem fim de imagens, desenhe, imprima e monte paper toys
produzido por Iana Barbosa e financiado sites e blogs, tanto de
pelo Banco do Nordeste (BNB). A artista marcas e de lojas, quanto
ministrou aulas de criação de toys em de criadores e fãs.
FRAUDE 2008/09 21
22. Cem mil em texto Carolina Guimarães e Mirela Portugal
fotos Evandro Teixeira
1968
Os quarenta anos da histórica foto da Passeata dos
Cem Mil, nascida da lente do fotojornalista baiano
Evandro Teixeira
22 FRAUDE 2008/09
23. “Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta,
mais positivo, mais queimante,
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como a exorcizar?”
Diante das fotos de Evandro Teixeira,
Carlos Drummond de Andrade.
Ao ajeitar a lente 35 mm na frente do feito, filme entregue ao laboratorista. E
rosto, procurando um novo ângulo para alguns anos de silêncio. O fotograma
recortar a multidão que se estendia na que se tornaria o símbolo de uma época
Praça Marechal Floriano na Cinelândia, só ganharia as folhas de papel 15 anos
Evandro não sabia que a foto não seria depois.
publicada. Esforçou-se como se a imagem
fosse para a primeira página. Algum sexto Cem mil em uma foto
sentido guiou seu olhar até o momento Muito já foi dito, escrito, celebrado
perfeito para o clique. e descoberto sobre o ano de 1968. Não
Não lhe parecia um grande desvio da há quem nunca tenha ouvido histórias
verdadeira missão daquele dia: registrar de heroísmo ou tirania sobre aquela que
o exato momento da prisão do líder foi uma das épocas mais lembradas e
estudantil Vladimir Palmeira, a qual, idealizadas da história do Brasil. Porém,
segundo rumores, aconteceria durante nada consegue sintetizá-la tão bem
a manifestação que mais tarde seria quanto a imagem capturada pela lente
conhecida como Passeata dos Cem Mil. de Evandro Teixeira. Um quadro perfeito
Ao seu lado, no alto da escadaria da de multidão, no qual só um detalhe se
Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, destaca: um cartaz com as palavras de
o jovem Vladimir discursava, inflamado. ordem que estavam na ponta da língua
Mais tarde, ele iria embora ileso, e a foto de todos os presentes: “Abaixo a ditadura.
pretendida jamais nasceria. Nenhum Povo no poder”.
problema para o fotojornalista, que Despreocupado com a modéstia,
empunhando sua velha Leica, enquadrava Evandro não hesita em chamar aquele
e registrava o magnetismo dos cem mil 26 de junho de 1968 de um dos dias
que fizeram história naquele dia. mais bonitos do Brasil. Era uma manhã
No retorno para o laboratório de ensolarada de quarta-feira, a despeito
revelação do Jornal do Brasil, passada a do inverno que se anunciava. A célebre
ânsia do momento, Evandro Teixeira não Passeata dos Cem Mil coloria as ruas com
se deteve muito ante os negativos. Estava o calor idealista dos estudantes, artistas,
mais preocupado em medir a temperatura religiosos e intelectuais. Era a maior
do revelador com o dedo e dar corda no manifestação popular contra o regime
relógio-cronômetro – o JB podia ter idéias dos miltares, e havia sorrisos de tímido
revolucionárias, mas na infra-estrutura otimismo nos rostos.
passava longe do moderno. Trabalho Foram essas faces anônimas, em um
FRAUDE 2008/09 23
24. quadro simples, porém poderoso, que diretor de fotografia descobriu a armação porque não dava pra mudar o cabelo
Evandro Teixeira deixou registrado. E, do cara, e veio já xingando: ‘Demite esse baiano que ele é burro!'”
passados quarenta anos, ele rende suas Uma semana mais tarde, Evandro teve uma segunda chance: “Voltei e fui
homenagens à foto com a linguagem dos escalado para fazer a cobertura do carnaval”. Vestindo um smoking alugado,
iniciados: “Vladimir falava da Câmara, ele foi ao baile do Teatro Municipal. “Subi pro primeiro andar, e, não lembro
e eu estava ao lado dele. De lá do alto, bem porque, não fiz o trabalho. Todo foca é a mesma merda, fui recebido
tirei a foto. Fiz com uma média angular, aos xingamentos de novo. Mas me deram outra chance no desfile da escola
construção belíssima, nitidez incrível, de samba, e aí, finalmente, saiu perfeito, voltei com um material lindo pra
foco do primeiro ao último”, diz Evandro. redação.”
Todos os rostos estão focados, nítidos. Cinco anos mais tarde, já fora do Diário da Noite, dividia a redação com
Qualquer um pode, com relativa Zuenir Ventura e Carlos Drummond de Andrade, no ilustre Jornal do Brasil. “O
facilidade, reconhecer a si mesmo ou a JB era o sonho de todo jornalista, e é onde estou até hoje. Eu tinha medo de ir
parentes e amigos. Mas, ao mesmo tempo, pro jornal, porque era glamouroso, top de linha demais e eu pensava que não
poderiam ser de qualquer um. Evandro estava preparado. Quando o editor me xingou pela primeira vez, vi que podia
não buscou enquadrar pessoas famosas ou trabalhar ali.”
influentes, muito embora algumas – como Evandro diz que o jornalismo era mais romântico naquela época, pois havia
Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto mais tempo disponível para a apuração, a pesquisa, o jornalismo investigativo.
Gil – estivessem presentes na Passeata. A “Hoje não existe mais isso, ninguém faz nada com tempo, tudo é para ontem”,
multidão ali retratada é de anônimos, um lamenta.
recorte, uma síntese do que foi aquele dia,
em que o povo foi às ruas. E, por causa Cem rostos quarenta anos depois
disso, de alguma forma, todos os cem mil Evandro já estava com a carreira consolidada quando a foto da Passeata –
estão naquela foto. que ficara esquecida desde 68 – foi resgatada durante a preparação de seu
primeiro livro, Fotojornalismo, lançado em 1983.
O estagiário e o foca Enquanto fazia o projeto gráfico do livro, Elayne Fonseca, designer e amiga
Até ter a oportunidade de fazer a célebre de Evandro, encontrou a si mesma e ao seu marido, o arquiteto Ernandes
fotografia, Evandro Teixeira, baiano Fernandes na foto. Em 68, eles ainda não se conheciam.
nascido em Irajuba (a 300 km de Salvador) “Ele [Evandro] tinha umas duas caixas cheias de fotos, íamos para a casa
precisou deixar tudo que conhecia para dele, eu e o Ernandes, e passávamos uma por uma, tínhamos que achar umas
construir sua carreira no Rio de Janeiro. 100 legais para publicar. No meio delas, havia uma cópia da foto. E ela era
Ao chegar em frente ao modesto prédio tão nítida que eu reconheci facilmente um amigo meu. Isso me abriu a idéia
do jornal Diário da Noite, nada nas mãos de que ali podia ter mais gente conhecida”. Depois foi fácil encontrar amigos
a não ser uma carta de recomendação da faculdade, até que finalmente Elayne se reconheceu, alguns metros abaixo
e, na cabeça, a idéia de que o Rio era de Ernandes.
o destino de todo artista, Evandro não Esse foi o embrião do projeto “68 destinos”, lançado alguns anos depois.
teve a melhor das acolhidas: “Baiano, vá O objetivo era localizar e contar a trajetória de 68 pessoas entre os presentes
fotografar os casórios. Pode ser qualquer naquela foto.
um de dia, de tarde ou de noite, só não Para isso foi criado um site [www.evandroteixeira.net/68destinos], onde
quero gente preta”, foram as palavras do o usuário poderia identificar os rostos na foto ao mover o cursor e ver cada
editor. Era o seu primeiro trabalho como pessoa ampliada. O próximo passo era enviar informações sobre aquela pessoa
fotojornalista. por e-mail.
Depois de procurar o dia inteiro, o O projeto, patrocinado pela Petrobrás, logo se
único casamento que Evandro encontrou
foi o de, como ele descreve, “um negão
com um black power e uma loura alemã”.
tornou conhecido. Foram localizadas não 68, mas
100 pessoas, número que remetia à passeata dos
Cem Mil. “Eles têm histórias maravilhosas - gente
‘‘ A célebre Passeata dos
Cem Mil coloria as ruas
com o calor idealista
Apesar das instruções recebidas, fez a foto que foi trocada por embaixador americano, que
assim mesmo.
“Cheguei à redação e pedi ao
fez parte da luta armada, outros que entraram pra
equipe do Lamarca e do Mariguela. E fotografei
dos estudantes, artistas,
religiosos e intelectuais.
‘‘
laboratorista, que faz o papel do photoshop essas pessoas hoje em dia, na praça da Cinelândia
de hoje, até muito melhor, para dar uma também, como se ainda assistissem Vladimir Evandro Teixeira.
mexida, e o cara ficou branco. Mas aí o falar”.
24 FRAUDE 2008/09
25. Renato Ribas tinha um perfil
diferente daqueles que formavam
a massa de manifestantes – era
empresário. Aos 28 anos, tinha
sociedade numa empresa de
consultoria na área metal-mecânica.
Mas algo o unia àquela multidão que
foi às ruas naquele dia: a ideologia.
“Acho que poucos sabem ou dão
valor ao que representou a passeata:
a certeza de que uma manifestação,
uma reação a um determinado estado
de coisas pode, sim, levar governos a
alterar suas atitudes“.
Doutora em Antropologia Social,
Yvonne Maggie estava com 23 anos
àquela época. Por achar que seria
uma manifestação importante, ela
decidiu ir sozinha, já que o namorado,
o hoje antropólogo Gilberto Velho,
tinha ido comprar as alianças para
seu casamento, no mês seguinte. Por
acaso, ela encontrou o futuro marido
na multidão, com as alianças numa
caixa embrulhada com papel de
presente.
“Só uma coisa está presente ontem
como hoje: a consciência muito forte
de que, sem liberdade e sem liberdade
de pensamento e de expressão, é
impossível a vida“.
Trechos do livro “1968: Destinos. Passeata dos Cem Mil”, de Evandro Texeira.
O projeto deu origem ao livro “1968: movimento. Foi um dia muito tranqüilo”. foto, uma coisa linda, que foi puxando
Destinos. Passeata dos Cem Mil”, lançado Tanto ela quanto Ernandes lembram que a o fio da meada, fazendo a gente se
em Abril deste ano pela editora Textual, Passeata foi pacífica. reencontrar”, completa Elayne.
no qual as pessoas localizadas contam Segundo ele, a manifestação foi Evandro considera que sua foto – aliás,
suas histórias e o que mudou em suas “ganhando ares de festa”. Elayne não somente essa – serve como uma
vidas nesses quarenta anos. concorda: “Lembro de uma amiga minha, contribuição para que as gerações futuras
que também saiu na foto, que ia cantando possam saber como era a vida em um país
Um instante para a posteridade e comendo chocolate, e eu recriminava: sem democracia. ”Hoje mesmo, a editora
E o que ficou do passado? Como olhar, ‘Nossa, você parece que está numa festa'. recebeu um e-mail e me repassou: ‘Estou
hoje, para aquele distante 68, quando todas Eu pensei que era um clima mais sério, na foto, Evandro. Fico muito feliz. Minha
as utopias, sonhos e esperanças de uma mas era, de fato, uma festa”. mãe fará 83 anos, e vou presenteá-la com
geração estavam vívidos e palpáveis? Ambos destacam a importância da foto o livro. Queria que fosse autografado'.
Para Elayne, a lembrança daquele para a história do Brasil. “É um documento As dedicatórias seriam para Ricardo
dia é felicidade. Ela, que tinha 19 anos histórico muito rico”, diz Ernandes. Magalhães, parte da história do Brasil e
na época, participava do movimento “Durante muito tempo as pessoas tinham para dona Albertina, que também é parte
estudantil. “Ir para passeatas já fazia parte muito medo do DOPS, ninguém nem da História do Brasil”.
dos nossos planos corriqueiros dentro do queria ser visto em foto. Então veio essa
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26. O homem
de todos os
cantos
texto Jéssica Passos e João Araújo
fotos Fabiane Oiticica e Caio Sá Telles
foto Fabiane Oiticica
Há lugares no mundo que passam de Salvador é que Dimitri Ganzelevitch
séculos despercebidos e são descobertos guarda sua coleção de relíquias.
quase que por mágica por pesquisadores, Com a mesma ousadia de quando se
turistas e curiosos. Tal é o caso das ruínas abaixou para pegar a moeda, o homem
romanas em Volubilis, no Marrocos, de bons modos e educação aristocrática
que têm hoje recebido especial atenção, trabalha no Mercado Modelo, consegue
mas há cerca de sete décadas, quando comprar e reformar um casarão no bairro
um menino maravilhado as visitava, de do Carmo e o transforma na casa-museu
mãos dadas com sua mãe, eram quase Solar Santo Antônio, hoje prestes a virar
anônimas. uma fundação.
O rapaz, ao vagar os olhos pelo local, Mas, assim falando, parece que as
deu-se conta de uma pequena moeda dos coisas foram simples. Que do Marrocos ao
tempos dos césares. Tal mudança de olhar Brasil foi como olhar a parte da frente de
em relação a uma coisa tão diminuta um postal, bonito e colorido. A verdade,
determinaria as paixões do homem que ele porém, se pareceu bem mais com as
se tornaria. Setenta e dois anos depois, do linhas em preto e branco da parte de trás.
outro lado do Atlântico, o mesmo garoto A chegada em Salvador em um chuvoso
de olhar pueril reergueria um castelo. março e a abertura da sua galeria de arte,
Numa parte esquecida do centro histórico localizada inicialmente no Pelourinho e
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27. depois na Barra, foram bem problemáticas. trabalhou por tanto tempo com artistas –
Além de ter sérias dificuldades para hoje famosos – como Bel Borba, J. Cunha,
conseguir abrir seus estabelecimentos, Babaloo.
não conseguia vender nada. É difícil acreditar que alguém com a
Hoje, tantos anos depois, Dimitri visão de Dimitri é resultado da união de
já lançou grandes nomes e trabalhou duas famílias aristocráticas e educado
com alguns dos artistas plásticos mais num regime extremamente erudito. Seu
renomados da cidade, como Carybé, mas avô paterno era russo e ficou preso fora do
diz que para ele “vender Carybé é como país quando da revolução bolchevique.
vender uma caixa de sapatos. Ele já é Não podendo voltar, acabou, depois de
famoso, não há mais vibração”. casar com uma moça inglesa, morando
O simpático senhor que nos recebeu de no Marrocos. Seus avós maternos foram
meias diz que a arte “está nos olhos”, e exilados na Argélia. Dimitri brinca que
que se uma pedra ou um galho na praia os dois lados da família foram “vítimas da
causa uma experiência de caráter estético história” e causadores de um “colonialismo
em alguém, seja pelas texturas, cores ou involuntário”.
mesmo pela disposição do musgo, aquilo, Seu primeiro contato com arte se deu
naquele momento, é arte. através de um curso livre em Rabat. Depois
Desde pequeno, Dimitri é ligado à estudou ainda em escolas em Lisboa e
arte do povo e das ruas em todas as Madri e universidades em Paris e Londres,
suas manifestações. Lembra sempre mas sempre detestou a educação formal,
de quando andava, apaixonado, pelas e nunca chegou a ser graduado. Faltava
feiras do Marrocos. Desde que passou aulas em Madri para visitar catedrais e
a morar no Brasil, encontrou terreno museus, por desprezar a formação escolar
fértil e grandes possibilidades na cultura nos moldes que era obrigado a recebê-la.
baiana, notadamente popular, e por isso Em Portugal, trabalhou como pintor com foto Fabiane Oiticica
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