1. fls. 1
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
Ação Civil Pública n.º: 0010081-27.2010.8.20.0001
Autor: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte
Réus: Estado do Rio Grande do Norte e outro
SENTENÇA
DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE.
OFERTA DEFICITÁRIA DOS LEITOS DE UTI.
POPULAÇÃO USUÁRIA DO SISTEMA ÚNICO DE
SAÚDE. DESCUMPRIMENTO DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988 E DAS LEGISLAÇÕES
INFRACONSTITUCIONAIS, ESPECIALMENTE A
PORTARIA Nº 1.101/2002 DO MINISTÉRIO DA
SAÚDE. NÃO OFERECIMENTO DE LEITOS DE UTI
EM UM PERCENTUAL MÍNIMO EXIGIDO PELA
LEGISLAÇÃO. PRESTAÇÃO MATERIAL
INCOMPLETA. INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO
NECESSÁRIA PARA POSSIBILITAR A
CONCRETIZAÇÃO DE NORMAS
CONSTITUCIONAIS VINCULADAS AO MÍNIMO
EXISTENCIAL.
A Representante do Ministério Público ingressou com apresente Ação Civil
Pública contra o Estado do Rio Grande do Norte e o Município de Natal requerendo a execução de
medidas necessárias a implementação da Portaria Ministerial nº 1.101/2002, objetivando a
instalação de , no mínimo, 7% de leitos de UTI em relação ao número total de leitos, os quais
devem abranger os grupos etários adulto, pediátrico e neonatal, levando-se em consideração a
população residente no Estado e no Município, responsabilizando-se cada ente por seus
administrados.
Requereu que fossem adotadas as providências administrativas para credenciamento
junto ao Ministério da Saúde, em observância a Portaria GM/MS 3432/1998, dos leitos de UTI
atualmente instalados em todos os hospitais estaduais, além dos que vierem a ser instalado, a fim
de viabilizar e garantir a transferência das verbas federais necessárias a sua manutenção.
Requereu, também, que o Município de Natal adote as medidas administrativas para
a instituição de uma Central de Regulação de Leitos Hospitalares e Leitos para pacientes críticos,
com funcionamento em tempo integral, que deverá ficar responsável pelo controle da ocupação
dos leitos de UTI disponíveis nos diversos hospitais públicos ou privados contratados.
Fundamentou sua pretensão no direito fundamental à saúde e ao correspondente
dever do Poder Público de assegurar, com absoluta prioridade, essa respectiva garantia
constitucional.
Informou que desde agosto de 2006 o Ministério Público Estadual instaurou o
2. fls. 2
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
Inquérito Civil n.º 012/2006, cujo objetivo era investigar a demanda de leitos de Unidade de
Tratamento Intensivo(UTI) na rede de atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde(SUS),
bem como o quantitativo de profissionais médicos intensivistas, tanto no Estado como no
Município.
O procedimento foi instaurado em decorrência de notícia da própria direção do
Hospital Walfredo Gurgel, onde informava ao Ministério Público o déficit de leitos de UTI na rede
pública de saúde dos entes públicos demandados.
Nas investigações realizadas pela promotoria competente foram detectados vários
problemas, entre eles o seguinte: insuficiência de leitos de UTI; a concentração de leitos na
Capital, em detrimento da precária estrutura existente no interior; a insuficiência de pessoal
qualificado, em especial médicos intensivistas; e a falta de estrutura dos hospitais públicos para a
instalação de novos leitos.
Em decorrência dos problemas observados nos hospitais públicos do Estado e do
Município, a Promotoria competente tomou determinadas medidas administrativas, objetivando a
solução dos problemas, através de recomendações e reuniões periódicas com os entes públicos.
Entretanto, apesar da instalação de mais leitos de UTI, tanto pelo Estado como pelo Município, no
período compreendido de 2006/2009, as medidas não foram suficientes para eliminar a demanda
reprimida e adequar os serviços as normas do Ministério da Saúde.
Assim, como o problema vem se agravando no decorrer dos anos, sem nenhuma
solução eficaz por parte dos gestores públicos, o Órgão Ministerial ingressou com a presente Ação
Civil Pública objetivando a condenação dos demandados para que os mesmos cumpram com a
obrigação de fazer consistente em garantir leitos de UTI conforme as determinações legais.
Juntou documentos de fls. 27/181.
As autoridades demandadas foram notificadas para se manifestarem sobre a
antecipação de tutela, tendo o Estado prestado as informações no tocante ao planejamento que
estava fazendo no sentido de melhorar o atendimento nos leitos de UTI, como a contratação na
rede privada e a realização de concurso público, fls. 192/196.
Acostou documentos de fls. 197/246.
Decisão interlocutória de fls. 247/255, onde foi deferida a antecipação de tutela no
sentido de determinar que o Município, no prazo de 30 dias, providenciasse a ampliação dos leitos
de UTI, junto a iniciativa privada, a fim de complementar o número mínimo equivalente a 4% do
número mínimo de leitos hospitalares previstos nos termos da Portaria 1101/2002 do Ministério da
Saúde. E quanto ao Estado que, em igual prazo, procedesse também a ampliação e instalação de
leitos hospitalares de UTI, com a contratação com a rede privada. E ambos os entes abrissem um
serviço para pacientes pediátricos crônicos.
Informações do Estado através do Ofício n.º 0798/ASSEJUR comunicando as
medidas tomadas tendentes ao cumprimento da tutela deferida, fls. 266/294.
Contestação do Município às fls. 296/298, alegando que o ente já está cumprindo a
Portaria GM 1101/2002, devendo ser julgado improcedente o pedido inicial por ausência de
pretensão resistida.
Juntada de documentos do Ministério Público as fls. 302/311, encaminhados pelo
Ministério Público Federal, sobre a deficiência de leitos da UTI Neonatal no Município.
3. fls. 3
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
Agravo de instrumento interposto pelo Município junto ao Egrégio Tribunal de
Justiça, convertido em Retido, fls. 320/329.
Réplica à contestação às fls. 363/369.
Durante o curso do processo a RMP em diversas oportunidades comunicou o
descumprimento da tutela deferida, bem como fez juntar ao processo documentações sobre a
situação em que se encontram os hospitais públicos em decorrência da falta de leitos de UTI na
rede pública.
Em decisão interlocutória, às fls. 440, foi determinado que os demandados
apresentassem um plano de ação dentro da área de competência de cada demandado para que fosse
efetivado o pronunciamento judicial que antecedeu os efeitos da tutela inicial.
O Município diante da determinação fez juntar aos autos os documentos de
fls.488/492, e o Estado os documentos de fls. 495/529.
Posteriormente, os atos processuais significativos foram os requerimentos feitos
pela Representante do Ministério Público, objetivando garantir a internação de pacientes graves
que estavam sem atendimento adequado.
É o relatório. Decido.
A matéria tratada nos autos não reclama dilação probatória, posto que a
documentação acostada seja suficiente para o esclarecimento dos fatos, só havendo questões de
direito a serem dirimidas e assim, devendo ser proferido julgamento, ex vi da inteligência contida
no artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil Pátrio.
O principal ponto da presente demanda é saber se o Estado do Rio Grande do Norte
e o Município de Natal garantem à população usuária dos serviços públicos de saúde os leitos
hospitalares de UTI, conforme, percentual mínimo exigido pela Portaria n.º 1.1011, de 12 de junho
de 2002, expedida pelo Ministério da Saúde, segundo a recomendação da OMS. Onde se prevê
para os leitos de UTI um percentual de 4 a 10% dos leitos hospitalares existentes, levando-se em
consideração que os leitos hospitalares serão de 2,5 a 3 por cada mil habitantes.
De acordo com o IBGE2 a população do Estado do Rio Grande do Norte contava em
1
3.5. NECESSIDADE DE LEITOS HOSPITALARES
Em linhas gerais, estimase
a necessidade de leitos hospitalares da seguinte forma :
a) Leitos Hospitalares Totais = 2,5 a 3 leitos para cada 1.000 habitantes#
b) Leitos de UTI: calculase,
em média, a necessidade de 4% a 10% do total de Leitos Hospitalares# (média para municípios grandes, regiões, etc.).
c) Leitos em Unidades de Recuperação (póscirúrgico):
calculase,
em média de 2 a 3 leitos por Sala Cirúrgica#
d) Leitos para Pré Parto: calculase,
no mínimo, 2 leitos por sala de Parto.
4. fls. 4
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
2010 com 3.168.027 habitantes, e o Município de Natal3 contava no mesmo período com 803.739
habitantes.
Assim, considerando os habitantes no ano de 2010 e levando em consideração os
percentuais mínimos recomendados pela Portaria 1.101/2002 do MS, deveríamos contar com pelo
menos com 7.920 leitos hospitalares para o Estado do Rio Grande do Norte, sendo 316 desses
destinados a pacientes em tratamento intensivo.
E para o Município de Natal teríamos aproximadamente 2009 leitos hospitalares e
80 leitos de UTI. Frisando, mais uma vez, que esses números são aproximados, já que não se
levou em consideração os décimos operacionais, bem como estão sendo contabilizados em seu
menor percentual.
Em que pese a Portaria, ora debatida, além do fator populacional, também fixar
outros parâmetros para o cálculo dos leitos, como, por exemplo, o percentual de internações
programadas pelo gestor sobre a população, a taxa de ocupação hospitalar e o tempo da média de
permanência de cada especialidade, verifica-se que ainda há uma enorme carência de leitos
hospitalares para a população atendida pelo Sistema Único de Saúde, tanto no Estado como no
Município.
A carência não atinge apenas os leitos de tratamento intensivo, mas os próprios
leitos comuns, que estão em um patamar bem inferior ao determinado ou almejado pela
Organização Mundial da Saúde.
Defende-se a municipalidade informando que os leitos oferecidos estão acima da
média mínima exigida pelo Ministério da Saúde, porém como existe um déficit enorme no Estado,
isto acaba por sobrecarregar o Município de Natal. Aduz, ainda, em sua defesa que o Município
conta atualmente com 132 leitos disponibilizados, e que está contratando mais 10 leitos na rede
privada (fls. 490/492).
Por seu turno, o Estado reconhece que há um déficit de 292 leitos de UTI,
considerando um quantitativo de 655 leitos, conforme determina a Portaria 1.101/2002 do
Ministério da Saúde (fls.500). Consoante as informações prestadas até agora, o ente federativo
conta com pouco mais de 363 leitos, sendo 246 em hospitais privados.
Verifica-se, portanto, como caótico se encontra a saúde pública no Estado,
principalmente, em se tratando dos leitos que devem ser oferecidos pelo ente público estadual.
Ademais, agravando a situação do quadro, como bem observou a Representante do
Ministério Público, cerca de 90% (noventa por cento) da população do Estado do Rio Grande do
Norte, assim, como a grande maioria da população brasileira é usuária do Sistema Único de Saúde.
E como tal padecem nas filas dos hospitais públicos, aguardando seja uma consulta, uma cirurgia,
um leito hospitalar ou de UTI, estando os médicos a escolherem, por gravidade e possibilidade de
sobrevivência, quem viverá ou não.
São milhares de brasileiros jogados a própria sorte que, sem quaisquer expectativas
de melhoras, dependem única e exclusivamente das políticas públicas dos governantes para a
solução de referidos problemas sociais, os quais por si só atrasam significativamente o nosso
2
http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php-sigla=rn
3
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php-uf=rn
5. fls. 5
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
desenvolvimento econômico e social.
Em sentido contrário a situação fática existente no país, vemos que a Constituição
Federal de 1988, na mesma linha de tantas outras constituições democráticas do pós-guerra, adotou
entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito o princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inciso III). Verifica-se, portanto, que além da adoção do sistema democrático,
foram assumidos outros compromissos com os cidadãos do país, entre eles a garantia e efetividade
de uma vida minimamente digna e justa para a sobrevivência da pessoa humana.
Porém, pergunta-se: o que efetivamente seria esse princípio da dignidade humana-
O que se deve garantir para que haja uma vida digna- Inicialmente, vale deixar claro que referido
princípio ainda está em construção doutrinária e jurisprudencial, e conforme leciona Marcelo
Novelino, deverá ser uma importante diretriz na criação e interpretação de todas as demais normas
jurídicas do ordenamento constitucional. Assim, não há como se delimitar ainda o que é digno,
mas se podem construir valores a partir do princípio da dignidade humana.
“Dentro da graduação dos valores jurídicos, a dignidade se encontra no ponto
mais elevado. Isto não significa uma superioridade normativa capaz de
invalidar outras normas constitucionais ou uma prevalência absoluta em caso
de conflitos com os demais valores constitucionalmente consagrados. Todavia,
faz deste valor uma importante diretriz a ser utilizada na criação e
interpretação das demais normas jurídicas”4.
De acordo ainda com seus ensinamentos:
“Os deveres de proteção da dignidade e de promoção dos meios necessários a uma
vida digna encontram-se consubstanciados em um princípio que exige a execução
de tarefas e criações legiferantes (caráter positivo).
O mandamento de proteção impõe a criação e aplicação de normas sancionadoras de
condutas que atentem contra a dignidade; o mandamento de promoção determina a
elaboração de normas consagradoras de direitos fundamentais, bem como o
fornecimento de prestações materiais que possibilitem o acesso aos bens e
utilidades indispensáveis a uma existência humana digna (mínimo
existencial).”5(grifei)
4
CARMARGO, Marcelo Novelino. “O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana” in Leituras
Complementares de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. 2ª Edição, 2007, Salvador: Editora Juspodvim,
Pg. 120
5
CARMARGO, Marcelo Novelino. “O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana” in Leituras
Complementares de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. 2ª Edição, 2007, Salvador: Editora Juspodvim,
Pg. 123
6. fls. 6
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
Assim, para se garantir o mais elevado princípio constitucional, dignidade humana,
os poderes públicos devem fornecer prestações materiais que possibilitem o acesso aos bens e as
utilidades indispensáveis a uma existência humana digna, ou seja, devem garantir o que chamamos
de um “mínimo existencial”.
O mínimo existencial nada mais é do que os direitos fundamentais mínimos
necessários a uma vida digna, e cuja garantia não se submete a nenhuma reserva do possível. Para
Novelino, três direitos básicos compõem o chamado “mínimo existencial”, são eles: o direito à
saúde, o direito a educação e o direito a moradia.
“Ainda que não possua um conteúdo específico, três direitos básicos integram a
composição do mínimo existencial: 1º) saúde: por envolver diretamente o direito
à vida, a questão da saúde gera controvérsias e discussões acaloradas. Não é
pretensão deste estudo tratar da extensão deste direito social ou até que ponto ele
gera um direito subjetivo oponível ao Estado. Todavia, em se tratando de um
‘mínimo existencial’, entendemos ser exigível do Estado, independente de qualquer
condição, apenas o tratamento indispensável à sobrevivência do indivíduo, como
ocorre com a internação e o fornecimento de remédios ou tratamentos quando há
iminente risco de morte;
2º) educação fundamental: com o objetivo de assegurar uma proteção adequada à
dignidade do indivíduo, a Constituição impõe ao Estado o dever de oferecer a todos,
gratuitamente, o ensino fundamental(art. 208, I);
3º) moradia: o Estado deverá fornecer aos indigentes e às pessoas sem-teto, ao
menos um lugar no qual possam se recolher (abrigos). O mesmo não ocorre em
relação a moradias populares ou à habitação para a classe média que, por serem
direitos sociais, dependem de políticas públicas e das opções orçamentárias”. 6
(grifei)
Portanto, podemos concluir que para a implementação do princípio da dignidade
humana, deve-se garantir a todos um mínimo existencial possível, formado por direitos
fundamentais relacionados à saúde, a educação e a moradia. E deste núcleo existencial mínimo,
ousamos afirmar ser o direito a saúde o mais fundamental, porque diretamente vinculado a
preservação da vida humana, por isso sua garantia deve-se dar em primeiro plano nas opções dos
governantes.
“O direito social à saúde é tão fundamental, por estar mais diretamente ligado
6
CARMARGO, Marcelo Novelino. “O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana” in Leituras
Complementares de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. 2ª Edição, 2007, Salvador: Editora Juspodvim,
Pg. 124/125.
7. fls. 7
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
ao direito à vida, que nem precisava de reconhecimento explícito. Nada
obstante, a Constituição Brasileira dispôs que a saúde é um direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação
(art. 196). Aqui também fica mais fácil defender a imediata aplicabilidade
desse direito social, com a possibilidade de sua efetivação judicial, uma vez que
está em jogo a preservação do bem maior: a vida humana”7.
Ora, sabemos que “apenas por meio das políticas públicas o Estado poderá, de
forma sistemática e abrangente, realizar os fins previstos na Constituição (e muitas vezes
detalhados pelo legislador), sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais que dependam
de ações para sua promoção”8. Ocorre que como bem observa ainda Ana Paula Barcellos:
“As políticas públicas, igualmente, envolvem gastos. Como não há recursos
ilimitados, será preciso priorizar e escolher em que direito público disponível
será investido. Essas escolhas, portanto, recebem a influência direta das opções
constitucionais acerca dos fins que devem ser perseguidos em caráter
prioritário. Ou seja: as escolhas em matéria de gastos públicos não constituem um
tema integralmente reservado à deliberação política; ao contrário, o ponto recebe
importante incidência de normas jurídicas constitucionais”9.(Grifei)
Desta forma, forçoso é reconhecer que o Poder Público em decorrência da limitação
dos recursos públicos e da possibilidade de escolhas com os gastos públicos, deverá priorizar
aquelas áreas que estão mais necessitadas ou que mais padecem dentro do ordenamento jurídico.
E considerando, ainda, que as escolhas não estão reservadas a uma simples deliberação política,
mas aos objetivos das normas constitucionais, é evidente que o administrador público não estará
livre para atuar em outras áreas enquanto a saúde da população padece.
7
CUNHA JR., Dirley da. “A efetividade dos direitos fundamentais sociais e a reserva do possível” in Leituras
Complementares de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. 2ª Edição, 2007, Salvador: Editora Juspodvim,
Pg 431
8
BARCELLOS, Ana Paula de. “Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas” in
Leituras Complementares de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. 2ª Edição, 2007, Salvador: Editora
Juspodvim, Pg 51
9
BARCELLOS, Ana Paula de. Ob. cit., pg. 51
8. fls. 8
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
Assim, estando o princípio da dignidade humana no mais elevado patamar em
relação aos demais princípios, e sendo o direito à saúde um dos núcleos do chamado mínimo
existencial, é óbvio que os recursos públicos deverão priorizar o direito à saúde na concretização
das políticas públicas, sob pena de infringir os preceitos constitucionais vigentes. Tornando-se
inconstitucional qualquer outra ação em sentido diverso.Ora, aos três poderes do Estado é
assegurada a garantia e a defesa da Constituição, nenhum poderá agir, seja de forma comissiva ou
omissiva, contra as normas constitucionais. Assim, a divisão dos poderes não é desculpa para que
o Judiciário não atue tentando regularizar uma situação conflitante com as normas constitucionais.
Sendo entendimento pacífico nos tribunais superiores a possibilidade de intervenção nas políticas
públicas quando não atendidas as normas constitucionais, senão vejamos:
ADMINISTRATIVO – CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS
PÚBLICAS – POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS – DIREITO
À SAÚDE – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – MANIFESTA
NECESSIDADE – OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO – AUSÊNCIA DE
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – NÃO
OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO
EXISTENCIAL.
1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do
Administrador, sendo de fundamental importância que o Judiciário atue como
órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o
princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de
garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à
realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais.
2. Tratando-se de direito fundamental, incluso no conceito de mínimo existencial,
inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de
determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente
quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira
da pessoa estatal.
3. In casu, não há empecilho jurídico para que a ação, que visa a assegurar o
fornecimento de medicamentos, seja dirigida contra o município, tendo em vista a
consolidada jurisprudência desta Corte, no sentido de que "o funcionamento do
Sistema Único de Saúde (SUS) é de responsabilidade solidária da União,
Estados-membros e Municípios, de modo que qualquer dessas entidades têm
legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a
garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros"
(REsp 771.537/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 3.10.2005).
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1136549/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS,
SEGUNDA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 21/06/2010)
ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – CONTROLE JUDICIAL
9. fls. 9
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
DE POLÍTICAS PÚBLICAS – POSSIBILIDADE EM CASOS
EXCEPCIONAIS – DIREITO À SAÚDE – FORNECIMENTO DE
EQUIPAMENTOS A HOSPITAL UNIVERSITÁRIO – MANIFESTA
NECESSIDADE – OBRIGAÇÃO DO ESTADO – AUSÊNCIA DE
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES –
NÃO-OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO
EXISTENCIAL.
1. Não comporta conhecimento a discussão a respeito da legitimidade do Ministério
Público para figurar no pólo ativo da presente ação civil pública, em vista de que o
Tribunal de origem decidiu a questão unicamente sob o prisma constitucional.
2. Não há como conhecer de recurso especial fundado em dissídio jurisprudencial
ante a não-realização do devido cotejo analítico.
3. A partir da consolidação constitucional dos direitos sociais, a função estatal foi
profundamente modificada, deixando de ser eminentemente legisladora em pró das
liberdades públicas, para se tornar mais ativa com a missão de transformar a
realidade social. Em decorrência, não só a administração pública recebeu a
incumbência de criar e implementar políticas públicas necessárias à satisfação dos
fins constitucionalmente delineados, como também, o Poder Judiciário teve sua
margem de atuação ampliada, como forma de fiscalizar e velar pelo fiel
cumprimento dos objetivos constitucionais.
4. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes,
originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais,
pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais,
igualmente fundamentais. Com efeito, a correta interpretação do referido princípio,
em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para limitar a
atuação do judiciário quando a administração pública atua dentro dos limites
concedidos pela lei. Em casos excepcionais, quando a administração extrapola os
limites da competência que lhe fora atribuída e age sem razão, ou fugindo da
finalidade a qual estava vinculada, autorizado se encontra o Poder Judiciário a
corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada.
5. O indivíduo não pode exigir do estado prestações supérfluas, pois isto escaparia
do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis
a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado
pela jurisprudência germânica. Por outro lado, qualquer pleito que vise a fomentar
uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem motivos,
pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado
Democrático de Direito. Por este motivo, o princípio da reserva do possível não
pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial.
6. Assegurar um mínimo de dignidade humana por meio de serviços públicos
essenciais, dentre os quais a educação e a saúde, é escopo da República Federativa
do Brasil que não pode ser condicionado à conveniência política do administrador
público. A omissão injustificada da administração em efetivar as políticas públicas
10. fls. 10
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
constitucionalmente definidas e essenciais para a promoção da dignidade humana
não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário.
Recurso especial parcialmente conhecido e improvido.
(REsp 1041197/MS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA,
julgado em 25/08/2009, DJe 16/09/2009)
De acordo com a Constituição Federal, nos arts. 6º e 196, o direito à saúde é um
direito de todos e dever do Estado, decorrente necessariamente do intocável direito à vida (caput
do art. 5º, da CF). Faz-se necessário, então, transcrever os dispositivos mencionados:
Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(
Grifei)
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.
Os direitos sociais, segundo Inocêncio Mártires Coelho, “são concebidos como
instrumentos destinados à efetiva redução e/ou supressão de desigualdades, segundo a regra de que
se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua igualdade.”10
Assim, os direitos sociais ou de segunda dimensão, ao contrário dos direitos civis e políticos,
passaram a ter atenção no Estado Social justamente porque visavam reduzir ou atenuar as
desigualdades geradas na fase liberal do próprio Direito Constitucional.
Infelizmente, aliado a adoção dos direitos sociais veio o entendimento de que essas
normas constitucionais tinham uma natureza meramente programática, diretiva. E durante muito
tempo se teve a deturpada visão de que as normas constitucionais programáticas não possuíam
eficácia jurídica, necessitando da boa vontade do Administrador Público ou do legislador para sua
efetivação. Essas normas programáticas envolvendo justamente os direitos sociais e econômicos,
por possuírem um caráter aberto e diretivo, ficavam a cargo da discricionariedade do poder público
em implementá-las através das chamadas políticas públicas. Entretanto, essa visão tradicional está
totalmente superada, como bem observa Dirley da Cunha Júnior, senão vejamos:
“Com efeito, o caráter aberto e diretivo dessas norma sempre suscitou nos autores
deveras dúvidas acerca de sua juridicidade. Entretanto, partindo do postulado, já
afirmado neste Curso, de que a Constituição define o plano normativo global
10
COELHO, Inocêncio Mártires e Gilmar Ferreira Mendes (org.).Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São
Paulo: Editora Saraiva, 2009. pg. 759.
11. fls. 11
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
para o Estado e a Sociedade, vinculando tanto o Estado como os cidadãos,
dúvidas não podem mais subsistir quanto a natureza jurídica das normas
programáticas. Se a Constituição é, toda ela, norma jurídica, todos os direitos
nela contemplados têm aplicabilidade direta, vinculando tanto o Judiciário,
quanto o Executivo e o Legislativo. Assim, as normas programáticas, sobretudo
as atributivas de direitos sociais e econômicos, devem ser entendidas como
diretamente aplicáveis e imediatamente vinculantes de todos os órgãos do
Poder”11 (grifei)
Reforçando a idéia de que as normas programáticas possuem juridicidade e
aplicabilidade imediata, encontra-se o parágrafo primeiro do artigo 5º, preceituando que:
§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata.
Desta forma, como os direitos sociais e econômicos são aqueles diretos assumidos
pelos Estados Sociais Democráticos, visando acabar ou reduzir as desigualdades existentes entre os
cidadãos de um determinado território, e que mesmo o caráter programático destas normas não lhe
retiram a efetividade e aplicabilidade imediata, percebe-se facilmente que são necessárias condutas
do poder público no sentido de garantir prestações materiais tendentes a viabilizar o exercício
destes direitos fundamentais, como saúde, educação, trabalho, moradia, lazer, segurança,
previdência social, etc. Nesse sentido, são as lições de Paulo Gustavo Gonet Branco:
“Os chamados direitos a prestações materiais recebem o rótulo de direitos a
prestação em sentido estrito. Resultam da concepção social do Estado. São
tidos como os direitos sociais por excelência. Estão concebidos com o propósito
atenuar as desigualdades de fato da sociedade, visando ensejar que a libertação
das necessidades aproveite ao gozo da liberdade efetiva por um maior número
de indivíduos. O seu objeto consiste numa utilidade concreta(bem ou serviço)”12
No presente caso, verifica-se, portanto, que existe expressa determinação do
Ministério da Saúde para a criação quantitativa dos leitos hospitalares a serem oferecidos pelo SUS
à população usuária do sistema, além da previsão também está determinado o percentual que deve
ser destinado aos pacientes em tratamento intensivo. Assim, na situação analisada não há nem
como afirmar que inexiste norma regulamentadora sobre o assunto, o que impediria a ação
governamental nesse sentido ou que reclamasse uma regulamentação legislativa. In casu, existe a
11
CUNHA JR. Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2010. Pg. 177
12
COELHO, Inocêncio Mártires, Paulo Gustavo Gonet Branco e Gilmar Ferreira Mendes (org.).Curso de Direito
Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. pg. 293.
12. fls. 12
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
legislação, porém o que se verifica é a ineficiência da prestação material por parte da
Administração Pública Estadual e Municipal, tendente a garantir a concretização das normas
jurídicas vinculadas ao direito fundamental à saúde, que se trata, conforme, já frisado de um
“mínimo existencial”. Assim, verifica-se a total ou ineficiente prestação material por parte do
poder público em garantir uma sobrevivência digna a sua população, sendo tal ineficiência
totalmente inconstitucional.
Sobre especificamente o assunto vale colacionar as brilhantes lições de Dirley da
Cunha Júnior, nos seguintes termos:
“A efetivação do direito social à saúde depende obviamente da existência de
hospitais públicos ou postos públicos de saúde, da disponibilidade de vagas e leitos
nos hospitais e postos já existentes, do fornecimento gratuito de remédios e
existência de profissionais suficientes ao desenvolvimento e manutenção das ações
e serviços públicos de saúde. Na ausência ou insuficiência dessas prestações
materiais, cabe indiscutivelmente a efetivação judicial desse direito originário à
prestação. Assim, assiste ao titular do direito exigir judicialmente do Estado uma
dessas providências fáticas necessárias ao desfrute da prestação que lhe constitui o
objeto.
Ademais, deve e pode o Ministério Público, através da ação civil pública, provocar
a atuação do Judiciário no controle da omissão total ou parcialmente inconstitucional do poder
público na implementação das ações e serviços de saúde, caso verifique, por exemplo que o
Município não está concretizando o seu dever constitucional de assegurar o direito em questão, em
face da inexistência ou deficiente prestação dos serviços públicos de saúde para a comunidade
local, forçando que os munícipes se desloquem para outros Municípios ou outros Estados à procura
de atendimento médico-hospitalar”13.
Assim, a luz da legislação vigente, é dever do Estado prestar assistência necessária
àqueles que necessitam de medicamentos e demais procedimentos imprescindíveis ao tratamento
de sua saúde, e que não dispõem de condições financeiras de arcar com os custos. Não sendo as
normas programáticas dos direitos sociais meras diretivas aos administradores públicos, conforme
assente na jurisprudência do STF, senão vejamos:
"... A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE
TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL
INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art.
196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos
13
CUNHA JR., Dirley da. “A efetividade dos direitos fundamentais sociais e a reserva do possível” in Leituras
Complementares de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. 2ª Edição, 2007, Salvador: Editora Juspodvim,
Pg. 433
13. fls. 13
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado
brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional
inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas
nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o
cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria Lei
Fundamental..." (RE-AgR393175/RS, Relator Min. Celso de Mello,
julgamento 12/12/2006)
Acrescente-se ao voto o destaque feito pelo mesmo Ministro Relator Celso de
Mello, por ocasião do julgamento de Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 271286/RS,
em que afastou a possibilidade de sobreposição do princípio da legalidade orçamentária ao direito
à vida e à saúde, constitucionalmente garantido à todos:
"Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício da
Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da
presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito
à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável
assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput
e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental,
um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez
configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao
julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito
indeclinável à vida e à saúde humana, notadamente daqueles que têm
acesso, por força de legislação local, ao programa de distribuição gratuita
de medicamentos, instituído em favor de pessoas carentes."(grifei)
Por último, vale novamente frisar, que no presente caso há uma prestação material
deficitária por parte dos entes públicos demandados, que descumprem acintosamente os preceitos
constitucionais e as legislações infraconstitucionais sobre os leitos hospitalares públicos,
ocasionando sérios prejuízos a população usuária do sistema único de saúde, devendo o judiciário
intervir para determinar o correto cumprimento da legislação, uma vez que não estão os
administradores públicos livres para fazerem escolhas, as quais coloquem em risco o direito
fundamental à saúde e a vida, vinculados diretamente ao princípio de uma vida digna e ao mínimo
existencial que se deve garantir ao ser humano.
Pelo acima exposto, com fundamento no art. 269, I, do CPC, julgo procedente
a pretensão formulada na inicial, para confirmar a tutela antecipada anteriormente deferida,
no sentido de determinar que:
1) Estado e Município instalem ou ampliem, dentro de suas respectivas
competências, os leitos de UTI, conforme determinado pela Portaria Ministerial nº
1.101/2002, em um percentual de no mínimo 7% dos leitos totais, abrangendo os grupos
etários adulto, pediátrico e neonatal, levando em consideração a população existente em cada
14. fls. 14
PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO NORTE
JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE NATAL
território.
2) procedam a adoção de todas as providências administrativas para
credenciamento, junto ao Ministério da Saúde, em observância a Portaria GM/MS
3432/1998, dos leitos de UTI atualmente instalados em todos os hospitais públicos do Estado,
além dos que vierem a ser instalados, a fim de viabilizar e garantir a transferência das verbas
federais necessárias a sua manutenção.
3) O Município providencie a instalação de uma Central de Regulação de
Leitos Hospitalares e leitos para pacientes críticos, com funcionamento em tempo integral,
que deverá ficar responsável pelo controle da ocupação dos leitos de UTI disponíveis nos
diversos hospitais públicos ou privados conveniados ao SUS.
Para o cumprimento da determinação contida no item 1, concedo aos
demandados o prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados da intimação da presente decisão,
salvo ulterior deliberação em sentido contrário. Já quanto as determinações contidas nos
itens 2 e 3 concedo o prazo de 60 (sessenta) dias. Em caso de descumprimento desta decisão,
fica desde já cominada multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por cada dia de
descumprimento a ser revertida em favor do Fundo Municipal ou Estadual de Saúde, cujo
valor será destinado aos hospitais públicos do Estado para a efetivação da presente decisão.
Custas na forma da lei.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Sentença sujeita ao duplo grau de jurisdição obrigatório.
Natal/RN, 14 de agosto de 2011.
Valéria Maria Lacerda Rocha
Juíza de Direito