O documento descreve uma visita inesperada a Eurico Alves Boaventura em sua casa em Feira de Santana em 1970. Ele recebeu o visitante calorosamente e leu trechos de seu livro inédito. Ao ler, parou subitamente com uma expressão de mágoa, perguntando ao visitante se ele sabia o que lhe aconteceu em Alagoinhas em 1964. O documento então relata como Eurico foi preso e transferido após denúncias falsas na época da ditadura militar.
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2 Fotos Legua & Meia 5
1. Eurico em Alagoinhas:
Uma temporada entre luz e sombra
Antonio Torres
Todos os crepúsculos agora estão em mim...
Almas estranguladas passeiam com a minha alma de confidências,
pelas escuras alamedas do passado...
Porque vens, agora, sombra amiga,
quando esta longa noite do tempo veio para esquecer,
porque vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento?
Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo.
É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa o autor destas linhas
num dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que Eurico Alves Boaventura
escreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujo
trecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poeta
recebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel Bandei-
ra, uma alma estrangulada pelo excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum,
do Rio de Janeiro a Feira de Santana.
Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma pausa a meio do cami-
nho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um café e dois dedos de prosa,
que resultariam num passeio de confidências pela longa noite do tempo em alamedas escuras
do passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qual
William Faulkner escreveu: É o conhecimento – e não a dor – que faz você se lembrar de
centenas de ruas selvagens e ermas.
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2. Eurico Alves com a mulher e os filhos na casa da rua Manuel Bandeira. Foto 1971.
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3. Casa de Eurico à rua Manuel Bandeira, 35, Feira de Santana.
Erma, sim. Selvagem, não – poderia ter concluído o recém-chegado à ruazinha
àquela hora deserta, e ao ser recebido com a fidalguia peculiar a um homem de letras
citadino de reconhecível herança aristocrática rural. E Juiz de Direito, ainda por cima,
embora já a viver os crepúsculos da aposentadoria na sossegada Rua Manuel Bandeira, a
quem o autor da Estrela da vida inteira devia a homenagem, por razões que a esta altura,
imagina-se, poeta algum ignora, pelo menos na Bahia.
Recorda-se aqui a entrada da casa por uma varanda lateral, onde havia uma cadeira
de balanço. Acrescente-se ao impacto visual das singelezas à chegada, portas e janelas
azuis, e paredes brancas, tudo a trazer para a arquitetura urbana do século XX uma evoca-
ção da era das mansões coloniais, se é que não se delira nessa recordação.
De certeza é que àquela hora o sol amenizava-se, já em queda para o poente. E que
um vento morno regia a música do tempo, numa orquestra a farfalhar em memorável concer-
to a sua Antífona para depois de amanhã: “O vento marca o tempo, o tempo que ouço uivan-
do/ nas marchas dos moços sem rumo.”
Elegantemente trajado, como de hábito, o doutor Eurico Alves Boaventura enca-
minhou o seu visitante a uma mesa senhorial ao centro da sala, na qual reinava o silêncio,
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4. quebrado apenas quando surgiu uma senhora (parente sua, talvez) para cumprir o
sagrado ritual da hospitalidade sertaneja, ao portar uma bandeja com um bule e duas
xícaras de café. O que faltava ali? Os convivas de outra sala há onze anos atrás, numa
cidade chamada Alagoinhas, onde o anfitrião era o mesmo dessa tarde que parecia
mais propícia a uma soneca do que a recepções não programadas.
Mas não. O protagonista desta história era, antes de tudo, um ser gregário, um
mestre na arte do convívio. Recebeu a inesperada visita de braços abertos, e de forma
tão calorosa que preenchia o vazio das ausências, a começar pela dos familiares, àquela
hora cuidando de seus afazeres fora das instâncias domésticas. E de que cuidava ele,
agora, à sombra dos seus sessenta e um anos? Dos retoques finais num livro de mais
de mil páginas datilografadas, que lhe havia consumido, em pesquisas e elaboração, a
maior parte dos anos já vividos. Com o calhamaço à mesa, de repente a sala povoou-
se dos vaqueiros que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou
neste lado do Atlântico, na saga que levaria à civilização do pastoreio. Ler em voz alta era
para ele uma praxe que vinha há muito do tempo, certamente bem anterior às tertúlias
na biblioteca de sua casa de Alagoinhas, em noites em que cintilava uma nova cons-
telação da poesia brasileira, que em sua voz descia redonda em ouvidos até então
mais afinados com a lírica d’antanho, que os anos não traziam mais, numa cidade que
ainda se movia ao ritmo dos boleros, embora já a ensaiar os primeiros passos de Rock’n
roll.
Se foi um privilégio privar dos saraus na intimidade do seu lar alagoinhense, a
partir do que seus convivas não mais leriam poesia da mesma maneira, imagine o que
dizer da honra de ser brindado com as primeiras páginas de uma obra inédita, cuja
envergadura sociológica e histórica transcendia a dimensão do volume e o esforço
ciclópico do autor para realizá-la. Mas de repente ele parou. E não por cansaço ou
para fazer algum comentário. Com uma mão sobre a página (devia ser a quinta ou a
sexta), cuja leitura interrompera, e, abaixando ainda mais os olhos, que se apertavam
por trás dos óculos, disse, em tom sussurrante, como se falasse para si mesmo:
-– Quando eu me lembro...
Perturbado pelos sinais de desgosto que a repentina lembrança estampava
num rosto àquele instante visivelmente sulcado de mágoas, o eterno ouvinte do poe-
ta, ensaísta etc. e mestre informal Eurico Alves Boaventura eclipsou-se entre a luz
externa, porta e janelas afora, e a sombra interna em uma alma martirizada do tempo.
Restava saber que martírio era esse.
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5. Retrato do artista quando jovem. Foto N. Vieira, década de 30.
– Você sabe o que aconteceu comigo?
A cena congela aqui, no retrospecto que se tenta fazer agora. Porque a memória
só alcança até aquela pergunta, diante da qual o seu ouvinte não se sentiu uma som-
bra consoladora, mas uma presença incômoda, desassossegadora, que trazia para aquela
sala a lembrança da cidade onde o que acontecera fora abominável demais para ter
consolo ou remissão, embora não saiba, agora, se já chegara àquela mesa, naquela
casa de Feira de Santana, e naquela tarde de 1970, sabendo o que se passara com o
Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas no terrífico ano de 1964, na
sequência das arbitrariedades militares, cuja dolorosa lembrança o tornava (a ele, o
Juiz) refém do estribilho do rondó que escrevera vinte e três anos antes: Todos os
crepúsculos agora estão em mim... Pois agora, e por ironia do destino, ele devia estar sen-
tindo deveras a dor que poderia então ter sido apenas um fingimento.
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6. Gabinete de Eurico Alves em Alagoinhas, 1963.
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7. O QUE FOI MESMO QUE LHE ACONTECEU?
– Sim, eu me lembro – diz Valdemar Paraguassu, que há muitos anos vive em
Salvador, mas em 1964 morava em Alagoinhas, e a poucos passos da casa do doutor
Eurico, como o chamam todos daquela cidade que o conheceram. – Fomos presos
num mesmo dia. Assim que me soltaram, fui embora, para assumir um emprego no
Banco do Brasil em outro lugar. Por isso não soube o que aconteceu com ele depois da
sua prisão. O que me lembro é do clima de terror daqueles dias, quando um comerci-
ante encrenqueiro de lá passou a acusar de subversivo todo aquele com quem ele
tinha alguma contrariedade, ou simplesmente a quem não simpatizava. Foram tantas
as prisões por denúncias desse tipo, que elas viraram uma esculhambação, a ponto de
o comando local das repressões ter de exigir que só fossem feitas por escrito. E com
firma reconhecida!
O que dizer disso agora? Que teria sido cômico se não fosse trágico?
No caso específico do doutor Eurico, porém, a maledicência fora engendrada
por um Oficial de Justiça. É o que recorda Aristóteles Freitas Costa, que àquela época
era um dos alunos que mais se destacava no Ginásio de Alagoinhas, e que, como
outros estudantes intelectualmente inquietos, tinha em doutor Eurico um mentor
extra-classe. Costumava visita-lo no Fórum, às vezes acompanhando-o a caminho de
casa, parando numa esquina e outra, em conversações que podiam ultrapassar uma
boa meia hora. Formado em Direito, o velho Arica hoje mora no bairro de Icaraí, em
Niterói, RJ. O que lembrou mais, ao telefone:
– Ele me aconselhava a não parar de estudar. E me indicava autores, me incen-
tivava a ler muito. E bem. Uma vez me emprestou um livro de poesias traduzido por
Manuel Bandeira, que não devolvi, porque não o vi mais, depois da sua prisão.
– E por que você não o viu mais?
– Eu trabalhava numa sorveteria do meu pai e um dia vi o policial que prendeu
o doutor Eurico parado na porta, me encarando. Deduzindo que ele estava de olho
em mim, fui me esconder numa fazenda que a gente tinha, e por lá fiquei um tempo,
esperando a poeira baixar. Quando voltei, o doutor Eurico já não morava mais na
cidade. Os comentários eram de que ele havia sido transferido para Vitória da Con-
quista.
Foi o que aconteceu, confirma Juraci Dórea em seu ensaio Eurico Alves e a Feira
de Santana. Está no livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organi-
zado por Rita Olivieri-Godet, e publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia
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8. em 1999. Amigo de Eurico de longa data, o artista plástico, arquiteto e também poeta
Juraci Dórea esclarece: s períodos de férias, Eurico pouco viveu em Feira de Santana.
Aos 14 anos de idade (1923) ele já se encontrava em Salvador, matriculado no Giná-
sio N. S. da Vitória [...] Em 1934, recém-formado, estava em Feira de Santana, porém
logo no ano seguinte transferiu-se para Capivari, hoje Macajubae Jacuipe, Poções,
Canavieiras, Alagoinhas, Vitória da Conquista e o doutor Eurico Alves Boaventura
só voltou a viver na capital já perto de aposentar-se, e isto pouco ou nada influiria
mais em seu destino literário.
Voltemos à sua temporada de Alagoinhas (1959-1964), não necessariamente
Une Saison en Enfer, mas que só não se tornou uma página em branco na história de
Eurico graças às incansáveis buscas biobibliográficas de Juraci Dórea e à memória de
Maria Eugênia Boaventura, que era bem pequena naquele tempo, mas ainda se lem-
bra que a casa ficava à Rua Carlos Gomes, 63, com a biblioteca na sala de visitas, e
que era frequentada pela professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo
Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado Giése (José Giése da
Cruz, primo do autor destas linhas), o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre
elegante pai, que por sua vez fundou o Lyon’s Clube da cidade, tendo sido o seu primeiro
presidente. Maria Eugênia recorda-se ainda que o doutor Eurico foi professor do Ginásio
de Alagoinhas, onde dava aulas pautadas pela pluralidade de conhecimentos.
Entre as pessoas lembradas pela professora Maria Eugênia, há uma que pode-
ria emergir das sombras reivindicando este epitáfio:
Tropeço, dentro da noite em cadáveres de sonhos...
Porém, mãos de suicidas,
As dolorosas e augustas mãos dos suicidas,
Vêem ensombrar a minha fronte para eu sonhar...
Todos os crepúsculos agora estão em mim...
No contexto destas memórias, esses versos evocam o trágico fim de um dos
convivas das tertúlias à Rua Carlos Gomes, 63, Alagoinhas, Bahia. Nascido num dis-
trito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), onde fora batizado
e registrado com um sobrenome de origem alemã como nome próprio, aposto ao de
José, Giése cometeu o tresloucado gesto na casa do bispo de Juazeiro da Bahia, aí
pelo ano de 1971, deixando uma carta cujo conteúdo o bispo jamais revelaria, por
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9. Eurico Alves com a esposa, Luiza Gama Boaventura, e os filhos,
Antônio Augusto, Maria Tereza, José Gonçalo e Maria Eugenia.
considerá-lo um segredo de confissão. Para que não se avente premonições do poeta,
lembremos que o Rondó das sombras consoladoras é de 1951, e, também, que Eurico
e Giése só vieram a se conhecer em 1959. Mas como evitar a tentação de dizer outra
vez que foi a vida que imitou a arte?
1959-2009: MEMÓRIAS, SONHOS...
Assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os
passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio...
– Atirador 22, sentido! Marche, marche! Do Tiro de Guerra 110 ao Ginásio de
Alagoinhas, e de lá ao Fórum ou à Rua Carlos Gomes, 63 – em 1959!
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11. Há um fabuloso tempo a ser reencontrado nessa marcha de volta.
Chegou a hora de fazer-se a luz sobre a sombra dolorosa e inexpressiva como
um sonho morto que até aqui pairava na sua memória, porque você, por mais que se
esforçasse, não conseguia enxergar com nitidez todo o impacto causado pela chegada
do juiz-poeta Eurico Alves Boaventura àquela cidade das luzes verdes nas fachadas,
em um ano de sonhos dourados de uma juventude que ele mesmo faria crer-se pro-
missora. “Memória! Junta na sala do cérebro...” Sobre o que vocês conversavam? Nas
tertúlias que promovia, ele lia seus próprios poemas? E que poetas lidos ou recomen-
dados por ele foram verdadeiras revelações? Alguns deles chegaram a ser tão decisi-
vos para sua formação literária, quanto os ficcionistas – Jorge Amado e Graciliano
Ramos, por exemplo –, que o professor Carloman Carlos Borges levou você a conhe-
cer, dois anos antes? Enfim, qual foi o seu real legado?
Resposta: só agora, e graças à memória do caro colega do Ginásio de Alagoinhas
Aristóteles Freitas Costa, me dou conta de quem pode ter me levado a ler um poema
de Federico Garcia Lorca traduzido por Manuel Bandeira, e que começa assim:
Cantam os meninos
na noite quieta;
arroio claro,
fonte serena.
OS MENINOS:
Que tem teu divino
coração em festa?
EU:
Um dobrar de sinos
perdido na névoa.
A lembrança desses versos, muitos anos depois de os haver lido em algum lugar
do passado, e certamente num livro emprestado pelo doutor Eurico, levou-me a es-
crever o romance Balada da infância perdida, cuja primeira edição é de 1986, e que foi
traduzido para o inglês com o melódico título Blues for a lost childhood. E agora também
me lembro do meu segundo dia de trabalho como aprendiz de repórter policial no
Jornal da Bahia, ao desembarcar de Alagoinhas em dezembro de 1959. Como no dia
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12. anterior eu havia fracassado na cobertura do movimento do porto de Salvador, onde
não fui capaz de farejar uma manchete espetacular – um tiroteio cinematográfico
entre policiais e contrabandistas –, me empurraram para o Necrotério Nina Rodrigues.
Dali não iria voltar sem assunto. Logo à entrada via-se, estirado num estrado, o cadá-
ver de um rapaz que se matara.
Corri para o jornal e comecei a matéria com um poema de Godofredo Filho que
falava do absurdo de se morrer aos 20 anos, entregando-a em seguida, e com a ansie-
dade imaginável, ao chefe de reportagem, o poeta João Carlos Teixeira Gomes, que a
passou ao chefe da reportagem policial, o também poeta Jeová de Carvalho, que por
sua vez mostrou-a ao editor-chefe, o ficcionista Ariovaldo Matos que, de dedo em
riste, disse ao aprendiz de repórter que ele estava ali para fazer jornalismo e não
literatura, que poesia era coisa de... Bom, felizmente não perdi o emprego. Mas o que
importa aqui é que com certeza foi Eurico quem me levou a ler Godofredo Filho. E
Cassiano Ricardo. E Jorge de Lima – com quem se correspondia - de cuja obra hoje se
diz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável
do gênio”.
... REFLEXÕES
Não dá para imaginar que Eurico um dia tenha tido pretensões de ser posto
pela posteridade nas mesmas alturas de seus mais festejados (e fraternos) pares Manu-
el Bandeira e Jorge de Lima. Ele não era, como Gilberto Freyre – que reconhecia
como grande escritor – “uma pessoa feita para se ver no espelho”. E sua obra conti-
nua “restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata Juraci
Dórea, mesmo em se tratando de “uma figura de proa nos primórdios do modernismo
na Bahia”, no dizer do consagrado poeta Florisvaldo Mattos.
Tiremos-lhe das sombras. Para que este não seja um tributo a cem anos de
solidão.
Antônio Torres, jornalista, redator de publicidade e escritor, estreou com o romance Um Cão Uivando
nas para a lua, em 1972. Em seguida, publicou mais dez romances, sendo os mais recentes: O nobre
sequestrador (2003) e Pelo fundo da agulha (2006). Durante anos, ministrou oficina de textos na UERJ,
como escritor convidado. Recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em
2000, pelo conjunto da obra.
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13. Eurico e a filha Maria Eugenia, em Poções. Eurico Alves com os pais e irmãs.
14. A Fazenda Fonte Nova, em São José das Itapororocas. Janeiro de 2000.
15. Eurico e a esposa, Luiza.
Eurico Alves e Hélio Simões, poetas modernistas do grupo Arco & Flexa.
17. DIÁLOGO ENTRE EURICO ALVES
E MANUEL BANDEIRA
Juraci Dórea
Na década de 30, um episódio chamou a atenção para
o nome de Eurico Alves: o famoso diálogo poético com
Manuel Bandeira. Sob o impacto da leitura do livro Li-
bertinagem, de Bandeira, ele escreveu um poema, intitulado
“Elegia para Manuel Bandeira”, convidando o poeta
pernambucano a visitar Feira de Santana. Sem o seu co-
nhecimento, Carvalho Filho datilografou os versos e en-
viou para Bandeira, que respondeu com outro poema.
“Eu estava operado no hospital, quando apareceram
Carvalho e Godofredo Filho com a Escusa”, registrou
Eurico Alves, em carta para sua filha Maria Eugenia
Boaventura, datada de 1º de janeiro de 1969.
Nos anos 60, a “Escusa”, que já havia saído em livro,
integrou uma antologia, organizada pelo próprio Ban-
deira, com o título de Meus poemas preferidos.
18. ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA
Eurico Alves
Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho subir esta serra tão alta...
Serra de José das Itapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificada no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem o céu de corolas para meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro.
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
19. Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.
Feira de Santana! Alegria!
Alegria nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina nas vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!
Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que lindo poema cor de mel esta alvorada!
A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas
[de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos
[desnatrados das noites
eternas venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.
20. ESCUSA
Manuel Bandeira
Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.
Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam
[a respirar o gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos
[nas cores das madrugadas.
Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais
[da roça.
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21. Rua Manuel Bandeira, em Feira de Santana.
Uma homenagem de Eurico Alves ao poeta pernambucano.
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22. 134 —
Godofredo Filho, Eurico Alves e Carvalho Filho
LÉGUA &
na Fazenda Fonte Nova. Foto Juraci Dórea
ME I A : R E V I S T A
DE
LITERATURA
E
DIVERSIDADE CULTURAL,
V.
7,
N O ° 5,
2 0 09
Original do poema “Escusa”, fotografado em 1976, por Juraci Dórea. Acervo EAB.
23. Artigos
&
O sertão-mundo de Guimarães Rosa
Maria Célia Leonel & José Antonio Segatto
Sexualidade e Gênero — As metáforas do biopoder
Patricio
Rosana Ribeiro Patricio
Arte autoetnográfica
Heidrun Krieger Olinto
Pandora
As filhas de Pandora –
as mulheres, o tempo e a cultura
Ivia Alves
Veiga
O comparatista Cláudio Veiga
Cid Seixas
Resenhas LÉGUA & ME I A : R E V I S T A DE LITERATURA E D I V E R S I D A D E C U L T U R A L , V . 7, N O ° 5, 2 0 09 — 135
24. O sertão-mundo
de Guimarães Rosa
Maria Célia Leonel (UNESP)
José Antonio Segatto (UNESP )
A noção de regionalismo, introduzida no século XIX para caracterizar a litera-
tura produzida fora do Rio de Janeiro, nas províncias - e tendo por objeto a descrição
de locais remotos, interioranos, especialmente de áreas rurais, sobretudo o sertão, e
seus respectivos tipos, relações sociais e humanas, paisagens, linguagens, identida-
des, imaginário - sobreviveu ao tempo. Conceito abrangente, passou a englobar auto-
res e obras os mais diversos, de diferentes regiões e períodos históricos, o que levou
ao nivelamento de obras de valor estético-literário díspar. Baseando-se num critério
genérico e tradicional de regionalismo, alguns críticos colocaram num mesmo pata-
mar estético-literário autores que vão de Franklin Távora a José Lins do Rego, de
Simões Lopes Neto a Graciliano Ramos, de Afonso Arinos a João Guimarães Rosa.
Como a produção rosiana também passou a receber o rótulo de regionalista, Antonio
Candido, entre outros estudiosos dessa obra, tratou de diferenciá-la, lançando mão
da noção de super-regionalismo e Alfredo Bosi, da noção de romance de tensão trans-
figurada. Não obstante a existência de muitos estudos sobre essa temática, é válida,
cremos, a retomada da reflexão sobre a consideração da obra de Guimarães Rosa
como regionalista.
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25. 1 A LITERATURA REGIONALISTA
A literatura denominada regionalista ocupou-se em descrever, principalmente,
o mundo sertanejo, documentando e buscando representar “[...] tipos humanos, paisa-
gens e costumes considerados tipicamente brasileiros.” (CANDIDO, 2002, p.87).
O regionalismo que germina no Romantismo envolve autores, obras e regiões
bem diversificadas: Bernardo Guimarães, Afonso E. de Taunay, José de Alencar,
Franklin Távora, Caldre e Fião. “Os tipos humanos das diferentes regiões e provínci-
as, a cor local, a notação pitoresca concentram a prosa desses autores” (GALVÃO,
2000, p. 48). Entre 1890 e 1920, aproximadamente, floresce a vertente denominada
de “sertanista”, que também envolve autores e obras díspares, qualitativamente mui-
to desiguais (Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Coelho Neto, Monteiro Lobato), e
tem em comum a idealização do sertão e a representação geralmente caricatural de
tipos humanos e a descrição das relações sociais coisificadas.
Outro surto regionalista apontado pela crítica é a produção romanesca dos anos
30, principalmente do nordeste, com as obras de José Américo de Almeida, Raquel de
Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Manifestar-se-ia tam-
bém na ficção de Érico Veríssimo no sul e teria chegado ao auge com Guimarães Rosa
nos anos 40 e 50. Essa fase do regionalismo teria como elemento diferenciador, para
muitos, o fato de expor a miséria humana da população sertaneja e as mazelas das
relações sociais e de poder.
Como explicar o surgimento e a sobrevida histórica dessas manifestações? Uma
hipótese plausível é a de um estado nacional inconcluso - cuja unidade territorial e
política foi imposta de cima, arbitrariamente, pela coação - e altamente centralizado
no centro-sul. Com parcos elementos identitários, temos a existência de regiões com
realidades sócio-econômicas e culturais muito diferenciadas – um desenvolvimento
desigual e combinado, chegando mesmo, em muitos casos, a extremos, entre Provín-
cias (Império) e entre Estados (República), dando origem a “vários brasis”.
Alguns críticos, como Antonio Candido (1987, p. 202), caracterizam esse fenô-
meno como constituindo “literaturas nacionais atrofiadas”. Outros, como Afrânio
Coutinho (1955, p. 149), definem o regionalismo como “[...] um conjunto de retalhos
que arma o todo nacional”, isto é, um conjunto de obras que, justapostas, formariam
uma espécie de “mosaico literário”, representando as especificidades locais - a unida-
de na diversidade.
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26. Ligia Chiapini M. Leite (1994, p. 672) analisa o fenômeno do regionalismo como
“movimento compensatório em relação ao novo”. Teria, nesse sentido, um caráter
“regressivo” ao procurar, documentariamente, através da literatura, os resíduos de
um passado que vinha sendo progressivamente destruído ou transformado pelo de-
senvolvimento capitalista. A mercantilização das relações sociais, o desencantamen-
to e a racionalização, a implantação de novas formas de sociabilidade e dominação
política condenavam aquele mundo à extinção.
Se, por um lado, a literatura regionalista é de fato um fenômeno histórico-cultu-
ral concreto, por outro, é também vista como uma construção de cunho programático
e ideológico, perpassada por concepções as mais diversas, como, entre outras, o
localismo, o nacionalismo, o provincianismo e o cosmopolitismo. O problema, como
foi dito, é a homogeneização de obras e autores com valores e qualidades estético-
literárias muito distintas, a qual leva à questão: toda obra literária produzida fora do
Rio de Janeiro no século XIX ou do eixo Rio-São Paulo no século XX e tendo como
objeto narrativo o mundo rural deve ser classificada como regionalista? É essa ques-
tão que, entendemos, deve ser revista, o que já vem sendo feito por alguns críticos,
pois a dificuldade para se considerar o que seja literatura regionalista continua sendo
grande.
Daí as diferentes propostas de nossos críticos para darem conta desse tipo de
literatura. Antonio Candido (1987), no conhecido texto de 1970 denominado “Litera-
tura e subdesenvolvimento” sobre a América Latina, retomando o regionalismo
afirma que, no Brasil, esse domínio da criação literária, tendo surgido com o Roman-
tismo, inicialmente, “[...] nunca produziu obras consideradas de primeiro plano, mes-
mo pelos contemporâneos, tendo sido tendência secundária quando não francamente
subliterária [...]” (CANDIDO, 1987, p. 161). Por volta de 1930, tais tendências
regionalistas “[...] já sublimadas e como transfiguradas pelo realismo social, atingiram
o nível das obras significativas [...]” (p. 161) e conformaram a segunda fase do regio-
nalismo. A terceira fase seria chamada de “super-regionalista” (CANDIDO, 1987, p.
161, grifo do autor) e é marcada pela “explosão do tipo de naturalismo” que aqui
triunfava. Nessa fase, encaixa-se a obra “revolucionária de Guimarães Rosa”. De-
compondo-se o termo super-regionalista que Antonio Candido afirma ter usado
pensando em surrealismo ou super-realismo, de um lado, sobressai o vínculo com o
regionalismo; de outro, a noção de superioridade que indica a superação do regional,
em obras marcadas “[...] pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se trans-
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27. figuram e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitores-
cos a se descarnarem e adquirirem universalidade.” (CANDIDO, 1987, p. 161).
Alfredo Bosi (1995, p. 390), na conhecida hipótese de trabalho sobre a
ficção que se inicia em 30 e vai até o ano em que escreve, ou seja, 1970 – por coinci-
dência no mesmo momento em que Antonio Candido fala de super-regionalismo –
praticamente descarta a classificação de determinadas obras como regionalistas. A
precariedade da divisão em romance social-regional e psicológico-urbano, que não
dá conta de “obras-primas como São Bernardo e Fogo morto”, enseja-lhe a sugestão de
uma classificação baseada em Pour une sociologie du roman de Lucien Goldmann, por sua
vez, apoiado em Georgy Lukács e René Girard. Tomando como princípio “a figura do
‘herói problemático’ em tensão com as estruturas ‘degradadas’ vigentes” (BOSI, 1995,
p. 391), o estudioso propõe a distribuição do romance brasileiro em quatro tendênci-
as: os de tensão mínima, os de tensão crítica, os de tensão interiorizada e os de tensão
transfigurada. Na quarta categoria – a da tensão transfigurada - em que “O herói
procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica
ou metafísica da realidade”, incluem-se as obras de Guimarães Rosa. Na verdade, a
noção que preside essa classificação não se afasta muito da ideia que levou Antonio
Candido a propor o termo super-regionalismo.
2 O SERTÃO ROSIANO
Já o sertão como objeto de representação literária adquiriu, ao longo do tempo
– em especial, desde a segunda metade do século XIX – tratamento constante e privi-
legiado na literatura brasileira. São muitos os romances, contos e novelas que confi-
guram as relações sociais que no sertão se estabeleceram historicamente. De José de
Alencar (O sertanejo de 1875) a Raquel de Queiroz (Memorial de Maria Moura de 1992);
de Afonso Arinos (Os jagunços de 1898) a Mário Palmério (Vila dos Confins de 1956);
de Hugo de Carvalho Ramos (Tropas e boiadas de 1917) a Bernardo Elis (O tronco de
1956); de Graciliano Ramos (Vidas secas de 1938) a João Cabral de Melo Neto (Morte
e vida severina de 1956), é grande a lista de obras com essa temática. Mas é com Gui-
marães Rosa (Grande sertão: veredas de 1956) que a realidade sertaneja encontra a gran-
de síntese épico-dramática.
A caracterização corrente de sertão é a de uma área despovoada ou escassa-
mente habitada, interior ermo, “sem vivalma”, nos confins, como escreve Guimarães
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28. Rosa (1978, p. 9), “onde se pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de
morador”.
Espaço de difícil delimitação, sem contornos e fronteiras nítidas, o “[...] sertão
aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga.” (ROSA,
1978, 370). Com o passar do tempo, o sertão vai se deslocando – desde as entradas e
bandeiras em busca de ouro e pedras preciosas e/ou visando o apresamento de indí-
genas, passando pela ocupação pecuária, até as sucessivas “expedições” e “marchas”
para o oeste, o traçado do sertão foi mudando de lugar, sendo empurrado para dentro.
“A boca do sertão” foi afastada e deslocada para o oeste e para o norte pela fronteira
agrícola, pela urbanização e pelas relações mercantis. De fato, o sertão, como afirma
Guimarães Rosa (1978, p. 391), “está movimentante todo-tempo”. Ou seja, nesse
espaço, há uma nítida “mistura de tempos e níveis de realidade histórica”, com
“temporalidades igualmente distintas, mas coexistindo mescladas no sertão que é o mundo
misturado” (ARRIGUCCI , 1994, 17; grifo do autor). Assim sendo, “Não é à toa que
esse é o lugar do atraso e do progresso imbricados, do arcaico e do moderno enreda-
dos, onde o movimento do tempo e das mudanças históricas compõe as mais peculi-
ares combinações.” (Id., ib.).
A persistência histórica de elementos extemporâneos ou mesmo que parecem
antediluvianos expressa uma realidade em que relações sociais não-capitalistas ainda
continuam a vigorar, em que os produtos, as “coisas”, a mão-de-obra não se transfor-
maram por completo em mercadoria, ou seja, as relações não foram plenamente
mercantilizadas. Quando Guimarães Rosa (1978, p. 9), por meio de seu narrador-
personagem, diz que o sertão “é onde os pastos carecem de fecho”, pode estar não só
lhe dando entre outros o atributo de amplitude, mas também o significado de
inexistência da cerca, do arame farpado, da delimitação da propriedade privada.
Dessa forma, o universo do grande sertão de Guimarães Rosa expressa um com-
plexo de elementos fundamentais que vigem nas relações humanas e sociais do país e
as perpassam historicamente. Embora seu objeto de representação seja um espaço/
ambiente determinado, o do sertão, o autor (re)cria ou inventa uma realidade mais
ampla, rica em significados sociais, políticos, culturais, que ele nomeia “sistema-
jagunço” (ROSA, 1978, p. 391).
Esse sistema envolve um conjunto de relações de dominação regidas pela vio-
lência ou pela coação, pelo clientelismo e pelo favor, pela preponderância do poder
privado sobre o público, pela supremacia da tradição sobre a instituição.
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29. Tal regime, recriado no grande sertão de Guimarães Rosa, constituiu-se ao lon-
go dos séculos que se seguiram à colonização, baseado no conjunto de micropoderes
de potentados locais, fundados na propriedade latifundiária, nas oligarquias rurais e
regionais, no patriarcalismo, no clientelismo, no patrimonialismo, na ausência do po-
der estatal, no mandonismo e na violência. Assim Riobaldo explicita o “sistema ja-
gunço”:
– Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes
chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem
particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador –
todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina
escopetada! (ROSA, 1978, p. 87).
Quando Riobaldo afirma que o “sertão está em toda parte” (ROSA, 1978, p. 9),
quer dizer que suas dimensões sociopolíticas e culturais extrapolam muito seus limi-
tes. As margens móveis e pouco nítidas que se estendem para muito além das frontei-
ras físicas, possibilitam reiterar, com Guimarães Rosa, que o sertão está em todo
lugar, numa dimensão ampliada.
Se, por um lado, os indícios contidos em várias passagens de Grande sertão: vere-
das apontam que a narrativa rosiana abarca, de maneira aproximada, o período da vida
brasileira que vai de 1880 a 1930, por outro, é lícito afirmar que o autor, por meio da
inventividade artística, indica algumas tendências históricas que viriam a ganhar con-
figuração mais nítida na realidade do país pós-1930. A partir daí, acentua-se o proces-
so de desenvolvimento das forças produtivas nacionais e das relações capitalistas de
produção; amplia-se o mercado interno e dissemina-se a mercantilização em todos os
níveis; passa a haver a predominância da cidade sobre o campo, da indústria sobre a
agricultura; a população urbana sobrepuja a rural, ocorrendo um deslocamento de
amplos contingentes para as grandes metrópoles. Ocorrem então transformações que
criam condições propícias à ocupação e/ou anexação do sertão ao Estado nacional.
O sertão é progressivamente incorporado e, ao mesmo tempo, invadido pela
modernidade – migra para as cidades, urbaniza-se; é integrado pelo capitalismo e pela
nação.
É possível, portanto, afirmar com Riobaldo (ROSA, 1978, p. 218): “Sertão é
isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.
Sertão é quando o menos se espera.”
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30. 3 O PARTICULAR E O UNIVERSAL
EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Em Grande sertão: veredas, as relações entre o regional e o universal são altamen-
te complexas pela profundidade com que tais categorias são tratadas e pelo entrelaça-
mento entre elas. Ademais, no romance avulta a presença visível do mito.
A crítica tem-se debruçado sobre as dimensões do particular, do regional e do
universal em Grande sertão: veredas, mais do que em relação a outros livros rosianos,
como era de se esperar. Nos estudos sobre essa questão, a primazia cabe a Antonio
Candido não apenas porque trata da relação entre essas categorias no ensaio seminal
“O homem dos avessos” (1971), mas porque o faz de modo a criar uma corrente
crítica derivada das posições que assume, ainda que enfatizando apenas parte de suas
proposições.
Em 1956, na resenha “Grande sertão: veredas”, inicialmente publicada no Su-
plemento Literário d´O Estado de São Paulo - republicada com o título de “No Grande
sertão” (2002, p. 190) - Antonio Candido ressalta a universalidade da obra: “[Gran-
de sertão: veredas] Não segue modelos, não tem precedentes; nem mesmo, talvez, nos
livros anteriores do autor, que, embora de alta qualidade, não apresentam a sua ca-
racterística fundamental: transcendência do regional (cuja riqueza peculiar se man-
tém todavia intacta) [...]”
Para enfatizar esse ponto fundamental do romance - o universalismo -, o crítico
praticamente desdiz o que havia escrito sobre Sagarana em resenha em que salienta o
universalismo dos contos publicados em 1946. Nessa resenha, publicada no mesmo
ano do lançamento do livro, o ensaísta (CANDIDO, 1983, p. 245) sustenta que o
universal, nos contos, deve-se ao “alcance” e à “coesão da fatura”.
Em Grande sertão: veredas, ele surge “[...] graças à incorporação em valores uni-
versais de humanidade e tensão criadora.” (CANDIDO, 2002, p. 190); além disso, há,
no romance, a presença “do pitoresco regional à preocupação moral e metafísica.” (p.
191). Contudo, a seu ver, ao trazer para o contexto erudito componentes do homem
do sertão, Guimarães Rosa obtém “[...] montagens, não a integração necessária ao pleno
efeito da obra de arte.” (CANDIDO, p. 191; grifo do autor) Todavia, na mesma pági-
na, o estudioso escreve que, como em composições musicais, há temas que são de-
senvolvidos, retomados e que constituem “[...] o verdadeiro fio condutor de tudo o
que se expõe no plano da ação e da descrição, de modo a resultar na integridade quase
obsessiva das diretrizes essenciais.” (p.191, grifo nosso) Assim, com as atividades de “ano-
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31. tação e construção” (p. 191; grifo do autor) Grande sertão: veredas lembra compositores
que enxertaram ritmos e melodias populares em obras requintadas. A nossa pesquisa
junto ao Arquivo Guimarães Rosa acerca dos processos de criação do autor, faz-nos
atribuir à palavra “anotação” mais um sentido em que, talvez, Antonio Candido não
tivesse pensado: as anotações para a redação das narrativas que têm relações claras
com o espaço regional. Já a ideia de que Grande sertão: veredas incorpora elementos
populares a uma composição sofisticada lembra a proposição de Gilda de Melo e
Souza em O tupi e o alaúde (1979) a propósito de Macunaíma.
De todo modo, Grande sertão: veredas é “desses raros momentos em que a nossa
realidade particular brasileira se transforma em substância universal.” (CANDIDO,
2002, p.192) pois, nele, Guimarães Rosa elabora esteticamente questões universais
que ocupam e afligem o ser humano, indo de temas como o amor e o ciúme, a opres-
são, a violência às indagações, nas ações humanas, dos limites entre o bem e o mal, o
certo e o errado, o justo e o injusto. Por isso, Antonio Candido (1987, p. 207), tratan-
do de Guimarães Rosa em “A nova narrativa”, assegura que suas obras “tomavam por
dentro uma tendência tão perigosa quanto inevitável, o regionalismo, e procediam à
sua explosão transfiguradora”. Se Machado de Assis mostrou a possibilidade de cons-
trução de uma grande literatura sem apego ao pitoresco a ao exótico, Guimarães Rosa
entra “[...] de armas e bagagens pelo pitoresco regional mais completo e meticuloso, e
assim conseguindo anulá-lo como particularidade, para transformá-lo em valor de
todos.” Isso quer dizer que o escritor mineiro “[...] aceitou o desafio e fez dela [parti-
cularidade] matéria, não de regionalismo, mas de ficção pluridimensional, acima do
seu ponto de partida contingente.” (CANDIDO, 1987, p. 207) É assim que Guima-
rães Rosa demonstra a possibilidade de “instaurar a modernidade da escrita dentro da
maior fidelidade à tradição da língua e à matriz da região.” (p. 207)
Pelo exposto, vê-se que a obra rosiana, principalmente Grande sertão: veredas,
supera a tradição literária do regionalismo, muitas vezes marcada pelo naturalismo ou
pela caricatura, que é baseada na observação (empírica e documental) e que resulta
na descrição de personagens, atos e espaços que, como cópia fotográfica, parecem
estáticos e até mesmo, natureza morta. No escritor mineiro, o mundo do sertão não é
visto de fora e de longe, tampouco, como objeto inanimado, como realidade fugaz e
epidérmica. Ele é recriado e representado artisticamente como um complexo de rela-
ções sociais, de dramas humanos, de elementos do imaginário. A ação e a reação das
personagens diante de situações criadas, cujos destinos e perspectivas inserem-se em
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32. realidades socialmente determinadas, abarcam componentes de universalidade, ex-
pressos em indivíduos singulares, vivenciando situações particulares. Nesse movi-
mento de criação e representação, o sertão passa a ser o mundo.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 10/05/2009
Aprovado:11/06/2009
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34. Sexualidade e Gênero —
As metáforas do biopoder
Rosana Ribeiro Patricio, UEFS
BOCAYUVA, Helena. Sexualidade e gênero no imaginário brasileiro:
metáforas do biopoder. Rio de Janeiro: Revan, 2007, 192p.
O livro Sexualidade e gênero no imaginário com as reformas urbanas, a vacinação em
brasileiro, de Helena Bocayuva, destina-se a quem massa etc. Em suma, implantou-se aqui uma
já leu ou pretende ler alguns dos melhores ro- biopolítica, ou seja, aquilo que Joel Birman
mances brasileiros, do período romântico ao denomina “medicalização da sociedade”, fato
pré-modernismo, ou seja, de José de Alencar, registrado em leis, documentos, fotos, pro-
Aluísio Azevedo e Lima Barreto, com algu- jetos e também na literatura.
mas alusões à ficção de Machado de Assis. Seu Helena Bocayuva identifica as metáfo-
ensaio traz à tona questões pouco discutidas ras do biopoder nos textos literários, anali-
nesses romances e dá ao leitor uma visão mais sando as relações entre sexualidade e gênero,
crítica para compreender certas situações ain- conforme aparecem nos discursos narrativos
da hoje presentes de forma residual na socie- da época, contribuição dos escritores em
dade. busca de uma estrutura ideal para a socieda-
No período abordado pela autora, os de brasileira em formação. De fato, como
romances brasileiros representam diversas ce- mostra a ensaísta, os registros literários são
nas em família, focalizando-as através de pre- ricos em cenas em família, em situações em
missas e conceitos que se originam no modelo que as personagens tomam atitudes e se com-
de ordenação social européia, fenômeno que portam de uma forma ou de outra, de acor-
Michel Foucault denominou “biopoder”. O do com a educação recebida, – ou a alegada
filósofo francês explica e questiona os mode- falta dela –, no lar e na vida social. Assim, é
los elaborados pela sociedade européia, sobre- no âmbito das relações familiares, ou na pre-
tudo a partir da França, para organizar a soci- cariedade dessas relações, que os escritores
edade, ditar a formação das famílias e a edu- buscam as origens dos perfis psicológicos e
cação das pessoas, numa visão higiênica e mé- da personalidade de homens e mulheres, des-
dico-sanitária da nação. crevendo o seu caráter e julgando suas ações
No Brasil, na virada do século XIX para em sociedade.
o século XX, no contexto ainda marcado pelo Ao observar a estreita relação entre
escravismo, essas teses européias redundaram essa literatura e contexto social, a pesquisa-
na adoção de uma política sanitária ostensiva, dora estabelece os pontos fundamentais que
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35. esclarecem as relações de biopoder na socie- modelo familiar, uma vez que o final de
dade brasileira. No prefácio do livro, o psica- Lucíola não é feliz, mas trágico e ideologica-
nalista Joel Birman ressalta que “um dos mé- mente higiênico, avalizando o discurso com-
ritos da pesquisa realizada por Helena petente da medicina oitocentista, sempre pron-
Bocayuva foi o de indicar alguns dos impasses ta a explicar o ‘nervoso’, ou ‘as crises de ner-
existentes para a implantação plena do vos’ das personagens, pela falta de melhor
biopoder no Brasil. Assim, examinando a pro- formação familiar e educacional. Nesse capí-
dução literária brasileira, na segunda metade tulo, a estudiosa conclui que: “Decididamen-
do século XIX e no início do século XX, indi- te, nos romances de Alencar aqui observados,
ca a fragilidade da figura da mulher-mãe. A o feminino não serve de metáfora para o lu-
orfandade materna, com efeito, se impõe gar visto como inferior da sociedade” (p.94),
como problemática no imaginário romanes- pois os homens se colocariam à sombra das
co de José de Alencar e Aluísio de Azevedo. mulheres e as mulheres seriam personagens
A leitura acurada de Lucíola (1862), Diva (1863), fortes. No entanto, deve-se lembrar que, ao
Senhora (1873) e de O mulato (1891) indica isso final do romance Senhora, Aurélia se põe aos
com clareza”. Considerando a literatura como pés de Fernando Seixas, numa completa ati-
representação de um contexto social, a ensaísta tude de submissão, contrastando com todo o
procura explicar, através de atitudes das per- império e altivez anteriores da personagem.
sonagens, os desdobramentos coletivos e os Em Aluísio Azevedo, a pesquisadora
impactos da prática do biopoder. Joel Birman aborda os romances O mulato (1881) e Casa de
destaca ainda que “o outro mérito dessa cons- pensão (1884). No primeiro, discute os estere-
trução, que nos foi proposto pela pesquisa de ótipos aplicados aos mestiços, ou seja, a falsi-
Helena Bocayuva, é o de inscrever a proble- dade, a inconstância e a leviandade, que, na
mática da biopolítica no Brasil no registro do narrativa, é simulada por dois personagens,
imaginário literário” (p. 23). Manuel Pescada e o cônego Diogo. A Ana
Através do ensaio de Bocayuva, obser- Rosa são atribuídos ataques de “deus-nos-acu-
va-se que essas narrativas, emblemáticas na da”, ou “nervoso” e até mais de um ato his-
constituição do imaginário brasileiro, alimen- térico, com a descrição dos ataques. No se-
taram a formação cultural da intelectualidade gundo romance, o protagonista, portador de
e ilustram a questão da sexualidade como sífilis, é um alvo rentável para os saberes mé-
metáfora para as relações sociais, no imaginá- dicos, com a confluência do saber jurídico.
rio biopolítico. Aliás, o romance é baseado num crime dito
Em Alencar, a estudiosa faz o seu re- de honra, fato ocorrido em novembro de
corte em Lucíola, Diva e Senhora, destacando 1876, um homicídio conhecido como “Ques-
que “Lucíola encena aspectos importantes do tão Capistrano”. Assim, Capistrano Cunha,
biopoder. A cortesã serve de contraponto à amigo de Antônio, mantém relações com Júlia,
mãe higiênica ou à honesta trabalhadora. O irmã de Antônio, estes últimos filhos de uma
‘ner voso’ está presente, remetendo ao professora de piano que alugava quartos.
paradigma da degeneração” (p. 41). Temos Capistrano recusa-se a casar por obrigação.
então pólos antitéticos de representação da Levado à justiça e inocentado, e logo é assas-
mulher, estabelecendo uma prioridade para o sinado por Antônio, o irmão ofendido, que
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36. cumpre o papel de homem que “lava a honra sado, nas hierarquias, no poder do patriarca-
dessa família.” Como se observa, além do dis- do, na medicina oitocentista que aplicava con-
curso médico, ocorre o entrelaçamento da ceitos e estipulava normas de comportamen-
questão jurídica. to social. Essas representações são encontra-
Em Lima Barreto, a ensaísta analisa o das na literatura, através de descrições, questi-
caso de sedução da jovem Clara dos Anjos onamentos ou até mesmo denúncias de certas
por Cassi Jones, as investidas e fugas do sedu- práticas sociais aplicadas às mulheres, à guisa de
tor, que fica impune diante de uma família fraca uma educação “apropriadamente” feminina.
e incapaz de se impor socialmente. Trata-se O livro insere-se nos estudos de saúde
de outra situação que envolve a sexualidade, coletiva, no âmbito da medicina social, e res-
eixo forte do biopoder e suporte da família. ponde ao crescente interesse pela participação
No episódio, a fragilidade da figura materna, feminina na sociedade. Personagens de ontem
Dona Engrácia, é destacada pelo narrador, as- e de hoje, elas são mulheres solteiras, viúvas
sim como a impotência do pater famílias diante ou separadas, sobretudo mães, donas de casa,
da trajetória banalizada do jovem que seduz, profissionais, que trabalham em turnos inte-
engravida e abandona a moça, dentro da tra- grais, muitas vezes com pouco tempo para
dição de irresponsabilidade tolerada na gera- seu descanso e lazer. Como compreender esse
ção de filhos não reconhecidos, e tecnicamen- atual estado de coisas para as mulheres, sejam
te considerados “ilegítimos”. elas de classes sociais distintas, casadas ou não,
O ensaio de Helena Bocayuva vem, em mães ou não, senão buscando nos registros
boa hora, preecher uma lacuna nos estudos do passado as origens desses problemas?
da literatura brasileira da virada do século XIX Em seu ensaio, Bocayuva consegue ex-
para o século XX. O estudo aparece pari passo trair dos romances os elos explicativos do
com um fenômeno inquestionável no cenário passado que nos remetem a uma melhor com-
brasileiro atual. Recentemente, o IBGE divul- preensão da situação atual de certas questões
gou uma estatística que confirma a tendência relativas à família. Nesse sentido, são significa-
ao aumento de lares chefiados por mulheres tivas as palavras finais da ensaísta, sobre os
sós no Brasil. A forma como a sociedade tem livros estudados: “São narrativas que desta-
visto a mulher, mães e filhas, e suas relações na cam a falta de normas e de mães, metáforas
cena familiar, tem muito a ver com um imagi- que fundem hoje discursos sobre impunidade
nário que precisa ser analisado criticamente, a ou a falta de pai e lei. Falácias ou fábulas pro-
partir dos documentos e, sobretudo, através duzidas pelo imaginário de um país onde a
das representações literárias. De fato, muito maioria dos domicílios é chefiada por mulhe-
do que se afigura hoje, tem explicação no pas- res sós”.
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37. Arte autoetnográfica
Heidrun Krieger Olinto
Um dos artigos do belo manifesto Arte- digmas clássicos, legitimados pela marca da
latina apresenta-se como vigoroso convite à discriminação que respeita os limites dos terri-
liberação de sensibilidades, de “fantasias e an- tórios particulares da consciência de si, da cons-
siedades”, uma vez que, segundo o seu autor ciência do outro e da forma de sua escrita,
Silviano Santiago, o “blablablá teórico não é o culmina assim no questionamento destes pela
bastante” para entendê-la.1 Em que pesem as fórmula compósita radical da autora:
diferenças entre a prática artística e o ofício de autoetnografia. Nesta tradução o mito da inte-
produção de conhecimento, parece-me opor- gridade do self é afrontado pela cacofonia de
tuno esboçar o nexo entre a demanda expres- múltiplas vozes sem síntese; a descrição do
sa no manifesto e a intenção do projeto de outro como objeto é substituído pelo diálogo
Daniela Versiani, que ensaia com saber e sa- interminável e tenso entre subjetividades dis-
bor a difícil travessia entre gestos subjetivos, tintas e a escrita, de modo geral, vista como
atos empíricos e opções de sua descrição e reprodução transparente de realidades exteri-
teorização. Sem a tentação usual de reduzir a ores, é questionada a favor de seu estatuto
complexidade de seus objetos de análise pe- performático de evento.
los rituais da generalização. O pensamento construtivista, não-dualista,
Neste sentido, Autoetnografias: conceitos alter- permeia todos os pressupostos
nativos em construção (Daniela Beccaccia epistemológicos que dão contorno às indaga-
VERSIANI, Rio de Janeiro: 7Letras, 2005) ções, apontando para o olhar participativo do
oferece uma leitura fascinante da geografia in- analista, ele mesmo inserido em contextos con-
telectual contemporânea dos campos das ci- cretos circunscritos em sua dimensão tempo-
ências humanas e sociais, avessos ao fechamen- ral e espacial. Neste âmbito, o livro de Versiani
to de suas fronteiras disciplinares. Centradas inscreve-se na atmosfera filosófica batizada
sobre possíveis articulações entre estudos de como “despertar epistemológico”, que inspi-
literatura, de cultura e de antropologia, as in- rou grande parte das revoluções paradigmá-
dagações tematizam intercâmbios e cruzamen- ticas ocorridas nas últimas décadas. O seu cha-
tos alheios à hifenização comum que alinha de mado método autoetnográfico abre horizontes
modo contíguo e distinto os seguintes termos: para uma atitude auto-reflexiva explícita da
auto-etno-grafia. A revisão crítica de para- autora com respeito aos pressupostos privile-
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38. giados por ela que orientam o seu ângulo de autoetnográfica ela emerge como barreira con-
visão e sinalizam a sua sintonia com a investi- tra a transformação do outro em objeto.
gação científica mais avançada no espaço dis- O mérito e a originalidade do livro po-
ciplinar da antropologia e dos estudos de lite- dem ser creditados, em parte, à dupla forma-
ratura. Nas duas esferas – e não apenas nelas ção de Versiani - antropóloga e teórica da lite-
– passou a ser senso comum que os objetos ratura - que lhe permitiu cimentar com segu-
não possuem sentido substancial inerente que rança e competência perigosas travessias dis-
se oferece ao olhar sem mediação. Do ciplinares e enxergar o valor das condições sub-
etnógrafo o princípio da observação jetivas do conhecimento, não como relativismo
participativa demanda, neste sentido, a cultural, mas como abertura para novos
conscientização do próprio lugar ocupado no questionamentos éticos no próprio fazer cien-
complexo campo de contingências e possibi- tífico.
lidades que articulam a sua vida privada com Os desafios deste empreendimento com-
pertencimentos coletivos e com inserções plexo são enfrentados com a sensibilidade da
institucionais e políticas, responsáveis pelo de- professora de literatura e cultura que
senho misterioso construído por seu olhar. intercambia o seu saber com aqueles que se
De forma semelhante nos estudos de lite- iniciam na sua construção.Mas isto não é o bas-
ratura - que deslocaram o seu compromisso tante, como diria Silviano Santiago. O prazer
tradicional com a interpretação do texto lite- da leitura deste belo livro se deve, também,
rário para o vasto espaço da comunicação li- ao encontro com a escritora de ficção: Daniela
terária vinculada com processos de produção, Gianna Claudia Beccaccia Versiani.
mediação, recepção e análise crítica - desponta
a figura auto-reflexiva do observador de se- 1 SANTIAGO, Silviano. “Artelatina (Manifes-
gunda ordem como antídoto para a ingenui- to)”. In: Reinaldo Marques e Lúcia Helena Vilela
dade epistemológica que entende literatura (orgs.). Valores: Arte, mercado, política. Belo Hori-
como espelho da realidade. E na descrição zonte: Editora UFMG/Abralic, 2002, p. 57-60.
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39. As filhas de Pandora –
as mulheres, o tempo e a cultura
Ivia Alves, UFBA
O livro As filhas de Pandora, de Rosana Ri- pendente financeiramente. Ao final, encontram-
beiro Patricio, é um estudo crítico que destaca se, de uma forma ou de outra, sozinhas.
as “imagens de mulher na ficção de Sonia A ensaísta constrói uma estrutura no seu
Coutinho.” A ensaísta demonstra como a texto interpretativo que contempla os princi-
ficcionista vê, lê e registra as mudanças e pais constituintes da narrativa: 1) as protago-
questionamentos culturais de uma geração que nistas, em idade de trinta ou quarenta anos,
se identificou com as propostas feministas. E em suas crises; 2) investe também no afetivo
como, no decorrer do tempo, sem perder de de suas amigas (variantes do mesmo tema e
vista o tema central: a mulher de classe média da crise) que mesmo casadas se projetam no
em crise com os modelos e papéis tradicio- tédio; 3) analisa a narrativa em fragmentos,
nais e em busca de suas próprias soluções, seus com idas e vindas, que não segue a ordem
questionamentos entre o campo profissional cronológica dos fatos; 4) observa o uso fre-
e o campo afetivo vão se sucedendo. quente da intertextualidade (inclusive com re-
As personagens de Sonia Coutinho são de presentações de atrizes e modelos da juventu-
classe média, e se dividem em dois grupos di- de); 4) verifica que os textos de Coutinho, atra-
versos: aquelas que seguiram a condição de ser vés da narradora, questiona e desestabiliza a
mulher, ter família e filhos; e outro nicho, no categoria do narrador(a).
qual elas trabalham fora do espaço domésti- A ensaísta dá voz aos personagens quase
co, têm instrução superior e vivem a crise de sempre iniciando cada parte do seu longo es-
casamentos desfeitos ou insatisfatórios, ou tudo pela retrospectiva interiorizada dessas
mesmo escolheram ser solteiras. Desencanta- protagonistas que fazem um balanço de sua
das com a fantasia do final feliz dos romances vidas, focando suas experiências, seus traumas,
amenos sobre o casamento, chegam à conclu- suas famílias e modelos. Com isso, o estudo
são de que o modelo tradicional (o modelo mostra como elas vêm a tomar consciência
de suas mães) não lhes é adequado. Sentem- de suas não-identidades, do desencanto com
se, então, inadequadas ou sem possibilidades seus papéis sociais idealizados pela cultura oci-
de romper com os vínculos sociais e culturais dental burguesa capitalista, e como foram re-
a fim de partir para uma vida liberada, inde- primidos os seus desejos.
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40. Os procedimentos analíticos eleitos por de narradores/autores que constroem uma nar-
Rosana Ribeiro Patricio dão conta da vida das rativa acronológica, fragmentada, com várias
protagonistas, pois a análise em perspectiva inserções de pontos de vista diferentes, rompen-
psicanalítica contempla a formação traumáti- do com a narrativa linear, um narrador oniscien-
ca, os ditos e interditos, a internalização dos te e que controla a verdade e o ato de contar.
modelos paternos e maternos e o vazio exis- O leitor sai da leitura de As filhas de Pandora
tencial em que se encontram no momento, na mais consciente da complexa elaboração das
maturidade, momento no qual a narrativa de narrativas de Sonia Coutinho que, curiosamente,
cada romance ou do conto se inicia. A estudi- através de suas protagonistas vai coexistindo
osa explora, ainda, o uso, pela escritora, da com o tempo de amadurecimento da escrito-
intertextualidade profusa e cheia de alusões às ra. Mesmo caminhando no tempo e em tem-
culturas ocidental e afro-baiana inscritas como pos de mudanças, a dificuldade de suas pro-
um segundo patamar de interpretação e de tagonistas de acertar o passo com o presente
criação de significados e nexos. vai se tornando cada vez mais evidente e claro
Todos os três livros analisados apresentam que tal impedimento está na cultura na qual
inúmeras alusões, insinuações a outros textos foram engendradas, pois elas são marcadas
lidos ou do conhecimento do povo. Não é pela ruptura de dois mundos (modernidade e
por acaso que a geração de Sonia Coutinho contemporaneidade), de duas cidades urba-
foi a primeira a romper com a dicotomia: clas- nas (provinciana e cosmopolita) e de suas
se média (branca, letrada, burguesa) e o saber expressões culturais diferentes.
do povo (negra, ritos, mitos e hábitos orais, Como as narrativas de autoria feminina da
popular e pobre). É desse atrito entre as duas geração de Sonia Coutinho, suas protagonis-
culturas (hibridismo) que se forjam as mulhe- tas vivem o impasse e a crise, experimentam
res protagonistas, todas elas de origem baiana saídas diversas, mas elas, como sua autora, não
e migradas para o Rio de Janeiro, cidade cos- têm a chave do futuro. Como será a mulher,
mopolita e diversificada pelas várias culturas como estará realizado seu desejo? Ultrapassa-
ali existentes. Rosana Patrício aponta esse en- rão os impasses forjados pela cultura local e
trelaçamento entre a vida existencial das pro- ocidental? Este é um livro que não pretenden-
tagonistas na cidade cosmopolita e do lugar do dar respostas à crise da mulher emancipa-
de onde elas falam, lugar marcado pelo da e independente, interpreta esplendidamen-
hibridismo cultural baiano. te os impasses, a riqueza e a complexidade
Em seguida, os ensaios trabalham com a das narrativas de uma excelente escritora. Vale
desestabilização da narrativa, com o a pena ler os livros de Sonia Coutinho e
contradiscurso construído pelas narrativas de entendê-los pelos estudos analíticos de Rosana
autoria feminina e mesmo com os vários tipos Patrício.
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41. O comparatista Cláudio Veiga
Cid Seixas, UFBA / UEFS
Há quase meio séculos um conceituado segunda edição, com o selo da GRD, editora
professor de Língua e Literatura Francesas lan- nascida na Bahia no final dos anos 60 e depois
çava o livrinho Castro Alves, guia da catedral, com transferida para São Paulo, tem sobre a pri-
o selo da Livraria Universitária. Trata-se do meira edição a vantagem de apresentar as ilus-
mestre Cláudio Veiga, ex-presidente da Aca- trações a cores. São 34 fotografias panorâmi-
demia de Letras da Bahia, função que ocu- cas ou de detalhes da Catedral Basílica de Sal-
pou por algumas décadas, com o mesmo zelo vador que dialogam com o texto ensaístico
e espírito empreendedor dos primeiros anos. do autor e, principalmente, com o poema “Je-
Mas não se tratava de um iniciante, antes suítas”, de Castro Alves.
ele havia publicado teses e estudos universitá- MONOGRAMA – Atento a comparações
rios sobre Pascal (1954, 1957 e 1959), além e análises, o ensaísta e mestre de sucessivas
de dois livros didáticos, Vestibular de Francês gerações atribui o fato da Catedral estar pre-
(1964) e Gramática Nova do Francês (1965). sente na memória do poeta por ter sido a ca-
Com aquela nova publicação o ensaísta pela do antigo colégio da Companhia de Je-
Cláudio Veiga consolidava um espaço que vi- sus. Assim, empreende a leitura de cada estro-
nha conquistando, aos poucos, junto ao pú- fe do poema, buscando relacionar suas ima-
blico situado para além dos muros da Uni- gens com as imagens do templo que fez foto-
versidade. Com o passar do tempo, as obras grafar para estabelecer o cotejo com os ver-
foram se sucedendo uma às outras e a audi- sos castroalvinos.
ência se ampliando da Bahia para o mercado Veja-se a passagem seguinte de “Jesuítas”:
editorial brasileiro, através de publicações pe- “E o Niágara ia contar aos mares... / E o
las mais importantes editoras do país. Nos seus Chimborazo arremessava aos ares / O nome
quase 80 anos, o ensaísta só fez crescer em do Senhor!” Cláudio Veiga chama atenção para
quantidade e em qualidade, continuando pro- a relação entre esta referência condoreira ao
dutivo e inquieto, brindando o público culto nome de Cristo à constante repetição do
com ensaios e livros vindos a lume com certa monograma jesuítico, com a abreviatura do
regularidade. nome de Jesus em grego: IHS. As ilustrações
Mas o que teria levado o profícuo cate- selecionadas para o livro revelam vários pon-
drático e titular aposentado da Ufba a prepa- tos da Catedral em que a insígnia aparece com
rar uma nova edição de Castro Alves, guia da destaque e retrabalhada com diferentes con-
catedral tanto tempo depois? Teria sido ape- cepções plásticas em que as letras do nome de
nas o desejo de atingir novos leitores? Essa Jesus formam o único elemento constante.
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42. A foto do teto da sacristia, com o mono- seus formuladores. Daí a cada vez mais
grama esculpido em metal dourado e proje- preocupante redução do número de exem-
tado como uma luminária solar, é a mais evi- plares das revistas e dos livros acadêmicos.
dente sugestão da seqüência poética “arremes- Uma ensaística menos empenhada em de-
sava aos ares o nome do Senhor”. A leitura cifrar a esfinge da multiplicidade de novas te-
comparativa proposta pelo professor Cláu- orias críticas e mais comprometida com o
dio Veiga tem o condão de investir o olhar do descerramento ou a interpretação da obra li-
leitor ou do visitante do templo de uma pers- terária, de modo a atrair a atenção do público
pectiva condoreira ou hiperbólica diante da leitor, teria um importante papel a desempe-
visão monumental da composição nhar nos dias atuais. Foi isso que mestres euro-
arquitetônica que extasia os sentidos num tur- peus procuraram fazer com obstinada com-
bilhão de sinestesias desencadeadas pela argú- petência, investindo seus alunos na função de
cia da descoberta exegética do mestre leitor. É esse papel docente que Cláudio Veiga
comparatista. faz questão de exercer com humildade e paci-
Fiel à tradição francesa que atribui à crítica ência. E é esse mesmo papel que ele atribui a
a função de ler a obra e guiar as possíveis lei- Castro Alves quando aponta no poema “Je-
turas seguidas pelo público, o ensaísta alcança suítas” a função de guia da Catedral. Aí, uma
o alvo com pleno domínio dos objetos arro- obra de arte empenha-se na leitura de outra
lados. Se, por um lado, ganhou notoriedade obra de arte, estabelecendo um diálogo dos
no Brasil um tipo de leitura crítica que remete mais frutíferos.
menos ao texto artístico e mais às especula- Trata-se, portanto, de comparação de séri-
ções teóricas de mais recente conformação, es artísticas diversas; de um lado, a série literá-
por outro lado, a leitura de empenho ria, do outro lado, a série pictórica. Cláudio
hermenêutico, a exemplo da buscada por Cláu- Veiga compara passagens do poema de Cas-
dio Veiga, constitui o modo mais adequado de tro Alves com altares, teto, paredes e outros
formar e consolidar um público leitor no país. espaços da Catedral, aproximando discursos
HUMILDADE – Enquanto a inteligência em si tão diversos na aparência.
universitária mais atual utiliza o texto literário Desde esse livrinho que em breve comple-
como pretexto para suas cogitações e como tará meio século de concebido, o professor
exercício prático para compreender formula- Cláudio Veiga segue o curso das compara-
ções teóricas ainda não resolvidas ou domina- ções necessárias ao conhecimento de objetos
das pelo pesquisador, aquele que precisa de de natureza divergente até formular os seus
indicadores de caminho permanece órfão de mais recentes e bem recebidos estudos de lite-
um guia que lhe conduza pelas sendas mais ratura comparada. Aí, talvez, a resposta à in-
intricadas das obras literárias. dagação do que teria levado o autor a prepa-
Daí o distanciamento cada vez maior en- rar uma nova edição do emblemático Castro
tre o leitor e a produção resultante da pesqui- Alves, guia da catedral, mais de quatro décadas
sa universitária. Parte dessa pesquisa chega ao depois: – a sua condição de livro seminal ou
paroxismo de constituir objeto de interesse de projeto guia do trajeto comparatista de
apenas para um pequeno grupo próximo aos Cláudio Veiga.
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43. As publicações do
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM LITERATURA
E DIVERSIDADE CULTURAL,
em cujo âmbito a revista
Légua & meia está inserida,
foram iniciadas no ano 2000
com o volume coletivo
Rotas & Imagens:
Literatura e outras viagens.
Rotas & Imagens, volume orga-
nizado por Rubens Alves Perei-
ra e Aleilton Fonseca, reúne vin-
te trabalhos de estudiosos da
UEFS e de outras instituições,
tratando de Literatura e outras
séries culturais.
A Estética da Sinceridade & ou-
tros ensaios traz uma seleção
de textos ensaísticos do poeta
Antonio Brasileiro, marcados
pela irreverência e pela liberda-
de criadora.
A Unidade Primodial da Lírica
Moderna, de Roberval Pereyr,
junta a pesquisa à intuição de
um poeta, resultando num texto
que retoma os estudos sobre a
teoria do verso na modernidade.
Memória em movimento é um
volume coletivo que reúne estu-
dos sobre o sertão na arte de
Juraci Dórea, organizado por
Rubens Alves Pereira e Rita
Olivieri-Godet.
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44. Piguara: Alencar e a invenção
do Brasil, de Elvya Ribeiro Perei-
ra, é um livro instigante e de in-
teresse atual, centrado nos pro-
blemas identitários surgidos no
século XIX, com o desmantelo do
colonialismo nos países ameri-
canos.
Aloísio Resende reúne traba-
lhos de pesquisadores de docu-
mentos literários a uma mostra
de textos de um esquecido poe-
ta de Feira de Santana. O volu-
me foi organizado por Ana Angé-
lica Vergne, Cristiane Porto e
Lucidalva Assunção.
Estilística Cultural Pragmática,
de Piers Armstrong, aborda as-
pectos da cultura popular da
Bahia, sob as lentes perqui-
ridoras de quem chega trazendo
malas e bagagens de uma outra
cultura.
Gil Vicente, de Theresa Abelha
Alves, retoma o poeta e drama-
turgo português sob o signo da
derrisão, buscando apreender o
sentido do texto vicentino como
crítica ao contexto, através das
categorias do cômico.
Do Inventário à Invenção é um
estudo de Francisco Ferreira de
Lima sobre o Neo-Realismo por-
tuguês, tomando como ponto
nuclear o romance de Alves
Redol, autor pioneiro do realis-
mo socialista no seu país.
Os riscos da cabra cega: Recor-
tes de crítica ligeira reúne arti-
gos de crítica literária do poeta e
jornalista Cid Seixas, através dos
quais ele propõe a volta dos es-
tudos literários ao texto breve e
fundado na simplicidade e no
prazer de ler.
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45. In
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A (Auto)biografia
L´(Auto)biographie é uma
coletânea organizada por João Ubaldo Ri-
Raimunda Bedasee e beiro: Littérature brési-
publicada em parceria en- lienne et constructions
tre o PpgLDC / UEFS e a identitaires, de Rita
Université François Olivieri-Godet, é uma pu-
Rabelais / Tours/França. blicação realizada em
Reúne estudos apresenta- parceria entre o Progra-
dos durante o I Seminário ma de Pós-Graduação
de escritos (auto) biográfi- em Literatura e Diversida-
cos e I Encontro de culturas de Cultural da UEFS e a
de língua portuguesa e fran- Presses Universitaires
cesa, evento que ocorreu na de Rennes, França.
Universidade Estadual de Trata-se de um
Feira de Santana - UEFS, estudo que indentifica e
em Feira de Santana-Bahia, dis-cute as relações en-
em 2003. Esses estudos tre estratégias narrativas
demonstram a atenção e figurações identitárias
dedi-cada à temática pelos na obra de João Ubaldo
pesquisadores envolvi-dos Ribeiro, mostrando como
no encontro. Trata-se de re- o autor faz uma
flexões teó-ricas, análises e desconstrução da visão
considerações críticas em homogênea da
torno das relações entre brasilidade e seus este-
dados biográficos e proce- reótipos, ense-jando a
dimentos literários, nos pro- discussão das relações
cessos de criação, focali- intercultu-rais nas socie-
zando autores e obras dades modernas.
repre-sentativos.
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