Exame de Biologia e Geologia: Época especial - 2008
Sucesso escolar: avaliações internas vs externas
1. In Cadernos de Pesquisa (Brasil),
n° 119, julho 2003 pp. 7-26.
Sucesso na escola : só o currículo,
nada mais que o currículo!
Philippe Perrenoud *
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
Universidade de Genebra
2003
Tradução : Neide Luzia de Rezende
Resumo
O desenvolvimento e o caráter oficial das avaliações
internacionais e de padrões nacionais de rendimento
escolar favorecem a coexistência de uma dupla definição
institucional de sucesso escolar. A definição habitual leva
em conta o ensino efetivamente ministrado, adapta-se ao
nível dos alunos e apresenta uma fidedignidade duvidosa. A
segunda é mais objetiva, mas privilegia o que pode ser
medido por testes padronizados: o cognitivo mais do que o
socioafetivo, as capacidades e conhecimentos mais que as
competências e a relação com o saber. As duas avaliações
entram em conflito. As regulações necessárias poderiam
levar a uma aproximação do ideal: considerar, na avaliação
do sucesso escolar, todos os componentes do currículo
prescrito e tão somente eles.
* ourriels Philippe. Perrenoud@pse. unige. ch
Internet : http://www. unige. ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud/
Laboratoire Innovation, Formation, Education (LIFE) : http://www. unige.
ch/fapse/SSE/groups/LIFE/
1
2. Abstract
Success at school: all curriculum, nothing else!
Development and the official character of international
assessments surveys and national standards of school
performance favour the coexistence of a double institutional
definition of success at school. The usual ones take into
account the curriculum effectively taught, adapt itself to the
levels of the pupils and present a rather doubtful reliability.
The second one is more objective, but gives a too great
weight to what can be measured through standardised
tests: the cognitive more than the socio-emotional, the
capacities and the knowledge more than the competencies
and the relationship to knowledge. Both assessment and
ordinary school evaluations are now in conflict. Necessary
regulations could move them closer to the ideal, if they
employed in order to consider the success at school, all the
components of the formal curriculum and them only.
A idéia de sucesso escolar é entendida hoje em dois
sentidos:
s de modo muito geral, é associada ao desempenho
dos alunos: obtêm êxito aqueles que satisfazem as
normas de excelência escolar e progridem nos
cursos;
c com a moda das escolas efetivas e a publicação das
“listas de classificação das escolas”, o “sucesso
escolar” acaba designando o sucesso de um
estabelecimento ou de um sistema escolar no seu
conjunto; são considerados bem-sucedidos os
estabelecimentos ou os sistemas que atingem seus
objetivos ou que os atingem melhor que os outros.
Existirá uma relação entre esses dois “níveis de
sucesso” ? Acreditamos que sim. Não se poderia imaginar
um estabelecimento que obtenha êxito enquanto a maioria
de seus alunos fracassam. O sucesso de um
estabelecimento poderia então estar associado à soma dos
êxitos individuais de seus alunos. Da mesma forma que se
pode classificar as nações em razão do número de
2
3. m e d a lh a s o lím p ic a s o b t id a s p o r s e u s a t le t a s , a s e s c o la s
p o d e r ia m s e r c la s s ific a d a s s e g u n d o a p r o p o r ç ã o d o s a lu n o s
q u e o b t ê m ê x it o n o s e s t u d o s .
N o e n t a n t o , a s c o is a s n ã o s ã o a s s im t ã o s im p le s , e m
v ir t u d e d e , p e lo m e n o s , t r ê s r a z õ e s :
a . A r e p u t a ç ã o d e u m e s t a b e le c im e n t o s e d e v e m u it a s
v e z e s a o r ig o r d a s e le ç ã o q u e e le p r o m o v e , n o in g r e s s o e
n o d e c u r s o d a e s c o la r id a d e . N ã o s e p o d e d e s c o n s id e r a r a s
“ r a c io n a lid a d e s d e s ig u a is ” (G r is a y , 19 8 8 ) d o s s is t e m a s
e s c o la r e s , q u e le v a m c e r t o s e s t a b e le c im e n t o s a d e fe n d e r
s u a r e p u t a ç ã o r e je it a n d o o s a lu n o s c o m d ific u ld a d e , e m v e z
d e in s t r u í- lo s .
b . N ã o p o d e m o s n o s a t e r a o s d e s e m p e n h o s d e a lt o n ív e l,
n e m m e s m o a o s d e n ív e l m é d io , e d e s c o n s id e r a r a
d is p e r s ã o . U m e s t a b e le c im e n t o d e v e r ia le v a r t o d o s s e u s
a lu n o s a u m n ív e l a c e it á v e l e n ã o d e v e r ia s e c o n t e n t a r e m
c o m p e nsar g rave s fr a c a s s o s in d iv id u a is com ê x it o s
b r ilh a n t e s .
c . N ã o s e p o d e c o m p a r a r e s t a b e le c im e n t o s s e m le v a r e m
c o n t a o c o n ju n t o d o s fa t o r e s q u e d e t e r m in a m o s u c e s s o
e s c o la r d e s e u s a lu n o s : a lg u n s d e s s e s fa t o r e s fo g e m a o
c o n t r o le d o s e s t a b e le c im e n t o s m e n o s p o d e r o s o s , c o m o o
n ív e l in ic ia l d o s a lu n o s o u s e u c o n t e x t o fa m ilia r e u r b a n o .
U m b o m e s t a b e le c im e n t o n ã o p o d e p o r t a n t o s e d e fin ir
u n ic a m e n t e e m fu n ç ã o d o n ú m e r o d e b o n s a lu n o s q u e
p o s s u i.
H á a in d a u m a o u t r a c o m p lic a ç ã o : o s ig n ific a d o d o s
ín d ic e s h a b it u a is d e s u c e s s o e s c o la r d o s a lu n o s – t a x a s d e
p ro m o ç ão , no tas, p o rc e ntag e ns – v a r ia s e g u n d o o
c o nte xto . A m e sm a no ta não c o rre sp o nd e às m e sm as
c o m p e t ê n c ia s e c o m p e t ê n c ia s ig u a is são a v a lia d a s
d ife r e n t e m e n t e d e u m e s t a b e le c im e n t o e a t é d e u m a c la s s e
a o u t r a , u m a v e z q u e a s n o t a s r e s u lt a m e m g e r a l d e u m a
c o m p a r a ç ã o local entre alunos que seguem o mesmo
programa. Assim um aluno médio pode parecer excelente
numa classe muito fraca e medíocre numa classe muito
forte. Para que uma comparação entre estabelecimentos
seja rigorosa, as avaliações internacionais substituem
esses índices de alcance local por dados padronizados,
levando todos os alunos a se submeterem ao mesmo
3
4. p r o g r a m a n o s is t e m a e s c o la r .
A e s c o la s ó p o d e a v a lia r , n o q u o t id ia n o , a q u ilo q u e e la
grosso modo ensinou, enquanto que as avaliações externas em
larga escala medem o nível de domínio daquilo que se reputa ter
sido ensinado em todas as escolas a partir do currículo
formal. Fiéis aos textos, tais avaliações não levam em conta
a realidade diversificada do ensino e do trabalho escolar.
A escola deve, sob o risco de ser fortemente
questionada, assegurar o sucesso do maior número de
alunos, não importa em que classe e em que tipo de
estabelecimento: a sociedade não pode hoje tolerar que
três quartos dos alunos repitam de ano. A avaliação,
inscrita no funcionamento “normal” do sistema escolar, é
pois modulada em função dos contextos locais e dos
contratos didáticos, de modo a manter-se psicologicamente
sustentável e socialmente aceitável. Mas as avaliações de
sistema, que permitem comparar dados, não possuem tais
restrições e podem “levar a sério os objetivos de
formação”, o que supõe não somente construir um outro
quadro das desigualdades em razão da padronização das
provas, como também estimar de modo menos favorável a
eficácia do sistema.
Outra contradição: enquanto o sucesso “rotineiro” é feito
de uma miríade de avaliações que pontuam e reorientam a
carreira escolar, referindo-se cada uma a um fragmento do
currículo, as avaliações em larga escala voltam-se para as
aprendizagens consolidadas no fim dos cursos, o que
engendra uma outra representação das desigualdades e da
eficácia do sistema educativo.
Entende-se que os vieses, os efeitos de contexto e outras
perversões docimológicas conduzem os especialistas a
atribuir apenas uma confiança limitada às avaliações feitas
pela escola, essa contabilidade opaca de onde provêem
notas cujo significado é incerto em termos de aquisições
reais. Parece lógico que quem concebe avaliações de
sistema sucumba à tentação de ignorar as avaliações
produzidas pelos professores ou outros examinadores
dentro do funcionamento de rotina do sistema educacional.
Essa dissociação entre as avaliações feitas pela escola e
os dados de avaliações em larga escala, que visam,
4
5. le g it im a m e n t e , a n e u t r a liz a r o s e fe it o s d o c o n t e x t o lo c a l,
p o d e e n t r e t a n t o in t r o d u z ir o u t r o s v ie s e s ig u a lm e n t e g r a v e s .
A s a v a lia ç õ e s e x t e r n a s q u e p e r m it e m c o m p a r a ç ã o p o d e m
s e a t e r a o s d a d o s m a is fá c e is d e d e fin ir e d e m e d ir , m a s é
d ifíc il a v a lia r o r a c io c ín io , a im a g in a ç ã o , a a u t o n o m ia , a
s o lid a r ie d a d e , a c id a d a n ia , o e q u ilíb r io c o r p o r a l o u o o u v id o
m u s ic a l a t r a v é s d e p r o v a s p a d r o n iz a d a s , q u e s ã o , n a m a io r
p a r t e d o t e m p o , t e s t e s d e lá p is e p a p e l. A v a lia r
a p r e n d iz a g e n s c o m p le x a s e m la r g a e s c a la e x ig e u m a
c r ia t iv id a d e m e t o d o ló g ic a c o n s id e r á v e l e in d u z a c u s t o s
im p o r t a n t e s d e a p lic a ç ã o e t r a t a m e n t o d o s d a d o s . É m a is
r á p id o e m a is b a r a t o a t e r - s e a p r o v a s e s c r it a s , r e d u z in d o ,
d e s s e m o d o , a s a p r e n d iz a g e n s e s c o la r e s à s a q u is iç õ e s
c o g n it iv a s , d a n d o p r io r id a d e à s d is c ip lin a s p r in c ip a is e à s
o p e r a ç õ e s t é c n ic a s .
G o v e r n o s e e s p e c ia lis t a s q u e s e d e ix a m le v a r p o r t a is
s im p lific a ç õ e s e m g e r a l r e c o n h e c e m lu c id a m e n t e o s v ie s e s
e a im p e r fe iç ã o d e s e u s in s t r u m e n t o s . C u r io s a m e n t e , is s o
n ã o o s im p e d e d e u t iliz á - lo s e d e p u b lic a r a s lis t a s
c la s s ific a t ó r ia s . Es s e s lim it e s , q u e d e v e r ia m in v a lid a r o
m é t o d o , a p e n a s p r o v o c a m n e le a lg u m a s a r r a n h a d u r a s ,
d e n t r o d e u m a “ c u lt u r a d e a v a lia ç ã o ” q u e e x ig e d a d o s a
t o d o c u s t o . A p r u d ê n c ia d o s a u t o r e s d a s a v a lia ç õ e s e m
la r g a e s c a la e o s p r o t e s t o s d o s le it o r e s m a is c r ít ic o s s ã o
r a p id a m e n t e e s q u e c id o s , o s d a d o s p u b lic a d o s s o b r e v iv e m
e im p r e s s io n a m a q u e le s que não sabem ou não
c o m p r e e n d e m c o m o t a is a v a lia ç õ e s fo r a m e la b o r a d a s . O s
in d ic a d o r e s m a is d u v id o s o s c o n q u is t a m a o lo n g o d o t e m p o
a r e s d e m e d id a s o b je t iv a s .
O s s is t e m a s e d u c a c io n a is c o r r e m , n e s s e c a s o , o r is c o d e
in s t a la r - s e p r o g r e s s iv a m e n t e n u m a s it u a ç ã o d e dupla definição
institucional do sucesso dos alunos:
d Uma, mais tradicional, remete à avaliação corrente
feita pelos professores e por outros examinadores,
durante ou ao fim do ano escolar. Não se sabe bem o
que essa avaliação abrange, o certo é que as normas
e as formas de excelência valorizadas não são
homogêneas. Em contrapartida, essa avaliação leva
em conta o que foi ensinado. É ela que representa
papel decisivo na determinação da carreira escolar.
p Outra, que independe do funcionamento ordinário das
5
6. c la s s e s e d o s e s t a b e le c im e n t o s , s e r v e - s e d e
in s t r u m e n t o s p a d r o n iz a d o s c o n c e b id o s a p a r t ir d o
c u r r íc u lo fo r m a l e a d m in is t r a d o s e m la r g a e s c a la . A s
r e s t r iç õ e s m e t o d o ló g ic a s e e c o n ô m ic a s le v a m a
p r iv ile g ia r o s r e s u lt a d o s m a is fa c ilm e n t e m e n s u r á v e is
m e d ia n t e p r o v a s e s c r it a s . O o b je t iv o d e s s a s e g u n d a
fo r m a d e a v a lia ç ã o n ã o é d e t e r m in a r o d e s t in o
in d iv id u a l d o s a lu n o s , m a s c o n t r ib u ir p ara o
m o n it o r a m e n t o d o s is t e m a .
Se n ã o h á c o n c o r d â n c ia e n t r e o s ín d ic e s d e s u c e s s o
o b t id o s r o t in e ir a m e n t e n a p r ó p r ia e s c o la e a s c o m p a r a ç õ e s
in t e r n a c io n a is , o s p a is e a o p in iã o p ú b lic a s e n t e m - s e
p e r d id o s . Em c e r t o s p a ís e s , o P r o g r a m a In t e r n a c io n a l d e
A c o m p a n h a m e n t o d a s A q u is iç õ e s d o s A lu n o s – P is a (O C D E,
2 0 0 1) r e v e la fa lh a s q u e a a v a lia ç ã o h a b it u a l m a s c a r a v a . P o r
o u t r o la d o , n o m o m e n t o e m q u e s e d e s e ja , m a is q u e n u n c a
n a h is t ó r ia d a e s c o la , m e d ir e c o m p a r a r r e s u lt a d o s , t o m a -
se p a r a d o x a lm e n t e c o n s c iê n c ia da d ific u ld a d e de
c ir c u n s c r e v e r d e m o d o p r e c is o e c o n s e n s u a l a s fin a lid a d e s
d a e s c o la , s u a t r a d u ç ã o , p r im e ir o n u m c u r r íc u lo fo r m a l,
d e p o is r e a l, e , fin a lm e n t e , e m fo r m a s e e m n o r m a s d e
e x c e lê n c ia . P a r a d o x a lm e n t e proc essos que v is a m
r a c io n a liz a r o s is t e m a e d u c a c io n a l e x a c e r b a m o s c o n flit o s
id e o ló g ic o s , filo s ó fic o s , p o lít ic o s , com o tam bém as
c o n t r o v é r s ia s d id á t ic a s e p e d a g ó g ic a s , u m a v e z q u e a
a v a lia ç ã o s e s it u a n o c r u z a m e n t o d e d u a s ló g ic a s
fr e q ü e n t e m e n t e a n t a g ô n ic a s , a d a a p r e n d iz a g e m e a d a
m e d id a .
Es s a s c o n t r a d iç õ e s le v a m m a is o u m e n o s c la r a e
r a p id a m e n t e a a t e n u a r a in d e p e n d ê n c ia r e la t iv a d o s d o is
m o d o s d e a v a lia ç ã o : o s r e s u lt a d o s d a s a v a lia ç õ e s
p a d r o n iz a d a s s e r ã o p r o g r e s s iv a m e n t e c o n s id e r a d o s n o s
ju lg a m e n t o s c o t id ia n o s d e e x c e lê n c ia e s c o la r e in t e r v ir ã o
p o r t a n t o n o s b o le t in s e s c o la r e s e n a s d e c is õ e s r e fe r e n t e s à
s e le ç ã o , o r ie n t a ç ã o , c e r t ific a ç ã o . M a is , a s a u t o r id a d e s
e s c o la r e s e x e r c e r ã o u m a fo r t e p r e s s ã o p a r a q u e o s
p r o fe s s o r e s a u m e n t e m s e u s e s fo r ç o s e e n d u r e ç a m s u a s
e x ig ê n c ia s n o s c a m p o s e m q u e e x is t a m a v a lia ç õ e s
p a d r o n iz a d a s , ú n ic a m a n e ir a d e g a r a n t ir q u e o s is t e m a o u
o s e s t a b e le c im e n t o s fa ç a m b o a fig u r a n a s c la s s ific a ç õ e s
(lis t a s d o s m e lh o r e s e s t a b e le c im e n t o s o u n a s a v a lia ç õ e s
in t e r n a c io n a is ).
6
7. Es s e e fe it o d o m in a n t e d a p a d r o n iz a ç ã o v a i p o s s iv e lm e n t e
c o n c e n t r a r a s p r io r id a d e s c u r r ic u la r e s n a q u ilo q u e p a r e c e
fa c ilm e n t e m e n s u r á v e l e c o m p a r á v e l n o in t e r io r d e u m
s is t e m a e d u c a c io n a l, o u e n t r e s is t e m a s : o p e r a ç õ e s ,
m e m o r iz a ç ã o , fo r m a s v e r b a is a o in v é s d e r a c io c ín io ,
im a g in a ç ã o o u a r g u m e n t a ç ã o ... Is s o s ó v e m c o n t r a b a la n ç a r
a t e n d ê n c ia – t ím id a – a u m a a u t o n o m ia c u r r ic u la r m a is
a c e n t u a d a d o s e s t a b e le c im e n t o s e a u m a p r o fis s io n a liz a ç ã o
d a p r o fis s ã o d e p r o fe s s o r . E, s o b r e t u d o , is s o s ó p o d e
r e t a r d a r a e v o lu ç ã o d o c u r r íc u lo e s c o la r r u m o a o b je t iv o s d e
a lt o n ív e l t a x o n ô m ic o e r u m o à s c o m p e t ê n c ia s .
É im p o r t a n t e , p o is , q u e a q u e le s q u e p r iv ile g ia m a
fo r m a ç ã o , e n ã o a a v a lia ç ã o , a c o m p a n h e m d e m u it o p e r t o a
d ia lé t ic a d a d u p la d e fin iç ã o in s t it u c io n a l d o s u c e s s o , q u e
p o d e v ir a fa v o r e c e r u m a r e g r e s s ã o d a s fin a lid a d e s d a
e s c o la . H o je é c r u c ia l n ã o a b a n d o n a r a o s t é c n ic o s d a
a v a lia ç ã o a d e fin iç ã o d o s u c e s s o e s c o la r – p o r t a n t o ,
in d ir e t a m e n t e , a le it u r a p r e d o m in a n t e d o c u r r íc u lo .
Um sucesso definido pela instituição
« O que é a felicidade? » A essa questão cada um tem o
direito de oferecer sua resposta pessoal, ligada a visão de
mundo, sistema de valores, trajetória, posição na
sociedade, projetos. A sociedade não legisla sobre a
felicidade, a não ser em regimes totalitários, nos quais isso
se torna insustentável, como diz o título de um romance de Ira
Levin. Numa cultura democrática, todas as definições da
felicidade compatíveis com a lei são legítimas. Mesmo
assim, não é possível evitar discussões entre o casal, na
família ou em toda comunidade cujos membros são
chamados a compartilhar a mesma definição de felicidade.
Só um ser anti-social pode definir a felicidade segundo seu
gosto, sem ter de negociá-la com seus próximos. Mesmo
livre de toda influência, ninguém pensa sobre a felicidade
sozinho. A cultura, a moral, a religião, a literatura, a filosofia
ou o senso comum propõem concepções de felicidade.
Entretanto, nenhuma instituição define ou regulamenta a
felicidade.
O mesmo ocorre com o sucesso na vida. Podemos
buscar a segurança ou o risco, a integração ou a vida à
margem, a opulência ou o despojamento, a solidão ou a
7
8. fu s ã o n o g r u p o , o t r a b a lh o o u a p r e g u iç a , a p la n ific a ç ã o o u
a im p r o v is a ç ã o . N ã o e x is t e n e n h u m a d e fin iç ã o in s t it u c io n a l
d o s u c e s s o n a v id a . Es s e p lu r a lis m o s e e s t e n d e a o s u c e s s o
d e u m a p r e n d iz a d o d e s e ja d o . U m a p r e n d iz d e v io lã o o u u m
jo g a d o r d e g o lfe fix a m o n ív e l d e e x c e lê n c ia a o q u a l
a s p ir a m . A lg u n s c o lo c a m o a lv o b e m a lt o e s e s e n t e m
c o n s t a n t e m e n t e fr a c a s s a n d o , o u t r o s s e s a t is fa z e m c o m
p o u c o e t ê m a im p r e s s ã o d e o b t e r p le n a m e n t e ê x it o .
Tu d o m u d a q u a n d o s e t r a t a d e s u c e s s o escolar. É possível,
mas vão, defini-lo independentemente das exigências, dos
critérios e dos julgamentos do sistema educacional. Do
mesmo modo que no direito penal a culpa ou a inocência
são estabelecidas pela justiça, o sucesso ou o fracasso
escolares são devidamente estabelecidos e proclamados
pelo sistema educacional. Esse processo de “fabricação”
da excelência escolar (Perrenoud, 1995, 1998) é um
processo de avaliação socialmente situado, que passa por
transações complexas e está de acordo com as formas e
as normas de excelência escolar, ancoradas no currículo
vigente e na visão da cultura da qual a avaliação faz parte.
É por isso que não se pode confundir os conhecimentos e
as competências “efetivas” de uma criança e o julgamento
de excelência escolar do qual ela é objeto. Isso não
significa que o julgamento da escola é sem fundamento,
mas sim que entre a realidade e o julgamento se interpõe
uma série de mecanismos que podem banalizar ou
dramatizar as diferenças reais. Em resumo, seria de bom
senso considerar que o sucesso ou fracasso não são
características intrínsecas dos alunos, mas o resultado de
um julgamento feito pelos agentes do sistema educacional
sobre a distância desses alunos em relação às normas de
excelência escolar em vigor.
Em certo momento da história, num sistema educacional
e num determinado curso, a concepção instituída do
fracasso escolar tem “força de lei”. Por mais arbitrário que
possa parecer, de uma perspectiva histórica ou
comparativa, o fracasso escolar é definido segundo
procedimentos fundados no direito. Por isso, essa definição
se impõe, em princípio, a todos os atores.
Cada um é levado a curvar-se diante dos julgamentos
institucionais de sucesso e de fracasso, após ter esgotado
8
9. o s r e c u r s o s , q u e a m a io r ia d o s s is t e m a s e d u c a c io n a is
p r e v ê . D e fa t o , u m a lu n o q u e a e s c o la d e c la r a in s a t is fa t ó r io
p o d e n ã o s e c o n s id e r a r a s s im d e a c o r d o c o m s e u s p r ó p r io s
c r it é r io s , d o m e s m o m o d o q u e s e u s p a is , p a r e n t e s e
a m ig o s p o d e m d e fe n d e r e s t e m e s m o p o n t o d e v is t a . É,
c o n t u d o , a d e fin iç ã o in s t it u c io n a l q u e p r e v a le c e r á p e lo
m e n o s q u a n d o s e t r a t a d e d e c is õ e s c o m o a r e p e t ê n c ia , a
o r ie n t a ç ã o , o e n c a m in h a m e n t o p a r a c la s s e s e s p e c ia is o u
p a r a a u la s d e r e fo r ç o , a o u t o r g a d o c e r t ific a d o . O s a t o r e s
p o d e m p r e s e r v a r a lib e r d a d e “ m e n t a l” d e n ã o a d e r ir à
d e fin iç ã o in s t it u c io n a l, m a s e le s s e r ã o , q u e ir a m o u n ã o ,
s u b m e t id o s a s e u s e fe it o s . C a d a u m , n ã o im p o r t a q u a l s e ja
s u a c o n v ic ç ã o ín t im a , e s t á “ a t r e la d o ” à d e fin iç ã o
in s t it u c io n a l q u a n d o s e t r a t a d e p r o g r e d ir n o c u r s o , d e t e r
a c e s s o a c a r r e ir a d e fo r m a ç ã o e x ig e n t e o u d e o b t e r u m
d ip lo m a .
A r e s is t ê n c ia ao ju lg a m e n t o in s t it u c io n a l m a n t é m
e n t r e t a n t o u m a c e r t a in flu ê n c ia n o r e g is t r o d a a u t o - e s t im a .
A s s im c o m o u m in d iv íd u o ju lg a d o c u lp a d o p e la ju s t iç a p o d e
“ s e s e n t ir in o c e n t e ” , u m a lu n o q u e a e s c o la d e c la r a
fr a c a s s a d o p o d e n ã o s e s e n t ir in t e ir a m e n t e d e s v a lo r iz a d o
p o r e s s e ju lg a m e n t o . A c o n t e c e t a m b é m d e u m a lu n o q u e a
e s c o la c o n s id e r a e x c e le n t e n ã o c o m p a r t ilh a r o m e s m o
ju lg a m e n t o p o r s e a v a lia r e m fu n ç ã o d e e x ig ê n c ia s m a is
e le v a d a s . Es s a m a r g e m d e a u t o n o m ia n a in t e r p r e t a ç ã o d o
v e r e d ic t o e s c o la r t e m g r a n d e im p o r t â n c ia s u b je t iv a . O s
in d iv íd u o s e a s fa m ília s c o m fr a c a s s o ig u a l, s e g u n d o
c r it é r io s d a e s c o la t ê m c a p a c id a d e d e s ig u a l d e d is t a n c ia r -
s e d o ju lg a m e n t o , d e r e la t iv iz á - lo , m in im iz á - lo , o u s e ja , d e
c o n t e s t á - lo . A lé m d o p a p e l c r u c ia l n a e c o n o m ia p s íq u ic a
d a s p e s s o a s e d a s fa m ília s , e s s e d is t a n c ia m e n t o a lim e n t a
um a c orrente perm anente de c ontestaç ão da norm a
in s t it u c io n a l.
Em n e n h u m s is t e m a , a s n o r m a s e a s fo r m a s d e
e x c e lê n c ia d a s q u a is d e p e n d e o ê x it o e s c o la r s ã o o b je t o d e
u n a n im id a d e , a s s im c o m o n ã o o s ã o o s n ív e is d e e x ig ê n c ia
e o s lim ia r e s q u e s e p a r a m u m a lu n o c o m d e s e m p e n h o
s a t is fa t ó r io d e u m a lu n o fr a c a s s a d o .
A escola, canteiro de obras e campo de lutas
Os critérios padronizados de avaliação são às vezes
9
10. a b e r t a m e n t e c o m b a t id o s . M a is fr e q ü e n t e m e n t e , a in d a , e le s
s ã o in t e r p r e t a d o s d e m o d o p a r c ia l p o r s e u s o p o s it o r e s . Em
t o d o lu g a r , u m a p a r t e d o s a lu n o s , p a is , p r o fe s s o r e s e
g e s t o r e s e s c o la r e s p e n s a m e a fir m a m q u e :
g « v e r d a d e ir o s u c e s s o » n ã o c o in c id e c o m a d e fin iç ã o
fo r m a l fo r n e c id a p e lo s is t e m a e d u c a c io n a l;
f e s s e n c ia l d o v a lo r in t e le c t u a l d e u m a c r ia n ç a o u d e
u m a d o le s c e n t e s ó g u a r d a u m a lo n g ín q u a r e la ç ã o
c o m o q u e m e d e m a s p r o v a s o fic ia is ;
c c o n s e q ü e n t e m e n t e , é p r e c is o ig n o r a r , r e la t iv iz a r o u
m o d ific a r o s c r it é r io s o fic ia is d e s u c e s s o e s c o la r .
A d e m o c r a c ia a u t o r iz a c o n t e s t a r a le i, m a s n ã o d á o
d ir e it o d e fa z ê - lo o t e m p o t o d o e m q u e e la e s t á e m v ig o r .
U m a n o r m a c o n t e s t a d a in c e s s a n t e m e n t e p o r a q u e le s q u e
d e v e m a p lic á - la o u a e la s e s u b m e t e r p e r d e s u a fo r ç a e
le g it im id a d e . Is s o p o d e fa v o r e c e r u m a c e r t a flu t u a ç ã o n a s
r e p r e s e n t a ç õ e s s o c ia is d a s fo r m a s e d a s n o r m a s le g ít im a s
d e e x c e lê n c ia e s c o la r . É p r e c is o s e in t e r r o g a r s o b r e s e u s
e fe it o s p e r v e r s o s :
e p a r a o b t e r ê x it o n a e s c o la , u m a lu n o p r e c is a
c o m p r e e n d e r o q u e s e e s p e r a d e le . C o m o c o n s e g u i-
lo s e a s e x ig ê n c ia s s ã o m u t á v e is e a s m e n s a g e n s
d o s a d u lt o s c o n t r a d it ó r ia s ?
d a d iv e r s id a d e d a s c o n c e p ç õ e s d e s u c e s s o im p e d e
t o d o d e b a t e r a c io n a l s o b r e a e fic á c ia d a a ç ã o
e d u c a t iv a , p o is os o b je t iv o s e fe t iv a m e n t e
p e r s e g u id o s p o r u n s e p o r o u t r o s n ã o s ã o o s
m esm os;
m p a r a d e s e n v o lv e r u m e n s in o e s t r a t é g ic o e u m a
p e d a g o g ia d ife r e n c ia d a , p a r a lu t a r e fic a z m e n t e
c o n t r a o fr a c a s s o e s c o la r , é p r e c is o t e r o b je t iv o s
c la r o s e e s t á v e is , d e m o d o q u e o s p r o fe s s o r e s
p o s s a m c o n s a g r a r s u a e n e r g ia e in t e lig ê n c ia a a ju d a r
t o d o s o s a lu n o s a a lc a n ç á - lo s .
P o d e r ía m o s s o n h a r c o m u m s is t e m a e d u c a c io n a l q u e
c o n s t r u ís s e t r a n q ü ila m e n t e u m a m p lo c o n s e n s o s o b r e a s
fin a lid a d e s d a e s c o la e p o r t a n t o s o b r e a d e fin iç ã o d o
s u c e s s o , e q u e o m a n t iv e s s e , d e m o d o c o e r e n t e , d u r a n t e
p e lo m e n o s d e z a n o s . O r a , a s c o is a s s e p a s s a m v ia d e
10
11. r e g r a d e m a n e ir a m e n o s h a r m o n io s a . O s o b je t iv o s d a
e s c o la r id a d e s u s c it a m sem pre representaç ões
a n t a g ô n ic a s . N e n h u m a v is ã o d a s fin a lid a d e s d a e s c o la r e in a
s e m d iv is ã o , s e n d o , in d e p e n d e n t e m e n t e d e s u a a d o ç ã o
le g a l, o b je t o de c r ít ic a s e de c o ntrap ro p o stas. A
c o n t e s t a ç ã o é à s v e z e s m e t o d o ló g ic a o u t e ó r ic a , m a s e m
g e r a l é filo s ó fic a , id e o ló g ic a , p o lít ic a .
C o m e s s e p a n o d e fu n d o , n ã o s u r p r e e n d e q u e c e r t o s
p r o fe s s o r e s s e s in t a m liv r e s p a r a n ã o a d e r ir à s n o r m a s d e
e x c e lê n c ia e a o s p r o c e d im e n t o s d e a v a lia ç ã o e m v ig o r e ,
s o b r e t u d o , o s e m p r e g u e m s e m c o n v ic ç ã o , s e ja p a r a
a m e n iz a r , s e ja p a r a e n d u r e c e r a s e x ig ê n c ia s o fic ia is . C o m
fr e q ü ê n c ia v a le m - s e d e le s p ara r e d ir e c io n a r as
p o n d e r a ç õ e s e p r iv ile g ia r u m a in t e r p r e t a ç ã o q u e , à s v e z e s ,
é fa v o r á v e l a o s a lu n o s e m d ific u ld a d e , à s v e z e s a u m e n t a
in d e v id a m e n t e a s e le ç ã o .
Es s a m a r g e m d e in t e r p r e t a ç ã o e d e r e d ir e c io n a m e n t o
d a s n o r m a s e x is t e t a m b é m e n t r e o s ju íz e s e o s p o lic ia is ,
p o r e x e m p lo , m a s s u r p r e e n d e s e m p r e a q u e le s q u e p e n s a m
q u e a le i é a le i. M e s m o n a s p r o fis s õ e s q u e c o n fe r e m c e r t a
a u t o n o m ia a o s p r o fis s io n a is , e m p r in c íp io , n ã o s e c h e g a a o
p o n t o , d e lib e r á - lo s d a s r e g r a s c o m u n s . N e n h u m s is t e m a
e d u c a c io n a l e s t e n d e , p o r e x e m p lo , a lib e r d a d e d o s
p r o fe s s o r e s à liv r e e s c o lh a d a s fin a lid a d e s e d o s c o n t e ú d o s
d o e n s in o . É o p r o g r a m a c u r r ic u la r q u e d e v e d it a r a s fo r m a s
e a s n o r m a s d e e x c e lê n c ia e s c o la r q u e d e fin e m o s u c e s s o .
A s s a la r ia d o s d e u m a o r g a n iz a ç ã o , s e ja e la p r iv a d a o u
p ú b lic a , n a c io n a l o u lo c a l, o s p r o fe s s o r e s d e v e m s e r v ir a
s e u s o b je t iv o s , r e s p e it a r o c u r r íc u lo e a p lic a r o s c r it é r io s
q u e d e le d e c o r r e m . En t r e t a n t o , o e s t a t u t o , a n a t u r e z a d e
s e u t r a b a lh o , a o p a c id a d e d a s p r á t ic a s p e d a g ó g ic a s e o
c o n t r o le fr á g il d ã o a o s p r o fis s io n a is , n o c o t id ia n o , u m a
g r a n d e a b e r t u r a e m r e la ç ã o à e x e c u ç ã o , t a n t o d o s
p r o g r a m a s q u a n t o d a s e x ig ê n c ia s . A t e x t o s a m b íg u o s e / o u
c o n t e s t a d o s s e a lia m p r á t ic a s d e e n s in o e d e a v a lia ç ã o q u e
a s s u m e m a lib e r d a d e d e , p o r v e z e s , n e g a r - lh e s a v a lid a d e ,
p o r o u t r a s , in s is t ir fo r t e m e n t e s o b r e s e u s e n t id o o u , a in d a ,
ig n o r á - lo s .
Em r a z ã o d e s s a d is t â n c ia e n t r e c u r r íc u lo p r e s c r it o e
c u r r íc u lo r e a l, a m a io r ia d o s d e b a t e s n a c io n a is s o b r e o s
p r o g r a m a s e o s c r it é r io s d e s u c e s s o , in d e p e n d e n t e d e s e u
11
12. r e s u lt a d o , n ã o t e m n e n h u m a in flu ê n c ia s o b r e a s p r á t ic a s . A
t o m a d a d e c o n s c iê n c ia d e s s a d is c r e p â n c ia e n t r e a s
in t e n ç õ e s e o fu n c io n a m e n t o e fe t iv o do s is t e m a
e d u c a c io n a l c o n d u z p e r io d ic a m e n t e a u m e n d u r e c im e n t o
das reg ras, a e s t r a t é g ia s de “ r e c ic la g e m ” dos
p r o fe s s o r e s , a u m a u m e n t o d o c o n t r o le b u r o c r á t ic o e a u m a
c o b r a n ç a d e r e s p o n s a b ilid a d e s . Es s a s t e n t a t iv a s s u s c it a m
o p o s iç õ e s e a v iv a m a s t e n s õ e s e n t r e o r g a n iz a ç õ e s
p r o fis s io n a is e e m p r e g a d o r e s , m a s t a m b é m e n t r e d iv e r s a s
fr a ç õ e s d o c o r p o d e p r o fe s s o r e s e e n t r e o s p a is .
N ã o e s q u e ç a m o s ja m a is q u e :
N o s p r o fe s s o r e s n ã o p o s s u e m a m e s m a v is ã o d a e s c o la ,
e v iv e n c ia m p o r t a n t o m u it o d iv e r s a m e n t e a s r e fo r m a s
s u c e s s iv a s d o c u r r íc u lo o u d o s p a d r õ e s d e s u c e s s o ,
b e m r e c e b id a s p o r u n s e o d ia d a s p o r o u t r o s ;
b d o m e s m o m o d o , o s p a is n ã o p o s s u e m a s m e s m a s
e x p e c t a t iv a s e m r e la ç ã o a o s is t e m a e d u c a c io n a l, n e m
os m esm os in t e r e s s e s , tam pouc o as m esm as
e s t r a t é g ia s , e m p a r t ic u la r q u a n t o a s e u filh o s e r o u n ã o
b e m - s u c e d id o n o s is t e m a t a l q u a l e le é .
Vo lt a r a o c u r r íc u lo n ã o r e s o lv e p o r t a n t o t o d o s o s d ile m a s
q u a n t o à d e fin iç ã o d o s u c e s s o e s c o la r , n a m e d id a e m q u e
e le p r ó p r io é o b je t o d e c o n t r o v é r s ia s e in t e r p r e t a ç õ e s
d iv e r g e n t e s . A t e r - s e a o c u r r íc u lo e à s s u a s fin a lid a d e s é ,
e n t r e t a n t o , a ú n ic a m a n e ir a coerente de colocar o problema
dos critérios de sucesso: só o currículo, nada mais que o
currículo!
Só o currículo, nada mais que o currículo !
O debate incessante e atualmente muito acalorado sobre
os critérios de sucesso testemunha a seu modo a
dificuldade das democracias quanto:
d à adoção de textos precisos; não por ausência de
rigor, mas pelo cálculo que textos abertos a
interpretações diversas podem ser mais amplamente
objeto de um relativo consenso;
o ao limite da contestação pública e da crítica
dissimulada das regras em vigor, mesmo sendo elas
instituídas por procedimentos legítimos.
O projeto do sistema escolar encarna-se no seu currículo,
12
13. c o n ju n t o d e o b je t iv o s e d e c o n t e ú d o s d e fo r m a ç ã o . A p e s a r
d a s c o n t r o v é r s ia s a r e s p e it o , n u n c a e x t in t a s , o c u r r íc u lo
e s t á in s c r it o e m t e x t o s q u e t ê m fo r ç a d e le i e n ã o p o d e m
s e r in c o n s e q ü e n t e s , m e s m o s e s u b s is t e c e r t a m a r g e m d e
in t e r p r e t a ç ã o . P a r e c e - m e d e b o m s e n s o t o m a r o c u r r íc u lo
c o m o a r e fe r ê n c ia ú lt im a à q u a l s e r e p o r t a m a s fo r m a s e a s
n o r m a s d e e x c e lê n c ia e s c o la r . Is s o é m a is o u m e n o s ó b v io .
N a r e a lid a d e , e n t r e o e n u n c ia d o d o c u r r íc u lo fo r m a l e
c a d a ju lg a m e n t o d e e x c e lê n c ia r e fe r e n t e a u m a lu n o
p a r t ic u la r , a s e t a p a s in t e r m e d iá r ia s s ã o n u m e r o s a s . C a d a
u m a s e p r e s t a a v a r ia ç õ e s p o s s ív e is , c o m fr e q ü ê n c ia p o u c o
v is ív e is e d ifíc e is d e e s t a b e le c e r .
a . A d e fin iç ã o d a s n o r m a s e d a s fo r m a s d e e x c e lê n c ia
n ã o a p a r e c e s e m p r e e x p lic it a m e n t e n o c u r r íc u lo . É p r e c is o
e n t ã o “ d e d u z i- la ” d o s o b je t iv o s e d o s p r o g r a m a s .
b . H á u m a c e r t a a r b it r a r ie d a d e n a t r a d u ç ã o d a s fo r m a s e
d a s n o r m a s d e e x c e lê n c ia e m p r o v a s , q u e s t õ e s , p r o b le m a s
e t a r e fa s d e s t in a d a s a m a n ife s t a r “ o b je t iv a m e n t e ” o s
c o n h e c im e n t o s , a s c a p a c id a d e s o u a s c o m p e t ê n c ia s d o s
a lu n o s .
c . A d is t in ç ã o d o s d iv e r s o s n ív e is d e e x c e lê n c ia e s u a
c o d ific a ç ã o e m ín d ic e s o r d in a is o u m é t r ic o s (n o t a s ,
c o n c e it o s , p o r c e n t a g e n s d e a q u is iç ã o ) a b r e m o u t r a p o r t a à
a r b it r a r ie d a d e .
d . A c o n fe c ç ã o d e t a b e la s e a d e t e r m in a ç ã o d o lim ia r q u e
s e p a r a o s a lu n o s c o m d e s e m p e n h o s a t is fa t ó r io d a q u e le s
c o m d e s e m p e n h o in s a t is fa t ó r io s ã o , p o r s u a v e z , o
r e s u lt a d o d e d e c is õ e s n u n c a in t e ir a m e n t e d it a d a s p e lo s
t e x t o s , m a s c o m fr e q ü ê n c ia t o m a d a s e m fu n ç ã o d a c u r v a
d e d e s e m p e n h o e fe t iv o d o s a lu n o s .
e . M o d u la - s e o s u c e s s o e o fr a c a s s o p o n d e r a n d o e
c o m b in a n d o d e c e r t a m a n e ir a o s r e s u lt a d o s o b t id o s e m
d iv e r s a s p r o v a s m ú lt ip la s , e , m a is a in d a , p o n d e r a n d o
d iv e r s a s fo r m a s d e e x c e lê n c ia , p a r a e la b o r a r s ín t e s e s .
f. A lg u n s s is t e m a s a d o t a m p r o c e d im e n t o s c o m o r e c u r s o s
o u m o d o s in fo r m a is d e n e g o c ia ç ã o , q u e fa z e m d o
ju lg a m e n t o fin a l u m p r o d u t o d e p e n d e n t e d e t r a n s a ç õ e s c o m
o s a lu n o s e a s fa m ília s , e n q u a n t o e m o u t r o s s is t e m a s
p r e d o m in a a ló g ic a d a m e d id a n ã o n e g o c iá v e l.
13
14. g . Em m u it o s s is t e m a s e d u c a c io n a is s ã o in t r o d u z id o s
p r o c e d im e n t o s d e “ m o d e r a ç ã o ” d a s a v a lia ç õ e s fe it a s p o r
c e r t o s p r o fe s s o r e s e c e r t o s e s t a b e le c im e n t o s m u it o
s e v e r o s o u m u it o c o m p la c e n t e s . M u d a - s e a im a g e m d o
s u c e s s o s e g u n d o o s p r o c e d im e n t o s d e m o d e r a ç ã o , o s
p e s o s r e s p e c t iv o s d a a v a lia ç ã o fe it a e m c la s s e e o s
r e s u lt a d o s d a s p r o v a s p a d r o n iz a d a s .
h . M a is r e c e n t e m e n t e , t e m - s e p r o c u r a d o h a r m o n iz a r a s
a v a lia ç õ e s c o r r e n t e s e o s r e s u lt a d o s d a s a v a lia ç õ e s d e
s is t e m a , d e m o d o a r e d u z ir a e v e n t u a l d e fa s a g e m e n t r e a
e fic á c ia d a e s c o la a p r e e n d id a n o â m b it o c o t id ia n o e a s
a p r e c ia ç õ e s e x t e r n a s .
N e n h u m a d e s s a s e s c o lh a s é fe it a a o a c a s o , m a s o s
d e s a fio s s ã o m u it o c o m p le x o s e d iv e r s o s d e m o d o q u e n ã o
c o n v é m p e r d e r o c u r r íc u lo d e v is t a o u in v e n t a r n o r m a s q u e
e s t ã o m a is v o lt a d a s p a r a a t r a d iç ã o e s c o la r , p a r a a s
o b r ig a ç õ e s de fu n c io n a m e n t o , para as e s c o lh a s
m e t o d o ló g ic a s o u a s c o n s id e r a ç õ e s p o lít ic o - e s t r a t é g ic a s ,
d o q u e p a r a u m a le it u r a r ig o r o s a d o s p r o g r a m a s .
A o c o n t r á r io , é m a is im p o r t a n t e q u e :
1. o c u r r íc u lo t e n h a p r e c e d ê n c ia e s e fu n d a m e n t e n a q u ilo
q u e p a r e ç a e s s e n c ia l p a r a e n s in a r e a p r e n d e r , e m v e z d e
fu n d a m e n t a r - s e n a o b s e s s ã o d e a v a lia r d e m o d o p r e c is o o u
n a p r e o c u p a ç ã o d e fa z e r b o a fig u r a d ia n t e d e u m a
c o n c o r r ê n c ia q u e p a s s a p o r t a n t a s m e d ia ç õ e s ;
2 . o s u c e s s o e s c o la r s e fu n d a m e n t e n u m a a v a lia ç ã o
e q ü it a t iv a d o c o n ju n t o d a s d im e n s õ e s d o c u r r íc u lo . Só o
c u r r íc u lo e n a d a m a is q u e o c u r r íc u lo .
A s d ific u ld a d e s m e t o d o ló g ic a s e a s p r e o c u p a ç õ e s t á t ic a s
n ã o ju s t ific a m n e n h u m a r e n ú n c ia . O s r is c o s , já p r e s e n t e s n o
c o t id ia n o , d e r e d u z ir o c u r r íc u lo a u m n ú c le o c o g n it iv o
t r a d ic io n a l, s e r ia m fo r t e m e n t e a c e n t u a d o s p e la s p r o v a s q u e
p r iv ile g ia m a s a q u is iç õ e s m a is fa c ilm e n t e m e n s u r á v e is e
q u e n ã o le v a m e m c o n s id e r a ç ã o c o m p e t ê n c ia s , a t it u d e s ,
r e la ç ã o c o m o s a b e r , d e s e n v o lv im e n t o s o c ia l o u d im e n s ã o
r e fle x iv a .
Sucesso escolar ou sucesso educativo: uma confusão
Torna-se discutível dissociar sucesso escolar e sucesso
14
15. e d u c a t iv o . O s u c e s s o e s c o la r d e v e r ia c o in c id ir c o m o conjunto
das missões da escola, portanto cobrir uma parte da ação
educativa, aquela que caberia à escola assumir. Seria
desejável que essa expectativa fosse explicitada e
remetesse a objetivos de formação, em sentido amplo, em
vez de permanecer subentendida, o que impede a escola
de construir os meios para suas ambições educativas,
como se vê a propósito da cidadania. Seria conveniente
também romper com uma distinção simplista entre uma
instrução essencialmente cognitiva e uma educação
essencialmente afetiva, social ou relacional. Todas as
aprendizagens fundamentais associam, de uma parte,
conceitos, conhecimentos e, de outra, uma relação com o
mundo, um projeto, atitudes, valores. Quem poderia, por
exemplo, dizer que trabalhar a relação com o saber, a
curiosidade, o direito ao erro ou a capacidade de formular
hipóteses depende da instrução ou da educação? A
educação não é apenas física, musical, artística, cívica,
moral, religiosa, ela é também matemática, lingüística,
científica, histórica, geográfica, epistemológica. O duplo
sentido do conceito de “disciplina” deveria nos lembrar
que o conhecimento não está dissociado de uma relação
com o mundo, consigo próprio e com os outros.
Seria bom, portanto, não retomar uma oposição simplista
e ultrapassada entre a educação e a instrução, e perceber
que, se se persiste em estabelecer uma distinção, ela não
corresponde e nunca correspondeu a uma estrita partilha
de tarefas entre a escola e a família. Desde seu
nascimento, a escola se definiu como uma empresa
educativa, tanto do ponto de vista religioso quanto cívico.
Ela de imediato interveio no mesmo terreno que as famílias,
em parte para prolongar ou “redirecionar” sua ação
educativa. Limitar a escola à transmissão de saberes é
desconhecer sua missão de civilização, com toda a
ambigüidade desse programa: liberar e normalizar. Em
resumo, educativo e escolar não são antinômicos e não há
razão alguma para limitar o sucesso escolar às aprendizagens
mais tradicionalmente associadas à idéia de instrução.
Por outro lado, a escola não tem o monopólio da
instrução. Parte dos saberes e do saber-fazer
aparentemente mais “escolares” são parcialmente
construídos fora da escola, principalmente nas famílias,
15
16. c o m e ç a n d o p e lo s a b e r le r . Q u e r s e t r a t e d e e d u c a ç ã o ou
d e in s t r u ç ã o , a e s c o la n ã o s e d e v e fu r t a r à o b r ig a ç ã o de
fa z e r a s u a p a r t e e s p e c ífic a d e n t r o d e u m c o n ju n t o de
in flu ê n c ia s – fa v o r á v e is o u d e s fa v o r á v e is – e m r e la ç ã o às
q u a is e la n ã o p o d e s e r c o n s id e r a d a a ú n ic a r e s p o n s á v e l.
Se r ia p o r t a n t o a d e q u a d o d e fin ir u m “ s u c e s s o e d u c a t iv o
g lo b a l” , in c lu in d o a a ç ã o d a e s c o la , m a s t a m b é m le v a n d o
e m c o n t a o t r a b a lh o d a s o u t r a s in s t â n c ia s , a fa m ília , a m íd ia ,
a r e d e d e a s s o c ia ç õ e s , a c o m u n id a d e , o s c lu b e s e s p o r t iv o s
e t c .? O r e t o r n o d o in t e r e s s e p e la e d u c a ç ã o d o c id a d ã o o u a
v o g a d a e d u c a ç ã o p a r a a s a ú d e p a r e c e m ju s t ific a r e s s a
a m p lia ç ã o . N o t e m o s e n t r e t a n t o q u e n ã o s e p o d e r ia a v a lia r
o s u c e s s o e d u c a t iv o d a s o c ie d a d e s e m n o r m a liz a r a
d e fin iç ã o d e u m a e d u c a ç ã o b e m - s u c e d id a .
En q u a n t o c a d a s o c ie d a d e m o d e r n a fo r n e c e u m a d e fin iç ã o
fo r m a l d o s u c e s s o e s c o la r , c o n c r e t iz a d o n o c u r r íc u lo e n a s
n o r m a s d e e x c e lê n c ia , n a d a e x is t e d e e q u iv a le n t e p a r a o
“ s u c e s s o e d u c a t iv o g lo b a l” . Te n t a r m e d i- lo c o lo c a r ia e m
e v id ê n c ia a d iv e r s id a d e d e c o n c e p ç õ e s d e v id a e , p o r t a n t o ,
d e e d u c a ç ã o , q u e c o e x is t e n u m a s o c ie d a d e p lu r a lis t a . O s
p r o fis s io n a is d a m e d ic in a p r e v e n t iv a , o s h ig ie n is t a s , o s
e c o lo g is t a s , o s e s p e c ia lis t a s d a s e g u r a n ç a n a s e s t r a d a s o u
d a v io lê n c ia , o s m o r a lis t a s , o s e c o n o m is t a s , o s p s ic ó lo g o s
t e n t a m t o d o s d e fin ir a b o a e d u c a ç ã o c o m o a q u e la q u e
p r e s e r v a o q u e a e le s im p o r t a : a s a ú d e , o a m b ie n t e , a
in t e g r id a d e , a p a z , a ju s t iç a , o c r e s c im e n t o , o e q u ilíb r io , a
fe lic id a d e e t c . C a d a u m a d e s s a s n o r m a s é o u a b e r t a m e n t e
c o m b a t id a o u n e g a d a n a p r á t ic a . Q u e r e r m e d ir o s u c e s s o
e d u c a t iv o d e u m a s o c ie d a d e a m e a ç a r ia o p lu r a lis m o d o s
v a lo r e s , d o s m o d o s d e v id a , d o s g r a u s e e s t ilo s d a
in t e g r a ç ã o . O “ M e lh o r d o s m u n d o s ” n ã o e s t a r ia m u it o
d is t a n t e .
A e s c o la r iz a ç ã o o b r ig a t ó r ia e o d e s e n v o lv im e n t o d e u m a
le g is la ç ã o q u e d e fin iu a s fin a lid a d e s e o c u r r íc u lo d a e s c o la
p r o d u z ir a m u m a e x c e ç ã o h is t ó r ic a . P o d e - s e c ir c u n s c r e v e r o
s u c e s s o e s c o la r p o r q u e a e s c o la é u m a in s t it u iç ã o p ú b lic a ,
à q u a l a s o c ie d a d e d e s ig n a , n o q u a d r o d a c o n s t it u iç ã o e d a
le g is la ç ã o , o b je t iv o s d e fin id o s d e fo r m a ç ã o , e d u c a ç ã o ,
s o c ia liz a ç ã o , q u a lific a ç ã o .
M e r g u lh a r o c o n c e it o r e la t iv a m e n t e c la r o d e s u c e s s o
e s c o la r n o n e b u lo s o “ s u c e s s o e d u c a t iv o ” s ó p o d e m is t u r a r
16
17. a s c a r t a s , c o lo c a n d o n o m e s m o p la n o u m a v o n t a d e p o lít ic a
e x p líc it a , d e c o r r e n t e d e p r o c e d im e n t o s d e m o c r á t ic o s e d e
e m p r e s a s e d u c a t iv a s p lu r a is , q u e n ã o p o s s u e m o m e s m o
e s t a t u t o ju r íd ic o . É t a m b é m q u e s t io n a r a d e m a r c a ç ã o
h is t ó r ic a e n t r e o q u e a d v é m d a s o c ie d a d e g lo b a l e o q u e
a d v é m d e c o m u n id a d e s m a is e s p e c ífic a s , s e ja m e la s
r e lig io s a s , lin g ü ís t ic a s , é t n ic a s , o u s im p le s m e n t e fa m ilia r e s .
Fa la r d e s u c e s s o e d u c a t iv o e m v e z d e s u c e s s o e s c o la r
p o d e r ia c o n t r ib u ir p a r a p r iv a t iz a r o u p a r a “ c o m u n it a r iz a r ” ,
s e n ã o a e s c o la , p e lo m e n o s s u a m is s ã o . Ta lv e z a
e x is t ê n c ia d e u m s is t e m a d e e d u c a ç ã o q u e s ig a a s
fin a lid a d e s d e s ig n a d a s p e la le i c o r r e s p o n d a a u m m o m e n t o
d a h is t ó r ia d a s s o c ie d a d e s m o d e r n a s . P e r c e b e - s e a
t e n d ê n c ia a t r a n s fo r m a r a e s c o la n u m s im p le s s e r v iç o q u e
o fe r e ç a à s fa m ília s o u a o u t r a s c o m u n id a d e s r e c u r s o s
b a r a t o s p a r a , à s u a m a n e ir a , e d u c a r s u a s c r ia n ç a s . Q u e s e
a c e it e e n t ã o a s im p lic a ç õ e s d e s s a e s c o lh a : h a v e r á t a n t a s
c o n c e p ç õ e s d e s u c e s s o e d u c a t iv o q u a n t a s fo r e m a s
fa m ília s o u a s c o m u n id a d e s . A s o c ie d a d e o c u p a r - s e - a
e n t ã o d e o fe r e c e r a c a d a u m c e r t o s meios de realizar seu
próprio projeto educativo, do mesmo modo que os
transportes públicos facilitam os deslocamentos sem ditar o
destino dos passageiros. Já que cada um viria procurar na
escola o que quisesse e sairia quando julgasse oportuno, a
noção de sucesso escolar não teria mais um “sentido
comum”; designaria o sucesso das estratégias de
escolarização de tal ou tal família, como o sucesso
econômico designa o sucesso de uma pessoa ou de uma
firma em face da concorrência.
Ou então, variante totalitária ou integrista, os pais e os
outros adultos se tornariam os agentes de um
empreendimento educativo unificado. Num país que rompeu
com todo e qualquer pluralismo, os educadores são levados
a moldar os seres humanos na mesma fôrma. Pode-se
então definir o sucesso educativo: é aquele que o partido, a
junta militar ou a igreja no poder definem como tal. É
preciso sublinhar que essa unanimidade autoritária na visão
da educação está associada aos piores momentos da
história humana?
Em resumo, o sucesso escolar, na sua forma atual, só
tem sentido se articulado a:
17
18. a . u m a d e fin iç ã o c o le t iv a e d e m o c r á t ic a d o s o b je t iv o s d a
e s c o la r id a d e ;
b . u m a lim it a ç ã o d e s s e s o b je t iv o s , d e ix a n d o u m a m p lo
e s p a ç o p a r a a d iv e r s id a d e c u lt u r a l.
P o d e - s e c o m p r e e n d e r q u e s o c ie d a d e s m in a d a s p e lo
in d iv id u a lis m o , p o r c o n flit o s é t n ic o s o u p o r m o v im e n t o s d e
c o n t e s t a ç ã o s e ja m t e n t a d a s a d e fin ir u m s u c e s s o e d u c a t iv o
m a is g lo b a l q u e o d a e s c o la . N ã o s e o c u lt e e n t ã o q u e s e
t o c a a í n u m d ifíc il e q u ilíb r io e n t r e c u lt u r a c o m u m e
d iv e r s id a d e . A id é ia d e “ s u c e s s o e d u c a t iv o ” t e m u m
s ig n ific a d o e m in e n t e m e n t e p o lít ic o , d e ix e m o s d e s e r
in g ê n u o s a e s s e r e s p e it o ! É d e u m a c o n c e p ç ã o d e
d e m o c r a c ia q u e s e t r a t a .
Levar todos a obterem sucesso quaisquer
que sejam os critérios de sucesso
Os debates e combates a propósito do currículo, as
normas de excelência e os critérios de sucesso são
legítimos, mas se desviam muito e freqüentemente do
essencial: a procura de uma escola mais eficaz e mais
justa.
Enquanto pessoas discutem longamente sobre o que vão
fazer juntas, sem chegar a um consenso, há sempre quem
diga: “Façamos isso ou aquilo, não importa, mas chega de
discussão”. Esse mecanismo de regulação não funciona no
âmbito do sistema educacional por duas razões:
1. O consenso buscado não é puramente prático, há
questões ideológicas maiores e interesses divergentes, e
ninguém está disposto a parar de combater.
2. O debate sobre a escola, suas finalidades e os critérios
de sucesso não impedem seu funcionamento.
Esse debate permanente capta imensas energias,
desviadas de um outro problema, talvez mais importante:
como fazer com que cada um obtenha sucesso não importa
quais sejam os critérios de sucesso? Como tornar a escola mais justa e
eficaz (Crahay, 2000)?
Poderíamos nos perguntar se a paixão com a qual se
debatem as finalidades da escola e os critérios de sucesso
18
19. n ã o é u m m o d o d e m a s c a r a r n o s s a im p o t ê n c ia p a r a a t in g i-
lo s , o u d e r e c u s a r t o d o q u e s t io n a m e n t o d o s m é t o d o s e d a
o r g a n iz a ç ã o d o t r a b a lh o , d e s lo c a n d o a d is c u s s ã o p a r a
questões id e o ló g ic a s m enos am eaç adoras ou
d e s e n c o r a ja d o r a s .
A s o lu ç ã o n ã o c o n s is t e e m s e p a r a r o s d e b a t e s . O m o d o
d e d e fin ir a s n o r m a s d e e x c e lê n c ia e s c o la r , a s e x ig ê n c ia s e
o s c r it é r io s d e s u c e s s o , p o d e fa v o r e c e r o u e m p e r r a r a lu t a
p e la d e m o c r a t iz a ç ã o d o e n s in o e , m a is a m p la m e n t e , d o
a c e s s o a o s s a b e r e s . P o d e - s e d a r t r ê s e x e m p lo s :
1. A d e m o c r a t iz a ç ã o d o e n s in o p a s s a p e lo s c u r r íc u lo s
d ir e c io n a d o s p a r a o e s s e n c ia l, v is a n d o a o b je t iv o s d e
fo r m a ç ã o e x p líc it o s e s e n s a t o s . É im p o r t a n t e q u e o s
c r it é r io s d e s u c e s s o s e ja m c o e r e n t e s e s o b r e t u d o q u e
d ê e m p r io r id a d e à s a p r e n d iz a g e n s e s s e n c ia is e d u r á v e is ,
o p o n d o - s e à in c o r p o r a ç ã o d e d e s e m p e n h o s fa c ilm e n t e
m e n s u r á v e is , q u e r e s u lt a r ia m d e u m a a p r e n d iz a g e m
d e c o r a d a , d e u m a fo r m a d e r e p e t iç ã o , o u s e ja , d e u m a
p e d a g o g ia b a n c á r ia q u e c o n s id e r a r ia o s s a b e r e s e a s
c o m p e t ê n c ia s com o a q u is iç õ e s is o la d a s , a serem
t r a b a lh a d a s e a v a lia d a s u m a a p ó s a o u t r a . A a b o r d a g e m
p o r c o m p e t ê n c ia s d e v e r ia e s t im u la r a ir n e s s a d ir e ç ã o
(P e r r e n o u d , 2 0 0 0 ; Ro e g ie r s , 2 0 0 0 ).
2 . P r iv ile g ia r d id á t ic a s c o n s t r u t iv is t a s e d is p o s it iv o s
p e d a g ó g ic o s c a p a z e s d e c r ia r s it u a ç õ e s d e a p r e n d iz a g e m
fe c u n d a s n ã o é c o m p a t ív e l c o m c r it é r io s d e s u c e s s o q u e
d ã o p r io r id a d e a t a r e fa s s im p le s , fe c h a d a s , in d iv id u a is . P o r
q u e a p r e n d e r ía m o s a r e fle t ir , a fo r m u la r h ip ó t e s e s , a
a fr o n t a r a c o m p le x id a d e do real no m om ento da
a p r e n d iz a g e m s e d e v e m o s r e s p o n d e r c o r r e t a m e n t e a u m a
q u e s t ã o d e m ú lt ip la e s c o lh a n o m o m e n t o d a a v a lia ç ã o ?
3 . D e s e n v o lv e r u m a o r g a n iz a ç ã o d o t r a b a lh o e s c o la r
c o lo c a d a p r io r it a r ia m e n t e a s e r v iç o d e u m a p e d a g o g ia
d ife r e n c ia d a é s o b r e t u d o a fa s t a r a s u r g ê n c ia s a v a lia t iv a s ,
t r a b a lh a r em c ic lo s de a p r e n d iz a g e m p lu r ia n u a is
(P e r r e n o u d , 2 0 0 0 a , 2 0 0 2 ). É p r e c is o q u e a a v a lia ç ã o s e ja
fo r m a t iv a a o lo n g o d o c ic lo e le v e , a o fin a l d o c ic lo d e
a p r e n d iz a g e m , a a q u is iç õ e s e s s e n c ia is e d u r á v e is .
C e r t o s s is t e m a s e d u c a c io n a is p o d e m a t u a lm e n t e s e r
fla g r a d o s e m v e r d a d e ir o d e lit o d e c o n t r a d iç ã o : a fir m a m
19
20. q u e r e r a u m e n t a r a e fic á c ia d a a ç ã o p e d a g ó g ic a t o m a n d o
m e d id a s – s o b r e t u d o r e la t iv a s a o s c r it é r io s d e s u c e s s o –
q u e r e s u lt a m e m fin s c o n t r á r io s . É o c a s o , p o r e x e m p lo , d e
q u a n d o s e p r iv ile g ia m a s a q u is iç õ e s d e m o n s t r á v e is a c u r t o
p r a z o o u q u a n d o o s e s t a b e le c im e n t o s s ã o le v a d o s a s e
d e s e m b a r a ç a r o m a is r á p id o p o s s ív e l d o s a lu n o s c o m
d ific u ld a d e p a r a m e lh o r a r s e u s in d ic a d o r e s d e s u c e s s o n o
e x a m e fin a l.
N o q u a d r o d a lu t a c o n t r a a s d e s ig u a ld a d e s e o fr a c a s s o
e s c o la r , é p o is n e c e s s á r io e u r g e n t e d e b a t e r c r it é r io s d e
suc esso e sua r e la ç ã o com as e s t r a t é g ia s m a is
p r o m is s o r a s . Q u a n t o a is s o , t r ê s o b s e r v a ç õ e s m e r e c e m s e r
fo r m u la d a s :
1. C r it é r io s d e s u c e s s o q u e fa v o r e ç a m p e d a g o g ia s a t iv a s ,
d ife r e n c ia d a s e c o n s t r u t iv is t a s e u m a a v a lia ç ã o fo r m a t iv a
s ã o c o n d iç õ e s a b s o lu t a m e n t e n e c e s s á r ia s . Re a liz a r e s s a s
c o n d iç õ e s n ã o im p e d e d e t r a b a lh a r c o m o n ú c le o d o
p r o b le m a : o t im iz a r a o r g a n iz a ç ã o d o t r a b a lh o , a s s it u a ç õ e s
d id á t ic a s , a c o n s id e r a ç ã o d a s d ife r e n ç a s , a s r e g u la ç õ e s
fo r m a t iv a s . É a b s u r d o e s p e r a r q u e o s c r it é r io s d e s u c e s s o
s e ja m in t e ir a m e n t e s a t is fa t ó r io s p a r a t r a b a lh a r c o m e s s a s
questões.
2 . É im p o r t a n t e t r a z e r c o n s t a n t e m e n t e o d e b a t e s o b r e o s
c r it é r io s d e s u c e s s o p a r a e s s a a b o r d a g e m p r a g m á t ic a : e le s
p e r m it e m o u e m p e r r a m a s e s t r a t é g ia s d e fo r m a ç ã o
e fic a z e s ? Sã o o u n ã o c o e r e n t e s c o m a s c o n c e p ç õ e s m a is
p r o m is s o r a s da a p r e n d iz a g e m e do c u r r íc u lo ? Na
d e m o c r a c ia , a s fin a lid a d e s d a e s c o la e o s c r it é r io s d e
s u c e s s o s ã o e s c o lh a s p o lít ic a s , à s q u a is p r o fe s s o r e s e
p e s q u is a d o r e s d e v e m s e s u b m e t e r . Ele s p o d e m , p o r s u a
v e z , d iz e r e m q u e e explicar por que certas orientações estão
em contradição com a ambição declarada de tornar a
escola mais justa e eficaz.
3. Uma parte das questões é igual em todos os sistemas,
quaisquer que sejam os governos no poder, o currículo ou
os critérios de sucesso. Pode-se pois visar uma certa
continuidade na pesquisa e na inovação – por exemplo, em
leitura ou em matemática – sem parar de refletir a cada
mudança de ministério ou de programa. Os objetivos da
formação são, em larga medida, muito parecidos. O
problema maior é que não se consegue atingi-los em
20
21. r e la ç ã o a t o d o s o s a lu n o s .
Recusar que a avaliação defina o currículo
A questão política maior é continuar a democratizar o
ensino. O problema teórico maior continua o de explicar as
desigualdades de sucesso escolar, ou melhor, de
compreender porque alguns obtêm êxito na escola e outros
fracassam, em particular quando as condições de
escolarização parecem as mesmas.
Contudo, não se pode ignorar que o sucesso é um
julgamento feito pela instituição, para distinguir
rigorosamente o que sabem ou o que sabem fazer os
alunos na realidade. Portanto, a explicação das
desigualdades não pode ignorar essa construção social do
sucesso e do fracasso. Se cada um é livre para definir o
sucesso escolar “ideal” segundo seu interesse, a definição
institucional tem força de lei e exerce, queiramos ou não,
uma forte influência sobre o destino dos alunos
(progressão, orientação, certificação etc)
Como vimos, a definição institucional do sucesso e das
formas e normas de excelência escolar varia segundo os
sistemas educacionais e, no interior de cada um, segundo
as épocas. Ela não é imutável, varia, ao contrário, segundo
os parâmetros de ensino, os níveis e as disciplinas. Cada
julgamento feito sobre o sucesso de um aluno se baseia em
formas e normas de excelência institucionalmente definidas,
mas resulta também de uma transação – com armas
desiguais – entre os atores envolvidos, na qual intervém a
representação que estes têm do sucesso e do fracasso.
A definição institucional é não somente modulada na sua
interpretação e na sua aplicação, mas aberta ou
veladamente contestada por uma parte dos atores. São
aqueles que recusam seja as finalidades da escola, o
currículo correspondente, sua tradução em formas ou
normas de excelência, as exigências que fixam o limite
entre o sucesso do fracasso, os procedimentos de
avaliação, ou ainda as conseqüências de um fracasso
(repetência, exclusão, seleção, orientação, não certificação
ou estigmatização). Cada reforma do currículo, cada debate
sobre as estruturas ou sobre a democratização aviva os
21
22. c o n fr o n t o s s o b r e o q u e d e v e r ia s e r a d e fin iç ã o in s t it u c io n a l
d o s u c e s s o e s c o la r .
P a s s a d o u m p o u c o m a is d e u m a d é c a d a , o d e b a t e s o b r e
a e fic á c ia o u e fic iê n c ia d o s s is t e m a s e d u c a c io n a is , a
in s t it u iç ã o d a p r e s t a ç ã o d e c o n t a s s o b r e o s r e s u lt a d o s e o
im p u ls o das a v a lia ç õ e s in t e r n a c io n a is do t ip o P is a
a c r e s c e n t a m a e s s e c o n c e r t o d is c o r d a n t e u m e le m e n t o
n o v o : uma dupla definição institucional do sucesso. De um lado, a que
rege a avaliação escolar no cotidiano, provas e exames
“normalmente” organizados pela escola. De outro, a
definição a que se referem os organismos governamentais
ou internacionais quando avaliam os estabelecimentos ou
os sistemas educacionais.
Por razões diferentes, cada uma dessas concepções
deforma e empobrece o currículo. Não somente no
momento de avaliar as aquisições, mas também no
momento de ensinar, de fixar as prioridades e as
exigências. Não se diz que “a avaliação é o verdadeiro
programa” ?
A tensão e as contradições entre essas duas definições
do sucesso são portadoras de efeitos perversos. Como,
por exemplo, afastar a tentação de dar prioridade
crescente àquilo que as avaliações internacionais ou as
comparações entre estabelecimentos colocam em
evidência?
Em vez de fazer malabarismos com os indicadores e de
salvar as aparências, os sistemas educacionais fariam
melhor se esclarecessem seus objetivos de formação e se
colocassem a avaliação de acordo com seus objetivos, e
não o inverso. O currículo deveria vir em primeiro lugar e a
avaliação deveria se encarregar de discernir se ele está
sendo assimilado de maneira inteligente e duradoura, para
além das rotinas escolares e sem se tornar estreitamente
dependente de listas de classificação das escolas.
Referências bibliográficas
CRAHAY, M. L’École peut-elle être juste et efficace? De l’égalité des
chances et l’égalité des acquis. Bruxelles: De Boeck, 2000.
GRISAY, A. La Pédagogie de maîtrise face aux rationalités
22
23. in é g a lit a ir e s des sys tè m e s d ’ e n s e ig n e m e n t . In :
H U B ERM A N , M . (d ir .). Maîtriser les processus d’apprentissage: les
propositions de la pédagogie de maîtrise. Paris: Delachaux
et Niestlé, 1988. p.235-265.
OCDE. Connaissances et compétences : des atouts pour la vie.
Premiers résultats de Pisa 2000. Paris: Organisation de
Développement et de Coopération Économiques, 2001.
PERRENOUD, Ph. Construire des compétences dès l’école. 3. ed. Paris:
ESF, 2000.
________. Les Cycles d’apprentissage: une autre organisation du
travail pour combattre l’échec scolaire. Sainte-Foy:
Presses Universitaires du Québec, 2002.
________. L’Évaluation des élèves: de la fabrication de l’excellence
à la régulation des apprentissages. Bruxelles, De Boeck,
1998.
________.La Fabrication de l’excellence scolaire : du curriculum aux
pratiques d’évaluation. Vers une analyse de la réussite, de
l’échec et des inégalités comme réalités construites par le
système scolaire. 2. ed. Genève: Droz, 1995. (Édition
augmentée)
________. Pédagogie différenciée : des intentions à l’action. 2. ed.
Paris: ESF, 2000a.
ROEGIERS, X. Une Pédagogie de l’intégration: compétences et
intégration des acquis dans l’enseignement. Bruxelles: De
Boeck, 2000.
23