SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  1
Télécharger pour lire hors ligne
16 — SÁBADO, 7 de abril de 2007                                                               ESPECIAL                                                                            CORREIO DO POVO

FRONTEIRAS DO PENSAMENTO / Juremir Machado da Silva

            Peter Burke, o contador da nova história
H
             ouve um tempo em que os estudos tamente a exportação da violência carioca                    conferir o discurso do visitante. O Brasil está     os positivistas e os marxistas com os mesmos
             de história eram dominados por nem a difusão universal dos métodos de con-                   no imaginário dos europeus. O italiano Giulia-      golpes. Rejeitou a simples enumeração de da-
             duas correntes principais: positi- trole do tráfego aéreo desenvolvidos em Brasí-            no da Empoli, por exemplo, escreveu um libe-        tas, de nomes e de fatos como se fosse uma
             vistas e marxistas. Foi um tempo lia. Muito menos o padrão de futebol praticado              lo deliciosamente polêmico, que sairá ainda         enorme linha de tempo insossa e recusou
             bastante negativo. Ambos acredi- por Grêmio e Internacional no momento. Tam-                 mês no Brasil (pela Sulina), com o sugestivo tí-    também as interpretações messiânicas dos
tavam na verdade histórica. Ambos falavam de pouco parece ser alguém deslumbrado com as                   tulo “Hedonismo e medo: o futurista brasileiro      marxistas, que defendiam, por outros cami-
leis da história. Todos eram positivistas. A boa façanhas do governo de Luiz Inácio. Em caso              do mundo”. A idéia é a seguinte: e se o mundo       nhos, a certeza de que um dia a história che-
história era vista como uma ciência objetiva e de dúvida, o melhor é não ficar em casa e ir               inteiro adotasse o estilo de vida praticado co-     garia ao seu fim, o comunismo. No fundo,
imparcial capaz de agarrar o passado. Nesse                                       FJN / DIVULGAÇÃO / CP   rajosamente pelos brasileiros?                      marxistas não odeiam Francis Fukuyama por
época, os historiadores da cultura, do cotidia-                                                               Peter Burke conhece muito bem o nosso           ele falar em fim da história, mas por ter colo-
no, do social, eram estigmatizados ou ridicula-                                                           país. Ele lecionou na USP, escreve para a Fo-       cado o liberalismo como estação final no lugar
rizados. Peter Burke, 70 anos, que palestrará                                                             lha de S. Paulo e é casado com uma brasileira,      sagrado reservado ao comunismo. Será que
na próxima terça-feira no ciclo Fronteiras do                                                             a historiadora Maria Lúcia Palhares. Sabe,          Peter Burke vai colocar o Brasil como fim da
Pensamento, promovido pela Copesul, com                                                                   portanto, do que estará falando. Interessam-        história?
apoio da PUCRS, da Ufrgs, da Uergs e da Uni-                                                              lhe as trocas culturais, a mistura, a miscige-          Em lugar da Estação Finlândia ou de Wall
sinos, é um praticante da “nova história”. Pro-                                                           nação, as fusões, confusões, mesclas, cruza-        Street, a Central do Brasil. Em vez de guerras
fessor titular de História da Cultura da Uni-                                                             mentos e tudo aquilo que, sendo característico      de religião, guerras de gangues. Em compen-
versidade de Cambridge, ele é autor de uma                                                                dos processos históricos, elimina qualquer ob-      sação, no lugar da falta de jogo de cintura dos
série de livros reconhecidos internacionalmen-                                                            sessão por pureza cultural. Na verdade, mais        europeus, a nossa mítica e subjetiva malemo-
te, entre os quais “O que é história cultural?”;                                                          do que hibridismo, Peter Burke gosta de pen-        lência. Só que agora com sotaque internacio-
“A fabricação do rei – A construção da imagem                                                             sar sobre “traduções” culturais. Afinal de con-     nal trazendo benefícios para a indústria do tu-
pública de Luís XIV”; “Uma história social da                                                             tas, questiona, como a cultura de um lugar é        rismo. Peter Burke não diaboliza a globaliza-
mídia, de Gutenberg à Internet”; e “Uma histó-                                                            percebida, interpretada, desviada, adaptada,        ção. Nem a glorifica. Se Jean Baudrillard via
ria social do conhecimento, de Gutenberg a                                                                consumida em outro lugar? Esse interminável         na global a morte do universal convertido em
Diderot” (ambos em colaboração com Asa                                                                    vaivém que resulta em contaminação e despu-         mercadoria, Burke acredita que ainda é cedo
Briggs); “Hibridismo cultural” (publicado pela                                                            rificação faz a verdadeira riqueza das nações.      para julgar. Nesse sentido, ele é mais precavi-
Unisinos).                                                                                                    A “nova história”, herdeira de uma pers-        do do que o francês Guy Sorman e evita os elo-
    Em Porto Alegre, Burke abordará um tema                                                               pectiva nascida na França, a Escolas dos An-        gios precoces para não ter de cair em arrepen-
cada vez mais em voga entre os pensadores: “A                                                             nales, cujos grandes representantes foram           dimentos tardios e ineficazes. Bom narrador,
globalização da cultura, ou se o mundo todo                                                               Marc Bloch, Lucien Febvre, Jacques Le Goff,         vê a história como uma construção social per-
fosse Brasil”. Não se assustem, não se trata de                                                           Fernand Braudel, Pierre Chaunu, Georges             manente: o passado visto pelo olhos do pre-
uma ameaça. O historiador não defenderá cer- Burke fala no Fronteiras do Pensamento na terça, 10          Duby e Emmanuel Le Roy Ladurie, enfrentou           sente.


            De Luís XIV a Bush
    Peter Burke é daqueles que costumam encontrar o velho no novo. Em “A fa-
                                                                                                     O retorno de Gilberto Freyre
                                                                                            Ninguém duvida: em casa de ferreiro, espeto de            uma conferência do mestre pernambucano. Gilberto
bricação do rei – A construção da imagem pública de Luís XIV”, ele mostra co-           pau. Nada como um estrangeiro para redescobrir o que          Freyre está na base de toda a reflexão antropológica
mo o marketing surgiu muito antes do que se podia imaginar. Tudo foi calcula-           sempre tivemos de melhor. Peter Burke resolveu escre-         sobre a miscigenação como um fator positivo. Ele es-
do para que o Rei-Sol brilhasse como uma estrela sem precedentes. Mas sem-              ver sobre Gilberto Freyre, autor do nosso maior clássi-       creveu: “O que a monocultura latifundiária e escravo-
pre aproveitando exemplos do passado. “Os estudiosos dos meios de comunica-             co, “Casa grande & senzala”. O antropólogo brasileiro         crata realizou no sentido de aristocratização, extre-
ção do século XX operam por vezes com pressupostos bastante questionáveis               Gilberto Freyre, o mais brilhante de nossa história, foi      mando a sociedade brasileira em senhores e escravos,
sobre períodos anteriores, entre os quais o chamado “antigo regime”, que pre-           sempre repudiado pelo baixo clero marxista de plantão         com uma rala e insignificante lambujem de gente livre
cedeu a Revolução Francesa.                                           REPRODUÇÃO / CP   no mundo intelectual tupiniquim. Inventaram que ele           sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em
“Tomemos, por exemplo, um                                                               fazia a apologia da democracia racial e não enxergava         grande parte contrariada pelos efeitos sociais da misci-
estudo bastante conhecido                                                               o preconceito. Espalharam que ele não se preocupava           genação”. Em conseqüência, não tivemos o racismo
sobre propaganda nos anos                                                               com as questões econômicas. Ignoraram algumas das             dos Estados Unidos nem o apartheid levado pelos mes-
1920, que sugere que os                                                                 suas mais cristalinas observações sobre o caráter his-        mos holandeses que estiveram no Nordeste do Brasil
‘tempos mudaram’ desde                                                                  tórico da sociedade brasileira: “A formação patriarcal        para a África do Sul.
Luís XIV, e que a ascensão                                                              do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos            O sociólogo francês Michel Maffesoli, grande viajan-
da propaganda, e a ‘nova                                                                seus defeitos, menos em termos de ‘raça’ e de ‘religião’      te e grande conhecedor do Brasil, nunca duvidou do
profissão das relações públi-                                                           do que em termos econômicos, de experiência de cul-           valor extraordinário da obra de Gilberto Freyre para a
cas’, é um fenômeno do sé-                                                              tura e de organização da família, que foi aqui a unida-       compreensão da sociedade pós-moderna, cujo elemen-
culo XX, estimulado pela                                                                de colonizadora”.                                             to essencial é a noção de miscigenação cultural, étni-
Primeira Guerra Mundial                                                                     Freyre foi reacionário e revolucionário, moderno e        ca, social e existencial. Freyre foi, segundo Maffesoli,
mas tornado necessário pela                                                             antimoderno. Desmontou o racismo, valorizou a misci-          para usar uma expressão do próprio pensador brasilei-
livre competição de idéias                                                              genação, rejeitou o marxismo e, melhor do que nin-            ro, um “equilíbrio de antagonismos”. Peter Burke tem
numa sociedade democráti-                                                               guém, interpretou a originalidade da formação brasi-          uma percepção semelhante. Em artigo na Folha de S.
ca”, escreve Burke. Para logo                                                           leira. Peter Burke, por influência da mulher, redesco-        Paulo ele confessou sua admiração pelo autor de “Or-
refutar essa ingênua idéia de                                                           briu a genialidade desse precursor da pós-modernida-          dem e progresso” e “Sobrados e mocambos”: “Um dos
que inventamos o espetácu-                                                              de. Antes, havia lido sobre Freyre em notas do grande         traços mais surpreendentes e originais da obra de Gil-
lo. Em resumo, Luís XIV já                                                              historiador Fernand Braudel e havia até assistindo a          berto Freyre como historiador social é seu interesse
tinha uma turma de mar-                                                                                                                              CP MEMÓRIA por aquilo que, à maneira dos arqueólogos e
queteiros de primeira linha.                                                                                                                                    antropólogos, chamamos de ‘cultura mate-
    As mídias é que são dife-                                                                                                                                   rial’: a história da alimentação, da vestimen-
rentes. Os marqueteiros de                                                                                                                                      ta, da moradia e da mobília. É bem conhecido
Luís XIV divulgavam a ima-                                                                                                                                      o interesse de Freyre pela culinária, com des-
gem do chefe por meio de                                                                                                                                        taque para os doces de Pernambuco, e pela
estátuas, medalhas, jornais                                                                                                                                     história e sociologia da alimentação. Seu in-
e arcos do triunfo. George Luís XIV já tinha marqueteiros de primeira linha                                                                                     teresse na história das roupas estendia-se
Bush e Luiz Inácio ocupam espaços infinitos de televisão. Se acharem pouco,                                                                                     dos trajes formais dos moleques oitocentistas
podem até criar uma televisão para si mesmos. É verdade que os governantes                                                                                      aos turbantes das escravas negras. Seu tino
de hoje têm uma séria desvantagem: Luís XIV era o representante de Deus;                                                                                        para o papel da moradia e da mobília na his-
Bush tem o povo na sua cola. Dá mais trabalho agora explicar certas decisões.                                                                                   tória social era ainda mais pronunciado”.
Em geral, contudo, as cabeças coroadas não rolam. Algumas são enforcadas                                                                                             Pelo viés de Gilberto Freyre há um Brasil
em nome da glória dos outros. Nada de novo no front. Tanto em 1789 como em                                                                                      do qual se orgulhar. É o Brasil mítico do nos-
1917, garante Burke, os objetivos da propaganda eram os mesmos: “Celebrar a                                                                                     so imaginário e do nosso cotidiano que tenta-
própria revolução”. Ninguém é de ferro. Não basta mudar o mundo. É preciso                                                                                      mos apagar ou desvalorizar a golpes de balas
divulgar isso. Peter Burke diverte-se: “De maneira similar, poderíamos dizer                                                                                    perdidas ou de teorias incapazes de aceitar a
que a imagem de Lênin nos últimos dias da sua vida foi uma conciliação entre                                                                                    contradição como um cimento social. Talvez
os ideais da Revolução Russa e a tradição dos czares”.                                                                                                          seja esse Brasil – da tolerância religiosa, da
    Deve ser por isso que Luiz Inácio quer conciliar o espírito da BBC de Londres                                                                               miscigenação, de todas as fusões possíveis –
com o futuro brasileiro do mundo. O efeito perverso poderá ser a transfiguração                                                                                 que Peter Burke pretenda analisar em sua re-
da BBC em A Voz do Brasil. Peter Burke é um cavalheiro. Dificilmente vai tra-                                                                                   flexão sobre a globalização. Seja qual for o ca-
tar desses aspectos menos elevados da globalização verde-amarela do planeta.                                                                                    minho a ser tomado, um historiador que
Se a propaganda sempre foi a alma dos políticos, como prova o caso de Luís                                                                                      compreende a relevância de Gilberto Freyre já
XIV, ao menos há um consolo para a atualidade: nenhum marqueteiro conse-                                                                                        merece respeito. Nada como aprender com
guirá manter Bush mais de oito anos no posto. O Rei-Sol reinou por meros 72                                                                                     estranhos sobre as virtudes e os defeitos do-
anos. Houve tempo, como se percebe, para muitas campanhas criativas.                    ‘Freyre foi reacionário e revolucionário, moderno e antimoderno’        mésticos.

Contenu connexe

Tendances (6)

Questão 118
Questão 118Questão 118
Questão 118
 
O AnôNimo No Jornalismo LiteráRio
O AnôNimo No Jornalismo LiteráRioO AnôNimo No Jornalismo LiteráRio
O AnôNimo No Jornalismo LiteráRio
 
Felizmente há luar - Personagens
Felizmente há luar - PersonagensFelizmente há luar - Personagens
Felizmente há luar - Personagens
 
Judeus x Romanos
Judeus x RomanosJudeus x Romanos
Judeus x Romanos
 
Camponeses: Um olhar nos primórdios da modernidade.
Camponeses: Um olhar nos primórdios da modernidade.Camponeses: Um olhar nos primórdios da modernidade.
Camponeses: Um olhar nos primórdios da modernidade.
 
Felizmente há luar
Felizmente há luarFelizmente há luar
Felizmente há luar
 

Similaire à Burke, peter

Jornalismocultural fabiogomes
Jornalismocultural fabiogomesJornalismocultural fabiogomes
Jornalismocultural fabiogomesNatália Faria
 
Pré modernismo
Pré modernismoPré modernismo
Pré modernismoJosi Motta
 
A%20literatura%20pré-modernista..pptx
A%20literatura%20pré-modernista..pptxA%20literatura%20pré-modernista..pptx
A%20literatura%20pré-modernista..pptxssuser6e334c1
 
3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentado
3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentado3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentado
3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentadoemanuel
 
Aula hist. do livro. braude212121121l.pdf
Aula hist. do livro. braude212121121l.pdfAula hist. do livro. braude212121121l.pdf
Aula hist. do livro. braude212121121l.pdfeverethvt
 
IntroduçãO2
IntroduçãO2IntroduçãO2
IntroduçãO2rogerio
 
A literatura pré-modernista. (1).ppt
A literatura pré-modernista. (1).pptA literatura pré-modernista. (1).ppt
A literatura pré-modernista. (1).pptAndrPlez1
 
A visão do outro na literatura antijesuítica
A visão do outro na literatura antijesuíticaA visão do outro na literatura antijesuítica
A visão do outro na literatura antijesuíticaAlex Santos
 
Miseria intelectual sem fim
Miseria intelectual sem fimMiseria intelectual sem fim
Miseria intelectual sem fimGiba Canto
 
O Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdf
O Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdfO Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdf
O Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdfQueleLiberato
 

Similaire à Burke, peter (20)

O que é cultura
O que é culturaO que é cultura
O que é cultura
 
O que é cultura
O que é culturaO que é cultura
O que é cultura
 
Jornalismocultural fabiogomes
Jornalismocultural fabiogomesJornalismocultural fabiogomes
Jornalismocultural fabiogomes
 
Pré modernismo
Pré modernismoPré modernismo
Pré modernismo
 
His m01t10b saliba
His m01t10b salibaHis m01t10b saliba
His m01t10b saliba
 
A%20literatura%20pré-modernista..pptx
A%20literatura%20pré-modernista..pptxA%20literatura%20pré-modernista..pptx
A%20literatura%20pré-modernista..pptx
 
3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentado
3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentado3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentado
3º simulado ENEM (sábado)- Gabarito comentado
 
A literatura pré-modernista..ppt
A literatura pré-modernista..pptA literatura pré-modernista..ppt
A literatura pré-modernista..ppt
 
Aula hist. do livro. braude212121121l.pdf
Aula hist. do livro. braude212121121l.pdfAula hist. do livro. braude212121121l.pdf
Aula hist. do livro. braude212121121l.pdf
 
IntroduçãO2
IntroduçãO2IntroduçãO2
IntroduçãO2
 
2-2020 art Cult pop.pdf
2-2020 art Cult pop.pdf2-2020 art Cult pop.pdf
2-2020 art Cult pop.pdf
 
Cul pop tradicao art.pdf
Cul pop tradicao art.pdfCul pop tradicao art.pdf
Cul pop tradicao art.pdf
 
Pré-modernismo
Pré-modernismoPré-modernismo
Pré-modernismo
 
NN.ppt
NN.pptNN.ppt
NN.ppt
 
A literatura pré-modernista..ppt
A literatura pré-modernista..pptA literatura pré-modernista..ppt
A literatura pré-modernista..ppt
 
A literatura pré-modernista. (1).ppt
A literatura pré-modernista. (1).pptA literatura pré-modernista. (1).ppt
A literatura pré-modernista. (1).ppt
 
A visão do outro na literatura antijesuítica
A visão do outro na literatura antijesuíticaA visão do outro na literatura antijesuítica
A visão do outro na literatura antijesuítica
 
Nova história cultural
Nova história culturalNova história cultural
Nova história cultural
 
Miseria intelectual sem fim
Miseria intelectual sem fimMiseria intelectual sem fim
Miseria intelectual sem fim
 
O Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdf
O Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdfO Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdf
O Espetaculo das Racas - Cienti - Lilia Moritz Schwarcz capítulo 2.pdf
 

Plus de dartfelipe

Notícia de uma pesquisa em áfrica
Notícia de uma pesquisa em áfricaNotícia de uma pesquisa em áfrica
Notícia de uma pesquisa em áfricadartfelipe
 
Noticia de uma pesquisa em africa
Noticia de uma pesquisa em africaNoticia de uma pesquisa em africa
Noticia de uma pesquisa em africadartfelipe
 
Guardiãs do segredo
Guardiãs do segredoGuardiãs do segredo
Guardiãs do segredodartfelipe
 
Guardiãs do segredo
Guardiãs do segredoGuardiãs do segredo
Guardiãs do segredodartfelipe
 
Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)dartfelipe
 
Literatura afrobrasileira.
Literatura afrobrasileira.Literatura afrobrasileira.
Literatura afrobrasileira.dartfelipe
 
1997 farias sara_oliveira
1997 farias sara_oliveira1997 farias sara_oliveira
1997 farias sara_oliveiradartfelipe
 
Lyotardj.f o p+¦s-moderno
Lyotardj.f o p+¦s-modernoLyotardj.f o p+¦s-moderno
Lyotardj.f o p+¦s-modernodartfelipe
 

Plus de dartfelipe (8)

Notícia de uma pesquisa em áfrica
Notícia de uma pesquisa em áfricaNotícia de uma pesquisa em áfrica
Notícia de uma pesquisa em áfrica
 
Noticia de uma pesquisa em africa
Noticia de uma pesquisa em africaNoticia de uma pesquisa em africa
Noticia de uma pesquisa em africa
 
Guardiãs do segredo
Guardiãs do segredoGuardiãs do segredo
Guardiãs do segredo
 
Guardiãs do segredo
Guardiãs do segredoGuardiãs do segredo
Guardiãs do segredo
 
Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)Educacaoem linha12 (1)
Educacaoem linha12 (1)
 
Literatura afrobrasileira.
Literatura afrobrasileira.Literatura afrobrasileira.
Literatura afrobrasileira.
 
1997 farias sara_oliveira
1997 farias sara_oliveira1997 farias sara_oliveira
1997 farias sara_oliveira
 
Lyotardj.f o p+¦s-moderno
Lyotardj.f o p+¦s-modernoLyotardj.f o p+¦s-moderno
Lyotardj.f o p+¦s-moderno
 

Burke, peter

  • 1. 16 — SÁBADO, 7 de abril de 2007 ESPECIAL CORREIO DO POVO FRONTEIRAS DO PENSAMENTO / Juremir Machado da Silva Peter Burke, o contador da nova história H ouve um tempo em que os estudos tamente a exportação da violência carioca conferir o discurso do visitante. O Brasil está os positivistas e os marxistas com os mesmos de história eram dominados por nem a difusão universal dos métodos de con- no imaginário dos europeus. O italiano Giulia- golpes. Rejeitou a simples enumeração de da- duas correntes principais: positi- trole do tráfego aéreo desenvolvidos em Brasí- no da Empoli, por exemplo, escreveu um libe- tas, de nomes e de fatos como se fosse uma vistas e marxistas. Foi um tempo lia. Muito menos o padrão de futebol praticado lo deliciosamente polêmico, que sairá ainda enorme linha de tempo insossa e recusou bastante negativo. Ambos acredi- por Grêmio e Internacional no momento. Tam- mês no Brasil (pela Sulina), com o sugestivo tí- também as interpretações messiânicas dos tavam na verdade histórica. Ambos falavam de pouco parece ser alguém deslumbrado com as tulo “Hedonismo e medo: o futurista brasileiro marxistas, que defendiam, por outros cami- leis da história. Todos eram positivistas. A boa façanhas do governo de Luiz Inácio. Em caso do mundo”. A idéia é a seguinte: e se o mundo nhos, a certeza de que um dia a história che- história era vista como uma ciência objetiva e de dúvida, o melhor é não ficar em casa e ir inteiro adotasse o estilo de vida praticado co- garia ao seu fim, o comunismo. No fundo, imparcial capaz de agarrar o passado. Nesse FJN / DIVULGAÇÃO / CP rajosamente pelos brasileiros? marxistas não odeiam Francis Fukuyama por época, os historiadores da cultura, do cotidia- Peter Burke conhece muito bem o nosso ele falar em fim da história, mas por ter colo- no, do social, eram estigmatizados ou ridicula- país. Ele lecionou na USP, escreve para a Fo- cado o liberalismo como estação final no lugar rizados. Peter Burke, 70 anos, que palestrará lha de S. Paulo e é casado com uma brasileira, sagrado reservado ao comunismo. Será que na próxima terça-feira no ciclo Fronteiras do a historiadora Maria Lúcia Palhares. Sabe, Peter Burke vai colocar o Brasil como fim da Pensamento, promovido pela Copesul, com portanto, do que estará falando. Interessam- história? apoio da PUCRS, da Ufrgs, da Uergs e da Uni- lhe as trocas culturais, a mistura, a miscige- Em lugar da Estação Finlândia ou de Wall sinos, é um praticante da “nova história”. Pro- nação, as fusões, confusões, mesclas, cruza- Street, a Central do Brasil. Em vez de guerras fessor titular de História da Cultura da Uni- mentos e tudo aquilo que, sendo característico de religião, guerras de gangues. Em compen- versidade de Cambridge, ele é autor de uma dos processos históricos, elimina qualquer ob- sação, no lugar da falta de jogo de cintura dos série de livros reconhecidos internacionalmen- sessão por pureza cultural. Na verdade, mais europeus, a nossa mítica e subjetiva malemo- te, entre os quais “O que é história cultural?”; do que hibridismo, Peter Burke gosta de pen- lência. Só que agora com sotaque internacio- “A fabricação do rei – A construção da imagem sar sobre “traduções” culturais. Afinal de con- nal trazendo benefícios para a indústria do tu- pública de Luís XIV”; “Uma história social da tas, questiona, como a cultura de um lugar é rismo. Peter Burke não diaboliza a globaliza- mídia, de Gutenberg à Internet”; e “Uma histó- percebida, interpretada, desviada, adaptada, ção. Nem a glorifica. Se Jean Baudrillard via ria social do conhecimento, de Gutenberg a consumida em outro lugar? Esse interminável na global a morte do universal convertido em Diderot” (ambos em colaboração com Asa vaivém que resulta em contaminação e despu- mercadoria, Burke acredita que ainda é cedo Briggs); “Hibridismo cultural” (publicado pela rificação faz a verdadeira riqueza das nações. para julgar. Nesse sentido, ele é mais precavi- Unisinos). A “nova história”, herdeira de uma pers- do do que o francês Guy Sorman e evita os elo- Em Porto Alegre, Burke abordará um tema pectiva nascida na França, a Escolas dos An- gios precoces para não ter de cair em arrepen- cada vez mais em voga entre os pensadores: “A nales, cujos grandes representantes foram dimentos tardios e ineficazes. Bom narrador, globalização da cultura, ou se o mundo todo Marc Bloch, Lucien Febvre, Jacques Le Goff, vê a história como uma construção social per- fosse Brasil”. Não se assustem, não se trata de Fernand Braudel, Pierre Chaunu, Georges manente: o passado visto pelo olhos do pre- uma ameaça. O historiador não defenderá cer- Burke fala no Fronteiras do Pensamento na terça, 10 Duby e Emmanuel Le Roy Ladurie, enfrentou sente. De Luís XIV a Bush Peter Burke é daqueles que costumam encontrar o velho no novo. Em “A fa- O retorno de Gilberto Freyre Ninguém duvida: em casa de ferreiro, espeto de uma conferência do mestre pernambucano. Gilberto bricação do rei – A construção da imagem pública de Luís XIV”, ele mostra co- pau. Nada como um estrangeiro para redescobrir o que Freyre está na base de toda a reflexão antropológica mo o marketing surgiu muito antes do que se podia imaginar. Tudo foi calcula- sempre tivemos de melhor. Peter Burke resolveu escre- sobre a miscigenação como um fator positivo. Ele es- do para que o Rei-Sol brilhasse como uma estrela sem precedentes. Mas sem- ver sobre Gilberto Freyre, autor do nosso maior clássi- creveu: “O que a monocultura latifundiária e escravo- pre aproveitando exemplos do passado. “Os estudiosos dos meios de comunica- co, “Casa grande & senzala”. O antropólogo brasileiro crata realizou no sentido de aristocratização, extre- ção do século XX operam por vezes com pressupostos bastante questionáveis Gilberto Freyre, o mais brilhante de nossa história, foi mando a sociedade brasileira em senhores e escravos, sobre períodos anteriores, entre os quais o chamado “antigo regime”, que pre- sempre repudiado pelo baixo clero marxista de plantão com uma rala e insignificante lambujem de gente livre cedeu a Revolução Francesa. REPRODUÇÃO / CP no mundo intelectual tupiniquim. Inventaram que ele sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em “Tomemos, por exemplo, um fazia a apologia da democracia racial e não enxergava grande parte contrariada pelos efeitos sociais da misci- estudo bastante conhecido o preconceito. Espalharam que ele não se preocupava genação”. Em conseqüência, não tivemos o racismo sobre propaganda nos anos com as questões econômicas. Ignoraram algumas das dos Estados Unidos nem o apartheid levado pelos mes- 1920, que sugere que os suas mais cristalinas observações sobre o caráter his- mos holandeses que estiveram no Nordeste do Brasil ‘tempos mudaram’ desde tórico da sociedade brasileira: “A formação patriarcal para a África do Sul. Luís XIV, e que a ascensão do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos O sociólogo francês Michel Maffesoli, grande viajan- da propaganda, e a ‘nova seus defeitos, menos em termos de ‘raça’ e de ‘religião’ te e grande conhecedor do Brasil, nunca duvidou do profissão das relações públi- do que em termos econômicos, de experiência de cul- valor extraordinário da obra de Gilberto Freyre para a cas’, é um fenômeno do sé- tura e de organização da família, que foi aqui a unida- compreensão da sociedade pós-moderna, cujo elemen- culo XX, estimulado pela de colonizadora”. to essencial é a noção de miscigenação cultural, étni- Primeira Guerra Mundial Freyre foi reacionário e revolucionário, moderno e ca, social e existencial. Freyre foi, segundo Maffesoli, mas tornado necessário pela antimoderno. Desmontou o racismo, valorizou a misci- para usar uma expressão do próprio pensador brasilei- livre competição de idéias genação, rejeitou o marxismo e, melhor do que nin- ro, um “equilíbrio de antagonismos”. Peter Burke tem numa sociedade democráti- guém, interpretou a originalidade da formação brasi- uma percepção semelhante. Em artigo na Folha de S. ca”, escreve Burke. Para logo leira. Peter Burke, por influência da mulher, redesco- Paulo ele confessou sua admiração pelo autor de “Or- refutar essa ingênua idéia de briu a genialidade desse precursor da pós-modernida- dem e progresso” e “Sobrados e mocambos”: “Um dos que inventamos o espetácu- de. Antes, havia lido sobre Freyre em notas do grande traços mais surpreendentes e originais da obra de Gil- lo. Em resumo, Luís XIV já historiador Fernand Braudel e havia até assistindo a berto Freyre como historiador social é seu interesse tinha uma turma de mar- CP MEMÓRIA por aquilo que, à maneira dos arqueólogos e queteiros de primeira linha. antropólogos, chamamos de ‘cultura mate- As mídias é que são dife- rial’: a história da alimentação, da vestimen- rentes. Os marqueteiros de ta, da moradia e da mobília. É bem conhecido Luís XIV divulgavam a ima- o interesse de Freyre pela culinária, com des- gem do chefe por meio de taque para os doces de Pernambuco, e pela estátuas, medalhas, jornais história e sociologia da alimentação. Seu in- e arcos do triunfo. George Luís XIV já tinha marqueteiros de primeira linha teresse na história das roupas estendia-se Bush e Luiz Inácio ocupam espaços infinitos de televisão. Se acharem pouco, dos trajes formais dos moleques oitocentistas podem até criar uma televisão para si mesmos. É verdade que os governantes aos turbantes das escravas negras. Seu tino de hoje têm uma séria desvantagem: Luís XIV era o representante de Deus; para o papel da moradia e da mobília na his- Bush tem o povo na sua cola. Dá mais trabalho agora explicar certas decisões. tória social era ainda mais pronunciado”. Em geral, contudo, as cabeças coroadas não rolam. Algumas são enforcadas Pelo viés de Gilberto Freyre há um Brasil em nome da glória dos outros. Nada de novo no front. Tanto em 1789 como em do qual se orgulhar. É o Brasil mítico do nos- 1917, garante Burke, os objetivos da propaganda eram os mesmos: “Celebrar a so imaginário e do nosso cotidiano que tenta- própria revolução”. Ninguém é de ferro. Não basta mudar o mundo. É preciso mos apagar ou desvalorizar a golpes de balas divulgar isso. Peter Burke diverte-se: “De maneira similar, poderíamos dizer perdidas ou de teorias incapazes de aceitar a que a imagem de Lênin nos últimos dias da sua vida foi uma conciliação entre contradição como um cimento social. Talvez os ideais da Revolução Russa e a tradição dos czares”. seja esse Brasil – da tolerância religiosa, da Deve ser por isso que Luiz Inácio quer conciliar o espírito da BBC de Londres miscigenação, de todas as fusões possíveis – com o futuro brasileiro do mundo. O efeito perverso poderá ser a transfiguração que Peter Burke pretenda analisar em sua re- da BBC em A Voz do Brasil. Peter Burke é um cavalheiro. Dificilmente vai tra- flexão sobre a globalização. Seja qual for o ca- tar desses aspectos menos elevados da globalização verde-amarela do planeta. minho a ser tomado, um historiador que Se a propaganda sempre foi a alma dos políticos, como prova o caso de Luís compreende a relevância de Gilberto Freyre já XIV, ao menos há um consolo para a atualidade: nenhum marqueteiro conse- merece respeito. Nada como aprender com guirá manter Bush mais de oito anos no posto. O Rei-Sol reinou por meros 72 estranhos sobre as virtudes e os defeitos do- anos. Houve tempo, como se percebe, para muitas campanhas criativas. ‘Freyre foi reacionário e revolucionário, moderno e antimoderno’ mésticos.