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Luiz Felipe de Alencastro




                                     Na sua transatlântica caçada em busca de Força de Trabalho, o capitalismo comer-
                             cial luso-brasileiro trouxe para as terras de Santa Cruz perto de 4 milhões de africanos,
                             entre 1550 e 1850. Concluída essa longa deportação, vieram ou foram trazidos para o
1Cf. Ph. Curtin, The         Brasil perto de 5 milhões de europeus, levantinos e asiáticos, entre 1850 e 19501. No
Atlantic Slave Trade, a
Census, Madison, Wisc,       bojo desses fluxos de populações, de culturas, de aspirações, ocorre, por volta de 1930,
1969; Douglas H. Graham      uma mutação fundamental: o mercado de trabalho nacional se territorializa.
e Sérgio Buarque de Ho-
landa Filho, Migrações ín-           A sociedade brasileira herdara um defeito de metabolismo que a distinguia de to-
ternis     no     Brasil:
1872-1970,1PE-USP.1984.      das as outras regiões americanas. Dois séculos após a Descoberta — em razão da dinâmi-
                             ca do capitalismo comercial mas também por causa das características próprias do colo-
                             nialismo lusitano —, já se consolidara a bipolarização que seria o fundamento da quot;Pax
                             Lusitanaquot; no Atlântico Sul. De um lado uma zona de produção escravista (Brasil), de ou-
                             tro uma zona de reprodução de escravos (Angola e demais regiões africanas de tráfico
                             sob dominação lusitana). O desconhecimento dessa bipolarização obscurece a especifi-
                             cidade da nossa escravidão, a organização da produção colonial e o funcionamento do
                             Estado brasileiro após a Independência. De fato, o governo imperial constituído no Rio
                             de Janeiro em 1822 vê afirmar-se o imperativo geopolítico estabelecido durante o perío-
                             do colonial. A diferenciação setorial e regional da demanda de escravos suscita interes-
                             ses conflitantes no interior do território, que só podem ser satisfeitos na medida em que
                             o poder central facilita a continuação do comércio negreiro com a África na primeira
                             metade do século XIX e estimula a imigração de proletários do mundo inteiro, na segun-
                             da. Na realidade, o fluxo de africanos e de imigrantes reduz as diferenças de produtivida-
                             de intra-setoriais, notadamente entre a cana-de-açúcar e o café, assim como as diferenças
                             intersetoriais, materializadas na cidade e no campo, limitando de chofre as transferências
                             internas de fatores de produção e de capital.
                                     Em suma, pode-se concluir que a xenofagia das fazendas e a desterritorização
                             do mercado de trabalho apresenta-se como a resultante política da ocupação colonial
                             e da unidade do território nacional.

SETEMBRO DE 1987                                                                                                    17
A PRÉ-REVOLUÇÃO DE 30




                                  Nos primeiros decênios do século XX a situação do mercado de trabalho na-
                        cional muda radicalmente. Em primeiro lugar, a imigração estrangeira decresce forte-
                        mente após a I Guerra Mundial. Entre 1921-1930 entravam 84.000 imigrantes por ano no
                        país. Entre 1931-1940 esse número cai para 14.400. As razões desse declínio são múlti-
                        plas. No plano europeu, a emigração posterior a 1930 contém uma proporção menor
                        de indivíduos economicamente ativos. Como decorrência dos conflitos étnicos, religio-
                        sos e políticos, há mais mulheres, crianças e velhos entre os estrangeiros que chegam
                        ao Brasil. Paralelamente, as migrações nordestinas para o Sul tornam-se mais regulares,
                        menos dependentes das expulsões provocadas pela seca, incorporando em conseqüên-
                        cia uma proporção maior de indivíduos economicamente ativos2. O estado de São Pau-
                        lo funcionará como câmara de compensação entre os fluxos externos e internos de mão-
                        de-obra, como o demonstram claramente os números da tabela abaixo. Praticamente nu-
                        la entre 1900-1920, a migração líquida de brasileiros para esse estado é superior à imigra-
                        ção líquida de estrangeiros no período 1920-1940. Tal é o contexto sócio-demográfico
                        que conduz o governo paulista a eliminar a subvenção oficial à imigração em 1927.

                              TABELA I

                             A MIGRAÇÃO LÍQUIDA INTERNA E INTERNACIONAL ESTIMADA PELO MÉTODO DE SOBREVIVÊN-
                        CIA CENSITÁRIA PARA OS ESTADOS NO BRASIL: 1920-1940


                                                                                MIGRAÇÃO       MIGRAÇÃO LÍQUIDA
                                                                                  LÍQUIDA          INTERNA E
                                                               MIGRAÇÃO
                           ESTADOS                                               INTERNA        INTERNACIONAL
                                                                 TOTAL
                                                                               DOS NATIVOS    DOS ESTRANGEIROS
                           AMAZONAS                            -24.694           -22.636             -2.058
                           ACRE                                -18.941           -18.071              -870
                           PARÁ                               -146.943          -146.141              -802
                           MARANHÃO                             53.780           53.325               455
                           PIAUÍ                               -20.928           -20.975               47
                           CEARÁ                                99.260           98.386               874
                           PARAÍBA                              52.213           51.868               345
                           RIO GRANDE DO NORTE                  30.665           30.416               249
                           PERNAMBUCO                          -55.543           -55.488               -55
                           ALAGOAS                            -160.718          -160.837              119
                           SERGIPE                             -29.761           -29.836               75
                           BAHIA                              -195.704          -197.659             1.955
                           MINAS GERAIS                       -625.146          -630.320             5.174
                           ESPÍRITO SANTO                       38.621           35.429              3.192
                           DISTRITO FEDERAL                    373.031          277.356             95.675
                           RIO DE JANEIRO                      -89.395          -103.086            13.691
                           SÃO PAULO                           697.276          355.588             341.688
                           PARANÁ                              140.667          109.168             31.499
                           SANTA CATARINA                       96.500           83.251             13.249
                           RIO GRANDE DO SUL                   198.830          165.964             32.866
                           GOIÁS                                53.117           51.647              1.470
                           MATO GROSSO                          52.546           46.799              5.747
                           BRASIL                             544.759              0                544.759
                              Fonte: Migrações Internas no Brasil: 1872-1970

                               Grosseiramente simplista e o raciocínio que supõe que o país passou do trafico
                        de escravos ao tráfico de imigrantes e depois entrou na dinâmica das migrações internas
                        só por razões econômicas. Rematada bobagem é pensar enfim que os fazendeiros de on-
                        tem, quando passavam a utilizar escravos, imigrantes ou nordestinos, se comportavam
                        como os automobilistas de hoje, que mudam de carro a gasolina por carro a álcool ape-
                        nas por custo marginal de rentabilidade. Todas essas transformações embutem projetos
                        e expectativas sobre as relações entre o território, a população, a sociedade e a cultura.

18                                                                                           NOVOS ESTUDOS nº 18
TABELA 2

    MIGRAÇÃO INTERNA E INTERNACIONAL LÍQUIDA ESTIMADAS A PARTIR DE TAXAS DE SOBREVI-
VÊNCIA CENSITÁRIA, PARA OS ESTADOS DO BRASIL - 1900-1920
                                                       MIGRAÇÃO       MIGRAÇÃO INTERNA
                                     MIGRAÇÃO           INTERNA        E INTERNACIONAL
   ESTADOS
                                       TOTAL             LÍQUIDA           LÍQUIDA DE
                                                       DE NATIVOS       ESTRANGEIROS
   AMAZONAS                             -17.130          -29.764           12.633
   ACRE                                  50.735           47.873            2.880
   PARÁ                                111.249            93.382           17.867
   MARANHÃO                              32.274           31.419             855
   PIAUÍ                                  4.043           -4.334             291
   CEARÁ                                -75.895           76.170             275
   PARAÍBA                               43.623           43.293             330
   RIO GRANDE DO NORTE                   34.370           34.176             194
   PERNAMBUCO                            78.995           71.935            7.060
   ALAGOAS                              -71.928          -72.059             131
   SERGIPE                              -44.896          -45.115             291
   BAHIA                               115.515          -119.010            3.495
   MINAS GERAIS                        -202.199         -221.456           19.257
   ESPÍRITO SANTO                        42.177           37.688            4.486
   DISTRITO FEDERAL                    143.912            55.322           88.590
   RIO DE JANEIRO                        20.711            6.251           14.460
   SÃO PAULO                           354.317           -19.933           374.250
   PARANÁ                                54.954           29.100           25.854
   SANTA CATARINA                        48.576           38.220           10.356
   RIO GRANDE DO SUL                     96.481           53.854           42.627
   GOIÁS                                 29.990           28.549            1.441
   MATO GROSSO                           28.268           16.771           11.497
   BRASIL                              639.044               0             639.044
      Fonte: Migrações Internas no Brasil: 1872-1970


Há entretanto uma linha vermelha entre essas diferentes etapas da formação do mercado
de trabalho nacional. Com efeito, a ação do Estado imperial e republicano é fundamen-
tal na reprodução das condições de produção e constitui assim o elo lógico da continui-
dade dos sistemas sociais distintos que marcam a história brasileira.
        Exatas duas semanas após o voto da lei que suprime definitivamente o tráfico ne-
greiro, o Parlamento vota a Lei de Terras. Em seguida é criada a Diretoria Geral das Terras
Públicas, embrião do Ministério da Agricultura, fundado em 1862 com o fim específico
de administrar a reciclagem do tráfico de escravos para o tráfico de imigrantes. A expres-
são quot;tráficoquot; para caracterizar o movimento de imigração pode parecer excessiva. Trata-
se entretanto de definição adequada, quando se considera o número elevado de imigrantes
atados a seu futuro empregador brasileiro por dívida previamente contraída para pagar
seu transporte ao Brasil, estada e transferência até as fazendas. A observação vale tanto
para os portugueses que chegaram em meados do século XIX, quanto para os italianos
vindos na virada do século3. Assim, quatro quintos dos 750.000 estrangeiros que che-          3 L.F. de Alencastro, Prolé-
                                                                                              taires et Esclaves: Immi-
garam a São Paulo entre 1889 e o começo do século tiveram suas passagens atlânticas
                                                                                              grés Portugais et Captifs
subsidiadas pelo governo estadual. Após a chegada esses indivíduos e suas famílias eram       Africains à Rio de Janeiro
canalizados à Hospedaria dos Imigrantes, situada na cidade de São Paulo, no entronca-         - 1850-1872, Cahiers du
mento de estradas de ferro que vinham do Rio de Janeiro e de Santos. Confinados à Hos-        CRIAR, nº 4,1984, Pu-
pedaria, sob vigilância policial, os imigrantes pernoitavam em quot;dormitóriosquot; — salões         blications de 1'Université
                                                                                              de Rouen, pp. 119-156.
onde 600 homens, mulheres e crianças deitavam-se sobre esteiras — durante uma sema-
na. Esse era o prazo concedido para que quot;escolhessemquot; um empregador da fronteira agrí-
cola. Houve ocasiões em que a Hospedaria ficou entulhada com 10.000 pessoas, sujeitas

SETEMBRO DE 1987                                                                                                      19
A PRÉ-REVOLUÇÃO DE 30




                             a doenças que provocavam forte mortalidade, principalmente entre as crianças récem-
4
 Thomas H. Holloway,         chegadas4.
Imigrantes para o Café,
Rio de Janeiro, Paz e Ter-           As duras condições em que centenas de milhares de imigrantes de todas as nacio-
ça, 1984.                    nalidades foram quot;brasilianizadosquot; nas fazendas, por engenho e arte do Estado — que
                             aparece assim como um quot;Super-Gatoquot;, empreiteiro de trabalho alheio — e dos proprietá-
                             rios rurais formados por trezentos anos de escravidão, merecem ser ressaltadas para que
                             fique convenientemente relativizada a chamada transição do trabalho escravo para o tra-
                             balho livre. O trabalho dito quot;livrequot;, generalizado após a Abolição, não constitui propria-
                             mente uma inovação. Formas variadas de trabalho compulsório, impostas a índios, ex-
                             escravos e brancos pobres, foram amplamente utilizadas durante a escravidão. Aliás, é
                             precisamente essa prática histórica que facilitará a transição do tráfico de escravos ao trá-
                             fico de imigrantes, a passagem da sociedade escravista à sociedade patriarcal.
                                     A fundação do Ministério do Trabalho, em 1930, configura outro momento-chave
                             da ação do Estado na organização do mercado de trabalho. A extinção do movimento
                             sindical autônomo, a criação de uma estrutura sindical corporativa e oficialista, enfim e
                             sobretudo, a instauração do salário mínimo em 1940 fornecem as condições necessárias
                             para a organização dos fluxos intersetoriais de mão-de-obra (do setor primário para o
                             secundário) no interior do país. Graças a esse aparato legal e burocrático o setor indus-
                             trial urbano captará, a baixo custo, trabalhadores domesticados pela estrutura sindical
5francisco de Oliveira,      governista5. Em 1862, o Ministério da Agricultura reorientava os fluxos internacionais
Crítica i Razão Dualista.    de mão-de-obra rural; em 1930, o Ministério do Trabalho passa a orientar os fluxos inter-
5? ed., Petrópolis, Vozes,
1987.                        nos de trabalhadores. Em 1862, o Estado recompõe sua aliança com os fazendeiros; em
                             1930, o arreglo é feito com os industriais.
                                     Dessa forma, a Revolução de 30 situa-se na convergência de uma dupla mutação.
                             Em primeiro lugar, o mercado de trabalho se territorializa, fenômeno inédito desde o
                             século XVII, quando o trabalho escravo africano começa a sobrepor-se ao trabalho for-
                             çado indígena. Em segundo lugar, o Estado deixa de intervir na captação de proletários
                             estrangeiros para cuidar do enquadramento do proletariado nacional. À luz dessas trans-
                             formações compreende-se melhor o novo patamar ideológico onde evoluirá o debate
                             político e cultural brasileiro.
                                     Enquanto o mercado de trabalho foi predominantemente alimentado pelo tráfico
                             negreiro e pela imigração — enquanto a economia brasileira comia os trabalhadores crus
                             —, o poder político encontrava-se em face de trabalhadores mantidos em situação de
                             infracidadania. Nessas condições o discurso ideológico resumia-se praticamente ao diá-
                             logo entre as classes dirigentes (a burocracia imperial e republicana) e as classes domi-
                             nantes (as oligarquias regionais). A partir do momento em que a reprodução ampliada
                             da força de trabalho se territorializa — quando a economia passa a comer trabalhadores
                             cozidos —, o discurso ideológico não pode mais evoluir intramuros no estreito espaço
                             do poder. Doravante era preciso uma quot;linha de massaquot;, uma ideologia que encobrisse
                             o sentido e a orientação do cotidiano, que justificasse as relações complexas unindo do-
                             minantes e dominados. Nacionalismo e patriarcalismo fornecerão o esteio ideológico da
                             nova fase do mercado de trabalho brasileiro. A emergência de uma administração federal
                             reforçada, o trabalhismo, o populismo varguista eficazmente propulsado pelo rádio (pe-
                             la primeira vez todo o povo brasileiro ouve a quot;voz do donoquot;) veiculam o nacionalismo.
                             Casa-Grande e Senzala fornecerá a teoria e a prática do patriarcalismo brasileiro.
                                     Durante o século XIX tentativas legais foram feitas no sentido de transformar a
                             escravidão em servidão, através da fixação do cativo nas plantações. A dinâmica do mer-
                             cado de trabalho não permitiu a implementação desta política, mas os parlamentares e
                             o Trono procederam a um desvio semântico, intitulando os debates sobre a escravidão
                             de debates quot;sobre a questão servilquot;. Descrevendo as relações entre senhores e escravos,
                             Freyre faz total abstração dos fluxos comerciais que atravessavam as fazendas. O tráfico
                             de escravos desaparece no topo da estrutura enquanto as variações da demanda de pro-

20                                                                                         NOVOS ESTUDOS nº18
dutos agrícolas somem da base. Cortada dos grandes rios do comércio internacional, a
sociedade agrária do Nordeste, descrita por Freyre, torna-se um lago, um caldeirão de
cultura. Reunidos em unidades agrícolas entorpecidas, senhores e escravos aproximam-
se, atenuando a rudeza das relações de produção. Deste ponto de vista, a ausência de
liberdade aparece como um inconveniente secundário para o escravo. Desprovidos da
proteção patriarcal dos senhores, os homens livres e pobres das zonas rurais estão ex-
postos a toda sorte de misérias. Falando das doenças e da subnutrição que atinge essa
camada livre da população, Freyre nota que esses males quot;estenderam-se com igual inten-
sidade aos negros e mulatos, somente após o descalabro da Abolição da escravidãoquot;. Diante
dessa descrição, a analogia com a servidão russa salta aos olhos. Em O Cerejal,Tchekov
dá a palavra ao bravo servo Firs, que pensava que a abolição da servidão na Rússia tinha
sido uma verdadeira quot;infelicidadequot;: quot;quando fomos libertados... eu não quis saber de         6 Joaquim Nabuco, Obras
                                                                                             Completas, São Paulo, Ins-
liberdade, fiquei com meus senhores ... o servo esta ligado ao mestre, o mestre ao servo     tituto Progresso Editorial,
e agora cada um vai para o seu lado, não dá mais para entenderquot;. Outro pernambucano          1949, v. I, pp. 182-183.
ilustre, Joaquim Nabuco, analisara entretanto a diferença radical que separava a escravi-    7 Esse artigo será seguido
dão da servidão. Analisando o engenho pernambucano onde vivera,dizia: quot;receio que            por um estudo sobre
                                                                                             Casa-Grande e Senzala
essa espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito an-       que aparecerá num próxi-
tigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade,           mo número de Novos Es-
                                                                                             tudos CEBRAP.
e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivesse
feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo ... tal aproxima-
ção (senhor-escravo) entre situações tão desiguais perante a lei seria impossível nas no-
vas e ricas fazendas do Sul, onde o escravo, desconhecido do proprietário, era somente
                                                                                             Luiz Felipe de Alencastro
um instrumento de colheitaquot;6. Nabuco restringe social e economicamente e data histo-         é pesquisador do CE-
ricamente quot;essa espécie particular de escravidãoquot;. Freyre transforma quot;essa espécie de tri-   BRAP e professor do Ins-
                                                                                             tituto de Economia da
bo patriarcal isolada do mundoquot; em tribo transoceânica, válida não só para o Brasil in-      Unicamp. Já publicou
                                                                                             nesta revista Geopolítica
teiro, como também para o império lusitano.                                                  da Mestiçagem (nº 11).
        Como descrição da escravidão brasileira Casa-Grande e Senzala merece o respeito
que se deve aos livros de história escritos há mais de meio século. Como obra seminal           Novos Estudos
                                                                                                   CEBRAP
da ideologia patriarcalista que envolveu o Brasil após as grandes transformações demo-       nº 18, setembro 87
gráficas e sociais dos anos 30, o livro ainda tem belos dias diante de si7.                        pp. 17-21




SETEMBRO DE 1987                                                                                                  21

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A transformação do mercado de trabalho brasileiro no início do século XX

  • 1. Luiz Felipe de Alencastro Na sua transatlântica caçada em busca de Força de Trabalho, o capitalismo comer- cial luso-brasileiro trouxe para as terras de Santa Cruz perto de 4 milhões de africanos, entre 1550 e 1850. Concluída essa longa deportação, vieram ou foram trazidos para o 1Cf. Ph. Curtin, The Brasil perto de 5 milhões de europeus, levantinos e asiáticos, entre 1850 e 19501. No Atlantic Slave Trade, a Census, Madison, Wisc, bojo desses fluxos de populações, de culturas, de aspirações, ocorre, por volta de 1930, 1969; Douglas H. Graham uma mutação fundamental: o mercado de trabalho nacional se territorializa. e Sérgio Buarque de Ho- landa Filho, Migrações ín- A sociedade brasileira herdara um defeito de metabolismo que a distinguia de to- ternis no Brasil: 1872-1970,1PE-USP.1984. das as outras regiões americanas. Dois séculos após a Descoberta — em razão da dinâmi- ca do capitalismo comercial mas também por causa das características próprias do colo- nialismo lusitano —, já se consolidara a bipolarização que seria o fundamento da quot;Pax Lusitanaquot; no Atlântico Sul. De um lado uma zona de produção escravista (Brasil), de ou- tro uma zona de reprodução de escravos (Angola e demais regiões africanas de tráfico sob dominação lusitana). O desconhecimento dessa bipolarização obscurece a especifi- cidade da nossa escravidão, a organização da produção colonial e o funcionamento do Estado brasileiro após a Independência. De fato, o governo imperial constituído no Rio de Janeiro em 1822 vê afirmar-se o imperativo geopolítico estabelecido durante o perío- do colonial. A diferenciação setorial e regional da demanda de escravos suscita interes- ses conflitantes no interior do território, que só podem ser satisfeitos na medida em que o poder central facilita a continuação do comércio negreiro com a África na primeira metade do século XIX e estimula a imigração de proletários do mundo inteiro, na segun- da. Na realidade, o fluxo de africanos e de imigrantes reduz as diferenças de produtivida- de intra-setoriais, notadamente entre a cana-de-açúcar e o café, assim como as diferenças intersetoriais, materializadas na cidade e no campo, limitando de chofre as transferências internas de fatores de produção e de capital. Em suma, pode-se concluir que a xenofagia das fazendas e a desterritorização do mercado de trabalho apresenta-se como a resultante política da ocupação colonial e da unidade do território nacional. SETEMBRO DE 1987 17
  • 2. A PRÉ-REVOLUÇÃO DE 30 Nos primeiros decênios do século XX a situação do mercado de trabalho na- cional muda radicalmente. Em primeiro lugar, a imigração estrangeira decresce forte- mente após a I Guerra Mundial. Entre 1921-1930 entravam 84.000 imigrantes por ano no país. Entre 1931-1940 esse número cai para 14.400. As razões desse declínio são múlti- plas. No plano europeu, a emigração posterior a 1930 contém uma proporção menor de indivíduos economicamente ativos. Como decorrência dos conflitos étnicos, religio- sos e políticos, há mais mulheres, crianças e velhos entre os estrangeiros que chegam ao Brasil. Paralelamente, as migrações nordestinas para o Sul tornam-se mais regulares, menos dependentes das expulsões provocadas pela seca, incorporando em conseqüên- cia uma proporção maior de indivíduos economicamente ativos2. O estado de São Pau- lo funcionará como câmara de compensação entre os fluxos externos e internos de mão- de-obra, como o demonstram claramente os números da tabela abaixo. Praticamente nu- la entre 1900-1920, a migração líquida de brasileiros para esse estado é superior à imigra- ção líquida de estrangeiros no período 1920-1940. Tal é o contexto sócio-demográfico que conduz o governo paulista a eliminar a subvenção oficial à imigração em 1927. TABELA I A MIGRAÇÃO LÍQUIDA INTERNA E INTERNACIONAL ESTIMADA PELO MÉTODO DE SOBREVIVÊN- CIA CENSITÁRIA PARA OS ESTADOS NO BRASIL: 1920-1940 MIGRAÇÃO MIGRAÇÃO LÍQUIDA LÍQUIDA INTERNA E MIGRAÇÃO ESTADOS INTERNA INTERNACIONAL TOTAL DOS NATIVOS DOS ESTRANGEIROS AMAZONAS -24.694 -22.636 -2.058 ACRE -18.941 -18.071 -870 PARÁ -146.943 -146.141 -802 MARANHÃO 53.780 53.325 455 PIAUÍ -20.928 -20.975 47 CEARÁ 99.260 98.386 874 PARAÍBA 52.213 51.868 345 RIO GRANDE DO NORTE 30.665 30.416 249 PERNAMBUCO -55.543 -55.488 -55 ALAGOAS -160.718 -160.837 119 SERGIPE -29.761 -29.836 75 BAHIA -195.704 -197.659 1.955 MINAS GERAIS -625.146 -630.320 5.174 ESPÍRITO SANTO 38.621 35.429 3.192 DISTRITO FEDERAL 373.031 277.356 95.675 RIO DE JANEIRO -89.395 -103.086 13.691 SÃO PAULO 697.276 355.588 341.688 PARANÁ 140.667 109.168 31.499 SANTA CATARINA 96.500 83.251 13.249 RIO GRANDE DO SUL 198.830 165.964 32.866 GOIÁS 53.117 51.647 1.470 MATO GROSSO 52.546 46.799 5.747 BRASIL 544.759 0 544.759 Fonte: Migrações Internas no Brasil: 1872-1970 Grosseiramente simplista e o raciocínio que supõe que o país passou do trafico de escravos ao tráfico de imigrantes e depois entrou na dinâmica das migrações internas só por razões econômicas. Rematada bobagem é pensar enfim que os fazendeiros de on- tem, quando passavam a utilizar escravos, imigrantes ou nordestinos, se comportavam como os automobilistas de hoje, que mudam de carro a gasolina por carro a álcool ape- nas por custo marginal de rentabilidade. Todas essas transformações embutem projetos e expectativas sobre as relações entre o território, a população, a sociedade e a cultura. 18 NOVOS ESTUDOS nº 18
  • 3. TABELA 2 MIGRAÇÃO INTERNA E INTERNACIONAL LÍQUIDA ESTIMADAS A PARTIR DE TAXAS DE SOBREVI- VÊNCIA CENSITÁRIA, PARA OS ESTADOS DO BRASIL - 1900-1920 MIGRAÇÃO MIGRAÇÃO INTERNA MIGRAÇÃO INTERNA E INTERNACIONAL ESTADOS TOTAL LÍQUIDA LÍQUIDA DE DE NATIVOS ESTRANGEIROS AMAZONAS -17.130 -29.764 12.633 ACRE 50.735 47.873 2.880 PARÁ 111.249 93.382 17.867 MARANHÃO 32.274 31.419 855 PIAUÍ 4.043 -4.334 291 CEARÁ -75.895 76.170 275 PARAÍBA 43.623 43.293 330 RIO GRANDE DO NORTE 34.370 34.176 194 PERNAMBUCO 78.995 71.935 7.060 ALAGOAS -71.928 -72.059 131 SERGIPE -44.896 -45.115 291 BAHIA 115.515 -119.010 3.495 MINAS GERAIS -202.199 -221.456 19.257 ESPÍRITO SANTO 42.177 37.688 4.486 DISTRITO FEDERAL 143.912 55.322 88.590 RIO DE JANEIRO 20.711 6.251 14.460 SÃO PAULO 354.317 -19.933 374.250 PARANÁ 54.954 29.100 25.854 SANTA CATARINA 48.576 38.220 10.356 RIO GRANDE DO SUL 96.481 53.854 42.627 GOIÁS 29.990 28.549 1.441 MATO GROSSO 28.268 16.771 11.497 BRASIL 639.044 0 639.044 Fonte: Migrações Internas no Brasil: 1872-1970 Há entretanto uma linha vermelha entre essas diferentes etapas da formação do mercado de trabalho nacional. Com efeito, a ação do Estado imperial e republicano é fundamen- tal na reprodução das condições de produção e constitui assim o elo lógico da continui- dade dos sistemas sociais distintos que marcam a história brasileira. Exatas duas semanas após o voto da lei que suprime definitivamente o tráfico ne- greiro, o Parlamento vota a Lei de Terras. Em seguida é criada a Diretoria Geral das Terras Públicas, embrião do Ministério da Agricultura, fundado em 1862 com o fim específico de administrar a reciclagem do tráfico de escravos para o tráfico de imigrantes. A expres- são quot;tráficoquot; para caracterizar o movimento de imigração pode parecer excessiva. Trata- se entretanto de definição adequada, quando se considera o número elevado de imigrantes atados a seu futuro empregador brasileiro por dívida previamente contraída para pagar seu transporte ao Brasil, estada e transferência até as fazendas. A observação vale tanto para os portugueses que chegaram em meados do século XIX, quanto para os italianos vindos na virada do século3. Assim, quatro quintos dos 750.000 estrangeiros que che- 3 L.F. de Alencastro, Prolé- taires et Esclaves: Immi- garam a São Paulo entre 1889 e o começo do século tiveram suas passagens atlânticas grés Portugais et Captifs subsidiadas pelo governo estadual. Após a chegada esses indivíduos e suas famílias eram Africains à Rio de Janeiro canalizados à Hospedaria dos Imigrantes, situada na cidade de São Paulo, no entronca- - 1850-1872, Cahiers du mento de estradas de ferro que vinham do Rio de Janeiro e de Santos. Confinados à Hos- CRIAR, nº 4,1984, Pu- pedaria, sob vigilância policial, os imigrantes pernoitavam em quot;dormitóriosquot; — salões blications de 1'Université de Rouen, pp. 119-156. onde 600 homens, mulheres e crianças deitavam-se sobre esteiras — durante uma sema- na. Esse era o prazo concedido para que quot;escolhessemquot; um empregador da fronteira agrí- cola. Houve ocasiões em que a Hospedaria ficou entulhada com 10.000 pessoas, sujeitas SETEMBRO DE 1987 19
  • 4. A PRÉ-REVOLUÇÃO DE 30 a doenças que provocavam forte mortalidade, principalmente entre as crianças récem- 4 Thomas H. Holloway, chegadas4. Imigrantes para o Café, Rio de Janeiro, Paz e Ter- As duras condições em que centenas de milhares de imigrantes de todas as nacio- ça, 1984. nalidades foram quot;brasilianizadosquot; nas fazendas, por engenho e arte do Estado — que aparece assim como um quot;Super-Gatoquot;, empreiteiro de trabalho alheio — e dos proprietá- rios rurais formados por trezentos anos de escravidão, merecem ser ressaltadas para que fique convenientemente relativizada a chamada transição do trabalho escravo para o tra- balho livre. O trabalho dito quot;livrequot;, generalizado após a Abolição, não constitui propria- mente uma inovação. Formas variadas de trabalho compulsório, impostas a índios, ex- escravos e brancos pobres, foram amplamente utilizadas durante a escravidão. Aliás, é precisamente essa prática histórica que facilitará a transição do tráfico de escravos ao trá- fico de imigrantes, a passagem da sociedade escravista à sociedade patriarcal. A fundação do Ministério do Trabalho, em 1930, configura outro momento-chave da ação do Estado na organização do mercado de trabalho. A extinção do movimento sindical autônomo, a criação de uma estrutura sindical corporativa e oficialista, enfim e sobretudo, a instauração do salário mínimo em 1940 fornecem as condições necessárias para a organização dos fluxos intersetoriais de mão-de-obra (do setor primário para o secundário) no interior do país. Graças a esse aparato legal e burocrático o setor indus- trial urbano captará, a baixo custo, trabalhadores domesticados pela estrutura sindical 5francisco de Oliveira, governista5. Em 1862, o Ministério da Agricultura reorientava os fluxos internacionais Crítica i Razão Dualista. de mão-de-obra rural; em 1930, o Ministério do Trabalho passa a orientar os fluxos inter- 5? ed., Petrópolis, Vozes, 1987. nos de trabalhadores. Em 1862, o Estado recompõe sua aliança com os fazendeiros; em 1930, o arreglo é feito com os industriais. Dessa forma, a Revolução de 30 situa-se na convergência de uma dupla mutação. Em primeiro lugar, o mercado de trabalho se territorializa, fenômeno inédito desde o século XVII, quando o trabalho escravo africano começa a sobrepor-se ao trabalho for- çado indígena. Em segundo lugar, o Estado deixa de intervir na captação de proletários estrangeiros para cuidar do enquadramento do proletariado nacional. À luz dessas trans- formações compreende-se melhor o novo patamar ideológico onde evoluirá o debate político e cultural brasileiro. Enquanto o mercado de trabalho foi predominantemente alimentado pelo tráfico negreiro e pela imigração — enquanto a economia brasileira comia os trabalhadores crus —, o poder político encontrava-se em face de trabalhadores mantidos em situação de infracidadania. Nessas condições o discurso ideológico resumia-se praticamente ao diá- logo entre as classes dirigentes (a burocracia imperial e republicana) e as classes domi- nantes (as oligarquias regionais). A partir do momento em que a reprodução ampliada da força de trabalho se territorializa — quando a economia passa a comer trabalhadores cozidos —, o discurso ideológico não pode mais evoluir intramuros no estreito espaço do poder. Doravante era preciso uma quot;linha de massaquot;, uma ideologia que encobrisse o sentido e a orientação do cotidiano, que justificasse as relações complexas unindo do- minantes e dominados. Nacionalismo e patriarcalismo fornecerão o esteio ideológico da nova fase do mercado de trabalho brasileiro. A emergência de uma administração federal reforçada, o trabalhismo, o populismo varguista eficazmente propulsado pelo rádio (pe- la primeira vez todo o povo brasileiro ouve a quot;voz do donoquot;) veiculam o nacionalismo. Casa-Grande e Senzala fornecerá a teoria e a prática do patriarcalismo brasileiro. Durante o século XIX tentativas legais foram feitas no sentido de transformar a escravidão em servidão, através da fixação do cativo nas plantações. A dinâmica do mer- cado de trabalho não permitiu a implementação desta política, mas os parlamentares e o Trono procederam a um desvio semântico, intitulando os debates sobre a escravidão de debates quot;sobre a questão servilquot;. Descrevendo as relações entre senhores e escravos, Freyre faz total abstração dos fluxos comerciais que atravessavam as fazendas. O tráfico de escravos desaparece no topo da estrutura enquanto as variações da demanda de pro- 20 NOVOS ESTUDOS nº18
  • 5. dutos agrícolas somem da base. Cortada dos grandes rios do comércio internacional, a sociedade agrária do Nordeste, descrita por Freyre, torna-se um lago, um caldeirão de cultura. Reunidos em unidades agrícolas entorpecidas, senhores e escravos aproximam- se, atenuando a rudeza das relações de produção. Deste ponto de vista, a ausência de liberdade aparece como um inconveniente secundário para o escravo. Desprovidos da proteção patriarcal dos senhores, os homens livres e pobres das zonas rurais estão ex- postos a toda sorte de misérias. Falando das doenças e da subnutrição que atinge essa camada livre da população, Freyre nota que esses males quot;estenderam-se com igual inten- sidade aos negros e mulatos, somente após o descalabro da Abolição da escravidãoquot;. Diante dessa descrição, a analogia com a servidão russa salta aos olhos. Em O Cerejal,Tchekov dá a palavra ao bravo servo Firs, que pensava que a abolição da servidão na Rússia tinha sido uma verdadeira quot;infelicidadequot;: quot;quando fomos libertados... eu não quis saber de 6 Joaquim Nabuco, Obras Completas, São Paulo, Ins- liberdade, fiquei com meus senhores ... o servo esta ligado ao mestre, o mestre ao servo tituto Progresso Editorial, e agora cada um vai para o seu lado, não dá mais para entenderquot;. Outro pernambucano 1949, v. I, pp. 182-183. ilustre, Joaquim Nabuco, analisara entretanto a diferença radical que separava a escravi- 7 Esse artigo será seguido dão da servidão. Analisando o engenho pernambucano onde vivera,dizia: quot;receio que por um estudo sobre Casa-Grande e Senzala essa espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito an- que aparecerá num próxi- tigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, mo número de Novos Es- tudos CEBRAP. e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivesse feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo ... tal aproxima- ção (senhor-escravo) entre situações tão desiguais perante a lei seria impossível nas no- vas e ricas fazendas do Sul, onde o escravo, desconhecido do proprietário, era somente Luiz Felipe de Alencastro um instrumento de colheitaquot;6. Nabuco restringe social e economicamente e data histo- é pesquisador do CE- ricamente quot;essa espécie particular de escravidãoquot;. Freyre transforma quot;essa espécie de tri- BRAP e professor do Ins- tituto de Economia da bo patriarcal isolada do mundoquot; em tribo transoceânica, válida não só para o Brasil in- Unicamp. Já publicou nesta revista Geopolítica teiro, como também para o império lusitano. da Mestiçagem (nº 11). Como descrição da escravidão brasileira Casa-Grande e Senzala merece o respeito que se deve aos livros de história escritos há mais de meio século. Como obra seminal Novos Estudos CEBRAP da ideologia patriarcalista que envolveu o Brasil após as grandes transformações demo- nº 18, setembro 87 gráficas e sociais dos anos 30, o livro ainda tem belos dias diante de si7. pp. 17-21 SETEMBRO DE 1987 21