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O crime é um dos poucos fenômenos sociais que mais causamcomoção em uma sociedade. Ante a
repercussão social do delito, a prisão imediata do suspeito ganha aspectos de aplicação antecipada de pena,
surgindo a expectativa de punição severa e instantânea. Em tais situações, falar em presunção de inocência
significa ser uma espécie de estraga prazer do anseiocoletivo. Em outras palavras, a prisão processual, ou seja,
antes de uma condenação irrecorrível, parece ser, aos olhos do povo, uma punição pelo crime. O processo
torna-se mera formalidade a ser cumprida.

    Todavia, tanto o estudo da Constituição e da lei processual como a experiência forense mostram que a
prisão antes de uma condenação irrecorrível apenas se justifica em casos excepcionais, quando presente a
cautelaridade, que nada mais é que a necessidade de que o suposto autor do crime seja preso antes da
condenação. Tal necessidade se justifica quando o autor representa perigo à ordem pública, impede a correta
produção de provas ou poderá fugir, frustrando eventual condenação.

Ao contrário do que parece, portanto, a prisão processual não é antecipação da pena.Um homicídio com
repercussão social, muitas vezes, proporciona uma situação de perplexidade da opinião pública. Isso porque,
embora seja um crime grave que atinge o mais importante bem jurídico do ser humano, com frequência o autor
é uma pessoa que jamais havia cometido um crime e que não representa perigo social.

Não por acaso, os antigos diziam que o crime de sangue é o crime do homem de bem, o que se mostra correto
se observarmos que muitos homicídios são cometidos por pessoas que, até então, não haviam cometido um
crime e que não voltam a cometê-lo após o cumprimento da pena.Isso, porém, não quer dizer que esse autor
deva ficar impune. Apenas significa que não se pode prender uma pessoa em tais circunstâncias antes que sua
condenação seja definitiva. Claro que se um homem é acusado de ser pistoleiro profissional, a soldo do tráfico
de drogas, é necessário prendê-lo preventivamente. Mas, se é um trabalhador sem antecedentes que matou em
momento de exaltação, sua prisão, em regra, só deverá ocorrer após sua condenação tornar-se definitiva.

Em caso de prisões antes da condenação definitiva, sem cautelaridade, o que ocorre nada mais é que uma
antecipação da pena, em clara e violenta afronta ao princípio da presunção da inocência, insculpido
da Constituição Federal.Aliás, a Constituição de 1988 foi a primeira a estabelecer a presunção da inocência
como direito de todos. Apesar da modernidade da Constituição Cidadã, o Código de Processo Penal brasileiro
em vigor é um velho decreto-lei de 1941, editado em pleno Estado Novo e inspirado no Código Rocco, de 1930,
da Itália fascista. Ele continha regras de prisão automática que foram, gradativamente, sendo abolidas.
Primeiro, pela interpretação constitucional da lei; depois, por meio de mudanças legislativas.

Contudo, não são poucos os que, consciente ou inconscientemente, parecem resistir àConstituição,
pretendendo que se aplique a prisão processual baseada na gravidade ou na repercussão social do crime.
Tendo em vista a polêmica questão da constitucionalidade das prisões cautelares, e o princípio constitucional
da presunção de inocência. Lembrando é claro da paridade hierárquica entre a possibilidade de custódia
cautelar e o princípio da não-culpabilidade, bem como do caráter excepcional das prisões provisórias,
discorrendo de certa forma acerca da legitimidade do Estado em suprimir direitos e garantias constitucionais do
réu em sede processual penal, sem perder o foco ou a visão no "direito penal do inimigo".

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