1. ESPAÇO DE SOCIABILIDADE
Mercado Central: “Se Minas não tem mar, vamo pro bar”
Fernando Ribeiro Pinto1
Resumo: Análise da sociabilidade cultural dos bares do Mercado Central frente ao
frenético movimento urbano e individualista no cotidiano de Belo Horizonte e na
história da cidade.
Palavras chave: Mercado Central; sociabilidade; bar.
Este artigo tem como objetivo discutir a sociabilidade existente em um
dos principais guetos urbanos2 de Belo Horizonte, os bares do Mercado
Central, onde as diferenças econômicas e raciais há muito estão extintas.
Belo Horizonte é famosa pelos seus mais de 12.000 bares espalhados
pela cidade, sendo considerada como a “capital dos botequins” atingindo “uma
quantidade per capita maior que a de qualquer outra cidade do país” (KUGEL:
http://www.bardoveio.com.br/NY.html). Fato que faz crescer cada vez mais o
ditado popular “se Minas não tem mar, vamo pro bar” recitado entre os jovens
de até 100 anos de idade pelas noites belo-horizontinas.
No Mercado Central, além da comercialização de hortifrutigranjeiros,
animais, flores, grãos, temperos, embalagens, peixes, material para limpeza,
artigos de decoração, artesanatos, etc. totalizando por volta de 389
estabelecimentos, movendo um total de 2200 trabalhadores todos os dias e
uma renda de R$ 9 milhões a R$ 12 milhões por mês, há também os mais
famosos bares e restaurantes da região central de Belo Horizonte, somando
um total de 17 estabelecimentos dentro do quarteirão fechado do Mercado
central, localizado no quadrilátero limitado pelas ruas Curitiba, Santa Catarina,
dos Goitacazes e Avenida Augusto de Lima.
Os principais bares e restaurantes do local são: o bar do Mané Doido;
restaurante Casa cheia; o Bar Mercado Central e o Bar São Judas Tadeu.
1
Graduando do 3º período de História do Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH. Trabalho
para a disciplina Etno-História, ministrada pelo professor José Humberto Rodrigues.
2
Gueto Urbano: Onde são confinadas certas minorias por imposições econômicas, culturais e/ou raciais
nas grandes cidades
2
2. Longe dos bairros nobres da capital, como a Savassi, onde se localizam
os bares nobres da cidade, marcados pela elegância e pelo nível de seus
fregueses, como contra ponto, os bares do Mercado Central adotam uma lógica
quase que contrária a esses bares da cidade, por funcionarem somente
durante as horas úteis do dia (iniciando o funcionamento por volta das 10 horas
da manhã e finalizando às 18 horas) e por serem marcados pelo desconforto,
pois a maioria dos estabelecimentos não há mesas tendo o freguês de tomar
sua cervejinha e deliciar-se com seu tira-gosto de pé em um espaço mínimo,
muitas vezes acotovelando-se com outros fregueses. Pensamos que esse
caráter pode ser um fator desanimador para o freqüentador, mas muito pelo
contrário, é aí que nascem grandes amizades como um exemplo entre o
vendedor de rua e o advogado na hora do almoço ou no horário de lazer. É
como destaca Eduardo Costa a comodidade dos estabelecimentos:
As horas passam. Aos poucos, o público vai mudando de lugar:
diminui nas outras áreas e cresce geometricamente nos bares.
Agora, fica até difícil entrar pela Santa Catarina e pela Curitiba,
que concentram o maior número de freqüentadores. Em um
dos bares, com o carrinho de compras de um lado e o filho de,
aproximadamente, 10 anos, o secretário de Finanças da
Prefeitura de Belo Horizonte, Júlio Pires, acena e acrescenta:
Tá quente, mas tá bom. Está é outra característica constatada
instantaneamente e que nos proporciona tanta curiosidade:
pessoas de diferentes origens que se ajeitam, em pé, nas
escassas cadeiras ou em bancos improvisados, para
“bebericar” e trocar idéias. E é visível o espírito de colaboração,
com o “dá licença”, “pode encostar”, “chega aí”. (COSTA, 2007,
p.50)
Tornando o local um dos poucos lugares que reúnem todas as classes
sociais da cidade sem discriminação, mesmo nos finais de semana quando o
movimento é feito especialmente por pessoas da classe alta da cidade, não
vemos nenhuma reclamação de destrato. Vemos nos trechos a seguir de duas
reportagens feitas por Marcela Souza e Karla Mendes respectivamente, que
quem freqüenta os bares do mercado, não estão muito interessados nos
produtos que estão consumindo (que são de excelente qualidade), mas no
ambiente acolhedor:
Os botequins também fazem enorme sucesso entre os
freqüentadores. Apesar da sujeira e do desconforto, eles vivem
3
3. lotados, especialmente aos sábados. São estudantes,
executivos e operários que não abrem mão de um chope
gelado e um belo prato de torresmo. “O ambiente aqui é
descontraído e te deixa muito à vontade”, explica o estudante
de Economia Lúcio Garcia Caldeira. (SOUZA, 1993, p.5)
“Recebemos todo tipo de público, mas no sábado, predominam
os cervejeiros de classe média alta e alta e, no domingo, o
público é a classe A” diz [Macoud Patrocínio]. (MENDES, 2007,
p.6)
Uma vez dentro do Mercado Central, o mau humor não é bem-vindo, o
ritmo de vida é totalmente diferente que o da cidade que o cerca, pessoas
totalmente sem pressa, sempre abertas a uma boa conversa em qualquer um
dos bares sempre lotados a qualquer hora e qualquer dia da semana.
Tornando-se uma atraente terapia para o corpo, alma e mente, principalmente
para quem quer curar sua ressaca com outro “porre” depois de uma noite
agitada.
A maioria das pessoas que entram pela primeira vez nos corredores
escuros do Mercado Central, talvez tenha um único objetivo, fazer compras.
Mas como todo bom mineiro cultiva a cultura do boteco, a maioria acaba sendo
seduzido pelo cheiro do tira-gosto feito na hora misturado aos cheiros de frutas
e legumes. As pessoas acabam por tomar gosto pelo lugar, voltando outra vez
por puro prazer de tomar uma cervejinha e ter um “dedo de prosa” com outros
freqüentadores. É como destaca poeticamente Fernando Brant:
O paladar se aguça diante da visão de queijos, peixes e
carnes, panelas e frigideiras fritando e cozinhando o tira-gosto
que vai se casar com as cervejas geladas e as melhores
cachaças do mundo. (BRANT, 2004, P.5)
Muitos sonhos nascem e são despedaçados pelos corredores do
Mercado Central, associações são fundadas em conversas distraídas, músicas
e poesias são compostas nos guardanapos por celebres freqüentadores que
passam despercebidos por todos, etc. Assim o inusitado faz a rotina de bar em
bar. Brant destaca dois de seus companheiros de copo:
Era um daqueles dias amentos em que agente ganha de
presente a conversa solta e inteligente de amigos, na
companhia de uma cerveja bem gelada, tendo como cenário o
espetáculo de cores, luzes e cheiros do Mercado Central.
4
4. Comigo estavam o escritor Sérgio Sant’Anna e o compositor
Tavinho Moura. (BRANT, 2004, p.21)
Para quem ganha a vida compondo, é impossível freqüentar o Mercado
Central e não compor nada, mesmo que seja um rascunho sem compromisso.
Mesmo estando dentro de um bar no Mercado Central, o sentido de
família não é perdido, como destaca Eduardo Costa:
Um grupo de amigos – na sua maioria juízes e
desembargadores – liderado por Ayrton Maia, que se
acostumara a reuniões improvisadas “num cantinho” da loja do
Rei da Feijoada, decidiu buscar um espaço mais organizado.
Então, alugou uma loja nas imediações com o único objetivo de
ali se reunir nas manhãs de sábado. Não durou muito.
Ninguém entrou em detalhes, mas conta-se que alguns, “mais
empolgados”, começaram a levar mulheres (que não eram as
respectivas esposas) para o encontro. Devolveram a loja e
voltaram ao improviso, explícito, apertados em uma pia da loja.
Afinal, como sempre afirmava o doutro Ayrton, “o Mercado é
bom exatamente porque aqui há respeito, sentido de família”.
(COSTA, 2007, p.31)
12 bares do Mercado Central participam do festival municipal “Comida di
Buteco” e do festival nacional “Bar em Bar” com seus principais atrativos, o
melhor da comida mineira, o último festival mencionado é realizado no
estacionamento do Mercado Central atraindo pessoas de todas as
nacionalidades entre os dias 29 de outubro a 05 de dezembro, juntamente com
42 estabelecimentos da capital, a fim de popularizar pratos e proporcionar mais
investimentos e inserção de mais um atrativo da capital na cena turística de
Minas Gerais.
Dos festivais gastronômicos, são participantes os bares e pratos: Bar
Café Requinte, "Tá no Jiló"; Bar Campinho, "Xodó do Mineirinho"; Bar da Lora,
"Mistura da Lora"; Bar da Tia, "Mistura da Tia"; Bar do José Maria, "Casadinho
de Fígado"; Bar do Pelé, "Balaio de Gato"; Bar e Restaurante Casa Cheia,
"Porconóbis de Sabugosa"; Bar Fortaleza, "Fígado com Jiló do Fortaleza"; Bar
Fortaleza II, "Figueiredo do Perereca"; Bom Bar, "Fígado Acebolado Estilo
Mercado Central"; Bom Grill, "Carne de Sol à La Bom Grill"; Rei do Torresmo,
"Pururuca Mineira".
Este lugar mágico que é o Mercado Central, é um dos raros lugares em
uma cidade do porte de Belo Horizonte onde não há fronteira entre o pobre e o
5
5. rico, talvez o único lugar onde a democracia é exercida em sua plenitude, onde
a sensibilidade é aflorada e a gentileza é o primeiro mandamento, não
importando se você está de terno ou chinelo, o atendimento sempre será o
mesmo, não importa se você seja um velho freguês ou que esteja só de
passagem, sempre será surpreendido com um bom dia ou boa tarde, um
sorriso sempre sincero que despertará a vontade de sempre retornar. O
Mercado Central há muito tempo descobriu que a chave do sucesso não está
só na ótima qualidade da mercadoria que vende, mas nas pessoas que cativam
através de um bom atendimento.
Porém, o Mercado Central não nasceu com a dinâmica que vemos hoje,
ele foi inaugurado em seu atual endereço no dia 7 de setembro de 1929, com o
objetivo de abastecer com gêneros alimentícios a jovem capital mineira. Na
primeira metade do século XX, o Mercado Central era freqüentado somente por
pessoas da classe baixa, trabalhadores do próprio mercado e empregadas
domésticas, tomando as características de um gueto urbano, como destaca
Fernando Brant:
Lauro Filogônio, veterano freqüentador do Mercado Central,
conta que, nos primeiros tempos, as mulheres donas de casa
não apareciam por ali. Eram tempos de costumes
engravatados, de formalidade e moralismo. Só as empregadas
domésticas enfeitavam o ambiente, com a graça que toda
mulher possui. Bem antes da hora do almoço, lá vinham as
moças, com listas de compras e dinheiro ou cadernetas de
débito no bolso. Cumprida a tarefa, elas voltavam às
residências para providenciar o almoço das famílias. (BRANT,
2004, p.10)
Quando o mercado foi transferido para a então Avenida Paraopeba
(Augusto de Lima), acabou se tornando alvo de condenação, pois do outro lado
estava instalado a Escola de Aperfeiçoamento de Professores, como enfatiza
Eduardo Costa:
Na frente do Mercado Central, do outro lado da Avenida
Augusto de Lima, onde hoje existe o Minascentro, a avenida
abrigava – nos tempos em que se chamava Paraopeba –
primeiro, a Escola de Aperfeiçoamento de Professores, depois,
a Secretaria de Saúde. Quando o Mercado foi ali instalado,
houve quem condenasse, porque não era exatamente um
ambiente adequado para ser visto pelas “mocinhas” que
estudavam do outro lado da avenida. (COSTA, 2007, p.31)
6
6. Na primeira metade do século XX, a diversão da classe alta se
concentrava na área boemia da cidade, na rua da Bahia e adjacências,
principalmente no Bar do Ponto. O Bar do Ponto, era o ponto de reunião
preferido de intelectuais, como Carlos Drummond de Andrade, onde as
conversas giravam entorno das prioridades da jovem capital:
Em pesquisa em jornais e revistas das primeiras décadas,
constata-se que a grande feira não era prioridade dos que
faziam a crônica da cidade. Carlos Drummond de Andrade, por
exemplo, publicou, sob os pseudônimos de Antônio Crispim e
Barba Azul, entre 1930 e 1934, textos que falavam sobre
espetáculos do Teatro Municipal, filmes do Cine Glória e
conversas do Bar do Ponto. (COSTA, 2007, p. 32)
Um dos primeiro bares a serem abertos, foi o Gato Preto em 1930, em
1948 foi inaugurado o Bar do Juca Pato, do espanhol Floreal, na década de
1950 funcionou o Café do Seu Noé, muito conhecido pelos seus pastéis de
carne, queijo e palmito. O principal público desses bares eram os próprios
trabalhadores do Mercado, mesmo com abertura de bares, o movimento quase
não mudou.
A barreira que separava a classe alta da classe baixa dentro da Avenida
do Contorno, começou a ser demolida aos poucos depois da década de 1950,
por um lado pela chegada de sacolões e supermercados à capital, e por outro,
pela perda do brilho da zona boemia da rua da Bahia, pelo fim do Bar do Ponto
e outros pontos.
Com a chegada dos supermercados e sacolões, a função do Mercado
Central começou a perder o sentido, pois não era mais o único ponto de
abastecimento da cidade. Assim a decadência do quarteirão iniciou-se. Para
sobreviver, ele começou com um longo processo de diversificação dos
produtos depois de sua privatização na década de 1960.
Foi somente depois da finalização da construção da estrutura de
concreto na década de 1970 que o mercado alcançou a diversificação de sua
clientela, com a abertura de outros bares e os primeiros restaurantes como o
Casa Cheia também aberto nesse período depois dos conselhos de um amigo:
7
7. “Ô mulher, compra um fogão, umas panelas e faz comida pra
vender pra esse povo, você vai ganhar dinheiro com isso”. De
tanto ouvir essas palavras do fornecedor de queijos de Campos
Altos, Maria Nazaré de Jesus passou a investir em um negócio
que mudou sua vida. (BRANT, 2004, p.60)
Da década de 1970 até os dias atuais, ocorre a cada geração uma
fantástica “descoberta” cultural do Mercado Central, principalmente de seus
botecos, onde muitos dos freqüentadores de hoje são filhos e netos da antiga
classe alta que freqüentava a antiga zona boemia da Rua da Bahia.
Em 2005, foi constatado em algumas pesquisas3 realizada com 700
pessoas em dias diferentes da semana, dos quais 67,6% dos freqüentadores
estão entre a faixa de 21 a 50 anos de idade, 33,9% visitam o local
semanalmente, 44,2% visitam por lazer e/ou encontrar amigos, 42,6% não vão
acompanhados, 40,4% sempre encontram conhecidos e 65,8% sempre estão
dispostas a conversar com pessoas desconhecidas. Tornando-se um local
eclético culturalmente, agradável de visitar e de sempre retornar para encontrar
amigos, fazer novos e sociabilizar-se nos bares apertados do Mercado Central.
Quando circulamos pelos corredores do Mercado Central, síntese de
toda a cultura existente nas Minas Gerais e de todo o Brasil, podemos ver um
grande número de idosos andando calmamente pelo local, ou sentados nos
balcões dos bares tomando uma cerveja gelada, com ar de nostalgia e
felicitados por estarem ali, esperando por alguém que queira perder (ganhar)
tempo em um “dedo de prosa” e saber um pouco mais sobre a história e sobre
os causos de toda aquela gente.
3
Pesquisa registrada no livro: Mercado Central: A convivência entre iguais e diferentes, páginas: (67-75)
8
8. Referências:
BRANT, Fernando. Mercado Central. Belo Horizonte: Conceito, 2004. 79 p.
(BH.A cidade de cada um ;v. 2)
COSTA, Eduardo. Mercado central: a convivência entre iguais e diferentes.
Belo Horizonte: Edição do autor, 2007. 80 p.
BRITO, Fátima Rosângela Salada de Moura. Estratégias de fidelização de
clientes no Mercado Central. 2001. 57 f. Monografia (Pós-Graduação) –
Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH, Belo Horizonte.
MENDES, Karla. Mercado Central, Quase um shopping. JORNAL ESTADO DE
MINAS. Belo Horizonte, 13 maio, 2007. Economia, p. 6.
SOUZA, Marcela. O inusitado faz rotina. Revista Múltipla, Belo Horizonte:
FUNDAC-BH, v. 3, n. 2, p. 4-5, junho de 1993.
BAR do Véio. Desenvolvido por: KUGEL, Seth, 28/10/2007. Apresenta
informações e notícias sobre o Bar do Véio. Disponível em:
<http://www.bardoveio.com.br/NY.html>. Acesso em 20 abr.2009.
UOL Notícias. Desenvolvido por: BRAGON, Rayder, 09/05/2008. Portal de
notícias. Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/05/09/ult23u2215.jhtm>. Acesso em 20
abr.2009.
URBANISTAS/BH. Desenvolvido por: MARTINS, Frank et al, 28/10/2008. Blog
sobre Belo Horizonte. Disponível em:
<http://urbanistas.com.br/bh/2008/10/28/quem-nao-tem-mar-vai-pro-bar/>.
Acesso em 20 abr.2009.
9