O documento descreve a história de Franz E., um jovem nascido na Suíça cujos pais se mudaram para Portugal após o nascimento dele. Franz cresceu na região do Minho e passou por uma infância solitária, sonhadora e insegura. Apesar de ter talentos artísticos, Franz nunca conseguiu terminar projetos devido à falta de confiança em si mesmo. Ele passou pela escola sem chamar muita atenção e manteve-se ocupado com paixões intensas.
3. fraco (lat. flaccu, mole), adj. sem
força; débil, franzino, delicado;
cobarde; brando, mole, frouxo;
insignificante; sem importância;
leviano, pouco atilado; que se ouve
para ti
mal; defendido ou indefeso; que tem
pouco álcool; pouco substancioso; s.
m. indivíduo sem vontade, sem
persistência; pendor, inclinação passa
condescendência ou indulgência
excessivas; defeito; parceiro que, no
jogo do voltarete, compra cartas
depois do forte.
in Dicionário Universal , Língua Portuguesa, Texto Editora
3
4. 1ª Parte: Franz E.
1ª Parte: Franz E.
Quem não sofre, vende o vento; a quem respira
o segredo e a dedicação, entrego aqui o meu
apreço e a minha história.
Franz E. nasceu em meados do Inverno de 1967, no frio do Norte, Berna,
Suiça. Um ano após o seu nascimento, os pais, jovens, Karl E. e Maria Mayte,
socialmente desconfiados, perante as notícias vindas da Alemanha e que
falavam das crescentes manifestações, sobretudo juvenis, que apelavam para a
quebra d’O Silencio sobre o holocausto e a Culpa Alemã, manifestações que
pareciam esconder uma onda regional-imersa de neonazismo; e absorvidos na
perspectiva aterradora, associada ao desenvolvimento industrial,
escarrapachado no jornal: "num raio de cem quilómetros existe sempre uma
central nuclear"; reúnem as suas economias e decidem partir; rumam a Itália,
para junto do pai de Maria, funcionário da embaixada francesa, procurando
algum conforto familiar. Após algum tempo, reconhecem num encontro com
amigos espanhóis o significado da origem hebraica de Maria; tomando isso
como uma insinuação para o futuro da família, tomam o regresso às terras do
Sul como um destino saudável.
Karl, apesar de suíço, não enjeita a hipótese da Espanha como destino.
As razões disso escondem-se na sua memória. Fora Arquitecto na Alemanha
antes deste período de transição; filho de judeus alemães; durante a fuga de
seus pais para os EUA, meses antes do eclodir da Segunda Guerra, passam por
Portugal de onde guardam a beleza profunda do país e a sua hospitalidade; a
infância de Karl encontra-se ponteada com os relatos apaixonados de seu pai
4
5. 1ª Parte: Franz E.
sobre esse breve acontecimento e na sua adolescência visitam Portugal,
Espanha, e receosos, também a França; absorvido com essa magia, Karl
decide, com o apoio do pai e após os seus estudos, regressar à Europa;
regressar, apenas e só, mas não à génese da família; acolhem a Suiça: Berna,
um lugar de cultura muito intensa, onde Karl se adapta na perfeição,
adquirindo algum sucesso no planeamento arquitectónico daquela cidade; após
alguns anos de intensa actividade, o pai falece; ficou só. A sua mãe já só
existia na memória desde a fuga para os EUA, depois de ter gravemente
adoecido na viagem marítima entre a costa portuguesa e a terra prometida. As
terras do Sul fazem parte da sua memória mais feliz e a Solidão removia-se
com Maria...
Partem após os preparativos indispensáveis. Nos dias seguintes,
enquanto esta jovem família à procura de um ninho, atravessa mais de metade
da Europa à velocidade das grandes paisagens que se perdem num único olhar
através da janela, Karl revive, na sua própria voz, e esgota-se com nostalgia
nos relatos sobre as terras quentes; procura repeti-los, esforça-se por repeti-
los para aquela plateia exausta: o seu filho, Franz E., de nariz encontrado com
o vidro húmido da manhã e olhos postos na paisagem, e a sua mulher de olhos
ansiosos, procurando esconder a insegurança; os de Karl molhavam-se por ser
assim o tempo, jamais regressar... estremecia com a família nas mãos... mas
não desistia perante as dificuldades do novo, antes insistia, exasperadamente
admirado, ante essa dimensão refrescante e jovem. Durante a travessia de
Espanha apaixonaram-se de novo.
Maria aceita a ideia do marido fazer escala no Porto onde outrora passara
tempos de ansiedade com os seus pais, e já a caminho da Galiza... recebem a
notícia, depois de uma breve indisposição assistida por um simpático médico
5
6. 1ª Parte: Franz E.
daquele lugar: Maria estava grávida; renunciaram a prolongar a sua fuga;
resignados ante beleza da região minhota e enamorados resolvem Caminha
como berço da filha e aceitar o destino assim.
E sobre este casal, 1963, com trinta e dois anos, Karl apaixona-se por
Maria, num encontro muito breve, na embaixada francesa na Suiça; Karl
viajava bastante, procurava sobretudo ocupar a solidão com a magia das
viagens. Após esse incidente, aquele flash mudo que se espalha pelo corpo
todo deixando marcas, por dentro e por fora, Karl enlevado pela coincidência
feliz, inventa complicações com o seu passaporte e incentiva assim a
frequência dos encontros; com uma audácia inesperada, até para ele próprio,
convida-a para um almoço; Maria corresponde aos galanteios, Karl parece
servir-lhe muito bem.
Convém ainda acrescentar uma nota sobre o tempo que se vive na
infância de Franz; são caminhos de tempo penoso e histérico de uma região
longe dos restos de uma profunda alteração em toda a estrutura da Europa e
que invade Portugal muito tarde: a Revolução dos Cravos procura uma data
para o nascimento, palavras como “Democracia” borbulham nas conversas
escondidas: em Portugal vive-se um clima de medos, vinganças, represálias, e
a geração que sofre esta mudança abrupta, carece da capacidade de distinguir
a disciplina da autoridade, afinal, a distinção entre "sim" e "não"; em todos os
"Lugares" o sistema sofre desta atrofia que durará mais do que uma geração.
No início, o espírito é um misto de júbilo e confusão enquanto não repousa o pó
da revolução. A sociedade é esta e a terra portuguesa permanece intacta no
afecto ao olhar do estrangeiro, exactamente no momento em que se inicia o
6
7. 1ª Parte: Franz E.
percurso deste fraco relatado na história que se segue.
O delta do rio Minho não era o berço, mas seguramente, pelo passado
dos progenitores e pela sua educação, é um minhoto. Falo de Franz E. ou,
melhor, do português Francisco E.: após complicações com o seu nome no
consulado português em Espanha, o pai resignara-se a utilizar o nome católico
mais próximo de Franz; apesar disso integrou-se no ambiente Minhoto com o à
vontade de Franz.
Franz viveu ao sabor das marés; em ciclos; ciclos extremados pela
admiração e pelo susto, e no meio ocupado pela dúvida; assustado com a
grandeza efémera de todas as imagens a que assistimos, uma após outra
acossado pela fronteira do tempo; admirado com o facto, aliás, assimilado por
ele, que do outro lado daquele solene deslize de águas, vivessem outros seres
tão inacessíveis para a sua idade que só eram representados como heróis,
através do sonho visionário e da euforia que os sons e as histórias dos mais
velhos transportavam; do outro lado ouvia-se o comboio; por diversas vezes,
acordava durante a noite com estes sons: que lhe adivinhavam os lugares
mágicos de outros mundos. Outras vezes parava junto ao mar no interior do
areal extenso, fitando o majestoso que se insurgia defronte à costa,
intempestivo e incansável, era o mar que ordenava a vida na terra, pensava. E
depois dele, que outras pessoas, que outras terras, distantes, novas e
aventurosas. Ou então perdia-se com os pescadores que resmungavam
histórias de tempos remotos, de idas gloriosas à terra prometida; ali tudo era
matéria-prima para os seus heróis mergulhados num mundo ideal e com um só
caminho: o do conhecimento, da justiça e da liberdade. Perdia-se na leitura das
biografias extravagantes e iluminadas dos génios. Ou então, tomava os ventos
7
8. 1ª Parte: Franz E.
marítimos e passeava sobre os caminhos à volta das terras cultivadas, com a
erva debaixo das botas e o cheiro a terra molhada das primeiras chuvas, os
olhos vagos sobre aqueles lugares; estas visitas, tomava-as por hábito. Na
maior parte das vezes, bloqueava-se a mente, ruminava os seus pensamentos
grudados na dúvida cerrada e encerrada: esquecia-se que era um humano e
vivia na mente.
Era socialmente inibido; procurava um canto silencioso para sonhar. O seu
modo de ser independente afastava-o da multidão, percorria-lhe no interior um
terrível sentido de inferioridade, que cultivava perante os outros, talvez sem
querer, mas o facto é que Franz aceitava a sua derrota antecipada, mesmo
antes do combate com os outros; escondia as suas capacidades, embora as
incentivasse, não só, nas leituras de biografias demagogicamente semelhantes
à sua vida e ao seu modo de ser, como também no incremento do seu
conhecimento sobre a Natureza. Ainda procurava aceitar essa mesma derrota
de uma terceira forma: com entusiasmo iniciava-se em inúmeras tarefas mas,
tomava o cansaço (natural após muitas horas de intensa actividade) como um
sinal negativo e por fim, não aceitava o termo do trabalho como um objectivo
essencial: a sua formação combinava-se nestes interregnos néscios de um
adolescente desconfiado de si mesmo. Observava os outros, espantado com a
sua grandeza e sensibilizado com as suas fraquezas, e procurava expor o seu
olhar através da arte: por isso desenhava ou escrevia, interessava-se,
sobretudo, pela máquina de escrever; nunca a sua alma era determinada e,
desconfiado dessas vontades, retomava outra tarefa. Um episódio revelador do
seu espírito conta-se assim: começou por desenhar por estímulo de um
vizinho, e um dia, a sua professora, admirada pela qualidade do desenho, quis
saber mais mas, à sua pergunta “Fazes tudo isso mecanicamente?" balbuciou
8
9. 1ª Parte: Franz E.
um "sim", renunciando ao mais íntimo do seu ser, à sua alma de artista,
fugindo à batalha de provar àquela professora o seu valor, a sua destreza e o
seu amor por esses olhares sobre o mundo: jamais tomou como seu aquilo que
a sua alma determinava que se fizesse, navegou ao sabor dos olhares à sua
volta, como um barco que renova o seu rumo de instante para instante: a falta
de confiança vinha assim, nenhuma tarefa terminava, e também, nenhum
sucesso era gratificado, porque nem lugar existe para o sucesso quando
nenhuma obra se termina: de modo algum acreditava na realidade dos
comentários que outros faziam como "...o rapaz do brilho nos olhos...": de
modo algum acreditava na validade da sua directiva e a falta indeterminação
sobre uma decisão detinha este rapaz no caminho rumo ao objectivo. A decisão
era dificil e indecisa, e muito menos prosseguia seguro sobre o que lhe era
determinado pelo pensamento; de modo algum acreditava nos seus talentos e
resignava-se à ideia de que os outros eram superiormente dotados. Balanceado
por inúmeras tarefas inacabadas, desconfiado das directivas que a alma lhe
fornecia através dos pensamentos, restava-lhe o sonho e, apesar disto tudo,
nesse espaço visionário era um rei de si mesmo; resiste no narrador uma
estranheza relativamente a Franz: o facto de ainda sonhar apesar de toda a
falta de concretização dos seus projectos: sem o começo e o fim de uma tarefa
não há confiança que se construa.
Passou pelos estudos como uma tempestade, sem chamar sobre si as
atenções e muito menos com brilhantismo; assegurou sempre o mínimo para
ultrapassar as barreiras necessárias; os professores gastavam-se em frases
reiteradas, gastas ano após ano: "...poderia fazer muito melhor... ",
prolongadas com meneios de cabeça e faces momentaneamente contraídas a
condizer com a frase e com a sua impossibilidade como tutor para modificar ou,
9
10. 1ª Parte: Franz E.
até, como modo de esconder por detrás dessa incapacidade, um real desdém
pelo aluno: o "suficiente" era já um estigma a que os professores se haviam
habituado quando o recebiam. Apesar destas criticas, o facto é que a indolência
e o alheamento eram parte de si, a aprovação suficiente era um lugar comum a
que se habituara e, na verdade, era seu por direito próprio, nunca demonstrara
outra atitude; dominado pelas súbitas paixões arrastava-se pelos estudos e,
nalguns casos pontuais, obtinha algum sucesso, embora nada significasse. De
paixão em paixão, mantinha-se ocupado. Os arquétipos sexuais alimentados
pelas imagens femininas dominavam-lhe o espírito; modelavam o carácter;
imprimiam a sua história: assistiram-se a paixões e todas extremas, activas,
quentes, e no fim, laminarmente dolorosas, mas nada detinha o ser que assim
se extinguia, enviando-o pelos caminhos do sorriso e da loucura, pelos
caminhos inseguros e armadilhados da paixão. Apesar disso, os estudos não
eram afectados, mantinha-se "suficiente" como era, e no interior desta
inevitabilidade não percebia que a realidade lhe fecharia os horizontes largos
da sua imaginação. As festas sucediam-se regularmente enquanto a idade
avançava sobre o abismo do nada; sem perceber e apesar dos inúmeros avisos
dos outros, continuava a sua alegria hipócrita, a sua loucura risada, e só mais
tarde irá compreender o verdadeiro significado dos avisos e da amizade que
esses outros demonstravam: irá vingar-se em si por ter negligenciado com
desdém a voz daquela mulher
aquela mulher divina, grande, grandiosa,
agora só impressa e
repousada na sua memória.
Decidiu viajar pelo país; encontrar outras gentes por se encontrar
saturado da vida que levava; de cada viagem regressava alimentado
10
11. 1ª Parte: Franz E.
pela alegria do novo, dos acontecimentos por que passara,
e dos lugares admiráveis por onde rejubilara o olhar. No entanto, o êxtase
transmudava-se para o visionário-ansioso de outras viagens idênticas; a
viagem era alimento para o sonho mas não o era para nenhuma realização
concreta: não sentia necessidade de realizar a sua vida real pois a sua
sobrevivência permanecia assegurada. Mas o facto é que olhava o céu, absorto,
extasiado pela sua dimensão e magia enquanto que o rebanho se dispersava
nas encostas agrestes da montanha; enquanto viajava alimentava esta alegria
pueril, e quando o espírito perscrutou a realidade, num dia escuro de Inverno,
aos 25 anos, observou a sua tragédia, observou a inutilidade real do ser que o
adorna, observou a sua própria vanidade, até insignificância, observou em si a
fraqueza que inúmeras vezes perscrutou nos outros: não se alimentava, o pão
que comia não era o pão que o seu trabalho dava: essa era uma realidade
hostil a si como homem, não sobrevivia à sua custa; e essa realidade física,
essas talas, modificariam a sua vida futura. A Natureza deixa ao homem esta
inevitabilidade, a de se mover, enquanto a tez é enrrugada de constragimento e
insegurança, num corpo curvado, cheio pelo sorriso malicioso, de quem sabe
que tem futuro, que o futuro é seu e ainda o desconhece, embora de corpo
recostado, sei-lhe o interior cheio de vitalidade para romper o futuro e cultivar
nos campos o pão que lhe arrasará a fome, a ele e principalmente aos seus.
Travou-se o início da tragédia.
11
12. 2ª Parte: A viagem.
Ao grito da Natureza, sincero e objectivo,
contraponho a gargalhada escrava da
hipocrisia.
Lá fora a Natureza acompanha a alma de mim; o cinzento enche as ruas,
as calhas transbordam, e nem as janelas se podem abrir de tanta chuva tocada
a vento; passam horas e a tempestade agoniza-se mais ainda. Que raiva e ódio
sinto pela face e pelo sorriso hipócrita que teima em ficar nesse espelho, que
teima em ficar nesse espelho, são meus, este corpo e esta face, e o espírito, as
fraquezas também... tudo! Vivo em lama... como se um caixão me adornasse a
forma do corpo crispado. Não se esqueçam (falo para ti), estamos
comprometidos com um caminho único, e que só a aparente diversidade de
escolha pode justificar a alegria. A tempestade aumenta de vigor como previa.
Espalhasse por terras distantes. As pessoas correm a proteger-se da miséria.
Antes guardaram os animais avisados do perigo; recolheram serenos aos
abrigos seguros; há muito que estavam excitados sem que se percebesse
porquê. Os pequenos barcos recolhidos saltitam na noite, a luz ténue dos
candeeiros transformam-nos em pequenas silhuetas frágeis no porto de abrigo.
O mar revolta-se, as ondas espumam, a água agita-se por entre a loucura, o
vento sopra e a noite encerra segredos. Vai ser difícil para muitos. Para aqueles
que trabalham no mar, para aqueles que não têm abrigo, para os outros cujas
culturas dependem do tempo; desprezamos o valor desse sofrimento; desse
trabalho que escorre e enlaça nas suas mãos; ainda assim, surdamente,
12
13. 2ª Parte: A viagem.
porque não me ouvem, desejo-lhes sorte!, e lamento, desconhecer as forças
que dominam o seu e o meu destino.
Recordo a ave do tempo poisada no parapeito da minha janela, segura e
leve, esse animal da Natureza que anima o ser - "É tempo de partir mais uma
vez" - diz-me em segredo e cadenciadamente, como se fosse essa a lei natural
de ser bípede. Essa voz seca continuava enquanto eu procurava alguém que a
fizesse tão minha - “o Inverno aproxima-se para afagar a alma de cada um,
com o estoicismo, exorcizando o corpo, ritualizando a vontade para o regresso
ao trabalho, é tempo de recolhermos o sonho e partir, rumo à fronteira onde
nos espera o sofrimento". A voz persistia e eu procurava-lha a origem; esses
sons corriam dentro de mim como um espelho do meu sofrimento; o espírito
continha o pânico, mas o corpo não respondia: o cansaço, a ansiedade, a
angústia impedia-o de manifestar o que lhe ia na alma - "Quem és...? Onde
estás, voz de escárnio SOBRE MIM?
- "Não me vês, porque ainda te lamentas! Olha para mim, esta ave que
se espreguiça defronte o teu olhar!” - o corpo espantado como um cão perante
um espelho; atordoado; esgotado, e por fim vencido; redargui resignado -
"Como posso fazê-lo? Não conheço este lugar nem o motivo para me afastar
dele. Como posso partir?" - a minha voz trémula contrastava com a convicção
no olhar desse animal; aninhava-se agora no parapeito - "Caro amigo" -
continuou - "o teu lugar é aquele que ocupas no sonho; e o teu caminho
conquista-lo, é o teu dever realizar a tua realidade, e essencial que decidas na
direcção do teu sonho. Segura-te ao sonho e acompanha-me". No mesmo
instante em que termina estas palavras, levanta-se num ímpeto invulgar e
sacode o seu corpo, preparando-se para partir. Este gesto afligiu-me... talvez
13
14. 2ª Parte: A viagem.
porque me deixava sem uma palavra de orientação, afinal sem a única; e como
se o percebesse solta as palavras - "Acompanha-me, é teu o caminho"- e partiu
a pequena ave.
Aproximei-me da janela, debrucei-me como se a não quisesse perder;
fez alguns círculos lentos e perdi-a de vista; no resto ficou o sentimento
aparente de que nunca mais a veria. Esvoaçava assim a minha única
referência, a minha única fatia de energia, a única fonte de fogo que protege
dos animais.
A seguir, confuso, duvidosamente apressado, arrumei a pequena mala e
parti também.
A tarde era ventosa, o lugar deixava o aroma da saudade mas o caminho
era o meu de modo inevitável, as formas que cresciam neste espaço
empurravam o corpo, era lei, não poderia rejeitar sob pena de rejeitar também
o tempo e o meu ser. Tinha que mexer, não parar, não parar...
A chuva caía forte e enquanto o comboio partia, vi a ave serena... estaria
a sonhar ou o seu caminho era, na verdade, o meu. Adormeci depois... com a
incerteza nas mãos... o corpo tremente, incapaz de esboçar um pequeno
sorriso.
Acordei exausto. Pela janela do comboio observava ainda as primeiras
chuvas, o tempo era grave. Senti o frio do Inverno, aconcheguei a pouca roupa
que tinha e fiquei a olhar as terras e as casas, as gentes e os lugares que
ficavam para trás. Pensei como eram felizes aqueles, tinham uma casa, uma
terra para trabalhar, pão para comer, e eu gozava deste abrigo, como o
passageiro: o tecto que agora me abrigava era tão breve como breve se
afigurava o destino desta viagem.
Não me apercebia porque tinha fugido, nem compreendia como tinha
14
15. 2ª Parte: A viagem.
seguido as palavras daquela ave, que provavelmente não voltaria a encontrar.
Tudo parecia um sonho, e tudo imergia num espaço obscuro e esquivo, onde os
objectivos e as tarefas escondiam o seu significado, escondiam-se por entre
esquinas e atrás de paredes inesperadas, afinal a cilada confinava-se, numa
divisão atarracada, por fronteiras imperceptíveis. Depois de tantos quilómetros
passados a casa estava distante de mais para voltar, o dinheiro era escasso e a
decisão parecia irreversível.
Levava comigo apenas o sonho e nem sequer sabia que sonho era.
O revisor pediu-me o bilhete. Perguntei-lhe se faltaria muito para a
próxima estação, expliquei-lhe que tinha fome e que me apetecia respirar um
pouco do ar desta madrugada "porquê?, é igual a tantas outras!" - censurou o
homem. Não respondi porque não sabia o que responder; para mim era a
primeira madrugada da minha existência fora do refúgio matemal e para aquele
era mais uma madrugada fria naquela região; repetem-se todos os dias, como
se repetem os gestos da sua profissão, nas mãos gastas pelos bilhetes que lhe
escapam e os olhares efémeros dos passageiros efémeros.
Percebi após as palavras gastas que teria que aguardar com paciência
por mais uma hora e aí teria oportunidade de desfrutar de uma bela paisagem.
Agora estava sozinho como sempre, nós e os nossos pensamentos; jorravam
de mim à velocidade daquele comboio que rasgava a madrugada fria e
chuvosa. Apetecia-me o elemento, um café - "para aquecer a alma". o quão
mais necessitava era de uma orientação, como as linhas de ferro deste
comboio, agora que partira com um sonho indefinido.
Decidi depois continuar a desfrutar do aspecto dos lugares por onde
esquecia o meu olhar através do vidro por onde escorriam gotas sem nome.
Atravessávamos planaltos que se sucediam, esticavam-se depois de cada túnel
15
16. 2ª Parte: A viagem.
ou de um monte repleto de pedras; as árvores amotinadas respondiam ao
tempo que lhes sacudia as vestes íntimas, e aqui e ali, algumas casas. Eram
belos aqueles lugares. Eram eternos, resistiam àquele temporal, ao vento, à
chuva e ao cinzento daquela madrugada que se desvanecia. Árvores que
sustinham o seu ser, firmes e serenas. Como gostaria de ser tal como aquelas,
saber o que sou, o que devo fazer: será que alguém sabe? Será que alguém
me pode consolar as lágrimas de um resto de ser que não sabe o que deseja
da sua história?
Reconhecia ao fundo uma silhueta de um homem e da sua carroça. O
animal puxava a enorme carga com esforço, a mando do dono empenhava-se
em vencer as agruras do caminho; a carroça pesada cambaleando como um
embriagado ligada ao corpo do animal por cintos, que apertavam como um
cilício; aos dois, sem tréguas, o vento e a chuva fustigavam as capas que
cobriam os corpos humildes, ainda assim se adiantavam por entre o ardil da
Natureza. O dia começava cedo por estas paragens, e mesmo a chuva não
impedia que a vida prosseguisse lenta e estóica. Eram estes os lugares da vida,
da morte e da criação, eram lugares onde o tempo não existia, lugares
serenos, ocultos e sem novidade. A sua beleza nascia com as gentes, nascia
sem querer e mantinha-se eterna; não era suficiente ser para viver ali, era
necessário nascer aqui para se viver nestes lugares magníficos. Pensava eu que
o meu caminho era adiante, quando afinal aqueles lugares que o meu olhar
breve observava escondiam o ser e a serenidade. Quantas vezes o sentira
durante os passeios pelas terras da minha terra, mas agora a minha vontade
era outra e... só deixara um bilhete àqueles tão chegados,
16
17. 2ª Parte: A viagem.
Pai, mãe e irmã,
Não vos peço que tomem esta minha
atitude como uma tristeza, mas e a
necessidade de mim como homem. Ao pé de
vós sinto a segurança mas Não a realização de
mim.
Não têm que se preocupar, logo que saiba
o que sou e o que faço dir-vos-ei onde estou.
Vosso,
Franz E.
De súbito o comboio perdia velocidade; transjugámos terras e agora
aproximava-se uma pequena cidade no sopé de uma montanha que já se
desenhava no horizonte à algum tempo; o planalto desenhava-se até ao
horizonte e a cidade crescera em torno desta estação.
O comboio parou. Dirigi-me para a porta o mais rápido possível, afinal
tinha pouco tempo. Tomei um café, quente e aromático; sentia a felicidade
desta bebida repousar no fundo de mim e nem a realidade me limitava, pois
neste país ainda o café era o que de mais barato se podia oferecer. Lá fora a
chuva denunciava-se pela entrada de pessoas completamente molhadas,
sacudido as gotas incómodas das parcas roupas
"Brrr... o Inverno não nos larga"- exclamavam, olhando para mim, com um
ligeiro sorriso, que me encontrava próximo da porta por onde escorriam estes
forasteiros, estrangeiros e sei lá que outras designações: sei lá de onde vêm e
o que passaram para repousarem aqui? Ali, naquela minha posição era um alvo
fácil da necessidade premente dos Homens comunicarem, da evidência
17
18. 2ª Parte: A viagem.
esgazeada da solidão. O movimento era enorme, com a chegada do comboio:
os homens não se cansam do movimento, inventam máquinas para satisfazer
essa necessidade. As pessoas falavam e outros, como eu, mantinham-se em
silêncio, a outros parecia que a vida já partira num dos comboios da
madrugada, outros ainda, reconheciam na sua refeição o seu lugar preferido. O
tempo passa e tantas palavras vãs.
- “Não esqueças que a vida é isso mesmo, efémera"- dizia para comigo,
nos pensamentos recuados – “Palavras, só palavras..." - criticava eu.
Enquanto desfrutava daquele líquido precioso, olhava em volta
procurando uma observação. Ao fundo daquele velho café encostava-se um
homem; sentado no banco que parecia não resistir ao seu peso, abandonado
naquele lugar, os ombros descaídos por cima do recosto da cadeira, braços
descansados, as mãos morriam sobre a mesa, pousava um corpo que ainda
respirava. Na cabeça, facilmente inclinada sobre a direita, escondiam-se os
olhos, dormia. Tudo em volta se ajustava, aquele canto, a cadeira empenada,
as pernas que se cruzavam por baixo da mesa, e esta que lhe tocava,
deformando-lhe a enorme barriga; as saliências da sua face avermelhadas pelo
álcool e a pele enrugada, detiam em pensamentos, palavras que previam o fim
da vida para muito breve. Em cima da mesa adormecia um copo: parecia que a
água insípida repousada no seu interior também adormecera! O barulho, há
muito que o não incomodava e nem ele incomodava aqueles à sua volta, outras
pessoas apenas, mais outras só; insensíveis à presença do homem, envolvidos
no seu jornal ou gesticulando para com o camarada de conversa: esse homem
ficaria ali como uma estátua equanto eu sentia as "minhas palavras como
parcas na sombra dessa tragédia: a alma estilhaçada, sem sentido, num corpo
esgazeado grudado à morte, resvalava por uma espiral abismica, num sono
18
19. 2ª Parte: A viagem.
profundo, arrepiando os outros pela sua resignação: seria comigo igual?”
No bar tudo parecia imóvel, tal o modo como as coisas se adaptaram; as
prateleiras inclinadas acusavam a queda daquilo que se empilhava por cima;
outras tantas prateleiras, deformadas, dobradas, pela quantidade de caixas que
por ali a cima se iam equilibrando; a tudo isto o pó apagava as palavras e a cor.
o homem do bar realizava todas as tarefas de modo maquinal e preciso;
evitando as pilhas de revistas, maços de tabaco e folhas soltas, em volta da
máquina registadora; a tal ponto, que se um dia cometesse o erro humano de
falhar o lugar de onde deveria tirar a chávena ou a colher, ou a pastilha elástica
ou o refrigerante, então tudo perderia o equilíbrio precário em que repousava;
as tarefas estavam programadas e eram executadas na perfeição, seguindo
determinadas trajectórias e obedecendo a determinados movimentos, tudo de
acordo com a ordem dada pelo cliente; rotinas de há muitos anos; para além
disso, também impressionava a rapidez; naquele pequeno espaço de algumas
dezenas de metros cúbicos vivia uma máquina: aparentemente tudo resistia.
O café estava bastante bom apesar da frieza do último trago; também
nos pensamentos perdemos tempo; também a Natureza não permite que o
café se mantenha quente. Foi saboroso, apesar de, naquela madrugada, o
trago final deixar em mim um rasto profundo que não entendia: noutros
momentos também a vida era fria, e quase nunca a entendemos: será que a
temos de entender? Ou basta vivê-la sem perguntar? O comboio estava prestes
a partir. A agitação aumentou. Dei uma última olhada para o velho homem, ali
continuava; não parecia notar o súbito aumento de ruído, era o hábito, não era
anormal por aquelas bandas.
O chefe da estação deu o sinal; depois de um safanão, o comboio moveu-
19
20. 2ª Parte: A viagem.
se, muito lento, parecia querer ficar. Por mim não saberia se ali voltaria, e se
voltasse, estaria o velho sentado no mesmo lugar? O que teria eu feito durante
esta ausência? Seria mais, ou menos, do que aqueles homens no café? O mais
certo é jamais voltar, e se voltar não ser quem sou hoje: como se morrêssemos
um pouco todos os dias e nascêssemos também.
No fim, repetido e irremediável, era o tempo que determinava o sentido
nostálgico dos meus pensamentos. Eram sempre assim, regressava sempre ao
lugar do sonho e da tristeza; entendia eu, ser esse lugar digno do mesmo
interesse e importância que a alegria. São modos do homem que devemos
entender no mesmo pé de igualdade; aceitar a tristeza com a mesma dignidade
com que aceitamos a alegria. Por isso, durante estes períodos pensados, a
minha predilecção era pelo lugar sereno e silêncioso. Aquele lugar em que
recosto o ser e em que o sorriso se espraia, largo, alargando-se, espalhando-se
alma dentro.
Acordei dos meus humildes pensamentos; o comboio desliza ao ritmo dos
sons metálicos avisando as terras da sua grande velocidade. Aceitei o convite
de um livro, o único que trazia. Adormeci sobre as suas linhas, contavam uma
historia de paixão, no fim ele é morto e ela passa o resto dos seus dias na
esperança de nascer mais uma vez: as coisas são por vezes assim.
Noutras paragens, sentou-se em frente de mim um homem de vida
longa, que histórias teria para contar? Que lugares terá visitado? O que sofrera
para ali chegar? Que sacrifícios teria passado para estar neste lugar? Em que
estado estaria a sua dignidade? Segredos desta alma que vou observar durante
um breve período da sua vida. Preparou-se para almoçar; colocou um velho
pano roto sobre as pernas. Um pequeno tacho atado com carinho, olhou-o,
sorriu, apreciou com o espírito humilde e foi desenhando toda a cara com esse
20
21. 2ª Parte: A viagem.
sorriso, até àquele momento sem expressão, o aspecto da sopa, cujas mãos de
alguém, desconhecido para mim, lhe tinham preparado e que aradecia,
admirava até. Comia com a alegria de um inocente. Para que comia aquele
homem se um dia a terra... o esconderia? Os seus movimentos, continham a
pena de um condenado, chocava-me a sua existência de tal modo que a
sensação resumia-se a uma amálgama de sentimentos confusos sem
significado: nos olhos escorria-lhe uma vida de pena. Defendia a sopa como o
soldado de um exército derrotado defende os despojos da sua bandeira
entregues ao vento. Escondia o seu tesouro para que ninguém o exigisse, à
força, uma parte; escondia-se para que ninguém percebesse a sua presença; a
humildade defendia-o; restava-lhe a sopa que lhe permitia viver: o amor e as
vitualhas. Os seus movimentos perseguiam-se mágicos, ritualizados por breves
observações da paisagem, absorvia-o a terra e as coisas feitas com as mãos
que amanham a mesma terra. O dia começara cedo para aquelas mãos,
reconfortara o seu corpo com os aromas de casa, e recompensara-o pelo
trabalho que agora terminava. Não desejava, não pedia nada mais do que
aquele caldo cozinhado pelas mais gastas das mãos que a Natureza vê mover-
se num qualquer lugar desconhecido para mim. O sacrifício da sua vida exigia a
morte? Então porque comia aquele homem? Que esperanças o moviam? Que
motivos? Sem que me fosse possível responder, admirava-lhe os pequenos
gestos que afagavam pausadamente uma maçã; admirava aquele que, ao de
leve, cortava com a devoção de um homem de fé; o seu deus era aquela
pequena e única maçã.
A vida deste homem eram lugares modestos, esquecidos por nós, eram
gestos simples, nunca imaginados por nós, era uma alma sincera e inocente,
tranparente: o que se vê quando se olha é o que é; a inocência dos gestos e a
21
22. 2ª Parte: A viagem.
humildade do olhar, reconfortado com pouco, dando importância ao simples,
gestos de existência, modos singulares, sem quere conhecer mais nem desejar
mais; como os antepassados nada mais ambicionava; a compaixão caminhava-
lhe no olhar, tudo isso era o que o compunha e o tornava pessoa, num bailado
que o faz ser este homem e não outro, que se quer esconder para que não lhe
tirem o que não pode defender, o caldo daqueles que só conhecem a terra. O
seu mundo, estes lugares; o comboio esquartejara-os sem a compaixão, no seu
olhar ou no gesto que se prolonga desde a colher que imerge na sopa até ao
caldo quente que lhe afaga o estômago de um corpo cansado; gestos tão
importantes como lamentados por todos os que... esquecem ou nunca
souberam os lugares e a ternura de um caldo quente da terra. Para este
homem todos os momentos são respeitados, confere-lhe dignidade de quem
nada mais têm para além do que o trabalho das suas mãos, do que os
sentidos, do que o sacrifício, do que aquilo que é a sua imagem; segura-se na
realidade da vida sabendo que não pode reconhecer outro lugar senão o seu
corpo; tudo o que ultrapassa mais do que os seus gestos é um desperdício; por
fim a morte recolhe-os num lugar onde repousam, como se voltassem ao útero
materno. Aliás, como eu!? Não o sabia. Um rapaz criado no Litoral esquecido,
habituado às mãos limpas, nada mais ambiciona do que continuar com as mãos
limpas?, enquanto que a vontade de viver, de mãos na terra, confundia-me,
representando essa confusão num cenário de dúvidas e lamentos, para esse
homem não havia outra coisa para além disso, eera essa a sua vida: qua seria
a minha?.
O sol descobriu agora a minha face; parecia não querer ser esquecido,
esforçou-se por demonstrar isso mesmo, ainda que as nuvens o quisessem
impedir. O segredo nascia em qualquer lugar, parecia ser a forma mais
22
23. 2ª Parte: A viagem.
longínqua de ser. Depois segue o medo, a alegria e a tristeza e o lugar
supremo, a serenidade do sorriso sobre uma pequena maçã nascida numa
qualquer macieira de um lugar desconhecido. E o empenho desinteressado, a
dignidade desse sacrifício e a serenidade do silêncio que interessam a alma
mais comum do homem mais anónimo: qual e a sua contribuição para o
percurso de todos?... essas, são questões inexistentes para um homem ligado
assim pelo berço à Natureza: só a sobrevivência é uma questão: só isso tem
qualidade de existência e nada deixa ao mundo senão os filhos, nada lhes deixa
senão a capacidade de sobreviverem - pensava eu que existia algo de mais
grandioso do que isso, mas sobreviver é uma arte por si, e fazê-lo é ser
grande.
Os segredos da alma são os lugares mais sublimes do homem, e por isso
que lhe é impossível revelar tais lugares e aos outros descobri-los.
A refeição deste homem tinha terminado, arrumou as coisas simples e
olhou a paisagem que o sol, de vez em quando, fazia brilhar; os charcos de
água e as pequenas poças dos caminhos entre as terras, as árvores, tudo
pousava para os olhos de quem se escondia: limitava-se a olhar as mãos e a
paisagem, a esfregá-las, como quem admira um quadro de um pintor famoso.
A meio da tarde adormeci; sentia-me exausto, tudo o que passava
parecia absorver demasiado o meu ser. Quando acordei lamentei que aquele
que ali me mostrara o estado digno de um homem tivesse partido; ficara em
algum apeadeiro, percorria a sua vida exclusiva, só dele, só isso lhe seria
permitido; nunca mais o veria, e neste momento era seguro que estaria num
qualquer lugar junto à sua maneira de escapar ao mais incómodo dos olhares,
23
24. 2ª Parte: A viagem.
junto às terras que o viram nascer e que um dia o iriam recolher. O sol
recolhia-se.
Percebi que estávamos junto ao mar, o lugar que sempre desejo. Soube
pouco depois que podíamos ficar ali para o jantar, reconfortar o corpo naquele
aroma salgado. Seria uma hora de paragem. Depois da estação e alguns
passos adiante, em cambalhotas sucessivas, revolta-se a areia: o mar. A noite
fria acomodava-se à nortada. Sentei-me na areia húmida, e quase por instinto
procurei os sons, os aromas salgados, e perante tal dimensão repousei; as
palavras eram mais pequenas do que o sentimento dali. Escureceu demasiado
rápido e o tempo parou, o mar notava-se ainda, ali estava em casa. E nesse
instante era transportado para o interior da incerteza; num segundo apenas
revivia todos os bons e os maus momentos: o bilhete de partida, e regressava
ainda a juventude, às suas alegrias e ao incómodo: invadiu-me a nostalgia
desses momentos terminando num estado solene, como se pairasse, mas ao
mesmo tempo, importuno, molesto, nocivo, estranho, indolente,
transformando-se num caminho para lamentar. Não desejava isso, renunciava à
felicidade desse tempo que afinal estava longe. Há momentos em que temos de
lidar com este sentimento de tempo: o tempo passou; as coisas terminam...
era necessário partir mais uma vez, regressar à realidade do caminho, ali era
apenas o passado de um lado para o outro nas minhas lágrimas.
A noite chegou plena de segredos, acompanhada por temores vigilantes;
de dia sabíamos da sua inevitável presença, à noite não lhe podemos fugir.
Pouco me tinha alimentado durante o dia, restava-me algumas maçãs, umas
laranjas e pêras; aquilo que tinha podido preparar esgotava-se exigindo que as
minhas mãos procurassem o trabalho que me sustentasse; tinha pouco
dinheiro, precipitava-me sobre a necessidade: teria pois que sacrificar o meu
24
25. 2ª Parte: A viagem.
corpo.
Era tempo do primeiro sacrifício depois da decisão desta madrugada.
Pensava então sobre o acontecimento: vergado sobre a contradição que se
esconde dentro de um espírito, nada ter construído até ali e ali nada poder
construir no futuro, procurava uma decisão; e só no tempo oportuno aceita, o
homem, a decisão que se agita para cá e para lá, dentro e fora da alma. Até
que... hoje, associei aquele pássaro à decisão; decidi: parti então! As
consequências desagradáveis, imprevisíveis, previstas, vantajosas e
desastrosas estão ai, sinto-as...
Sentia pela primeira vez, um muito pequeno indício da consequência
imprevista e desvantajosa: a fome e o sacrifício; quem era?, como era o meu
estado?, qual seria o meu estado de imbecilidade se nem previra isto?, tal
consequência tão trivial. Cansava-me de insistir que seria útil utilizar essa
desvantagem com proveito; mas realizar tal operação era infinitamente difícil
quando o corpo sofria assim; a despeito disso, nascia uma orientação que não
tinha outra origem senão este estado faminto: era importante definir um modo
de sobrevivência, agora que estava sozinho; não era essa a minha intenção
permanecer mais tempo escondido, em particular, neste sacrifício, já
materializado na fome, e com singeleza impelia o meu ser a reencontrar uma
forma natural no homem: a sua sobrevivência. Perante tal evidência, esbarrei
no génio, encontrei uma decisão: decidi procurar a sobrevivência dentro
daquele comboio; espantado comigo mesmo, admirado com os meus
pensamentos, nem cria no que o meu espírito me oferecia, afinal era capaz de
uma lucidez, sentia-me iluminado e confiante; logo depois, ainda sob a áurea
que o caos mental me oferecera, fui capaz de determinar, também e ainda, que
comeria uma quarto de cada peça de fruta por refeição. Estava assim definido,
25
26. 2ª Parte: A viagem.
sob a minha inteira responsabilidade, o meu futuro imediato. Nesse mesmo
instante, procurei o restaurante: seria por ali que começaria a procurar
trabalho. Dirigi-me a um homem, que me parecia mais acessível; na sua
agitação frenética ignorava a minha presença.
- "É tarde para procurar uma refeição, o jantar já foi servido" - disse com
gentileza; pensaria que eu era um cliente; o tempo que levara a pensar sobre
mim desde que tinha estado junto ao mar espantava-me, já o jantar inha
passado; expliquei-lhe a minha situação financeira e a minha verdadeira
intenção. Para além de modificar o seu tom de voz depois de ver a minha
condição social, menosprezou as minhas palavras com um riso despropositado.
- "Não tenho tempo a perder contigo"- continuou. Percebi que teria que
regatear; argumentei de novo sem sucesso.
- "Por favor não insistas..."- contrapôs;
- “Não vê!?"- estiquei os braços à minha frente mostrando-lhe o que não
tinha - "Não tenho nada... Não vê que preciso" - sufoquei a minha voz no limiar
do choro. Silêncio. Levantei a cabeça decidido a investir outra vez e pedi-lhe
encarecido, ao ponto de exigir como pagamento pelo trabalho de um dia
apenas uma sopa por refeição, já que me parecia ser-lhe impossível pagar-me
em dinheiro. Abandonou-me ali sobre os restos das minhas palavras; nem ali
consegui!? Pensava - Preparava-me para abandonar o meu objectivo quando
regressa o homem dizendo que “voltava atrás… embora fosse um homem de
uma só palavra… mas que teria trabalho nas condições…” que eu lhe tinha
proposto.
Voltei para o meu lugar a pensar no negócio que tinha acabado de
realizar: apesar de tudo e afinal era o meu primeiro negócio! Combinei com ele
às cinco horas da madrugada: nem sabia o que significava levantar tão cedo.
26
27. 2ª Parte: A viagem.
Depois de uma noite muito agitada, sem sono, ergui-me satisfeito, e já no meu
posto de trabalho, perguntei - Como se chama ?"
- "Zé."- Respondeu seco - "Descasque aquelas batatas." - Continuou
seco, olhando em direcção a um saco de 50 kg; enorme, pensei; ficou algo
amargo no meu espírito junto com a imagem do saco; depois, as sucessivas
respostas metálicas que me dera deixavam-me adivinhar alguma coisa ruim;
esta impressão manteve-se; mas como estava embriagado com a expectativa
do trabalho, deixei que essa imagem se diluísse e atirei-me para a minha
primeira tarefa: batatas, batata, batatas, descascar batatas para o almoço.
Depois, loiça, loiça, loiça, lavei toda a loiça da primeira refeição do dia, terminei
na limpeza da cozinha. O mesmo se passou durante a tarde, logo depois do
almoço. Recebi o meu primeiro ordenado, uma malga repleta de sopa; ingeri-a
como se fosse a vida toda, a minha existência por completo, a minha razão de
existir; sorvi aquele caldo, senti o seu calor nas mãos, senti-o percorrer o corpo
cansado e feliz, por me ter sido possível sobreviver um dia, por ter sido o
primeiro dia por minha conta e risco; enfim redescobria um sentido de vida,
era-me possível viver, deixavam-me pertencer a este espaço, necessitavam da
minha existência, vivia em mim um lugar importante para os outros; de súbito,
recordei a personagem do dia anterior (Onde estaria? o que faria neste preciso
momento?). A tarde passou-se de modo idêntico, embora alguma felicidade se
tivesse escodido, intimidada com o trabalho. Ao jantar arrastava-me já.
Exausto. Tinha o dia a correr sobre as pernas e a sopa não era mais do que
uma gota no imenso oceano da necessidade. À noite adormeci quase de
imediato sem sequer ter prestado atenção aos lugares por onde aquele
comboio passara; só a muito esforço pensava na falta que sentia em admirar a
paisagem.
27
28. 2ª Parte: A viagem.
A manhã do segundo dia foi idêntica; não admirava a paisagem nem
desfrutava das estações onde parava aquela máquina. Não observava as
pessoas, nem me perdia nos meus inúteis pensamentos; depois remoi-a…
“afinal por quase quinze horas de trabalho recebia apenas três sopas”. Que
estupidez infantil!, depois do almoço seria frontal: ou me pagam mais ou não
trabalho! Mas permaneci calado, adiava sempre a reivindicação; a cor
metalizada do inox do mobiliário da cozinha causavam-me nauseas, as janelas
arrepiadas deixavam passar os restos de luz cinzenta deixavam-me arqueado
sobre o futuro; vendia-me pelos argumentos mais ridículos, evitava falar
contrapondo as razões mais imbecis; esbocei uma lamúria, pouco séria,
evidentemente que não foi ouvida; sentei-me no meu banco depois desta
manhã de trabalho intenso pago com injustiça. Quando o Sol se escondeu,
semi-erguia as pálpebras com esforço, dificilmente sentia os membros, sem
energias, adiantava-se a existência, erguia-se elevadíssima essa barreira, a de
existir pura e simplesmene, arrastei-me todo o dia seguinte, e aquele pequeno
homem, o Zé metálico, parecia nem perceber, permanecia insensível. Percebi
que a vida é insensível, não porque deva ser de outro modo, apenas porque é
assim; a vida é insensível porque os homens são insensíveis, e estes que outra
coisa podem ser, se eles mesmos são Natureza, e esta é desprovida de
compaixão. O lugar na vida é para os melhores, aos fracos restava-lhes,
intimidados, olhar as perspectivas-do-chão.
No dia seguinte, o terceiro, não fui capaz de me erguer por cansaço e
também por cobardia, não consigo enfrentar, não sou capaz de m defender, de
esgrimir os meus argumentos, de os defender, de me valorizar, decidi pois,
fugir! Afinal era algo a que estava habituado, sempre fora assim, a minha voz
ensurdecia-se na presença reptiliana dos outros. Era assim deste modo
28
29. 2ª Parte: A viagem.
estranho que guardava o meu ser e os meus objectivos. Não pertencia àquele
mundo. Sentia-me marginalizado, senti que não conseguiria adaptar ao lugar
da sobrevivência. Senti que não tinha caminho: a confusão tinha-se instalado,
sólida, de vez, no meu ser.
Nessa mesma manhã voltei ao trabalho. Estranho não é, mas voltei,
apesar da minha revolta. Anunciei uma má disposição pelo excesso de
trabalho, procurando com essa justificação alguma compaixão, e aceitei mais
uma vez o sacrifício. Num momento de calma, poisei o nariz de encontro ao
vidro húmido da janela; a paisagem corria indefinida pelas gotas que se
espalhavam por todo o lado de fora do vidro; repousei num pensamento
imagético: uma mulher que escava no asfalto o alimento para os seus filhos -
"irão morrer" - sussurro ao ouvido dela; não me ouve; acredita no futuro,
sacrifica-se até ao extremo e continua a sua inglória tarefa: acredita que pode
nascer alimento no alcatrão. Percebi-me como essa mulher!
Trabalhei o melhor que soube; a sopa reconfortava-me melhor que nos dias
anteriores: vi nascer a minha alma. O sorriso escondido dos outros era o
combustível necessário para acreditar como a mulher dos meus pensamentos.
Nunca me imaginara assim, escravizado e tratado como um cão de rua.
Empurrava orgulhoso, a minha dignidade; e outras vezes, pensava eu, como
num ciclo de altos e baixos, gritava para dentro: como socorrer esta alma triste
que vi nascer e que vejo morrer na rua, frente à forma natural de homem, a
sobrevivência; como é que me é possível sobreviver? Neste mundo há o lugar
dos fracos, há os olhos dos caçadores, há a face ignóbil da sobrevivência e há
aqueles, a quem tudo parece fácil, fazem tudo com sucesso e fama, com
talento e respeito, com eficácia e competência. Se a Natureza não nos oferece
o talento e a persistência para deixar no mundo algo que só nós pudemos
29
30. 2ª Parte: A viagem.
deixar, então, procuremos sobreviver apenas, e o sucesso é apenas isso,
sobreviver. Percebi que deveria insistir mais uma vez... e outra vez...e ainda
outra vez: deveria insistir sempre; percebi também que, por mais que exigisse
trabalho do meu ser, jamais seria tratado condignamente pelos outros; o facto
de me ter oferecido exigindo em troca quase nada precipitou-me para um poço
de indignidade. Depois disso jamais poderia exigir, e como continuava a fugir,
continuava também a aceitar a mesma situação de princípio. Este caso
revelava os parâmetros da relação humana, é necessário ser para poder exigir,
e só exigimos, se alguém necessitar de nós: não há lugar à misericórdia.
Desaparecer pode ser uma hipótese mas não tem futuro. A decisão era
sobreviver ou então estaria condenado a perder todos os lugares e todas as
pessoas da minha vida? A despeito de mim, devo lutar com a desgraça que
sou? Ou melhor; tenho que lutar com a desgraça que sou! Estes foram os
pensamentos do meu último dia de trabalho naquele restaurante de comboio.
Estes saltos entre disposições antagónicas - optimistas e derrotistas -
nunca os compreendia, nunca saberia o seu significado e o seu resultado.
Sentei-me no lugar que ocupo desde o princípio da viagem. Estava
exausto, há muito que a noite me vigiava e eu nem notara a sua presença.
- "São assim os fracos, escondidos, cegos e inocentes" - declamei em voz
baixa, escondendo essa mesma naturalidade do fraco, denunciando ao silêncio
a minha condição. Percebi que os dias que tinha dedicado ao trabalho fizeram
com que a viagem fosse mais breve do que deveria ser: os lugares e as
pessoas que poderia ter observado tinham passado, repousavam noutro lugar,
percorriam outros caminhos, eram outras imagens que eu perdera mas que
existiam num secreto lugar. Adormeci no canto daquele banco de comboio onde
tantas pessoas já teriam adormecido, eu era apenas mais um.
30
31. 2ª Parte: A viagem.
O Comboio acompanhou o mar toda a noite, sentia-se a presença pelo
aroma frio, o som regular e temível. Pouco dormi, e só de madrugada, rompia
a alva, o sono foi mais profundo. Quando acordei já percorríamos o interior
daquele país. A linha de comboio virara-se a leste. O mar ficara para trás como
um sonho, embora a sua presença fosse uma existência só o poderia imaginar
ou sonhar.
Começava a sentir a realidade da vida, a sentir a sua forma violenta e
sabor amargo; tinha a consciência da inevitabilidade do sacrifício, o sentido
claro de que era certo percorrer a humilhação dos lugares, a necessidade da
face erguida, mas esta consciência suportaria esses momentos com dignidade?,
e o corpo, como reagiria?
Estes dias tinham sido tão intensos; o meu corpo estava esgotado. Parei
o meu pensamento, olhei ao fundo a paisagem que o sol mostrava naquela
manhã; campos e campos de trigo, perdiam-se de vista. Aqui e ali manchas de
pequenas árvores, reuniram-se para se abrigarem do Inverno que se
aproximava. As nuvens acompanham o quadro a par das pequenas casas de
gente humilde, esquecidas na serenidade daqueles lugares.
Parámos de novo. Aproveitei para sair pela primeira vez depois da noite
perto do mar. Era uma pequena aldeia. Servia apenas para reabastecer aquela
máquina e dar alguns minutos de descanso a tripulantes e passageiros. A
estação lembrava uma casa de bonecas; de arquitectura passada, aspecto
luminoso, pormenores arrojados, curvas demoradas; e resistente; à volta um
jardim elegante que lhe fazia companhia, criado com gosto e brio de quem tem
a sensibilidade para essas coisas das formas, cores e aromas. À medida que
nos afastavamos do comboio, o silêncio, pé ante pé, sem que o
31
32. 2ª Parte: A viagem.
pressentissemos, ia ocupado o seu lugar, rodeava-nos e quando o sentiamos já
estavamos impressionados com a sua subtileza. As ruas eram estreitas, limpas,
poucas casas e algumas árvores, resistiam sem esforço ao desafio; o homem e
o lugar equilibravam-se. Gostaria de morrer num lugar destes.
- "...ali morava o sonho."
Aproximou-se um homem de bicicleta.
- "Veio no comboio?" - Interrogou-me depois de me ter cumprimentado;
um gesto pouco comum entre as gentes civilizadas das cidades.
- "Aprecio apenas a sua terra. Não fico muito tempo. Em breve partirei
com o comboio."- O homem aquiesceu com um gesto. Repousamos sobre o
breve silencio que imediatamente quebrei;
- “Qual é o nome destas flores?"
- "São..., na verdade não sei o nome, mas conheço-as desde que nasci...
e existem por todo lado. Gostam do clima da terra e as gentes daqui não as
incomodam.” - Fiquei admirado pela resposta pronta; talvez que lhe tivessem
feito esta pergunta outras vezes e assim já estaria preparado. Deixei-me estar
em silêncio sem continuar o diálogo. Tinha observado o encanto e a coragem
destas flores, firmes e determinadas, floreadas com o Inverno já solto.
Deixámo-nos estar alguns segundos quebrados pelo som firme da sirene do
comboio avisando a partida. Aquele homem incógnito desejou-me sorte, sem
que lhe pudesse retribuir, tal era a minha pressa. Fugia daquele lugar quando
tanto desejava poder regressar. Neste momento a minha vida era assim; muito
instável.
Quando subi para o comboio já esse se movimentava, por pouco tinha
ficado naquela terra silenciosa como era meu desejo. Atravessei quase todo o
comboio até reencontrar o meu humilde lugar. Regressei ao pensamento. Pelo
32
33. 2ª Parte: A viagem.
lugar que ocupo neste comboio já se sentaram inúmeras pessoas. Quem eram?
Que história tinham para contar? Que sacrifícios tinham passado? Como
seriam? Onde estariam agora, neste preciso instante? E o que faziam aí? Estas
interrogações fustigavam-me o cérebro como se um furacão agitasse o meu
espírito, já de si inquieto. Cruzava o olhar com outros; num ponto da sua
história e da minha, sem importância nenhuma, os nossos olhos cruzavam-se
num brevíssimo olhar; que efeitos teria esse minúsculo facto, de imediato
esquecido no interior de outros factos igualmente insignificantes, na sua vida.
Imaginava as suas vidas... superiores; repletas de interesse, sumptuosas pela
sua importância, utilidade, magnificentes pelos suas ambições, clarividentes
pelos métodos objectivos, sem a cegueira de um ignorante. Todas as questões
anteriores reduziam-se: como chegar lá?
Só mais tarde na minha vida vim a perceber que em qualquer existência
a infelicidade ocupa, que a vida de cada um é tão infeliz como a de todos os
outros. Só tarde percebi que não podemos amar outra vida senão aquela que
temos porque é única, perene, que pode ser feliz aos poucos e em poucos
momentos: talvez a única “coisa” que de facto possuímos é a vida e a relação
com os outros: factos que negligenciamos quando observamos sobre os dias,
quando pensamos que não há ser mais ignóbil do que nós próprios; e quando
comemos os minutos até que de repente, num olhar para trás, zás, fulminante,
descobrimos os anos e anos, que se estendem pelas rugas fora.
Muito antes desta conclusão tardia, na adolescência, guardava em mim
como seres felizes, aqueles que ocupavam as mesas de café na vila onde
morava. Parecia que nunca dali tinham saído. As conversas prolongavamse à
33
34. 2ª Parte: A viagem.
volta de coisas simples. Os mais novos como eu, riam-se pelos cantos da sua
vida sem preocupações, conversavam com os amigos, eram convidados e
solicitados para os principais eventos; e eu nunca percebi porque não me
convidavam também; derrapava nesta infelicidade, via-lhes o sorriso e
esquecia o meu, observava-os, de esguelha, no canto de uma parede sentado
por detrás da minha face. De qualquer modo esperava algo de bom para mim
sem confiar no destino que pressentia meu perante esta marginalização:
esperanças de um sobrevivente só. Agora, longe daqueles lugares, pousava no
desconhecido, repenso a minha tímida atitude, ou o medo da sociedade, que
ainda hoje escondo. Não desejava regressar, esse medo era demasiado
violento, e aqui ou para onde vou, não conheço nem sou conhecido.
Perscrutava alguma vantagem na minha decisão aventurada. Era tudo novo,
excitantemente diferente, cada instante era um sorriso largo com o cérebro
atento em busca de nova informação, em busca da novidade: o que mais gosta
de experimentar...
_" Rapaz. "- Esta abrupta voz tremenda, parecia o carrasco que nos
empurra.
- "Não me ajuda... Não vê que o chamo?!"
Sem olhar para quem me ordenava. Obedeci. Coloquei as malas pesadas
na bagageira junto ao tecto. Voltei a sentar-me. Pude então observar-lhe a
face. Era a de uma mulher de idade avançada, uma mulher grande, ou “uma
velha” (conforme o nosso grau de respeito, conforme a nossa linguagem
doente), pobre, de nariz apostado em levar por diante as suas intenções, na
face escorregava-lhe o tempo e o sacrifício, as rugas escondiam a juventude,
os olhos brilhavam, eram a sua alma decidida.
34
35. 2ª Parte: A viagem.
- "A minha terra… " - Apontou em direcção à janela. - "Gosta? "- Sem
esperar a minha resposta, afagou a paisagem com os olhos;
- "…é a primeira vez que me afasto. " - Comentou pouco depois. Na
verdade era-lhe impossível mentir. Sentou-se. O corpo tremia de frente à
nostalgia da partida. Também eu deixara tudo atrás, sem esperar pela idade,
preferia crescer noutro lugar, tal como o fiz ali. O comboio tinha parado
momentos antes, sem que o tivesse notado, entraram os viajantes, como esta
idosa, e os fugitivos; ansiava eu, não ser o único, não estar assim tão só,
ansiava justificar a minha decisão com a mesma decisão dos outros.
- "Vê ali ao fundo, junto ao riacho, aquela pedra." - Estiquei-me.
- "Todos os dias da minha vida lavei ali roupa, pelas madrugadas frias
esfregava e batia, suportando o que as minhas mãos podem testemunhar... " -
falava enquanto me mostrava os dedos grossos do trabalho no campo, e
deformados pela enfermidade - "...fizesse sol, chuva ou soprasse o vento ou a
neve rasgasse." - Lamentava-se do tempo.
- "Agora já não. O peso da vida é muito..." - continuou – “…os meus
filhos saíram todos de casa muito cedo à procura de emprego noutros lugares.
Visito agora o mais velho e os netos. Um casal feliz. Pena é viverem na cidade.
Mas, como deve saber, na cidade a vida é melhor, há emprego… ganha-se mais
dinheiro... governa-se melhor a vida."
Enquanto ouvia aquela sobrevivente do tempo, admirava a sua
sinceridade, e sobretudo diferenciava-se de mim, sabia para onde ia, eu
desconhecia por completo o meu destino. Mantive o meu silêncio desajeitado;
aquela conversa pouco me interessava; os seus olhos eram insistentes,
olhavam-me enquanto falava com as mãos, apontava, narrava, gesticulava,
absorvida na sua história. Quando nunca se conhece outras terras, concerteza
35
36. 2ª Parte: A viagem.
que o nervosismo multiplica-se e a infindável conversa pretende acalmar-lhe o
sentimento de perda.
- "Trabalhei toda a minha vida para os meus filhos e o meu marido!" –
Exclamou com vivacidade, parecendo não perceber que as gentes a escutavam;
percebendo isso, continuou, sussurrando - "...as minhas mãos e Deus são
testemunhas”.
Como lhe poderia responder; ainda não fiz nada, nem sabia o que iria fazer e
ela falava-me da sua vida, dos seus problemas, com a boca cheia de sabedoria,
com todo o sabor da experiência, como todo o olhar de quem já viu o filme
todo, e para quem, a vida, não tem segredos; demonstrava coragem, sacrifício,
e eu... lamentava-me ter de saber o que fazer da minha vida, dar-lhe uma
orientação e um sentido. Por outro lado, enfraquecia-me com a descrição
terrífica, era evidente que também eu teria que sofrer, senão o mesmo, algo
assim sempre, assim semelhante. As minhas preocupações, na perspectiva
desta mulher, não passavam de tolices, preocupações de quem nunca teve que
trabalhar para sobreviver. E para piorar, agora, perante a fome do meu corpo,
escapava-se a determinação, a vontade; escapavam-se-me as respostas, como
se as gentes tumultuosas me levassem ao patíbulo, enforcavam-me antes que
dissesse algo... antes que tivesse a audácia de dizer ou fazer o que quer que
seja, libertavam-me dessa tarefa, a de decidir, a de ser determinado, a de
assumir-me como homem responsável... salvar-me-iam dessa tarefa e talvez
que alguém viesse, salvar-me deste equilíbrio precário em que se balança o
meu lugar.
– "Tenho fome!" - exclamei sem reflectir.
– "Pensava que não ia falar." - Falou a senhora.
36
37. 2ª Parte: A viagem.
Peguei na minha penúltima maçã; o resto da merenda desaparecera sem
rasto e num momento, neste mesmo momento, quando me lembrei de a ter
feito, de ter colocado todas as peças de fruta, o pão... e agora nada,
desaparecera.
- "Não vai comer mais nada?!" - Interrogou a mulher espantada. Não
respondi, evitando revelar a minha condição de fugido, sem sucesso, claro.
– "Aqui tem. "- Estendeu-me o braço desinteressado, segurava na mão
uma pedaço de pão.
- "Aceite rapaz! Eu mesmo cozi este pão, logo de manhã, ainda a noite
reinava." - Fiquei admirado pela sua gentileza, e tentando ser moderado,
apoderei-me do que me oferecia.
- "Obrig… Obrigado!” - Hesitei;
Não sabia como agradecer-lhe. A minha situação era tão precária que,
aquela oferta, era irrecusável. Vendo o gosto com que me alimentava,
ofereceu-me mais. Fui aceitando como um condenado aceita a liberdade;
confirmava o calor do pão e saboreava coisas boas, vindas da terra. Fazia
lembrar a casa que tinha abandonado. Nunca tinha comido com tanta
necessidade, de tal modo que se confundia com o prazer; uma grande alegria
invadia o meu espírito. Sem explicação, de um momento para o outro, abracei
aquela senhora com firmeza, as lágrimas percorriam-me a face, perdi as
palavras… escorreguei com as lágrimas por ali… até me encontrar no calor de
outro corpo.
- "Não tem que agradecer." – Replicou a senhora.
Comprometera-se com a minha atitude; olhava para os outros com receio de
encontrar outro olhar; incontido, segurei-lhe a mão por algum tempo, senti que
estes eram os derradeiros; os últimos momentos de segurança materna;
encostei a minha cabeça ao vidro. A minha felicidade era efémera, o que sentia
não me enganava. As lágrimas invadiam-me sem que lhes visse o propósito. –
37
38. 2ª Parte: A viagem.
“Chore… chore… não tem mal chorar” – Sussurrou-me com a firmeza de quem
também assim passou, de quem por ali passou, pela miséria, pelo sofrimento,
pela incerteza...
As mãos separam-se, e como um barco que levanta ferro, teria que, de
agora em diante, suportar a violência do mar, das tempestades, do inesperado;
ao contrário do barco, eu não estava preparado. Saboreava ao mesmo tempo o
amargo e o doce, afastava-me disso sem receio, com determinação; repousei
sobre estes últimos momentos seguros desde que me afastei de casa. Tudo isto
parecia empurrar-me, tudo isto propunha, sugeria que algo teria que ser feito,
que algo deveria ser feito ou, caso contrário, pouco mais restava que os
lamentos; com esta ânsia adivinhava períodos, tranquilos e suaves ou instáveis
e de sacrifício. Sabia o que me faltava: garantir a minha sobrevivência, o
essencial de um homem, o que afinal, é tudo!, para um fraco.
O tempo passava tão rápido; mal sentia o frio do Inverno que se fazia
sentir; e, quanto mais para norte, mais frio compunha os campos da paisagem.
Aconchegava a pouca roupa que vestia ao corpo frio de medo.
A velha senhora despediu-se, saia na próxima estação; chegara ao seu
destino. Agradeci-lhe resignado com a sua partida, com ela afastava-se o meu
último refúgio.
-"Não se lamente dessa forma, decida e seja persistente... não fique
no lugar das lamentações. Boa sorte." - Com estas palavras inesperadas
afastou-se. O comboio voltou a partir, era noite; da janela lancei-lhe um aceno
de despedida, mas já me tinha esquecido; a sua família absorvera-lhe toda a
atenção; notei que a sua face tinha renovado a alegria, o rosto continuava
confiante, perdera a nostalgia da manhã e eu não passava de um pequeno
instante em toda a sua vida; e tão escondido na sua memória que jamais me
voltaria a recordar; encontrava-me sozinho, ligado ao destino mais triste; não
saberia até quando resistiria naquela solidão. Fiquei a olhar o grupo que a
rodeava, enquanto o comboio se afastava, todos juntos pareciam um novelo de
38
39. 2ª Parte: A viagem.
lã, enlaçados sentiam segurança; permaneci fitado naquele cenário até que o
frio era desesperado para manter a cabeça de fora, ao vento frio. Sentei-me.
Sentei-me naquele mesmo lugar solitário do qual recusava afastar-me;
não sabia que rumo tomar; nem tinha contado os dias que o ocupava;
encostei-me aquele último refúgio, a jangada frágil, deste Inverno grave e
sério.
Será que o homem que vou ser nascia?
- "Odiava!" - exclamei em voz alta. Percebi que todos ali naquela
carruagem me tinham escutado pelos sussurros que se distinguiam, pressentia
que eram a meu respeito.
Era verdade. Odiava com o corpo e a alma, o espírito e todo o meu ser
ferviam por entre este sentimento. Os lugares e as pessoas da minha vida, o
meio, eu. Constituíam o meu ser e compunham o meu fracasso. Nada podia
fazer para além desta inútil existência, rasgada por estas inflamações inglórias,
que nada significavam, pois nada conseguiam. Dobrei-me sobre mim e chorei,
inseguro como uma pobre criança perdida. Sentia-me desorientado sem nada
que fazer para alterar esse sentimento de vida. A tempestade iniciou-se há
tanto tempo e só agora perdi o leme; à mercê dos pontapés, dos safanões, dos
gritos!, das ordens desordenadas dos homens. E quem vive? Quem pode
decidir assim? Como posso reconhecer o caminho no meio desta loucura, no
interior dos balidos das gentes, no interior dos sons-lamentos, nesta obscura
sensação de ser? As palavras começaram a chocar com as interrogações; as
respostas perdiam-se, tão voláteis, eram essas palavras que me esqueciam.
Nem lugar tenho na memória das gentes, resta-me, só, este lugar físico. Num
impulso caí sobre o banco da frente, sem apoio e acompanhando os
movimentos bruscos do comboio estatelei-me no chão chocando contra o medo
da miséria real. Alguém segurou o meu corpo.
39
40. 2ª Parte: A viagem.
Sentia as palavras a minha volta num conjunto que não fazia sentido
para mim, como escarros sobre mim, como se a minha loucura fosse durar
toda a vida, se mantivesse assim, sólida e crescente, eterna como bréu, como
se o dia tivesse esquecido de aparecer. O meu corpo tremia. As vozes zumbiam
à minha volta, sem direcção, não as compreendia, eram pessoas; mantinha-me
hirto e enrolado no meu corpo. Começou a escurecer e deixei de ser eu. Caía
então, escurecera tanto: não percebia para onde seguia. A queda não
terminava, enquanto os pensamentos fugiam, nada podia fazer porque às
minhas ordens o meu corpo não reagia, parecia não haver espaço e o tempo
dissolvia-se numa escuridão abstracta, sem lugar, sem tacto, insípida. Era o
meu espírito que caía dentro de mim. Ausência. Pânico. Tudo se renovava
enquanto a insegurança da queda aumentava, e tinha a certeza absoluta de
que me tinha instalado no nada; sem que percebesse, vivia ao meu lado este
lugar labiríntico sem possibilidade aparente para lhe escapar; para onde quer
que olhasse, se é que via, se é que existia alguma direcção perceptível, nada
se movia naquela escuridão profunda em mim. Era mais do que solidão, não
havia espaço, tudo estático. Explodiram palavras, imagens, sonhos, felicidades
diligentes guardadas, lugares de ódio, chamas de pavor, sons húmidos do
interior rancoroso, desse fundo malvado, culpas formadas sem julgamento,
culpas formadas pelos outros no interior do espírito, estradas lamacentas em
todas as direcções, rasgos de um sorriso, talvez, de uma criança perdida num
cruzamento; atingido por todos os lados, rasgavam a minha alma como cães
devoram um naco de carne; babados de sangue, estropiando, impetuosos e
insensíveis… animais!!! Um som grave atirou-me para trás recuando e
tombando o meu corpo de costas. Não conseguia ver, não percebia o lugar,
sentia apenas, afligia-me por pensar que talvez estivesse há horas debaixo de
água... e outros pensamentos claustrofóbicos... estaria morto... ainda
pensava!? …esses ignóbeis deixaram-me vivo e acabaram por rasgar também o
meu pensamento, o lugar do meu ser e o meu sonho. Sem que soubesse onde
40
41. 2ª Parte: A viagem.
estava, esses cães malditos trituravam por completo até à alma... como se o
fim existisse! O som grave aumentou de intensidade, estropiado que estava,
estremecia. Seria um ÉS NADA! animal? “Aquilo” mostrou-me apenas
uns olhos esgazeados; chispavam!, onde não havia luz para
dizer se havia um corpo, a nada mais assistia dali, moviam-se pesados,
aproximavam-se, meneavam-se; ao mesmo tempo que se ouvia ainda a sua
NÃO VALES NADA! respiração cansada, ou seria a minha, e depois a sua
voz grave
- “Nao voltes!"
De corpo exausto, fui catapultado, o MISERÁVEL! meu espírito
subia, alargava-se, gritava sem que ouvisse o meu grito, eram
mudos, eram vincos na carne os meus pensamentos. Senti as mãos firmes no
chão, as luzes acenderam; transtornado, os sentidos começaram a revelar
organização; à minha volta reuniam-se os outros. Pude observar os despojos
de guerra de tão pequeno ser. Foi uma guerra estranha, porque na verdade não
sei se o foi, e se foi, nem conheci o adversário; não percebi se combati e contra
quem o fiz, e esse, encontrou-me submisso a tudo, e quando perscrutei os
seus olhos de medo e poder, reagi como um empestado. Só tarde percebi que
existe um espaço onde se luta contra coisas que nos fogem dos sentidos,
animais que vivem e atacam sobre as mais estranhas formas de sermos.
Somos uma realidade psicológica.
"Fui recuperando, as imagens suavizaram-se com um sabor a brisa
matinal sobre as águas lentas; recuperei a consciência. Eram alguns os olhos
que me observavam, repletos de interrogações. A minha batalha devia ter sido
gesticulada, violenta, porque alguns apavorados e outros que me seguravam,
espantados, debruçados de corpo fito em mim, à espera, gelados de braços
41
42. 2ª Parte: A viagem.
abertos, expectantes. Foram perguntando se estava bem e o que se tinha
passado. À segunda questão era-me impossível responder, abanava a cabeça
em resposta silenciosa. Estava exausto, não compreendia e não conseguia
relatar o sucedido, e se o fizesse, nem eles o perceberiam. Era uma tarefa
grandiosa para um refugiado de um campo de batalha sem nome nem tempo.
Na História dos que a contam não se descobriam relatos de tais batalhas.
Sem mais nada, encolhi o meu corpo no lugar que me pertencia; os
outros, de corpos em dúvida, afastavam-se inventando explicações; sem o
querer tinha sido alvo das atenções e, como me incomodavam estes olhares
desconfiados. A noite chegara, o frio também, e a chuva desenhava o vidro por
onde descobria o meu reflexo, já a noite era negra. Fitei a minha face sem
saber qualificá-la. Estaria triste a minha alma ou, derrotada. Preparei-me para
dormir.
Eu serenara, a tempestade tinha passado; esperava que não voltasse a
acontecer coisa tão inexplicável, mais a mais, não esqueci o aviso daqueles
olhos gritantes.
Adormeci ao som ritmado das gotas de água que embatiam no vidro
onde se metamorfoseavam em linhas extensas e decididas, escorridas de
extremo a extremo da janela, reflectindo os contornos do meu rosto triste, tão
triste como a alma, tão triste como a incerteza do pão sobre a mesa, tão triste
como o destino das gotas que escorrem, das gentes que se movem, dos corpos
estendidos nas valas comuns da consciência humana. Estes instantes,
marcados no tempo e naquele lugar, ouvidos e olhados por mim não faziam
parte da história, nem seriam escritos por tão insignificantes; contudo
continham eles mesmos a história do homem. Não memorizava tal cena, não
escreveria sobre ela, não faria parte das minhas memórias, e no entanto,
42
43. 2ª Parte: A viagem.
impressionava por ser tão insignificante e ao mesmo tempo por pertencer à
minha história, por representar, sem que se saiba, uns instantes de ligação na
minha vida, ligação do passado desses instantes com o futuro desses instantes:
uma simples gota era na realidade uma testemunha da ligação entre o meu
passado e o meu futuro; os extractos de tempo estreitos da minha vida, como
dos outros, são insignificantes mas pertencem aos acontecimentos deste
planeta vida. Tantas cenas idênticas, mas esta pertencia ao meu percurso, não
poderia viver sem estes instantes já que o tempo, como a vida, é uma
continuidade de instantes tão insignificantes como este. de que nos serviria
contá-los?
O comboio, apesar de tudo o que passei, continuava.
Acordei com um forte ruído, precipitado sobre o chão, seguido de um
empurrão violento contra o banco em frente. Travámos bruscamente, algo se
passava de estranho, pensei atordoado. O comboio parado. Pairava um silêncio
moribundo. Em tumulto, começamos a fazer perguntas uns aos outros; uns e
os outros agitavam-se para as janelas, esticando o pescoço fora das janelas,
para auscultar a noite chuvosa uma razão para tão súbito acontecimento. Mas,
a chuva de tão intensa, acompanhada pela noite fria e negra impedia perceber
a razão. Sem razão. Recolhíamos a cara molhada. O comentários corriam todo
o comboio, comentava-se a estranha e brusca travagem e agora receávamos
sem saber o quê. Repete-se por mais tempo a imobilização. Silêncio.
Esperámos um pouco mais, eleva-se a tensão, o silência transforma-se em
clima de ameaça. O pânico aproxima-se numa vertigem por detrás dos olhos
de cada um. Em salvação, apresentou-se um candidato a procurar respostas,
era um homem rude, alto, de barba e olhos orgulhosos, convicto da sua
valentia. Desapareceu na porta e depois na noite. Meia hora desesperada após
43
44. 2ª Parte: A viagem.
esta imersão no desconhecido, aproximou-se um vulto que nos retira a
mordaça, essa ansiedade que alarga o tempo e transforma uma espera numa
dolorosa penitência, vem lento som o tempo a fustigar-lhe a roupa..
- "O que se passa, afinal...? " – atirámos vozes em uníssono, enquanto
nos empurrávamos à procura do olhar dele.
- "Camaradas!" - gritou uma voz - "Camaradas!" - insistiu, enquanto os
murmúrios iam acalmando, e as ordens para que se calassem – “chiu… chiu!...
chiu… chiiiiuu… chiu!!! ” - Ao longo da carruagem, corpo alinhados e olhos
esbugalhados à escuta.
- "Camaradas, acalmem-se. Uma grande árvore obstruiu o caminho.
Necessitamos de ajuda lá à frente."
Aqui e ali foram libertando sussurros de uma mistura entre tranquilidade
e desespero: olhos arregalados sobre as incertezas das consequências do azar.
“Podia ser pior disseram uns... azar dos diabos, clamaram outros... esta
viagem está azarada refilaram outros sem saber para quem”. A expressão do
homem era de satisfação imensurável por cumprimento da missão que
esclarecera o medo de todos. Apresentei-me como candidato.
"Queremos homens fortes. " - respondeu-me, avisando também os
outros; ainda assim redargui, espantado comigo mesmo.
- "Na verdade não sou forte, mas num momento crítico como este não
me parece apropriado fazer escolhas."
- "Apropriado… palavras finas… o rapaz… bom, mas tens razão. Apressa-
te que pedem ajuda." – Olhou-me lá do alto da sua rudeza.
Atrás de mim surgiram mais pessoas que me acompanhavam. A chuva
era intensa. Percebi que a minha pobre roupa pouco me podia proteger contra
o aquele tempo invernoso.
44
45. 2ª Parte: A viagem.
A luz fraca da máquina mostrava um monte de ramos que mal se podia
dizer que se tratava de uma árvore. Os funcionários distribuíram machados aos
mais fortes.
- "As restantes ajudam a puxar os troncos e os ramos que se forem
cortando. "- Ordenou um homem que parecia o maquinista, pela autoridade
que supunha deter. Apressámo-nos para junto daquela criação da Natureza,
quando a chuva aconselhava a que abandonássemos aquele local: estávamos
munidos de uma missão, cada um faria o que podia.
No meu pensamento estavam as palavras do homem, á pouco, na
carruagem; tinha-me aceitado apesar da minha fraqueza e sobretudo pela
minha insistência, e a somar a esta vitória que só de mim dependera, neste
momento trabalhava, sentia-me útil, fazia algo que pertencia a um objectivo
comum, pertencia ao conjunto, estava num grupo: era importante a minha
fraca ajuda.
Enquanto trabalhavam os corpos iam chocando, ombro a ombro, suave e
cadenciados, bruscos e hirtos, mas ritmados e capazes de prosseguir adiante.
Pela primeira vez perseguia um objectivo tangível no interior do sentido de
utilidade, participava com a alma nas mãos, seguro de que seria capaz, fossem
quais fossem as adversidades. Chovia cada vez mais. A minha roupa tão
encharcada, já não distinguia a humidade do corpo da chuva. Vozeavam -
"Vamos rapazes!" - Estes sinais renovavam a vontade e o ritmo.
- "Afasta esse ramo, para cortar o tronco principal."
A árvore era enorme, os ramos muito compridos, só depois de uma hora
conseguimos atingir o tronco principal; procurávamos agora, com machados e
outras ferramentas cortar a essencial de um ser que demorara muito mais do
que uma vida humana a crescer, defrontando as mais aterradoras ameaças,
45
46. 2ª Parte: A viagem.
engrandecendo lentamente a sua forma, sucessos que nada valiam, e agora,
recolhemos a sua grandeza num monte de restos.
- "Então, como vais?" - aproximou-se o homem a quem exigira o meu
lugar aqui; com uma palmada nas costas procurou animar o meu trabalho.
- "Com a chuva é mais difícil. "- Respondi-lhe sem desprezar o meu
trabalho.
- "Não tarda, tiramos a árvore. O trabalho caminha muito bem. " - Com
isto afastou-se.
A manhã demonstrava-se quando trouxeram as correntes para
removermos os troncos. Eram necessários 10 homens para arrastá-los,
esforçava-me o melhor, parecia compreender afinal o que tínhamos construído
em conjunto. Um a um foram saindo todos os blocos e descobrimos o caminho
desejado, vedado pela árvore gentil e inocente. Compreendia também o que
tinha sido destruído, uma árvore que morre, plantada há tanto, viu gerações,
foi desviado o equilíbrio de dezenas de anos; e aquilo que se constrói através
do homem, um ser todo em si contraditório e limitado, perece num equilíbrio
precário. A chuva parara e o sol amedrontava-se por entre as nuvens, nas
minhas mãos sentia a dor de uma noite de trabalho, sangravam, tinha-me
magoado nos ramos fortes quando os tentava separar da sua vida, parecia
assim que se debatiam: procuravam escapar-se à morte.
Fomos ficando por ali, encostados ou sentados na berma da linha do
caminho-de-ferro, avaliando as feridas, tomando consciência do que havia sido
realizado, sossegando o corpo exausto. Foram chamando ao longe, outras
vozes repetiam, repetiam em ecoao longo da correnteza de todos, arrastámo-
nos até ao nosso lugar onde, pouco depois, surgiram os funcionários a
distribuir cobertores e café quente – “Doces” – Pensei - “Que bom, tanta
46
47. 2ª Parte: A viagem.
gentileza...” . Tanta gentileza e até uma refeição! Uma incerteza no meu futuro;
lembrei-me da senhora que me oferecera pão feito com as suas mãos e que
deixara na estação abraçada aos seus. O que faria neste preciso momento?
Lembro-me da sua doçura.
No local onde caíra a árvore juntara-se um grupo. Avaliavam qualquer
coisa. Mais tarde percebi a razão, a árvore tinha deformado os carris; mesmo
assim pareciam confiantes que isso não impediria de prosseguirmos viagem.
- "Todos a bordo!" - Lá fomos; uns só se moveram com ajuda, outros
deliciavam-se com o pequeno-almoço improvisado, outros ainda, arrastaram-se
com dificuldade, o sono caia-lhes de cima com os olhos pousados no chão, o
corpo arqueado, enrolado no último fôlego. Olhei para trás, observei os restos
daquela Natureza feita árvore, pude sentir-lhe a sua história, a sua nostalgia, a
sua angústia, o seu sofrimento. Alegrava-me que a sua função jamais
terminaria, porque era em si Natureza. Tomara eu compreender-me assim e
poder também morrer assim, descansado perante a dignidade de mim, perante
a justeza e a seriedade da minha vida, poder, enfim, olhar para trás sem ansiar
fazer mais, seguro de que fizera o melhor que soubera, com sacrifício e
esforço. Iria ficar ali serena e eterna. Dobrei o meu corpo submisso à sua
importância, à sua relevância... Não lhe desejava a minha sorte. Olhei uma
última vez e subi para o meu lugar que parecia também eterno, grotesco até,
defronte à minha incapacidade de ser eu, de olhar para mim e de aceitar a
inutilidade da vida passada, e que é isso mesmo, passado.
Passado um pouco ofereceram mais café, bolos e até pão. Procurei saciar
a minha fome, pois não sabia quando o faria de novo. Entretanto o comboio
anunciara a partida. Meneava-se cansado. Muito lento, receoso dos carris
empenados. Pude observar uma última vez os restos daquela árvore que se
47
48. 2ª Parte: A viagem.
atravessara no caminhos dos homens. O destino dos homens é idêntico ao
daquela bonita árvore, o caminho é o mesmo, só o tempo nos diz quando nos
atravessaremos no trilho da morte.
Saboreei aquela inesperada e soberba refeição. Tudo estava delicioso.
Pouco depois repousou o cansaço em mim, senti-o por todo o corpo, o trabalho
noctívago fora demasiado, e após despir a roupa húmida aconcheguei o meu
corpo ao cobertor e pude descansar.
Algumas horas depois, os sons de uma guitarra desvirtuosa, ignorante,
inocente, simples, ilumina as faces cansadas de todos. Afluímos em multidão a
essa carruagem de onde emergiam os sons ritmados misturados com o
ajuntamento sonoro das gentes. Arrastei-me também e já participava na festa
quando a carruagem era pequena para tanta alegria concedida a estes simples
da terra. Um acordeão, pesado e livre, lançou sons limpos; os gestos
expandiam-se com a dança dos corpos e as palmas das mãos chocavam
hilariantes, os sorrisos retinham a sumptuosidade daquilo espontâneo - a festa
- aquela festa do interior da alma do trabalho, de um lado para o outro
balouçava a felicidade, os copos erguiam-se, a tristeza amuada ao canto,
partimos para um lugar onde a preocupação se esconde atrás de um sorriso; a
felicidade aumentava ainda porque era merecida, assim a festa continuava,
acompanhada dos risos nas mentes humildes, simples e resignados que se
entretinham no sorriso despreocupado dos olhos brilhantes. Os homens e as
mulheres desligados do abismo que os cerca, libertavam a voluptuosidade da
sedução e extinguiam o espaço vazio entre os corpos que rodopiavam com os
olhares inequívocos do convite, saracoteavam-se em frente uns dos outros;
aqui e ali uma gargalhada seduzida pelo charme; aqui e ali uma perseguição
até ao beijo; aqui e ali uma atenção brilhante; um olhar mais demorado; um
48
49. 2ª Parte: A viagem.
sorriso atento; um carinho mais forte; um riso afagado pelos lábios abertos. A
festa estava instalada e a agitação continuava, livres e libertinos por um
segundo, deixavam que a lascívia dos momentos eternos num instante
perseguisse o mais ténue brilho, esquecíamos as novidades do mundo lá fora,
agora entrelaçávamos os corpos, escorria-se uma intimidade, rodavam a alma
em torno do ritmo proposto pela música sempre igual. Depois da felicidade, o
êxtase. Contava-se uma tristeza, libertava-se a alma nos ouvidos atentos do
outro, num momento próprio para se envergar a personagem do confessor,
ideal para se exorcizar a besta que nos esconde o futuro, nos verga o corpo,
quando o futuro está a um passo. Derrotada a tristeza, libertava-se o licencioso
e sorria-se em fiapos da vida efémera. Mais tarde, a bebida melíflua ejectou o
corpo já cansado, e percorremos os caminhos de um lugar mais divertido
ainda; era o mais puro instinto. Depois os corpos em brasa dos animais
recostaram-se, exaustos. Descobrimos a ingénua felicidade, a pueril dignidade
de ser, a inocência dos sentidos, o brilho humano e a virtude da festa. Ligámos
as pessoas a um instante comum, um lugar seguro na memória fixo pelas
emoções quentes; a festa terminara. A confiança espreguiçara-se e
desencantara o amor.
Amanhã espera-me o dia e a ansiedade da incerteza do meu caminho.
Acordei estremunhado. O corpo lesto apercebia-se do espaço. As pessoas
agitavam-se ao longo da carruagem sem motivo que o justificasse.
Aproximava-se o término da viagem, pouco mais faltava do que alguns
minutos. Outros como eu iam acordando, enquanto alguns arrumavam a sua
bagagem. Tinha dormido bastante tempo, e ao contrário de todos aqueles
49
50. 2ª Parte: A viagem.
ocasionais companheiros de trabalho, sentia-me triste: não só porque me iria
despedir daquela pequena família imprevista como, não saberia depois que
rumo tomar.
- "Já te recompuseste... muito bem." - aquele homem não me tinha
esquecido.
- "Estou ainda cansado, mas..."
- "Esta viagem deve ser homenageada com uma boa despedida, não
achas? " - referiu entusiasmado e com um pouco de insegurança.
- "Sim..." - respondi triste.
– "Pareces aborrecido... bom... vou passar a palavra, agrupamo-nos na gare."
- Afastou-se dirigindo o seu corpo, esgueirando a cabeça, gesticulando com
os lábios a notícia abominável para mim, cujo significado, era muito simples,
ia ser despejado e depois seria crucificado na cidade. Para mim cidade era
sinónimo de lá-fora e tragédia. Eram todos homens e mulheres de trabalho,
observava-os com alguma atenção; procurava reter cada uma daquelas
faces, cada um dos seus gestos, queria reter aqueles momentos, ficarmos
ali com o sempre como ordem; que ali permanecesse a minha vida
completa. Queria reter aqueles momentos seguros. Não esquecer. Querendo
vivê-la sempre. Todos guardavam as suas pequenas coisas, reconhecia-se
nas suas faces a longa história e o esforço por que passaram para estar ali.
Com os olhos reconheciam, inconscientes, os seus objectos, extensão de
cada um deles, faziam parte intrínseca da sua casa, aspectos particulares da
sua vida, componentes de uma personalidade, objectos que compunham o
seu espaço; procuravam, remexiam, com as mãos acondicionavam tudo o
melhor possível, porque a vida é sempre longa e difícil.
- "Não te preparas. Estamos quase prontos para partir mais uma vez." -
50
51. 2ª Parte: A viagem.
Fui acordado por esta voz que vinha da terra. Apressei-me, por sugestão..., a
acomodar os meus pertences que pouco mais do que um livro, alguma roupa
numa pequena mala, e eu próprio… compunham-se guardados uns nos outros…
contíguos. Soltei os meus olhos por sobre aquele lugar de tantos dias num
olhar já perdido e talvez um dia o encontre na memória - "Jamais voltaria ali."
- Pensei. Saí…. Lá fora alguém se preparava para discursar. Em cima de um
banco ia falando com este e aquele, até que pediu atenção, esperou que todos
se acalmassem, e emocionado, começou por ler algumas palavras que tinha
improvisado num papel rasgado. Começou:
- “À falta de solidariedade que hoje vivemos, não tenho dúvida em
felicitar todos pela resposta dada nesta viagem que começou há tanto tempo…
pela demonstração de espírito de equipa… De um modo espontâneo reunimos
os esforços que necessitamos para ultrapassar aquela barreira, e disso
construímos um trabalho, cooperativo, que se aprecia pela ideia que sugere,
um colectivo que se esforça no mesmo sentido. No fundo, jamais esquecerei
este lugar e este sentimento, jamais vos esquecerei, jamais esquecerei essa
ideia. O que não podemos lamentar é que o tempo voe, e que os episódios
descansem na nossa memória, escondidos na penumbra. E por isso, com
orgulho, me despeço e vos digo; esta foi uma lição que necessitamos de usar
no futuro quando a sobrevivência o impuser, no fundo, quando a Natureza o
desejar."
Terminou afagando os olhos, as lágrimas escorregavam até ao fundo de
si. Eu estava espantado com a eloquência do discurso (as pessoas guardam,
muitas vezes, estas surpresas). O ambiente detinha-se aprisionando a
denúncia do fim daquela experiência. Abraços sinceros, beijos únicos,
51