Este documento é um resumo biográfico do Tenente Luiz Murta, contado por ele mesmo em entrevistas gravadas. Ele descreve sua infância em Mariana e mudança para Belo Horizonte aos um ano de idade, onde cresceu com seus pais e quatro irmãos sobreviventes. Ele também compartilha memórias de seus avós e da inocência de sua avó na juventude.
3. livro 12/14/04 14:40 Page 3
De 0 a 80 em 66 páginas
Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta
Gerson Murta
Gino Murta
Gustavo Murta
4. livro 12/14/04 14:40 Page 4
Gerson, Gino, Gustavo.
De 0 a 80 em 66 páginas
Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta.
Belo Horizonte, 2005.
Catálogo sistemático
1. Biografia. / Militarismo.
Projeto gráfico e diagramação
Rodrigo Romaneli
Gustavo Radicchi Murta
Biografias e ghostwritings
Rua Vereador Orlando Bonfim, 168, Planalto
Belo Horizonte – MG – 31.720-490
gusmurta@hotmail.com
Telefax (31) 3494-1310
(31) 9117-245
5. livro 12/14/04 14:40 Page 5
Um livro sobre a vida de uma pessoa é como uma gota d’água, se compara-
do ao oceano do conjunto e da intensidade dos acontecimentos que lhe permearam
a existência. Mas o importante é que quem provar dessa água – o leitor – reconheça
que ela veio daquele oceano que existe e que se procurou espelhar. E quem ler as
páginas desta publicação e conhecer Luiz Antero Murta há de reconhecer nelas a
substância vital do oceano de acontecimentos que permearam a existência dele até
então.
Os fatos relatados a seguir são fragmentos de experiências riquíssimas, faís-
cas de histórias luminosas que, agrupadas, formam um panorama do brilho da vida
dela até um determinado momento. Assim, esse cenário pode ajudar a quem o lê a
fazer uma idéia, muito próxima da realidade, das experiências mágicas que só essa
pessoa conhece de verdade.
Por mais livros que se escrevessem, jamais se conseguiria esgotar em
palavras a existência de uma pessoa – ainda mais quando ela completa oito décadas
de vida. Este é como se fosse um mapa e cada acontecimento, uma parada em um
trajeto muitas vezes penoso, mas muitas vezes mágico.
***
Pai,
Queríamos muito lhe fazer esta surpresa. Este livro é o presente de seus qua-
tro filhos, que te amam muito, pelos seus 80 janeiros. As próximas linhas trazem fra-
ses muito, muito próximas da transcrição das fitas, que é um jeito que achamos de
retratar melhor alguns fatos de sua vida, preservando o seu jeito de contar histórias.
Fomos fiéis às gravações para retratar, com a maior naturalidade e desembaraço
possíveis, seu percurso de vencedor. De superação de desventuras. De um homem
que jamais conheceu a preguiça nem viu qualquer espécie de desistência.
Sempre comentamos – assim como o fazem várias pessoas que conhece-
mos – que o senhor está muito fortão, inteirão, saudável e bem-disposto, graças a
Deus. Cuida da piscina da casa e de alguns pares de passarinhos – seu hobby
favorito – com zelo incrível. Até corre e carrega peso se for preciso e anda com pos-
tura impecavelmente ereta, como se contasse vinte ou trinta anos de idade a menos.
Que muitos anos de vida venham, pai. E outros 80, por que não? Feliz aniversário,
oitentão!
Gerson, Gino e Gustavo.
Belo Horizonte, segunda-feira, 03 de janeiro de 2005.
6. livro 12/14/04 14:40 Page 6
Às inesquecíveis Maria e Girselle,
nossa mãe e irmã, respectivamente. Saudades sem fim.
7. livro 12/14/04 14:41 Page 7
Meus avós
O camarada e a “duja-na-queda”
Meu pai e meu tio (José Murta Sobrinho e Carlindo Januário Murta, respecti-
vamente) contavam que o pai deles era muito legal, pois dele nunca levaram sequer
um beliscão (algo bastante raro para a época e que fazia jus ao nome “João do
Espírito Santo”). A mãe e a avó deles, por suas vezes, batiam bastante, por elas e por
ele (veja anexo 1).
Só que um dia foi tanta a pressão delas, para que ele desse uns cascudos
nos meninos, que ele concordou e levou papai e tio Carlindo para um quarto, tran-
cando a porta. Mas os enrolou em um colchão, dizendo para gritarem cada vez mais,
e começou a bater com o correão na espuma. Quando os meninos já estavam quase
roucos de tanto berro, as mulheres acharam que estava demais e arrombaram a
porta. Acharam que meu avô, que nunca tinha batido nos filhos, tinha de excedido.
E o viram ainda batendo no colchão, com os meninos rindo e gritando ao mesmo
tempo. Foi aquela desmoralização. Coitado do João do Espírito Santo!
O casamento desses meus avós foi em 1895. Ela era ainda menina, 13 ou 14
anos. O casamento era assim. O pessoal chegou e falou que ela ia casar com o Seu
João. Imagine como era a inocência das pessoas: ela achou que casar era o que ela
via dos pais, ele saindo pra trabalhar, ela cuidando da casa, lavando, passando, um
chamando o outro de senhor e senhora. Ela achou que era isso.
Depois do casamento simples, foram embora. Mas na noite de núpcias, ela
viu o marido nu e achou aquilo o maior absurdo. Do jeito que estava, de camisola, ela
saiu correndo para a casa dos pais, que moravam perto. Foi uma luta para convencê-
la que era aquilo mesmo. Mas a inocência continuou. Ela começou, algum tempo
depois, a sentir algumas coisas estranhas, queixando-se à mãe de que a comida não
parava no estômago, vivia fazendo vômitos. No meu tempo já era assim, filho tinha
medo de perguntar as coisas para pai e mãe, imagina bem antes. Aí a mãe dela disse
que aquilo tudo era porque ela ia ter um filho. Ela não sabia por onde o menino ia sair
e continuou enrolada mesmo quando a mãe explicou.
Absurdo: sutiãs na vitrine
A minha avó, certa vez, voltando do trabalho, chegou em casa revoltada,
revoltadíssima. Ela tinha visto, na vitrine de uma loja do centro da cidade (BH), um
busto feminino (sem cabeça e braços) com um sutiã, expondo uma peça dessas.
Achou aquilo um absurdo. Isso, na década de 40. Coitada! Se ela estivesse vivendo
hoje, no século XXI, o escândalo seria terrível, porque hoje a situação é de verdadeira
calamidade. Muitas mulheres estão andando, verdadeiramente, semi-nuas. Imagina
o que Dona Jovita sentiria...
Lembro-me de outras palavras engraçadas de minha avó. O primeiro vigário
do bairro da Concórdia, onde residíamos, chamava-se Padre Pedro. Era mil novecen-
tos e trinta e poucos. Uma vez ele foi convidado para fazer uma viagem à Roma.
Então, ele já tinha viajado, e estava aquela discussão lá, entre nós e outros vizinhos,
8. livro 12/14/04 14:41 Page 8
se o pároco tinha ido ou não direto de Belo Horizonte para o Vaticano.
E vovó pôs fim à discussão: “Não teimem, Padre Pedro foi pro Gio!”, repreen-
deu Dona Jovita. “Agora, do Gio ele vai jeto pra Joma!” É que ela tinha dificuldade de
pronunciar o “R”. As palavras com essa letra, ele dizia como se fosse com “J” ou “G”.
“Não teimem, Padre Pedro foi pro Rio (de Janeiro)!”, traduzindo a fala dela. “Agora,
do Rio ele vai reto pra Roma!”
Em 1969, minha avó Jovita morreu. Senti bastante, porque era a única avó
que conheci. Nos últimos anos, no asilo, na rua Pirapetinga na Serra, ela alternava
momentos de lucidez e momentos em que perdia a memória. Às vezes perguntava
quem eu era e com quem tinha me casado. Um dia, quando fui para uma visita,
lamentou que eu não tivesse chegado mais cedo. “Ô, rapaz, seu pai acabou de sair”,
disse ela. Depois dizia que ele iria dar uma passada por lá. “Não vai embora ainda
não, porque se seu pai souber que você esteve aqui e não pegou você aqui vai ficar
com um pesar danado”, pedia minha avó. Só que o meu pai, filho dela, tinha morri-
do bem antes daquilo, coitada.
9. livro 12/14/04 14:41 Page 9
Meus pais e irmãos
Futebol e taioba: palavras proibidas
Falando de outra cidade religiosa, meus pais, assim como eu sou, eram na-
turais de Mariana, a 1ª capital de Minas Gerais. Começaram o namoro desde crian-
cinhas mesmo, ainda na escola primária (1ª à 4ª série). Eles moravam na mesma rua,
uma casa em frente à outra. Iam para a escola e voltavam juntos. Meu pai nunca teve
outra namorada. Minha mãe nunca teve outro namorado. E se casaram lá mesmo, em
Mariana. Nos transferimos para Belo Horizonte em 1926, quando eu contava um ano
de idade.
Fomos sete irmãos, mas somente quatro escaparam – antigamente, a taxa de
mortalidade infantil era muito alta. A 1ª, Iolanda, que eu não conheci e era a mais
velha – nasceu antes de Dilico – e dois outros, que nasceram depois de mim, já na
capital: Justino Guadalupe e José Clemente. Ambos antes de minhas outras irmãs,
Jaci (em 1931) e Lourdinha (1934).
Naquele tempo tinham, em Minas, o costume de colocar o segundo nome da
criança de acordo com o santo do dia. É por isso que tenho o Antero no nome, nasci
em 3 de janeiro, dia desse santo,
padroeiro dos bibliotecários (coincidên-
cia: Luiz hoje é o responsável voluntário
pela biblioteca da Associação
Beneficente dos Militares das Forças
Armadas – Abemifa, de onde é sócio-
fundador). Mas era dia de Santa
Genoveva, também. Teria esse segundo
nome se fosse mulher. Por causa daque-
la tradição, Dilico tem o Martinho no
nome.
Engraçado, ele e Lourdinha têm os
olhos muito azuis – puxaram minha avó
materna, Ana Zeferina, filha de por-
tugueses – mas a cor dos olhos de
minha irmã caçula sempre foi a mesma.
A dos de Dilico, não. Foi mudando com
o tempo. De pequeno, tinha o apelido de
olho-de-gato: era um verde-água-do-
mar, claro mesmo. Depois foi ficando
escuro, como um veludo de mesa de
sinuca. Aí foi clareando para um azul
bem claro, quase cinza. Quando virou
Luiz (E) e Dilico, com os pais, Seu Juquita adulto, ficou um azul forte, já em Belo
e D. Eliza Horizonte.
10. livro 12/14/04 14:41 Page 10
A canecada
Poucos meses antes da mudança para a capital, eu ainda não andava e a
minha mãe lavava as vasilhas, as louças, em uma bica d’água. Ela me punha senta-
do, com algumas batatinhas fritas e alguns bagos de feijão cozido (que eu gostava
muito) em um cuité ao meu alcance, para eu ir comendo (e me distraindo) enquanto
ela trabalhava. Meu irmão, Dilico (Jandir), três anos mais velho que eu, ia pondo as
vasilhas já lavadas para secar.
E ele viu que os franguinhos que minha mãe criava estavam comendo a
minha comida. Para espantá-los, ele pegou um caneco (uma lata de azeite aberta
com uma asa colocada do lado) que ia colocar para secar e atirou na direção das
aves. Mas ele acertou mesmo foi a minha testa, fazendo um grande rombo. Eu nunca
tinha visto sangue. Tenho e cicatriz funda aqui até hoje, marcando a fronte.
Daquela época, pouco antes de nos mudarmos para a Capital, eu me lembro
perfeitamente dos acontecimentos. Meu pai (da então Guarda Civil) chegava do tra-
balho e ia logo me carregando e meu irmão levava uma toalha e sabão para papai se
banhar no ribeirão próximo de casa.
Ele me deixava sentado (ainda não
sabia andar, aliás, demorei a aprender)
e meu irmão depois já trazia de volta a
toalha usada e eu voltava pra dentro
de casa nos braços do meu pai. Me
lembro disso perfeitamente.
Dois anos depois disso, já
aqui em Belo Horizonte, nasceu meu
irmão José Clemente, que faleceu, e
dois anos depois, nasceu Justino, que
infelizmente também veio a falecer.
Lembro-me com perfeição também do
sepultamento deles. O transporte dos
corpos era feito por carruagens, não
era em viatura automotora, não. Para
crianças, eram pintadas de azul e
branco, com dois cavalinhos brancos.
Nós morávamos no alto do (bairro)
Colégio Batista e eu lembro muito bem
da chegada delas.
O coice
Ainda residindo nesse bairro,
tinha um comerciante, que também
tinha muitos quartinhos para alugar,
chamado José Cirilo Guedes, apelida-
do de Seu Juquinha Guedes. Tinha
também um senhor chamado Bernar- Luiz e Dilico (D).
11. livro 12/14/04 14:41 Page 11
do, que cuidava da caixa d’água ali do alto (do Colégio Batista). E, montado em uma
bestinha, ele (Seu Juquinha) vinha a uma vendinha toda noite, tomar a sua pinguin-
ha. E amarrava o animalzinho, muito mansinho, ali na porta.
Certa noite, meu irmão Dilico vinha brincando. O pneu que ele vinha rodan-
do soltou da mão e bateu na bestinha. Ela se assustou e deu um coice, acertando
Dilico. Abriu uma brecha na cabeça dele (ô gente que machucava a cabeça, era,
canecada, era coice que tomava...). E o pessoal naquela época, os vizinhos, cada um
vinha com uma receita de cura. Uns com ervas como gervão ou assa-peixe, outros
com bálsamo, para pôr na ferida, junto com sal.
“Não, pra estancar o sangue, o bom pra isso é picumã”, sugeriu uma senho-
ra (um método pouco científico, com menos assepsia ainda). Picumã eram aquelas
teias pretas de aranha, que escureciam com a fumaça, porque ficavam em cima do
fogão à lenha. E encheram aquela cratera na cabeça de Dilico com o tal do picumã.
Bom, acabou resolvendo, porque hoje ele também só tem a cicatriz. Não teve pro-
blemas maiores, não.
Para esse, para minhas irmãs e para mim, meus pais deixaram exemplos de
austeridade, de trabalho, de honestidade. Eram, no entanto, muito rigorosos, muito
disciplinadores. Meu pai, ele fez carreira na Guarda Civil, chegou a ser fiscal de turma,
depois de ser guarda e fiscal rondante, comissionado a um cargo elevado. Só não foi
promovido mais porque não tinha vaga. Mas ganhava como um cargo superior a fis-
cal de turma.
Por exemplo, ele detestava futebol. Não deixava a gente jogar e nem assis-
tir. A gente tinha que jogar escondido, aproveitando as horas em que ele estava tra-
balhando. Já tínhamos mudado do alto do Colégio Batista para a rua Jundiaí, esquina
de Pitangui, nas imediações de rua Formiga e rua Angico, onde hoje é bairro São
Cristóvão. Mas nós íamos longe. Voltávamos (Dilico e eu) para fazer as compras lá no
Seu Juquinha Guedes. As compras, muito pesadas, a gente punha num balaio e o
colocava na cabeça.
Ali estava bom. Mas até chegar em casa, o peso parece que ia aumentando,
o pescoço ia doendo. A gente não podia parar e descer o balaio, porque ele caia.
Como tinha muito pedregulho no chão e a gente andava descalço, tropeçava, porque
não dava direito para olhar para baixo. Chegava em casa com os dedos arrebenta-
dos, sangrando, suados, cansados. “Isso é o fôôtibol!”, censurava meu pai. “É o raio
(com muita ênfase no “R”, mas não trocando-o por “G” ou “J”, com a mãe dele) do
fôôtibol!”. Só rindo!
E ele, apesar de não gostar de fôôtibol, fez parte da primeira Diretoria de um
clube que existe até hoje, o Pitangui Esporte Clube. O campo dele ficava onde tinha
sido uma pedreira, perto da rua Diamantina. E a gente não podia assistir nem aos
jogos do time dele, nem aos do Vila Concórdia, outro time de várzea lá de perto.
“Olha o pastel”
Jogar e assistir não podia, mas vender as coisas para a torcida podia. Como
a coisa em casa estava muito apertada, minha mãe fazia uns pastéis para a gente
vender na várzea. Certo dia o time do nosso bairro, o Vila Concórdia, foi jogar com o
12. livro 12/14/04 14:41 Page 12
Imperial, no Alto do Colégio Batista (para onde eu fui), enquanto outros times estavam
jogando no campo do Concórdia (para onde foi Dilico).
À certa altura, eu já tinha vendido todos os pastéis e tinha os bolsos cheios
de moedas. Já podia ser só torcedor. Então, o Concórdia fez mais um gol bonito, eu
comecei a pular, comecei a pular, e nem vi que as moedas caíram do bolso. Depois
que terminou o jogo, eu vim para casa alegre – o meu time tinha vencido fora de casa
– rodando o balaio, todo tranqüilo.
Falei que tinha vendido tudo, mas, na hora de prestar contas, tinha só uma
meia dúzia de moedas nos bolsos. Eu disse que não sabia, que estava ali. E tive que
contar a verdade, que tinha ficado para assistir ao resto do jogo, tinha pulado para
comemorar um gol e o dinheiro só podia ter caído assim. Mas na hora que acabei de
vender eu tinha que ter vindo embora. Não podia nem assistir. Resultado: levei uma
surra tremenda. Mas valeu a pena porque assisti a um pouquinho do futebol.
Outro motivo para surra era falar palavrão, pois fomos criados com muita
austeridade. Não tinha brincadeira, não. Tinha um casal de italianos, donos de uma
horta muito grande. Cada dia a minha mãe mandava ir lá comprar verdura. Às vezes,
comprava repolho, às vezes, couve. Mas naquele dia ela queria fazer outra verdura:
taioba. Então, me mandou ir comprar, mas com a recomendação. “Luizinho, vá, mas
não fala taioba, não, porque isso é palavrão”, aconselhou minha mãe. “Chega lá e fala
que você quer um maço de taiá”. Bom, eu obedeci. Cheguei lá, fiz o pedido, mas os
italianos não sabiam o que era taiá. Eu tive que apontar: é aquilo lá que eu quero. Os
italianos riram. “Isso é taioba, menino”, disseram.
O pescador
São umas coisas que a gente lembra da infância. Outras de que me lembro
muito bem: os casos que contava o meu tio Francisco Alves de Almeida, o Chico
Capeta, o homem mais mentiroso do mundo. Ele era o irmão mais velho de minha
mãe. Era um indivíduo que não parava. Era andarilho. Nasceu em Mariana (MG), mas
residia na cidade de São Paulo. Ele viajava muito e se fixou lá ainda rapazinho. Mas,
periodicamente, quando ficava em dificuldades financeiras, ele corria para a nossa
casa, em Belo Horizonte. Mas quando arrumava uns serviços pra fazer, ele fazia umas
economias e voltava para São Paulo.
Ele era muito papudo. Quem o escutasse falar, muitas vezes poderia pensar
que ele era um alto-engenheiro, a não ser pelas muitas coisas erradas que dispara-
va. Ele era semi-analfabeto, teve poucas oportunidades de estudar. Falava que nós
tínhamos que conhecer a capital paulista de qualquer jeito. O qualquer jeito era enfa-
tizado pelo fato de Belo Horizonte ser, na época, uma cidade-menina mesmo (na
década de 30, a capital mineira contava apenas com cerca de 40 anos de existência
– em 2005, a capital mineira completa seus 108 anos, com cerca de dois milhões e
200 mil habitantes).
Chico Capeta vivia falando o nome de um dos maiores empresários paulistas
da época. Ele falava que lá se entrava em uma rua, estava lá escrito Matarazzo S.A.
Tomava uma avenida e lia Matarazzo S.A. Chegava numa praça e lá estava Matarazzo
S.A. “E vocês sabem o que quer dizer S.A.?”, nos perguntava. A gente não sabia.
13. livro 12/14/04 14:41 Page 13
Nem ele. “S.A. quer dizer sociedade anômica”, completava meu tio.
Alguns aviões em São Paulo, se acordo com Chico Capeta, tinham asas
enormes. E comparava: elas iam como se fosse do bairro da Concórdia (Zona Leste
de BH) a Nova Lima (cidade ao Sul da Região Metropolitana). Nem menino conseguia
acreditar. Na hora do aperto, ele sempre corria para Belo Horizonte – a roça, como
ele falava, carregando na pronúncia do “R” – e para a minha casa. Mas, depois que
o negócio desmoronou lá em casa, com a separação do meu pai e depois com a
doença da minha mãe, ele nunca mais apareceu. Tem muita gente ingrata mesmo. Dá
raiva.
Brigas fraternais
E por falar em raiva, eu e Dilico brigávamos muito quando pequenos. O pau
quebrava mesmo. Hoje, não, nos damos muito, muito bem. Mas naquele tempo o
danado tinha a mania de me passar a perna. Naquelas ocasiões, minha mãe puxava
a orelha dele, chamava-o de Alfredo – irmão dela, meu tio, com fama ter adquirido
muitos imóveis em Mariana usando esperteza pura.
A gente ia longe pegar, com uma peneira em lagoas, piabas, lambarizinhos.
Eu é que ia nos lugares mais fundos, porque ele tinha um medo danado de água. Mas
na hora de dividir os peixes nos dois aquários, ele sempre separava os maiores para
si. Um dia, então, eu esperei ele ir para a escola eu peguei um canivetinho dele – que
tinha forma de peixe – e arranquei os olhos dos peixes.
Quando ele chegou, encontrou os peixes todos boiando. “Ai, mamãe, vem
ver o que o Luiz fez com os meus peixes. Minha mãe veio ver. “Foi tu, mardito dos
infernos?”, perguntou-me ela. “Por isso que eu vi os bichinhos esbraforidos, batendo
no vidro”. Puxa, que couro eu levei! Surra de ripa. Quando ela cansou da madeira,
pegou uns fios encapados com tecidos. Pegou uns retalhos daqueles, dobrou em
dois e bateu nas minhas pernas. Nem pude ir à escola naquele dia. Sinto dor até hoje.
De outra vez, mandei nele uma tesoura aberta. Ela foi rodando e pimba! Uma
ponta ficou fincada nas costelas dele. Parecia até vingança pela canecada que ele me
deu. Mas não foi, não.
14. livro 12/14/04 14:41 Page 14
Os Radicchi
O jeitão italiano de minha 2ª família
Os avós de minha esposa eram italianos de Cocenza, na Calábria (Sul da
Itália). No início do século passado, vieram trabalhar na lavoura brasileira (veja anexo
1). Mas, como havia crise de maquinistas na época para maria-fumaça, puseram
Antônio Radicchi como maquinista, profissão que ele exercia na Velha Bota. A
primeira viagem que ele fez era BH-Ponte Nova. Mas, na passagem para Mariana, o
trem passava na beirada do abismo, uma viagem muito perigosa. Antônio ficou apa-
vorado. Chegando ao destino, a calabrês afirmou categoricamente que não voltaria
por aqueles trilhos nem guiando a máquina nem como passageiro.
O filho dele, o meu sogro, Seu Amadeu, eu conheci muito pouco, só de
cumprimentar. Quando Maria e eu oficializamos o namoro, o primeiro encontro – na
missa das 9h na igrejinha de Nª Sª das Graças, na Concórdia – ele faleceu. Ela e eu
morávamos no mesmo bairro, íamos juntos no ônibus – ela para o trabalho num
escritório, eu para o quartel. Nos encontramos naquela manhã de domingo e eu fiquei
de ir à casa dela à noite. Mas quando Maria chegou em casa, o pai tinha morrido, de
infarto, dormindo – o mesmo veio a acontecer com ela 48 anos depois.
Gustavo (de mãos dadas com a mãe), Luiz, Gino, Gerson (fundo) e Girselle (de braço
dado com a avó, D. Esther), com parte da família Radicchi.
15. livro 12/14/04 14:41 Page 15
Era um homem muito, muito trabalhador.
Só morreu em casa porque era domingo. Se não
fosse, teria morrido no trabalho, na Serraria Souza
Pinto. Ele era um pai bravo, tudo indica que simpa-
tizou comigo. Fiquei sabendo por vizinhos que ele
faria muito gosto no namoro. Até estimulava a filha.
“O rapaz é sargento da Aeronáutica, Maria”, disse
Seu Amadeu. “Fiquei sabendo que ele quer um
compromisso sério”.
Lembro-me de alguns casos engraçados
que Maria contava do pai dela. Na tradicional Missa
do Galo, no Natal, a família Radicchi ia à igreja,
menos ele, que ficava esperando em casa. Certa
vez, a ceia já estava preparada à moda italiana,
com destaque para o salame Perrela e para o vinho
tinto Barbera. Mas quando a esposa e os filhos
voltaram da igreja, acharam só um toquinho, um Maria.
rabicó de mortadela amarrado com barbante, e alguns dedos de vinho no garrafão.
O resto da família reclamou que ele tinha bebido quase tudo e que o salame tinha ido
todo embora. “Vocês demoraram muito”, argumentou Seu Amadeu. “Ficaram comen-
do galo lá na missa, eu fiquei comendo meu salame aqui”.
O cruzeirense dos cruzeirenses
Ele era um palestrino (torcedor do Palestra Itália de Minas, hoje Cruzeiro)
doente. Quando o time batia, ele dava dinheiro para os filhos irem ao cinema e fica-
va mais permissivo. “Hoje pode chegar um pouco mais tarde”, avisava, com cama-
radagem. Por outro lado, quando o Palestra perdia, ele segurava os bolsos. “Como o
Palestra apanhou, ninguém sai de casa hoje”. Então, os filhos ficaram palestrinos – e
depois, cruzeirenses – também doentes. “Cruzeiro é bom até no bolso”, brincava,
referindo-se à então moeda do país.
Teve uma vez que o time de origem italiana foi jogar contra o Vila Nova, em
Nova Lima (MG). Seu Amadeu foi ao Alçapão do Bonfim, com a bengala que sempre
usava, não por necessidade, mas, sim, por elegância. E a bengala sumiu. Anos
depois, um amigo dele foi almoçar na casa de Seu Amadeu e, lembrando de muitos
casos, comentou o dia em que o palestrino quebrou a bengala na torcida vilanovense.
“Ah, Amadeu, então é por isso que a bengala sumiu, né?”, perguntou D. Esther, mu-
lher dele. Ela dava falta da bengala e ele falava que não sabia onde o objeto estava,
que devia ter esquecido em algum lugar.
Assim, era muito brincalhão, o Seu Amadeu. Às vezes as irmãs dele estavam
cozinhando e ele chegava e desamarrava o laço do avental delas sem que vissem. O
pano caía e elas só viam minutos depois, saindo desesperadas para procurar,
enquanto ele gargalhava, satisfeito.
Todas as três filhas dele (Maria, Célia e Ivone) eram muito bonitas. Assim,
sempre chegava um gaiato conhecido chamando Seu Amadeu de sogro. “É, eu tenho
16. livro 12/14/04 14:41 Page 16
mesmo aqui uma panela boa pra cozinhar
macaco”, respondia ele, conciliando muito
bem uma ponta de ciúme com bom humor.
Isso ele também fazia para justificar
o porquê de não deixar as filhas dormirem
na casa de primos, quando iam a algum
baile. D. Esther insistia, dizia que era a
casa de um dos irmãos dele ou dela, que
elas iam dormir com as primas, mas o
homem ficava irredutível. “Vão dormir com
as primas, mas lá não tem só primas, não,
tem primos também”, justificava. “Não
gosto de ruça-ruça nem com primo nem
com padre”. Uma vez umas senhoras
foram pedir para as meninas dele serem
Filhas de Maria, na igreja. “Não, elas já são
filhas de Esther, obrigado”, despachou.
O filho de italianos era diabético e
hipertenso, mas, cabeça-dura, recusava-
se a fazer regimes. Chegava a comer meia
dúzia de ovos de uma vez. “Não mandei
ninguém colocar açúcar no meu sangue”,
dava de ombros, quando alguém o cen-
Maria. surava. “Quem pôs que tire”. E quando
uma das filhas começava a cantar, acompanhando uma canção no rádio, ele mostra-
va sua insatisfação. “Ô coitada, ela está querendo cantar e o rádio está atrapalhan-
do”, dizia. “Espera aí que eu desligo”.
Já D.Esther era menos brincalhona. Um caso
engraçado é o dos abacates. Ela era louca com fru-
tas. As favoritas, ela comia várias de cada vez. E
numa noite ela mandou nada menos que três aba-
cates compridos inteiros. Dois de meus filhos,
Gerson e Gino, resolveram brincar com ela.
Começaram a falar, fingindo que falavam sério, que
comer muita comida pesada à noite pode fazer muito
mal à saúde e que tinha gente que até perdia a vida
com isso. E D.Esther, que dormia por volta de 21h30
– provavelmente lembrando que abacate tem muita
gordura – ficou com os olhos abertos até, 23h,
23h30, meia-noite...
Gustavo.
17. livro 12/14/04 14:41 Page 17
Infância
Brincadeiras de gente simples
Nós éramos muito pobres e tínhamos que fazer uso de nossa imaginação
para fazermos nossos próprios brinquedos, as próprias recreações. Uma delas era
um pneu de caminhão. Um sentava dentro dele e se encolhia todo ali e o outro ia
rodando o pneu. Nós morávamos numa rua em declive e tinha um platô e nós ficáva-
mos rodando (literalmente) por ali.
Um dia, depois que eu já havia rodado Dilico bastante, chegou a minha vez.
Mas Dilico perdeu o controle do pneu, que desceu à toda a rua Jundiaí, atravessou a
rua Pitangui. E eu, sem parar, gritando para ele parar, ele que já tinha ficado para trás.
O pneu já estava quicando e voando. Tinha um terreno baldio com um grande
declive, onde o pessoal jogava lixo, louças e garrafas quebradas, tudo ali. E a
Prefeitura estava fazendo um aterramento. Foi a minha sorte. O pneu bateu ali e
amorteceu (hoje daria até manchete para campanha política para reeleição municipal:
“Obra da Prefeitura salva menino”).
Nas férias escolares, a diversão era soltar papagaio e correr atrás de um que
arrebentasse a linha, como nas festas juninas a gente corria atrás de balões. E nisso
a gente ia longe. Muitas vezes fomos da Concórdia até (o bairro de) Carlos Prates,
atravessando a Pedreira Prado Lopes e o Santo André. E muitas vezes, por isso, a
gente saía de dia e voltava já de noite. E aí era um couro mesmo, porque a permis-
são para brincar era ali só nas imediações da casa. Os pais mandavam nos chamar,
para nos recolher, e não sabiam da gente, ninguém dava notícia. E a gente dormia
com o lombo quente mesmo.
Já o nosso lazer domingueiro consistia em fazer pescarias e pequenas
caçadas pela região do Ribeirão do Onça e pelos riachos nas imediações de Belo
Horizonte, pelo bairro São Gabriel – que se chamava Gorduras. Para isso, tínhamos
que atravessar um pasto enorme (de uma fazenda), que hoje é o belo bairro da
Cidade Nova (o pasto era dos Silveira, bisavós da moça que viria a ser minha nora,
Consuelo, esposa de Gino, meu filho). Passávamos o dia pescando e caçando pás-
saros de pequeno porte e coelhos, quando eu era menino.
18. livro 12/14/04 14:41 Page 18
Infância roubada
Me virando aos 14 anos
Tive uma infância muito dura, uma adolescência pior ainda, que se acentuou
mais com o falecimento de minha mãe, em 1939, quando eu contava apenas 14 anos
de idade. Foi muito difícil, porque meu pai se amasiou com uma mulher que não me
aceitou. Minhas duas irmãs menores, sim, mas eu não. Aí tive que começar a
enfrentar a vida sozinho.
Por não aceitar que a mulher do meu pai espancasse as minhas duas irmãs
pequenas, com ela fazia quase todos os dias, eu saí de casa por duas vezes. Na
primeira, eu fui morar na Pedreira Prado Lopes. Aluguei um cubículo, um comodo-
zinho pra dormir feito de tábua de compensado e papelão, porque eu não tinha co-
ragem de dormir na rua, na via pública, debaixo de marquise ou em banco de jardim.
Então, o dinheiro que eu ganhava capinando quintal, encerando o piso de casas –
naquele tempo não tinha enceradeira elétrica, era com escovão – eu pagava ali pra
dormir. Mas daquela primeira vez meu pai me localizou e me levou de volta pra casa.
Da segunda vez, também foi porque a mu-
lher estava batendo nas meninas. Então fui
intervir, mas ela passou a mão em um por-
rete e disse que faria o mesmo comigo.
“Não, comigo a senhora não faz isso, não”,
eu disse.
E tentei sair para a rua, mas ela foi
atrás de mim, no meu encalço. Eu falei com
ela para parar (de vir atrás) porque eu não
iria aceitar ser espancado. Ela não me
escutou. Bom, tinha um monte de tijolos
amontoados. Eu então peguei um. “Se a
senhora der mais um passo, eu vou lhe ati-
rar esse tijolo”, adverti. Aí ela escutou.
“Joga, se você é homem”, desafiou a
madrasta, dando as costas como alvo. E eu
joguei. Atingi um dos rins. Ela desmontou.
Tive que sair sem saber para onde ir.
Mas como eu trabalhava para o
advogado Dr. Hugo Pinheiro Soares, eu
pensei “vou pra lá passar a noite” – eu tinha
a chave, eu que abria e fechava o escritório.
Mas, por coincidência, meu patrão tinha ido
ao cinema – não me lembro se foi o Cine
Glória, mais chique e próximo à Praça Sete,
ou se foi ao Avenida, mais à frente um
pouquinho, também na Afonso Pena, para Luiz (E) e oamigo Hernani.
19. livro 12/14/04 14:41 Page 19
quem vem da Rodoviária. Tinha ido com a esposa dele, D. Neide Martins Soares, e
também com o sócio dele, Dr. Vicente de Paula Santos.
Quando terminou a projeção, eles resolveram passar no escritório para pegar
uns documentos. E quando abriram a porta, ficaram muito surpresos ao me verem
dormindo. Eu estava de costas para a porta, no sofá, fingindo que estava dormindo,
porque tinha escutado as vozes chegando. Fizeram alguns segundos de silêncio, que
foram quebrados pelo Dr. Vicente. “Que sujeitinho ordinário, hein?”, disse o advoga-
do sócio de meu chefe. Mas este o repreendeu imediatamente. “Não, espera lá, não
pense assim, não, eu conheço o Luiz melhor que você”, defendeu-me Dr. Hugo.
“Amanhã eu converso com ele para saber o porquê de ele dormir aqui”.
No dia seguinte, Dr. Hugo quis saber o motivo de eu ter passado a noite lá.
Eu contei o caso da tijolada certeira. “Então está bem, você não tem mais ambiente
para ficar lá”, disse meu patrão. “Eu vou lá na Guarda Civil pedir ao seu pai para que
ele permita, você mora lá em casa”. Eles eram um casal sem filhos e me acolheram
e eu passei três anos muito bem abrigado, um grande amparo. Devo isso a eles, essa
acolhida tão generosa, tão humana.
Respeito
E por falar em humanidade, hoje, quando eu contemplo essa sociedade tão
agressiva, essa insegurança em que nós vivemos, pessoas sendo assaltadas em
plena luz do dia, me assombro. Hoje carros são roubados, mesmo tendo sofisticados
sistemas de segurança. Naquele tempo (década de 40), não. Os automóveis não ti-
nham nem chave nem fechadura, era apenas a maçaneta. D. Hugo tinha um modelo
de Chevrolet apelidado pelo povo de guarda-louças, porque era quadradinho.
O pessoal respeitava tanto que o carro ficava aberto, estacionado em plena
avenida Afonso Pena, embaixo das árvores ficus que iam da Praça Sete até a
Tiradentes. Dr. Hugo ia ao Fórum pela manhã e a gente tinha um combinado: às 11h,
se ele não tivesse passado no escritório, eu já podia descer, que a gente ia pra casa
almoçar. E, quando eu chegava primeiro ao carro, encontrava-o aberto, muitas vezes
com livros de direito dentro, guarda-chuva, compras. Ficava tudo ali, ninguém mexia.
Hoje não se pode deixar. Levam até o carro. De maneira que piorou muito essa
questão de segurança em Belo Horizonte. Naquele tempo, ninguém tinha coragem
sequer de passar o dedo, escrevendo em um carro empoeirado. As pessoas tinham
medo não era de polícia, não. Era de o dono chegar e chamar a atenção.
Naqueles três anos que eu morei com aquela caridosa família, uma das boas
coisas era que eu tinha condição de assistir ao futebol. E não mais em campos de
várzea, mas em gramados profissionais. Por sorte, Dr. Hugo – ao contrário de meu
pai – gostava do esporte, torcia para o América (que tinha a camisa vermelha e não
preta e verde como hoje) e não perdia jogos desse time. Mas tinha um probleminha:
eu era (e sou) atleticano. Quando era América e Atlético (no campo do América, onde
hoje é o hipermercado Extra, em Santa Efigênia) e este meu time fazia um gol, eu me
esquecia de que ele era americano e estávamos na arquibancada da torcida verme-
lha e vibrava muito. Quando eu assustava, estava o Dr. Hugo me olhando com uns
olho brancos, censurando-me.
20. livro 12/14/04 14:41 Page 20
Mas antes de trabalhar com Dr. Hugo, na minha infância, fiz vários trabalhos,
como entrega de marmitas a operários, auxiliar de açougueiro, entregador de ternos
de uma tinturaria. Eu fiquei conhecendo o Sr. Oscar Nicolai, dono de uma livraria na
avenida Afonso Pena. Ele estava pretendendo comprar uma casa que eu conhecia,
que ficava perto de onde eu morava, e me pediu algumas informações sobre a cons-
trução. E então ele me perguntou se eu não gostaria de estudar. “Gostaria, mas não
tenho condições, não tenho nem emprego”, respondi. Foi então que ele me apresen-
tou ao Dr. Hugo, que precisava de um ajudante.
Mas nos meus empregos civis, como o dinheiro era muito curto, não tinha
muita condição de namorar. Eu também não era um freqüentador tão assíduo da
Zona Boêmia. Naquela década de 40, essa região era muito tumultuada por dois per-
sonagens: uma mulher, chamada Maria-Tomba-Homem, e um travesti, o Cintura-
Fina. Eram criadores de caso e muitas vezes eram necessárias duas composições de
rádio-patrulha para subjugá-los. Os dois eram bastante violentos, bastante difíceis de
serem dominados.
21. livro 12/14/04 14:41 Page 21
Militarismo
Amor febril pelo Brasil
Depois de trabalhar com Dr. Hugo, eu fazia as entregas menores, de bicicle-
ta, trabalhando para um armazém-atacadista – meu último emprego civil – chamado
Soares e Cia. Ltda. Eu fui o primeiro e depois entraram dois outros ciclistas, para aju-
dar. Depois disso, me alistei na Força Aérea, fui incorporado na então Base Aérea de
Belo Horizonte (hoje CIAAR), onde fiz carreira. Mas também sou muito identificado
com o Exército Brasileiro, onde fiz três cursos, na área da Infantaria. A minha incor-
poração foi no dia 1º de julho de 1944, dia em que a unidade estava comemorando
seu 8º aniversário. Eu já tinha me alistado no Exército no ano anterior. Antes da minha
convocação para o Exército foi aberto o voluntariado para a Base Aérea.
Naquela época, as instalações eram bastante precárias, consistindo apenas
nos hangares, com alojamentos em suas laterais para os soldados antigos, sargen-
tos, e também enfermaria, refeitórios. Mas para nós, recrutas daquele ano, foi cedi-
do um hangar destinado ao Aeroclube de Belo Horizonte – que funcionava lá na
Pampulha e tinha sido transferido para o Progresso. Como era inverno, nós sofremos
bastante com o frio em um lugar muito amplo, com o telhado muito elevado e sem
forro.
Mas isso contrastava com
as disputas acaloradas nos
esportes que praticava nos
horários de educação física, na
Base (Aérea). Eram dois esportes
que eu pra-ticava mais: vôlei e
futebol. Eu era levantador e ponta-
direita, respectivamente. E fomos
pioneiros em muita coisa. Aquele
saque que um jogador aqui do
Brasil dava, mandando a bola lá
pra cima (o Jornada nas Estrelas,
do Bernard), um colega – o 1º sar-
gento - mecânico - de - vôo Nilo
Giorni – já fazia na década de 50.
Ninguém pegava aquilo, vindo
daquela altura: espirrava, ia pra
fora. E olha que naquele tempo se
podia amortecer a bola com as
mãos – eu usava isso, era uma
recepção extraordinária, pra rece-
ber cortada era comigo.
E no futebol, muitos anos Luiz com uniforme de gala da FAB.
22. livro 12/14/04 14:41 Page 22
depois, o Yustrick apareceu com
aquele negócio da cavadinha
(avançar pela ponta direita e
depois em direção à meta). Mas
muito antes eu já fazia isso, por
instinto. É tanto que eu poderia ter
sido o maior goleador, mas eu
achava que a minha função era
correr e dar condição aos ata-
cantes de fa-zerem os gols. Como
eu corria muito e nem os compa-
nheiros de ataque nem os adver-
sários conseguiam me acompa-
nhar, eu ficava esperando. O
Yustrick, portanto, apenas oficiali-
zou a cavadinha, mas eu já fazia
aquilo há muito tempo. Luiz (D) e companheiros em acampamento
militar em BH.
As surpresas do Brigadeiro
Ainda sobre os tempos de Base Aérea da Pampulha, presenciei episódios
memoráveis. Alguns dos mais marcantes foram as visitas-surpresa do brigadeiro
Eduardo Gomes à minha unidade, em Belo Horizonte. Ele chegava sozinho com o
avião C-47, sem co-piloto, sem mecânico.
E era um Deus-nos-acuda, porque ele dispensava formalidades, dispensava
tudo, chegava quase na hora do almoço. O comandante o convidava para ir ao
refeitório dos oficiais, mas o brigadeiro sempre recusava. E entrava na fila dos solda-
dos, pegava a bandeja e ia comer junto com eles, acompanhado pelo comandante e
por vários oficiais. Não admitia nem ser servido à mesa por um taifeiro. Queria ver
como estava o rancho dos homens e normalmente entrava na fila de novo, repetia a
refeição, bom-garfo que era. Certa vez, elogiou a comida, mas fez uma crítica. “Só
lamento que aqui, nesta unidade, em Minas Gerais, terra da banana e do leite, não
tenha nenhum dos dois na mesa dos soldados”. Depois disso, a gente até cansava
de tomar leite e comer banana na hora das refeições. Devia ser medo do homem
voltar e ter que fazer a mesma crítica.
Já a minha atividade como sargento de infantaria era muito dura, porque eu
era monitor: dava instrução para duas turmas de recrutas, dois cursos de cabo e um
curso de sargento. Isso anualmente e sem prejuízo da escala de serviço interna e a
externa (patrulha mista). Lembro-me que em certo ano, a Aeronáutica incorporou um
grande número de soldados, não só para a própria Base Aérea, mas como também
para Lagoa Santa, para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, de Barbacena, e o
QG da 3ª Zona Aérea. Vieram alguns sargentos dessas unidades e o comandante
ainda solicitou ao 12RI (12º Regimento de Infantaria) que cedesse alguns sargentos
também para nos ajudar na instrução.
E numa daquelas noites – era uma sexta-feira – em um alojamento superlota-
23. livro 12/14/04 14:41 Page 23
do, os soldados simplesmente decidiram não dormir: resolveram fazer uma baderna
generalizada. Eu fui solicitado várias vezes para comparecer lá e, como era o meu
setor, eu não quis pedir a intervenção do oficial de dia, porque depois que ele fosse
lá, eles não fariam mais coisa alguma: o problema era comigo. Queriam desmoralizar
o sargento.
Como eles só interrompiam por alguns instantes, mas não me atendiam, con-
tinuando a bagunça, e como no dia seguinte – sábado – seria dia de limpeza geral no
quartel, eu resolvi comunicar minha decisão. “Já que vocês não querem dormir,
vamos antecipar a faxina”, disse eu. Então, forneci material de limpeza e pus todo
mundo para trabalhar do lado de fora do alojamento. A Base amanheceu varridinha.
E, logo depois, todos os baderneiros foram punidos pelo então Comandante,
Tenente-Coronel Sindímio Teixeira Pereira.
Exército e copa
Os três cursos que tive oportunidade de fazer no Exército Brasileiro, todos
eles foram com muita dificuldade, porque eu tinha pouco tempo para estudar. Mas
consegui fazer, com êxito, todos. O último deles, em 1950, foi feito no CPOR de Belo
Horizonte, ainda lá no Barro Preto (antes de se mudar para a Pampulha), onde foram
as instalações do 3º Batalhão, que tinha sido desativado.
Eu tinha que fazer o curso, estava em vésperas de provas finais, quando
houve a primeira copa do mundo no Brasil. Foi quando teve o único jogo realizado
em Belo Horizonte: Inglaterra e Estados Unidos, em pleno domingo. Para a surpresa
de todos (em linguagem futebolística se diz zebra), os Estados Unidos venceram o
Luiz (o 4º, da esquerda para a direita) entre amigos da Abemifa.
24. livro 12/14/04 14:41 Page 24
país-inventor do futebol por 1 a 0. Ah, e eu não pude comparecer àquele jogo! Eu
estava com deficiência em algumas matérias e aproveitei aquele domingo para estu-
dar. Foi assim que eu consegui fazer o Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos – que
me deu o direito de passar à inatividade como oficial, como 2º Tenente.
Mas fui de sorte. Um militar normalmente é transferido com muito freqüência.
Fui transferido apenas duas vezes, ambas para a cidade do Rio de Janeiro. Eu já era
noivo e tinha sido designado para prestar serviço na criação do Centro de Instrução
Militar, O CIM dos Afonsos, que estava em fase de organização.
Da primeira vez que fui transferido eu era recém-casado. Minha esposa
engravidou logo após o casamento e apesar de o Rio de Janeiro dispor de muitos
hospitais (do Galeão, Central, dos Afonsos e o Santa Cruz), eu preferi que ela viesse
para Belo Horizonte quando estivesse aproximando dos dias do parto, para ser assis-
tida no Hospital São Francisco de Assis, que ficava próximo da casa da mãe dela e
dos irmãos. Achei mais prudente. Mas infelizmente o primeiro filho não sobreviveu.
Foi um parto muito difícil, de fórceps, e ele não resistiu.
Naquele período em que ela veio para Beagá, eu continuei residindo no Rio
em uma pensão de um casal de portugueses, que ficava em Marechal Hermes, próxi-
ma ao quartel e, por isso, hospedava vários militares. Era um pessoal sem filhos, já
idoso, que tratava os hóspedes como filhos. Eu me lembro que aos domingos, quan-
do a gente ia ao Maracanã assistir a uma partida, a portuguesa D. Glória preparava
um tanto de sanduíches para nós.
“Para vocês não ficarem comendo por-
caria em campo de futebol”, justificava
ela. Tenho esta grata lembrança.
Anos depois, com a desativação
desse centro, eu fui transferido de volta
para Belo Horizonte. Fui o único. Uns
colegas meus foram para São José dos
Campos, outros para a Escola da
Aeronáutica, outros para a Escola
Preparatória de Cadetes, de
Barbacena. Antes de eu ir para o Rio
pela primeira vez, eu residi na
Pampulha, no bairro (então Vila) São
Francisco. Meu pai, minha avó Jovita,
minhas duas irmãs (uma seis anos
mais nova e outra, nove) e eu moráva-
mos em uma casa com terreno grande.
Meu pai cuidava de várias árvores
frutíferas. De lá saí para me casar.
Luiz no Centro de BH.
25. livro 12/14/04 14:41 Page 25
O casamento
A pessoa certa na hora certa
O meu namoro, noivado e casamento foram em um curto período, dois anos.
No noivado, fui pedir a mão de Maria à D. Esther. Já estava mais ou menos previsto
a irmandade da minha futura sogra ir lá. Eles estavam arrumando as coisas lá. Eu
ainda estava pensando como ia começar a falar, quando D. Esther chegou, ficou
parada e me encorajou, dizendo que já tinha feito tudo. Como quem dissesse “sou
toda ouvidos”.
Ainda solteiro, eu já tinha ido prestar serviços no Rio. Mas, uma vez que eu
estava lá, acabei sendo transferido em definitivo, como todos os que lá estavam na
mesma situação. Eu cheguei e falei: “Olha, eu fui por quatro meses para prestar
Luiz e Maria recém-casados.
26. livro 12/14/04 14:41 Page 26
serviço, mas agora estou é transferido mesmo”. Então antecipamos o casamento,
que estava previsto para o ano seguinte (1954).
O casamento foi no dia 20 de janeiro de 1953 (aniversário do Ministério da
Aeronáutica e dia de São Sebastião, Padroeiro do Rio de Janeiro, onde estávamos
indo morar em pouco mais de uma semana), na Igreja de Nossa Senhora das Graças,
na Concórdia, em Belo Horizonte. Meus padrinhos de casamento foram o Dr. Hugo
Pinheiro Soares, meu antigo chefe, e sua esposa, Dona Neide Martins Soares. Eu já
estava com eles e com o padre lá na frente. Ela ficou me orientando, porque eu não
sabia direito o que tinha que fazer – hoje é diferente, se fazem uns preparativos, tem
um ensaio na igreja, mas naquele tempo, não.
Aí tocou a Marcha Nupcial, a noiva veio entrando com o ex-patrão dela, o
Seu Láu (Ladislaw Sales). À proporção que a noiva foi se aproximando, eu fiquei sem
saber o que fazer. “E agora, Dona Neide?”, perguntei eu. Ela respondeu com rapidez.
“Quando ela se aproximar mais um pouco ali, você avança, cumprimenta quem está
trazendo a noiva, a recebe com um beijo na testa ou na face”, disse minha madrinha
de casamento.
Fotos
Depois do casamento, fomos para a casa da mãe da noiva, que ficava a pou-
cas quadras da igreja. A gente já tinha tirado algumas fotos normais com um fotó-
grafo. Mas Maria fez questão que a gente fosse tirar uma foto melhor. Fomos então
ao Foto Enzo, que era um dos melhores fotó-
grafos daquela época, em Belo Horizonte.
Mas, no caminho para o foto, furou um pneu
do carro e nós tivemos que chamar um táxi para
conseguir chegar ao Enzo. Ficava ali na onde
hoje é uma (sapataria) Elmo, na esquina de São
Paulo, Afonso Pena e Tupinambás. A entrada
ficava na Afonso Pena. Era um sobrado, onde
tiramos a foto oficial do casamento, que está na
parede do meu quarto. O táxi ficou nos esperan-
do – em 1953 não tinha taxímetro, a gente com-
binava a corrida com o motorista. Então, volta-
mos nele para a casa de minha sogra, onde já
estavam alguns convidados, entre vizinhos e
amigos, para uma recepçãozinha.
Depois disso, saímos, fomos para o Hotel
Macedo (que, antes, já tinha se chamado
Gontijo, na rua Rio de Janeiro – onde ficava a
entrada – esquina com rua dos Tupinambás).
Ficamos lá por uns oito dias – período de
licença a que eu tinha direito pela Aeronáutica,
por me casar, o que era chamado gala – e,
Maria. então, seguimos para o Rio, de trem maria-
27. livro 12/14/04 14:41 Page 27
fumaça, já que eu também
tinha direito às passagens, por
estar sendo transferido. Mas,
pela janela, algo caiu em um
dos olhos de Maria e o ficou
irritando até o Rio. Lá, fomos
logo ao médico para ver aquilo:
era um pequeno pedaço de
pedra de carvão alojado na
superfície do globo ocular dela.
Fomos dividir uma
residência – no Rio de Janeiro,
no bairro Bento Ribeiro – com a
família de um dos primos de
Maria, Walter Radicchi. Era
uma grande casa, com quatro
quartos. Eu já o conhecia há
tempos: fomos incorporados
juntos, como recrutas, fizemos
curso de Cabo também juntos,
no 10º RI (Regimento de
Infantaria).
No ano seguinte, fui
fazer um curso de Sargento no
Exército e ele estava se
preparando para ir para Guara-
tinguetá, fazer esse curso por
lá. Bom, meu irmão, Dilico,
marceneiro de mão cheia, é
que estava fazendo nossos
móveis todos. Falamos com ele Maria, logo após o casamento.
que, como dividiríamos uma
casa grande com Walter e a família dele, só iríamos precisar de móveis de quarto e
que o resto ele podia ir fazendo devagar. Então despachamos a cama de casal e um
guarda-roupa.
28. livro 12/14/04 14:41 Page 28
Meus filhos
Gerson, Gino e Girselle.
“Nunca me deram trabalho”
Um episódio nada fácil
Maria ficou grávida ainda em 1953. Quando estava perto da criança nascer,
no final de dezembro, achamos melhor ela vir para Belo Horizonte, para perto dos
cuidados da mãe dela. Eu permaneci no Rio, não podia deixar minha unidade. Nesse
período, fiquei residindo na pensão do casal de portugueses, que já citei.
Às vezes eu e mais três amigos militares estávamos de folga, a gente ficava
por lá tomando uma cervejinha. E em um daqueles dias, na passagem do ano, à
noite, pouco antes de dormir, alguém disse: “Eh, nasceu!”. Tinha chegado um telegra-
ma de Belo Horizonte. Fui todo alegre para receber a correspondência, que abri lá
ainda no portão da pensão. Mas, em vez de chegar alegre de volta onde meus cole-
gas estavam, cheguei com o rosto transtornado.
“E aí?”, um deles perguntou. “Infelizmente houve um acidente de parto, que
foi muito difícil, por fórceps”, respondi. A criança não tinha escapado, teve poucos
minutos de vida depois do parto. Foi uma decepção tremenda, porque a gente fica
naquela expectativa, primeiro filho. Foi uma experiência bem dura. Lacônico, o texto
do telegrama, enviado por meu cunhado Oswaldo, dizia: “Criança nasceu. Não
sobreviveu. Maria passando bem”.
29. livro 12/14/04 14:41 Page 29
Isso era num domingo. No dia seguinte, eu tinha
que ir para o expediente no quartel. Mas pedi a um
amigo, o Faria, para comunicar ao meu Comandante de
Companhia de Agrupamento, Capitão Júlio, que eu ia
ver a esposa em Minas. Mas ele estava de férias. Estava
respondendo por ele o Capitão Ney Noronha, um cama-
rada bem duro. Faria contou a história do telegrama,
mas o capitão não concordou com a minha ida. É que
militar não pode se ausentar da guarnição sem ser
autorizado.
Só que eu já tinha vindo para Belo Horizonte,
onde fiquei um ou dois dias. Dona Esther, minha sogra,
era muito corajosa para discutir, por exemplo, mas para
emergências assim, não. No hospital, quem ficou com
minha esposa foi Dona Geralda, uma vizinha. Quando
eu cheguei, ela, que assistiu a tudo, me contou que o Gustavo.
parto foi muito difícil mesmo e que era para eu agrade-
cer a Deus porque era para eu ter perdido a esposa também. “Não perdeu porque
Maria é uma mulher muito forte”, afirmou Dona Geralda. “Desculpa, Luiz, desculpa”,
me pediu Maria, ao me ver, coitada! “Minha filha, não foi sua culpa!”, respondi.
Quando voltei ao Rio, com o telegrama, o oficial não queria saber. “Negativo”,
disse o Capitão Noronha. “Você não podia fazer mais nada lá”. E queria, de qualquer
jeito, me dar uma punição. “Eu sei que errei, me ausentei sem permissão, mas foi por
um motivo de força maior, que o senhor não está aceitando”, eu disse. “O senhor,
Capitão, o que faria na minha situação?” Então ele não conseguiu responder. “Tá
bom, Sargento, tá bom”, acabou concordando.
Outra mulher que tivesse passado por isso, talvez, nunca mais ia querer ter
filho, ou adotar, ou então já ia querer cesariana para o próximo parto. Mas ela, não.
Fez questão logo de ficar grávida novamente. Nossa filha nasceu menos de dois anos
depois.
Uma gracinha de menina
Girselle nasceu no dia 6 de outubro de 1955 e ficou sendo nossa primogêni-
ta. O parto foi normal, foi tudo muito bem e eu me senti muito bem recompensado
pela decepção da não-sobrevivência de meu primeiro filho. Quando a enfermeira a
levou para o quarto, saiu do bloco cirúrgico e a deixou arrumadinha na cama, aí eu
tive autorização para entrar. Ela estava com o cabelinho parecendo uma folhinha de
coqueiro, molhadinho para a frente, tinham pingado um remédio vermelho nos olhos
dela, que estava escorrendo nos cantinhos. E ela me acompanhava com os olhinhos.
Eu me lembro que minhas duas irmãs nasceram com os olhos colados – aquilo leva-
va muitos dias, talvez até uma semana, para descolar. Mas Girselle, recém-nascida,
estava me acompanhando com os olhinhos. “Que coisa, já nasce esperta, mesmo”,
admirei. Acho que era ela pensando “quem será esse bicho aí?”
Era “Giselle” ou “Gisselle” (sem o “R”). Maria leu em uma revista. Eu tinha
30. livro 12/14/04 14:41 Page 30
deixado a critério dela escolher.
“Já tenho um nome para a
nossa filha”, anunciou minha
esposa. Eu perguntei qual era.
“Girselle”, ela respondeu. E no
dia de registrar no cartório, o
escrivão, Wilson Batista, não
queria registrar, não. “Mas que
nome é esse, de onde é que
você tirou esse nome?”,
atreveu-se a perguntar. “Não é
um nome comum”. Então eu
soletrei “G-I-R-S-E-L-L-E”.
Como ele estava relutante, ble-
fei. “Me admira o senhor não
Luiz e Maria com os filhos Girselle, Gerson e Gino, conhecer um nome francês tão
em Guarapari, ES. famoso, puxa, tá fazendo esse
mistério todo, parece que eu
inventei”. Ele me olhou – era vesgo – e registrou. “Ah, vá lá”, disse ele. O Dr. Hugo
achava uma graça quando eu contava isso, porque ele era amigo desse Wilson
Batista.
Chegou até a ficar com calos nas mãozinhas de tanto andar no chiqueirinho.
Quando eu chegava do trabalho, abria o portãozinho e ela me via, nossa! Ela só fal-
tava voar do chiqueirinho. Nossa, que alegria! Coitadinha! Naquela época, moráva-
mos no nº 1.011 da rua Jataí, em frente à casa da minha sogra (nº 1.034).
Quando morávamos no Rio pela segunda vez, estava na moda aquela músi-
ca eu vou pra Maracangalha, eu vou, eu vou com chapéu de palha eu vou. Se Anália
não quiser ir eu vou só. E ela, pequenininha, cantava: “Ô fô pra Maracangalha, ô fô.
Ô fô com chapéu de palha, ô fô. Se Anália não quiser ir, ô fô só, ô fô só. Ô fô sem
Anália, mas ô fô”. Era uma gracinha a Girselle!
Quando era pequenininha, Girselle tinha muito cuidado com o irmãozinho
que ganhou, o Gerson. Mas ele, brincando, caía muito, estava sempre se esfolando.
E, naquele tempo, a primeira coisa que a gente fazia para não inflamar o machucado
era vir com o Merthiolate, para passar no local, o que ardia para danar, queimava
mesmo. “Coitado, ele vai p... fogo”, eu dizia para Maria. Girselle me viu falando aqui-
lo uma ou duas vezes e, então, sempre que ela via a gente com o vidrinho de
Merthiolate vermelho na mão – hoje tem o incolor, mas não naquele tempo –, quan-
do o Gerson caía e vinha chorando, minha menininha dizia “Ih, vai fidá fogo!”
Ela era muito boazinha, muito mansinha, mas muito ativa. Era uma filha de
ouro, nunca me deu trabalho na escola nem em lugar algum. Aliás, filho nenhum. Só
comparecíamos à escola nas reuniões normais, nunca por indisciplina ou falta de
aproveitamento nos estudos. Mas Ninguém tirava farinha com os irmãos, não. Dois
anos mais velha que o Gerson e cinco que o Gino, ela defendia, mesmo. Era o anjo
da guarda deles, defensora. Tomava partido, avançava, era cada merenderada!
31. livro 12/14/04 14:41 Page 31
Quando ela fez 15 anos, em 1970, nós demos uma festinha muito boa, muito
bonita lá em casa. Na época, as folhas do coqueiro da frente de casa ainda estavam
saindo do chão, não tinha tronco ainda. E Girselle foi sempre uma boa filha, que sabia
escolher as companhias, como as filhas do Sr. Oscar, Elaine e Adriana. Era sempre
muito amorosa e ajuizada, a minha filha. Uma boa menina.
O coração de ouro
Com dois anos e pouco de idade, Girselle recebeu um irmãozinho. Gerson foi
o primeiro menino que nasceu na recém-inaugurada Vila dos Sargentos da Força
Aérea (em frente ao Aeroporto da Pampulha), a Vila Cabangu – em homenagem à
região que Santos Dumont nasceu, perto de Palmira, hoje cidade mineira que leva o
nome do Pai da Aviação.
O nascimento dele foi em um domingo de carnaval, 3 de março de 1957. Eu,
como sócio do Clube dos Sub-Oficiais e Sargentos da Aeronáutica, tinha direito à
hospitalização de minha mulher no Hospital Samaritano, onde Girselle nasceu. A guia
já estava pronta há um ou dois dias, mas Maria quis deixar para ir na última hora.
Quando era quase meia-noite, ela começou a sentir as dores do parto. Para telefonar
e pedir um táxi lá da cidade, eu teria que ir à Base Aérea. Mas, como faria? Até o táxi
chegar à Pampulha...
O jeito era pedir ao Oficial de Dia, que era o Tenente Coragem. Cheguei lá, à
portaria da Base, tive um problema. Naquele tempo, sargentos, cabos e soldados
não podiam chegar à paisana nem à porta do quartel. Aquilo era privilégio só de ofi-
ciais. Eu cheguei ao portão das armas e disse à sentinela que estava precisando falar
com o Oficial de Dia. Pedi para ele pegar a
extensão da guarita e ligar. O tenente me
mandou entrar, mas eu disse que estava à
paisana. Ele mandou me dizer que ele esta-
va me autorizando a entrar, para conversar
pessoalmente com ele.
Quando cheguei lá, ele estava com
o adjunto dele, Sargento René Bernedetti.
Eu disse a ele que minha esposa estava em
trabalho de parto e eu precisava de uma
viatura para levá-la ao hospital, porque não
tinha ônibus nem táxi àquela hora na região
do aeroporto (da Pampulha). O tenente me
disse que estava proibida a saída de
ambulância, o comandante tinha recomen-
dado, o carro de sair até para a mãe dele.
Tudo porque certa vez, bem quando a
ambulância tinha saído, um avião fez um
pouso de emergência, pois não conseguia
baixar o trem-de-pouso. Ninguém se feriu Gerson, Gino, Sérgio, Simone e
gravemente. Mas a ambulância tinha saído Girselle, no Pq. Municipal (BH)
32. livro 12/14/04 14:41 Page 32
para outra coisa.
Então, como a ambulância estava impossi-
bilitada de sair, o Tenente Coragem me ofereceu
três outras viaturas: um dos jipes – muito rústi-
co para a situação –, a caminhonete dos oficiais
– confortável, mas muito alta para uma mulher
em trabalho de parto entrar - ou um furgão, que
foi a minha escolha. O motorista seria o Cabo
Expedito Lopes.
Mas esse veículo, quando estava na subida
da Antônio Carlos, pouco pra cima de onde hoje
é o Corpo de Bombeiros – não era asfalto, era
Gerson, Gino e Girselle.
calçamento pé-de-moleque – caiu uma peça do
carro. Continuamos e felizmente conseguimos chegar à região da Lagoinha, ao
Hospital Samaritano. Correu tudo bem. Ele teve que ficar um pouco na estufa, porque
passou um pouquinho da hora de nascer, mas ficou tudo bem. “Ah, nasceu empeli-
cado, é gente de muita sorte”, disse uma enfermeira. “Na vida, tudo vai dar certo pra
ele”.
Um dia, eu o levei para passear no Parque Municipal, mas ele não queria
andar de mão dada comigo, não. E em uma daquelas, que ele soltou da mão, eu
escondi atrás de uma árvore, uma jaqueira, e ele foi embora, andando na frente,
admirando tudo, admirando as coisas. Depois, quando Gerson deu pela minha falta,
ele ficou apavorado, coitado. “Cadê papai?”, ele perguntou a um senhor que estava
perto. “Mas quem é seu pai?”, perguntou de
volta o homem. Aí ele começou a chorar, eu saí
de trás da árvore e fui lá. Ele não quis mais
soltar a minha mão.
De menino, o Gerson era patola. O
Miguel (filho de Gerson e Júnia, com um ano
de idade em 2004) vai ser tipo ele. Ele sempre
foi um bom garfo, sempre teve bom apetite.
Então, a mãe punha comida pra ele e logo na
primeira garfada, quando ele achava bom, ele
dizia “Hum, vou querer mais”, sem saber se ia
dar conta do que estava no prato.
E por falar nisso, teve o caso do
sorvete. Todos os três (Girselle, Gerson e Gino)
tinham problemas de (inflamação de) amídalas.
Os médicos resolveram operar os três no
mesmo dia, poxa! A gente falava com o Gerson
que quando ele operasse poderia tomar muito
sorvete (o que é bom para cicatrização e para
não inflamar), que ele adorava. Ele estava Maria e Gerson, em Washington,
numa farra, doido pra chegar o dia de operar. EUA.
33. livro 12/14/04 14:41 Page 33
Gustavo, Girselle, Gino e Gerson, em 1987.
Mas no pós-operatório, quando ele tomou a primeira pazinha, doeu muito e ele
empurrou o sorvete pra lá.
Foi difícil, os três operados das amídalas, convalescendo, pegaram sarampo
e logo depois, catapora. Eles ficaram magrinhos que só vendo, os meninos. “Eu fico
com uma pena, vocêch vêm de Minach com och meninoch coradoch e daí a pouqui-
nho elech ficam magrinhoch e descoradoch como och nossoch daqui”, falava a car-
ioca Dona Isaurinha – mulher do sargento Ubaldo e que ficou muito amiga de Maria,
depois que mudamos da Rua 28 para a 98, no Rio.
Chegou a ocasião do meu Gerson ir para a escola, quando tinha sete anos.
E ele estava doido pra ir pra escola, que ficava quase em frente. Como ficava muito
perto, deixamos para levar a merenda quando fosse chegando a hora do recreio.
Mas, quando chegou a hora do recreio e a merenda não tinha chegado, a primeira
coisa que ele pensou foi subir na grade. “Minha m-e-r-e-n-d-a, minha m-e-r-e-n-d-
a!”, gritou, com um vozeirão.
De pequeno, vivia dizendo que não gostava de velho. Ele devia achar muito
feio. Um dia, a minha sogra, a avó dele, Dona Esther, estava perto quando ele falou.
34. livro 12/14/04 14:41 Page 34
“Uai, quer dizer que você não gosta da
sua avó?”, perguntou ela. Gerson
titubeou um pouco e disse: “Não, eu
não gosto é de velho dos outros”. E
quando o pessoal perguntava o que
ele ia fazer quando crescesse, ele
respondia: “Vou estudar na Faculdade
Mental”. Ele tinha umas tiradas muito
interessantes. Hoje ele é cinegrafista.
Ele sempre foi muito prestativo Se
tinha alguém precisando de alguma
coisa e ele pudesse, já estava lá. Uma
vez teve um incêndio em uma loja de
móveis na avenida Antônio Carlos. Ele
estava voltando pra casa e viu.
Quando chegou em casa para deixar
umas coisas, pegou a moto e foi pra
lá. Gerson tem um instinto de aventu-
ra muito grande. Morou quase três
Girselle. anos nos Estados Unidos e mais três
em Portugal, onde aprendeu o ofício de cinegrafista, que exerce até hoje e é a paixão
profissional dele.
Lá em Portugal, presenciou vários casos engraçados. Tinha um português,
onde ele estava trabalhando, que disse para ele escutar: “eu não gochto de
brasiláiros”. E o Gerson, no maior bom humor e saindo-se muito bem, contra-atacou.
“Eu também não, eu gosto é de brasileiras”, respondeu ele. O cara riu e eles
acabaram amigos. É jogo-de-cintura. Outra vez, ele estava contando umas piadas
para uns portugueses, contou aquela do urubu tem pena no pé. Eles riram, riram, mas
tinham uma dúvida. “Mas o que vem a ser urubu?”, perguntaram. Aí quem riu foi o
Gerson. “Urubu é abutre”, explicou. E riram todos juntos.
O Gerson tem o gênio muito bom. Quando é preciso ele explode, mas é só
naquele momento. Depois que passou ele não guarda rancor, não alimenta sentimen-
tos de vingança, de retaliação. Outra característica dele é o desprendimento, não tem
aquele apego às coisas materiais. É igual ao tio materno dele, Antônio Radicchi, o
Tunim, que podia ter R$ 1. Se alguém pedisse, dissesse que estava apertado, ele
soltava aquele R$ 1 e ficava sem nada. Tem um coração de ouro, o Gerson. É muito
amigo e amoroso também.
A aplicação em pessoa
O nascimento do Gino, meu terceiro filho, foi numa noite muito fria, 21 de
junho de 1960, no Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG). Daquela vez, eu
não fiz a vontade da mulher, de deixar para a última hora. Fomos mais cedo. Eram
umas 10h da noite e ele nasceu de madrugada. Naquele ano, a Base (Aérea, hoje
CIAAR) não tinha só uma ambulância, tinha três. E nós em uma delas, pela Estrada
35. livro 12/14/04 14:42 Page 35
Velha de Lagoa Santa.
Mas, pesar de termos saído cedo, os trabalhos de parto foram se acentuan-
do na viagem (cerca de 30km). Chegamos e a enfermeira que estava de serviço (ela
estava grávida também, uns três dias depois ela teve gêmeos) percebeu que já esta-
va bem adiantado, já tinha bastante dilatação. “Olha, o Dr. Mauro (obstetra) está na
Várzea (bairro afastado da cidade) e não vai dar tempo de chamá-lo”, disse a moça.
“Nós mesmos vamos ter que fazer o parto, o senhor me ajuda?”. Eu disse que sim,
claro. Então, o Gino foi o único filho que eu vi e ajudei a nascer. E eu achei engraça-
do foi que ele, antes de chorar, deu três espirros. Era uma madrugada muito fria
mesmo.
A enfermeira cortou o umbigo com aquela tesoura de pressão, ajeitou a cri-
ança e foi cuidar da mãe. Eu, então, a chamei, falei que estava achando o saco do
menino muito grande e roxo, não sabia que a criança do sexo masculino nascia com
a bolsa escrotal inchada. “É assim mesmo”, tranqüilizou-me ela. “Nesta vida, a gente
já chega de saco cheio”.
O Gino chorando, eu percebi que a língua dele era presa e formava o dese-
nho de um coração. O freio não começava embaixo, mas sim na ponta da língua. Eu
podia ter falado, cortava ali naquela mesma noite. Mas eu pensei que fosse assim
mesmo, depois chegava no normal. No Rio, quando ele já tinha mais de um ano, é
que o Dr. Aldo Mirando o operou. Mas até quase adolescente, ele ainda falava com a
língua meio presa, ao contrário de hoje, quando ele fala com desembaraço.
Quando ele era bem pequeno, fui transferido e nos mudamos para o Rio.
Moramos a 200m da praia de São Bento, na Ilha do Governador. E quando eu já tinha
passado para a inatividade militar e já estava aguardando a oficialização disso (1964),
a gente ia muito pescar, Gino, Gerson e eu. Um dia não estávamos conseguindo
pescar quase nada, fomos longe. E
quando já estávamos voltando, já
querendo escurecer, a maré já estava
subindo e não percebi. Tinha uma
ponte desmoronada, que avançava
para dentro do mar. Nós fomos lá e
estava dando muito peixe, muita
cocoroca, justamente porque a maré
já estava subindo. A gente já estava
com a sacola cheia de peixe.
Maria estava preocupada por
causa da nossa demora, estava aflita
lá com os vizinhos. Iam à praia infor-
mar, perguntar por um senhor e dois
meninos. Mas ninguém tinha nos
visto. Saímos pouco depois do
almoço e só fomos chegar em casa lá
pelas 9h da noite.
De longe, um pescador – que Girselle, em show do ídolo, Fábio Jr.
36. livro 12/14/04 14:42 Page 36
estava saindo de tardinha para passar
a noite inteira pescando camarão –
nos viu lá e viu que a maré estava
subindo e a gente não estava
percebendo. Aí ele veio com o barco a
motor dele e mandou a gente entrar.
Mas eu quis pegar as varas de pescar,
os chinelos e os peixes. “Não, entrem
que não dá tempo, não”, disse ele. E
foi a conta de a gente entrar: a maré
subiu de vez e cobriu tudo aquilo. Foi
Deus mesmo que mandou aquele
pescador lá naquela hora!
Uma vez, houve um concurso de
perguntas e respostas que a Rádio
Guarani promoveu, pela televisão. O
apresentador era o Bernardo
Grimberg, que era da arma de
Luiz (E), Gino, Maria e Gerson (1998). Infantaria, quando fiz o curso de sar-
gento no CPOR. E o Gino quase ganhou, ficou em segundo lugar. Nós ficávamos em
casa reunidos, esperando torcendo, vendo pela televisão. Ele errou uma ou duas
questões e por isso não levou o prêmio, um autorama. Mas Maria disse que ele ficaria
frustrado e ele já estava fazendo jus. Saiu e comprou um autorama para ele e para o
Gerson.
Mas antes disso tudo, na Praça 12, o Gino ganhou 1º lugar em um concurso
de rei, competindo com várias crianças, na Escola Chapeuzinho Vermelho. Ele tem
guardado, em casa, o retrato dessa ocasião – muito bem guardado, diz ele, que é
para ninguém ver. Foi também naquele bairro que ele, brincando de atirar na cidade,
tomou um tiro, caiu, fingiu que morreu e dormiu de verdade. Todo mundo o procuran-
do e ele foi aparecer só depois. Embaixo do nosso apartamento ficava uma fábrica
de calçados – onde mandamos fazer o sapato de veludo de quando Gino foi o Rei do
Jardim da Infância, vestido de Dartagnan.
Quando ele e o irmão já eram maiorzinhos, resolvemos matricular os dois na
academia de judô do Edson Izoni, a Lutadores Unidos, onde eles foram muito bem-
sucedidos, chegando à faixa laranja. Uma das quedas mais difíceis do judô é o chi-
matá (quando se passa a panturrilha pegando a parte interna da coxa do adversário,
jogando-o por cima do corpo). Eram vários tatames e o Izoni pôs o Gino para treinar
esse golpe. Eu estava conversando com algumas pessoas que iam assistir, quando
o professor me chamou. “Seu Luiz, vem cá, vem ver como o Gino está aplicando bem
o chimatá”. E quando eu cheguei, ele estava aplicando bem mesmo, dando umas
quedas bonitas.
Eu me lembro que uma vez o Izoni pediu que o Gino ficasse fazendo um
aquecimento, para um determinado tipo de queda que ele ia aprender e exigia um
preparo melhor. Então, o professor, muito atarefado, foi orientar outros alunos, super-
37. livro 12/14/04 14:42 Page 37
visionar algumas coisas e recepcionar quem estava indo se inscrever na academia. E
se esqueceu do aquecimento. “Gino, meu filho, você ainda está aí, coitado!”, disse
Izoni. E o menino lá, já há umas duas horas, suando, mas sem parar com a determi-
nação dada pelo professor. Foi até dispensado do restante da aula, estava estafado.
Ele gostava muito de jogar umas peladas com a turma: o Gerson, os meni-
nos da Dona Nicinha, com o Sílvio da Dona Rosa e com aquele que tinha o apelido
de Boca Branca. Até esquecia da hora do almoço, a gente tinha que chamar. E às
vezes jogava também à tarde, depois que fazia os deveres da escola. Numa daque-
las, quebrou o dedo mínimo de um dos pés, um dedo que é enguiçado até hoje. É
nós levamos ao hospital, mas acho que o ortopedista que o atendeu – pelo plano da
saúde Saber, acho que foi o pioneiro aqui, na Previdência, atrás do Parque Municipal
– não fez o trabalho direito e volta e meia o dedo quebra de novo ou sai do lugar.
O Gino gostava muito também de fazer papagaios. Eu ensinava o pouco que
aprendi, mas nunca fui muito habilidoso, não, ao contrário do meu irmão, Dilico – que
inventava sempre umas modificações, eu fazia aqueles mais simples mesmo. Mas
depois o Gino, pela cabeça dele mesmo, foi aperfeiçoando, inovando alguma coisa,
com bastante imaginação, uns papagaios bem feitinhos.
Já falando da escola, eu levava os quadro (meus três na época, mais minha
sobrinha Simone) para o Ângelo Roncali, na avenida Assis Chateaubriand, na
Floresta. Como era muito longe (cerca de 15km), eu ficava por lá, esperando a aula
acabar. Eu ficava lendo, escutando música ou batendo papo com o Toné, dono de
uma loja de baterias de automóveis ali perto, que tinha sido meu soldado na Base. E
o Gino, era muito estudioso, gostava muito de ler e, adolescente, estava sempre
muito bem-informado para a idade dele. E o Dr. Hugo adorava bater papo com ele,
admirava essas características dele, que estava sempre atualizado com os assuntos.
O Gino sempre foi muito aplicado, muito compenetrado.
Gustavo e Gino (D) com Luiz, no Dia dos Pais, 2004.
38. livro 12/14/04 14:42 Page 38
Desde pequeno, leva tudo em quanto é tarefa a sério. O vejo muito dinâmi-
co, muito empreendedor, muito competente, muito bem-intencionado. Economista,
ele se saiu muito bem na área da publicidade, trabalhando em quase todas as agên-
cias de Belo Horizonte. E também no jornal Estado de Minas, onde foi superinten-
dente de Publicidade. Como filho, como os outros, é muito dedicado, amigo e
amoroso.
O raspa-do-tacho
Meu último filho, o caçula, a raspa-do-tacho, o Gustavo, nasceu também no
Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG), no dia 28 de fevereiro de 1973. Foi o
único que nasceu de cesariana. Devido à idade da minha mulher (39 anos), o médi-
co achou melhor fazer a cesariana. E eles lá em casa ficaram naquela expectativa –
naquele tempo não tinha esse negócio de ultra-som, para ficar sabendo o sexo do
neném. A Girselle queria uma menina. Gerson e Gino, um menino. Quando cheguei
de Lagoa Santa – estavam todos reunidos, esperando, a Girselle com a prima, a
Simone, e os meninos – não sei o porquê, elas perguntam: “É menino, né?”. Eu disse
que era. Parece que elas já, por intuição, estavam sabendo.
A concepção dele foi uma surpresa geral. É tanto que, quando Maria me con-
tou que estava grávida – ela disse “Luiz, eu tenho uma coisa pra te contar, eu tô
gorda” – eu me espantei e disse: “Não brinca?”. Já tinha passado tanto tempo desde
o Gino, a gente não evitava e não vinha mais filho, eu pensei que já tinha encerrado.
O engraçado foi que Girselle, já mocinha, com 16 anos, deu uma sermão em Maria.
O Gino tinha 11 anos e o Gerson, 14. “Eu não acredito, mãe, a senhora grávida, nessa
idade?”, indignou-se minha filha – e ela parecia mesmo não acreditar. “Ih, o que é que
tem?”, respondeu Maria. Mas Girselle era louca com o Gustavo, que a gente chama-
va de Gugu.
Uma coisa interessante é que parece que Maria pagou língua. A minha cu-
nhada Ruth, mulher de Dilico, tinha ficado grávida (de uma menina, a Moabi) também
em idade madura, alguns meses antes. “Ô Ruth, vai tomar vergonha na cara”, disse
Maria. “Uma mulher dessa idade, já na hora de pendurar as chuteiras, esperando
menino outra vez?”. E pouco tempo depois, ela ficou esperando o Gustavo. “Pois é,
a língua fala, a língua paga, né?”, riu a Ruth.
No dia do nascimento, tinha um casal lá no hospital com uma filha internada.
A senhora ficou sabendo que estava pra nascer um filho meu ali e ficou no aparta-
mento comigo conversando e na maio expectativa. Nós ficávamos sempre olhando
lá para o final do corredor, para o Bloco Cirúrgico, de onde a enfermeira saiu, com o
recém-nascido nos braços.
“O senhor não se importa de eu ver primeiro, não?”, perguntou a senhora.
Como eu disse que não, ela saiu correndo para ver. Depois, quando ele estava na es-
tufa, eu achei engraçado o tamanho da mão. “Puxa, parece mão de goleiro, parece a
mão do Kafunga!”, eu disse. E ele estava com a ponta do paninho dentro da boca,
sugando. “O bicho já nasceu com fome mesmo!”, comentei.
Em casa, tínhamos muitas árvores frutíferas, muitas laranjeiras, abacateiros,
e muitos pés de amora, de que o Gustavo gostava demais. Uma vez, ele tinha pouco
39. livro 12/14/04 14:42 Page 39
mais de um ano e procuramos por ele, mas não o estávamos encontrando. Fomos
achar embaixo de um pé de amora, com a boca pretinha e a fralda roxinha, porque
ele tinha sentado em cima das amoras que tinham caído no chão.
Quando o Gustavo estava com dois anos, nós fomos morar no Anchieta,
onde ficamos uns dois anos. Toda manhã eu saía com ele para passear ali pelos bair-
ros Cruzeiro, Anchieta, Carmo-Sion. A gente ia andando devagarinho. Tinha uma
lagoa ali no Carmo Sion, onde a gente ficava jogando miolo de pão para uns lam-
barizinhos e uma piabinhas. E também lembro que tinha uma caixa-d’água no
Cruzeiro, com uns pés de mamona ao lado. A gente apanhava e ficava jogando as
bolinhas em uma rampa grande ali ao lado, vendo as mamonas quicando até caírem
lá embaixo. Era muito divertido.
Ele fez o 1º período no Arnaldinum (no Anchieta). Já o 2º foi no Colégio
Loyola Pampulha, no Planalto, onde fez também o pré-primário e a 2ª série (a 1ª ele
fez no Colégio Tito Fulgêncio, no ano em que moramos na Renascença). No final
dessa série, o Colégio Loyola Pampulha virou um seminário, chamando-se Instituto
Santo Inácio (ISI). Construíram ao lado dele o Colégio Arquidiocesano, onde o
Gustavo estudou da 3ª série até o final do 2º grau. Sempre foi bom aluno, não pre-
cisava mandar estudar. Hoje é jornalista.
Tinha umas brincadeiras engraçadas com os animais de estimação. O Sérgio
– um primo, irmão da Simone, Samira e Samuel – ficava encarnando nele porque o
viu uma vez, aos seis anos, esticando o gato, pegando no rabo e no pescoço,
enquanto exigia: “Mia, gato, mia!”. Também brincava de rodeio com a pretinha, sua
cachorrinha pequenez. Corria atrás dela na terra, dava uma rasteira – levantando um
poeirão danado – amarrava as quatro patas juntas, com uma corda de pular, e levan-
tava os braços.
Ele gostava muito daqueles seriados japoneses de super-heróis, principal-
mente o Ultraman e o Ultraseven. Um homem se transformava em Ultraman tirando
um bastãozinho do bolso e o levantava, virando um gigante, para enfrentar o mons-
tro. Então, no chuveiro, o Gustavo agachava, pegava o vidrinho de condicionador, e
esticava o braço para o alto, enquanto ficava em pé de uma vez – para ter a sensação
do Ultraman virando um gigante.
Em 1981, o Gerson morava nos Estados Unidos, em Washington, e a mãe
dele foi lá visitá-lo e ficou três meses. Em casa, o Gustavo era o responsável por
aguar a horta e as plantas. Eu era religioso (veja anexo 2) e saía para fazer trabalhos
missionários, estudos bíblicos, nos bairros adjacentes ao nosso Santo Inácio (hoje
Planalto). O Gustavo, com oito anos de idade, me ajudava muito a encontrar as pas-
sagens bíblicas, já que as pessoas de pouca instrução tinham muita dificuldade de
encontrá-las. Ele foi de muita valia porque as encontrava fácil.
Lembro-me de um caso daquela época. O Gustavo se interessava muito por
horóscopo, que o Jornal Hoje apresentava diariamente na televisão. Naquela época,
o Gustavo era o responsável por molhar a horta e as plantas todas as manhãs. E ele
estava de férias no meio do ano, passando uns dias na casa da Girselle. E quando a
voz da apresentadora anunciava um, ele dizia quem da família era daquele signo.
Quando aparecia “Capricórnio”, ele falava: “papai”. “Áries”, ele soltava: “mamãe”. E
40. livro 12/14/04 14:42 Page 40
assim ia: Câncer/“Gino”; Peixes/“eu e Gerson”; Sagitário/“Tio Dilico”.
E chegou num ponto que a minha filha se aborreceu. “Ô, Gugu, pára com isso
aí, deixa só a mulher falar”, disse ela. Aí ele se encolheu e ficou calado. Mas quando
chegou a vez de libra, ele, calado, dando um sorrizinho amarelo, olhou para trás, para
a Girselle – libriana, nascida em outubro - como quem diz “é o seu, né?”. Aí ela não
agüentou, caiu na risada e o abraçou.
Gustavo sempre gostou muito de praticar esportes. No futebol, era goleiro. E
tinha também o vôlei – este ele joga até hoje, como meio-de-rede. Ele e os compa-
nheiros armavam a rede na rua, que tinha pouco movimento de carros.
Eu o vejo Gustavo também como um bom filho, amigo, amoroso comigo e
com os irmãos, muito estudioso. Sempre escolheu bem suas amizades. É um homem
de bem, uma pessoa temente a Deus e que pauta a sua vida no temor ao Senhor, que
é o princípio da sabedoria.
***
Todos os meus filhos têm muito bom caráter. Nenhum me deu trabalho.
Nunca fui chamado a colégio algum por problema de indisciplina. São todos
amorosos, companheiros, amigos. Graças a Deus, eu tive a ventura de só ter filhos
extraordinários.
41. livro 12/14/04 14:42 Page 41
Moradias
Zona urbana e zona rural
A vida em apartamentos
Quando Humberto casou, ele fez um puxado lá atrás da casa, na rua Jataí.
Célia morava na casa da frente. Quando nós compramos essa casa da Dona Esther
e fomos morar lá, Célia foi morar lá no fundo. Depois nos desentendemos com eles
e eu, Maria e os meninos fomos morar na Praça 12. Era a época daquela música do
Jair Rodrigues “deixe que digam, que pensem, que falem... batendo um papo gos-
toso com alguém”.
De lá, fomos para o apartamento de Dona Esperança, onde moramos mais
ou menos um ano. Era um prédio. O apartamento 101, no terraço. Por isso, brinco
que já moramos em uma cobertura. o nosso, era todo independente tinha uma cober-
tura onde os meninos brincavam.
E tinha uma vista belíssima da cidade, do Centro de BH. Maria encerava a
escada e os meninos ficavam brincando, escorregando nela, descendo sentados,
quicando até chegar no chão e rasgar o short. Isso era porque o sol começava a bater
forte no pátio e na escada dava sombra, era coberta.
Tinha uma comunicação, uma espécie de ponte, do nosso para o outro ter-
raço. Um menino que morava ao lado – acho que se chamava Edmundo – naquele
outro apartamento, uma vez deu uma sugestão de brincadeira para o Gino e o
Gerson: ir jogando tijolos e garrafas, que estavam ajuntados no terraço, lá embaixo,
no pátio – que parecia daquele seriado Chaves. Eles jogaram todos. E aí tem uma
história que o Gino conta: Gerson
levou uma surra e o Gino, não,
porque eu o devo ter visto rezan-
do, no quarto, para não apanhar.
De lá, mudamos para o
Santo Inácio – hoje, Planalto –
para a casa onde moro hoje com
o Gustavo. Moramos também no
Anchieta de 1975 a 1978, na rua
Luiz Signorelli, esquina com
Vitório Marçola. Em 1980
moramos na Renascença, na rua
Tapira. Ambas as vezes moramos
em apartamento. Resolvi morar
uns tempos assim para os filhos
ficarem mais perto da escola e
Girselle, da faculdade. Fazia letras
na Fafich, da Federal, que ainda
Luiz, na casa do Santo Inácio.
42. livro 12/14/04 14:42 Page 42
era no Santo Antônio, na rua Carangola.
A história da nossa vida nesses apartamentos perto da agitação do Centro
da cidade contrasta com a calma da nossa casa no Santo Inácio, com três lotes e
cerca de mil metros quadrados. Uma verdadeira chácara a 15 km da Praça Sete
(ponto mais central de BH).
A fazendinha do Santo Inácio
A casa era do Zé Denuci, um homem muito trabalhador, que tinha uma
empresa de pintar edifícios. A família dele não queria morar longe, no Santo Inácio,
queria ir só no final de semana, fazer churrasco. Um dia ele chegou e a família já tinha
mudado. Então ele resolveu vender – Humberto, meu cunhado, me deu essa dica –
nós fomos ver a casa, gostamos e compramos.
Para lá mudamos em 2 de janeiro de 1967, um dia de calor e umidade
tremendos. A região era úmida, com brejos e muitas árvores. Quando nos deu fome,
Maria foi à venda do Josué – uma mercearia como as do interior, balcão de vidro, ven-
dia fatias de queijo, banana na unidade – comprar pão, fez uns sanduíches. Os meni-
nos já ficaram amigos do cachorro que tinha na casa, o Tiu. Gerson e Gino adoraram,
era quintal grande. Girselle, nem tanto, já era mocinha, tinha 12 anos. O Tibiriçá fez a
mudança, o Jonas, que trabalhava para ele, veio dirigindo. Já era quase noite quan-
do acabaram de descarregar. E o Gerson e o Gino subiram no caminhão e ficaram
lutando telequete.
No dia seguinte, meu aniversário, já amanhecemos arrancando mandioca e
amendoim, no quintal. Tinha também cajueiro, pé de mexerica, 18 de laranjas de en-
xerto, de muitas variedades, dois abacateiros. Tinha também banana-ouro, morangos
nos canteiros, amora, ameixa,
siriguela. O pé de laranja-serra-
d’água ficava exatamente
embaixo da janela de onde hoje é
o quarto do Gustavo. Tinha as
instalações vazias, uma criação
de porco. Chegamos a ter até
uma cabrita, que compramos lá
onde hoje é o bairro vizinho do
Floramar. Como eram três lotes
juntos – quase mil metros quadra-
dos –cercados com arame farpa-
do – não tinha muro, não – o pes-
soal de fora (vizinhos e passantes)
chamava nossa casa de
Fazendinha.
Na nossa rua (então rua
Sete, atual Vereador Orlando
Bonfim) só tinha umas quatro Luiz em Guarapari, ES.