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Universidade Estadual da Paraíba
                Centro de Ciências Sociais Aplicadas
                  Faculdade de Comunicação Social




                                          Waleska de Araújo Aureliano




A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-
  científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE




                          Fevereiro de 2004
A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso
        jornalístico-científico sobre a maconha na revista
                      SUPERINTERESSANTE




                                                  Waleska de Araújo Aureliano




                                          Monografia apresentada em atendimento às
                                          exigências da disciplina “Trabalho Orientado
                                          Acadêmico” e para a obtenção do grau de
                                          Bacharel em Comunicação Social, com
                                          habilitação    em      Jornalismo,     pela
                                          Universidade Estadual da Paraíba, Campina
                                          Grande em fevereiro de 2004.




Orientadora: Maria José Cordeiro Leitão




                                     2
Banca Examinadora




___________________________________________________________

                   Prof ª Maria José Cordeiro Leitão
 Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba




_____________________________________________________________
               Prof. Antônio Roberto Faustino da Costa
 Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba




____________________________________________________________
                   Prof. Fernando Firmino da Silva
 Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba




                                  3
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS---------------------------------------------------------------------------5

RESUMO-------------------------------------------------------------------------------------------6

INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------7

CAPÍTULO I – Ciência e Jornalismo Científico------------------------------------------11

1.1 O que é ciência?------------------------------------------------------------------------------11
1.2 A noção de progresso da ciência---------------------------------------------------------15
1.3 Jornalismo Científico: breve histórico--------------------------------------------------21
1.4 O jornalismo científico no Brasil---------------------------------------------------------26


CAPÍTULO II – Maconha: uma planta com história-----------------------------------35

2.1 Uma história de milhares de anos-------------------------------------------------------35
2.2 O cânhamo e seus usos---------------------------------------------------------------------39
2.3 A proibição-----------------------------------------------------------------------------------47
2.4 A proibição no Brasil----------------------------------------------------------------------50


CAPITULO III – A Maconha, A Ciência e A SUPER----------------------------------57

3.1 Mídia, drogas e rock n’roll --------------------------------------------------------------57
3.2 Nova abordagem histórico-científica: a maconha contextualizada na SUPER-62


CONSIDERAÇÕES FINAIS----------------------------------------------------------------86


BIBLIOGRAFIA------------------------------------------------------------------------------89



ANEXOS----------------------------------------------------------------------------------------92




                                                   4
Agradecimentos


       Os agradecimentos são para todos aqueles que direta ou indiretamente me ajudaram
neste trabalho: em primeiro lugar, a minha mãe pela paciência em aturar meu mau humor
nos momentos de estresse; a Marcos Alexandre, paixão inspiradora, pelo amor, pela
amizade e por ter lido todo este trabalho no computador; a minha irmã Waneska que num
momento tão difícil de nossas vidas deixou sua casa e veio me ajudar para que eu pudesse
dar continuidade não só a esta pesquisa, mas a vários outros assuntos práticos da vida; a
Elizângela por sempre acreditar em mim; a Cristiane e Milena pelas boas risadas; aos meus
colegas de trabalho e, em especial a Cié, por sempre darem um jeitinho para que eu
conciliasse trabalho e faculdade; a minha orientadora Mara, por ter me feito enxergar outras
possibilidades dentro da Comunicação Social; e, finalmente, agradeço às plantas de poder
pela inspiração desta pesquisa e pelas portas abertas para o Paraíso que deixaram sobre a
Terra, por onde, infelizmente, nem todos sabem entrar.




                                             5
Resumo



     O objetivo deste trabalho é fazer uma análise do discurso jornalístico-científico sobre
a maconha em três capas da revista de divulgação científica SUPERINTERESSANTE, da
editora Abril. O que se coloca em questão é como o discurso jornalístico alterou o seu
enfoque sobre o tema a partir de uma mudança editorial da revista que focou nos jovens seu
público alvo e passou a dar mais espaço à abordagem histórico-científica sobre o tema e
não apenas médico-científica. Entendendo que tanto ciência como jornalismo são
atividades humanas e, portanto, sujeitas às subjetividades do indivíduo e do contexto social
no qual ele está inserido, questiono as verdades do discurso científico sobre a maconha, e a
formação de um discurso jornalístico que toma por base a ciência para apoiar seus enfoques
sobre o mesmo tema, mostrando que nem sempre é a verdade ou a sua busca, o único
impulso gerador da pesquisa científica ou da divulgação jornalística. Há outros interesses
historicamente contextualizados que interferem na produção científica e na abordagem da
divulgação de ciência, que no caso especifico sofreu alterações devido às disposições do
público alvo da revista em considerar novos pontos de vista.


(Palavras-chave: jornalismo científico; análise do discurso; maconha).




                                             6
Introdução



      A relação da maconha com a imprensa pode-se dizer que é recente. Teve início ao
mesmo tempo em que começaram os esforços para promover a proibição do consumo e do
cultivo da planta em todo o mundo, nos primeiros anos do século XX. Antes disso, a
maconha era consumida livremente, embora vista com maus olhos em diversas sociedades,
como a americana, que associava o seu uso a classes consideradas inferiores como negros e
hispânicos, e manchetes de capa não estavam na ordem do dia até então. O quadro mudaria
a partir dos anos 1930, quando uma forte campanha pela criminalização da planta teve
início nos Estados Unidos, e a maconha ganhou páginas e mais páginas de destaque nos
jornais.
      Os primeiros artigos sobre a maconha publicados em jornais americanos estavam
baseados no sensacionalismo e em interesses particulares na proibição da erva, interesses
esses econômicos, políticos e sociais, menos de saúde pública. É nessa época que se cria e
se populariza o termo marihuana, numa forte associação aos mexicanos, freqüentes
usuários de maconha e até hoje peso indesejável na sociedade americana. Os artigos
falavam de mortes e tragédias provocadas pela maconha e eram apoiados em racismo
aberto contra as populações não brancas da América. No Brasil também não era diferente.
A planta estava associada aos negros e às populações marginalizadas.
      A imprensa provavelmente foi a principal arma dos opositores da maconha para
formar no imaginário popular estereótipos que perduram até hoje (o maloqueiro, o
vagabundo, o criminoso). Entretanto, não se poder dar mais o caráter racista de antes aos
textos. Hoje, todos estão embasados na ciência e nas suas descobertas sobre os efeitos da
maconha. Porém, podemos nos perguntar até que ponto as descobertas da ciência sobre a
cannabis estão isentas de interesses? Está a ciência livre das pressões sociais e morais
externas que se exercem sobre ela? Como isentar uma análise científica que está financiada
por recursos de Estado que tem interesses particulares na proibição do uso de determinadas
substâncias?
      O objetivo deste trabalho é fazer uma análise do discurso jornalístico-científico sobre
a maconha em três capas da revista de divulgação científica SUPERINTERESSANTE, da
editora Abril. O que coloco em questão é como o discurso jornalístico alterou o seu enfoque

                                              7
sobre o tema a partir de uma mudança editorial da revista que focou nos jovens seu público
alvo e passou a dar mais espaço à abordagem histórico-científica sobre o tema e não apenas
médico-científica. A mudança no discurso se permitiu porque nem ciência nem jornalismo
puderam ao longo dos anos proibir de fato o consumo da maconha. E hoje o usuário não é
mais o negro, o hispânico ou o favelado. É o advogado, o estudante universitário, artistas e
intelectuais, pessoas que fazem parte de uma classe que não quer se ver rotulada como
criminosa ou doente. E a mídia, ao contrário do que muitos pensam, não apenas influencia,
mas é também influenciada pelo contexto e o momento social em que vive.
     Tanto ciência como jornalismo sempre se propuseram objetivos em seus passos em
busca da verdade. Porém, ambos não podem negar a influência do contexto social nas
escolhas que fazem dentro de suas áreas específicas. Cientista e jornalista empreendem
atividades humanas cujo caráter subjetivo é inegável na sua produção e na formulação de
seus discursos, porém devo lembrar que a concepção de subjetividade que defendo neste
trabalho:


                                ―Nada tem a ver com a concepção idealista e ingênua do sujeito
                        como ser individual, pensante e racional. Os sujeitos da enunciação são,
                        como bem lembra Orlandi (1983), não apenas seres individuais, com
                        pensamento e capacidades próprios, mas também e, sobretudo, seres
                        sociais que, como tal, partilham com outros sujeitos da comunidade a
                        qual pertencem pontos de vista, atitudes e comportamentos que passam a
                        funcionar como convenções. Enquanto agentes, os sujeitos impregnam
                        com seu ‗eu‘ as atividades que constroem; enquanto participantes de um
                        grupo social, aderem aos princípios que os unem e aceitam (na maioria
                        das vezes de forma inconsciente) as convenções que os caracterizam‖
                        (Coracini, 1991:191).


     Assim, a comunidade científica sofre as pressões e convenções da sua comunidade
bem como do contexto social em que está inserida. Ainda que se pretenda neutra, carrega
outros discursos que influirão na sua busca pela verdade. O jornalista, mais que o cientista,
está pressionado por esse contexto. Então, o que coloco é que um discurso jornalístico
baseado na objetividade científica, na verdade comprovada cientificamente, pôde mudar e
mudou, quando se passou a analisar a questão sobre outro enfoque, o histórico-social. Tal

                                                8
mudança de rumo só foi possível graças a uma mudança na discussão do tema dentro da
sociedade e, sobretudo, dentro da camada da sociedade em que está centralizado o público
alvo da revista. Portanto, ―verdades cientificamente comprovadas‖ dependem de um
contexto para sua realização, e não estão objetivamente dadas no universo.
     Optei pela SUPERINTERESSANTE por ser a revista de divulgação científica de
maior circulação no país e está voltada para um público com certo grau de instrução, mas
não especializado. Além disso, a SUPER tem se diferenciado das demais revistas de
divulgação científica pelo lançamento de subprodutos que levam a marca da revista, mas
são publicações independentes como livros, DVS, revistas para crianças, etc procurando
atingir um público jovem cada vez maior. Dentre os assuntos abordados pela revista,
escolhi a maconha por ser este um tema polêmico dentro da sociedade e pelas
ambigüidades que se apresentam dentro dos discursos que aqui serão analisados, o da
ciência e o da mídia, quando tratam da maconha. Também influenciou na escolha o fato de
ser este um assunto de grande interesse dos jovens, e por tanto, do público alvo da revista
SUPERINTERESSANTE.
     A monografia está dividida em três capítulos, introdução e conclusão. No primeiro
capítulo abordo os conceitos vigentes de ciência a partir do trabalho de autores que
estudaram o discurso da ciência e os seus críticos, apresentando algumas considerações
sobre os objetivos e os métodos das ciências e sobre a noção de progresso científico. Ainda
no primeiro capítulo apresentarei um breve histórico do desenvolvimento do jornalismo
científico no mundo e uma apresentação da revista SUPERINTERESSANTE.
     O segundo capítulo apresenta um perfil da maconha e dos seus usos ao longo do
tempo, bem como trato proibição da erva no Brasil e no mundo. No terceiro capítulo é feita
a análise do discurso das três reportagens de capa da SUPER que trataram da maconha. O
que eu pretendo com está pesquisa não é dizer se a revista analisada está melhor ou pior
hoje, ou como ela deveria estar. O que quero demonstrar é que mudanças sociais e
mercadológicas influenciaram a reestruturação de um discurso jornalístico que teria por
base o discurso científico, ambos pretendendo na teoria serem discursos baseados na
verdade precisa, empiricamente comprovada nos fatos. Porém, o que se vê é que nem um
discurso nem outro está livre das subjetividades que permeiam suas construções
discursivas. O capítulo ainda conta com uma introdução onde veremos a relação da mídia
impressa com a cannabis em alguns momentos.

                                             9
A metodologia aplicada foi a análise do discurso francesa (AD), porém com aplicação
reduzida da análise estrutural do texto (análise de palavras) utilizada pela lingüística e com
enfoque sobre o funcionamento histórico do discurso, a exemplo de Michel Foulcault. Esse
autor trabalha essencialmente com o conceito de ideologia associado ao discurso e nele
encontrei uma base melhor por entender como Orlandi (1987) que não há discurso sem
sujeito, nem sujeito sem ideologia. Entretanto, a metodologia de outros autores da análise
do discurso como Maingueneau, Brandão e Orlandi também foram utilizados num esforço
de tornar a discussão mais completa, contudo sem aprofundar nas especificidades da
lingüística. Uma revisão bibliográfica da revista em questão foi realizada com todas as
edições já lançadas partir dos CDs-Rom que formam a edição comemorativa dos 15 anos da
revista e de minha coleção particular. A caixa com seis CDs tem as edições de setembro de
1987 a junho de 2002, num total de 178 edições. Apesar do grande número de edições,
apenas formam o foco da pesquisa: as de números 095, 127 e 179, respectivamente de
agosto de 1995, abril de 1998 e agosto de 2002.




                                             10
Capítulo I

                     Ciência e Jornalismo Científico


       Entender o discurso científico pressupõe compreender os conceitos vigentes de
ciência, os métodos criados, as regras elaboradas para determinados fins, a relação entre o
paradigma vigente, a ciência normal e as revoluções científicas. Acompanhando o trabalho
de três autoras brasileiras (Coracini, Santaella e Lopes) sobre a ciência e seus discursos e os
caminhos da pesquisa científica em comunicação social, procuro apresentar neste capítulo,
ainda que de forma sucinta, algumas considerações sobre o objetivo e métodos da ciência e
sobre a noção de progresso, focalizando, neste item, as colocações de Coracini (1991) sobre
três filósofos da ciência: Popper, Kuhn e Feyerabend.
       Em seguida, apresento um breve histórico do desenvolvimento do jornalismo
científico no mundo, e no Brasil, procurando ressaltar a importância social desse tipo de
divulgação quando pensamos que a ciência é feita com dinheiro público e que é para
sociedade que se reverte os resultados de suas pesquisas. Como é uma publicação de
divulgação científica que analiso, encerro o capítulo com uma breve apresentação da revista
SUPERINTERESSANTE cujos textos são objeto desta pesquisa.


1.1 O que é ciência?


       Não tenho por pretensão responder objetivamente a questão acima, mas apenas
apresentar a visão de autores sobre o que viria a ser a ciência e seu desenvolvimento,
levando em conta principalmente seus objetivos e métodos. Lembro ainda que essa
apresentação será resumida devido ao espaço deste trabalho. Portanto, lacunas existem e
não pretendo negá-las, mas indicar aos possíveis leitores interessados uma pesquisa mais
aprofundada na bibliografia citada que poderá ajudar àqueles que queiram saber mais sobre
a ciência, seu desenvolvimento e seus críticos (no bom e no mal sentido).


       ―O objetivo da ciência é descobrir uma ordem invisível que transforme os fatos de
enigma em conhecimento‖. Esta definição de Alves (1984:40) apresentada em Coracini
(1991:25) leva a reconsiderar o aparecimento da ciência e o seu objetivo primeiro: a

                                              11
aparência caótica e desorganizada do universo não possibilitava ao homem chegar ao
conhecimento, isto é, à compreensão profunda dos seres e fenômenos; isso só parecia ser
possível mediante estudos sistematizados e minuciosos dos componentes físicos, do
comportamento dos seres, das reações em cadeia, enfim, da apreensão da ordem e
organização dos elementos, de modo a tornar os fatos familiares, manipuláveis e, portanto,
utilizáveis. Essa visão utilitária da ciência permanece hoje na sua aplicação à tecnologia.
       Há muitos séculos se acredita que o objetivo magno da ciência está na busca do
conhecimento objetivo, ou seja, comprovado, dos seres e fenômenos do universo, e o
século XIX nos legou a idéia de que a ciência é corpo sistematizado e organizado do
conhecimento. A própria palavra ciência vem do latim scire (saber) e significa
conhecimento ou sabedoria. Conhecer é deter alguma informação ou saber a respeito de
algo (Santaella, 2001:106). Costuma-se dizer que a ciência existe para nos tirar do senso
comum que seria o conhecimento acrítico, imediatista e sem sofisticação, que não
problematiza a relação sujeito e objeto. Porém, como não é possível se saber de tudo,
mesmo o cientista pratica o senso comum nas áreas que fogem a sua especialidade, de
modo que o senso comum é uma dose de conhecimento comum de que dispomos para dar
conta das necessidades rotineiras.
       Retomando a definição de Alves apresentada acima, pode-se afirmar que o objetivo
da ciência tem sido não ―descobrir‖, mas construir o conhecimento humano com base na
sistematização, na organização dos fatos que se entrelaçam e se relacionam. Captar essas
relações é tarefa do cientista que, inserido num determinado contexto histórico-social,
partilha com outros cientistas a crença num paradigma, em normas prescritivas que lhe
possibilitam ―ver‖ desta ou daquela maneira os fatos, os seres, os fenômenos naturais.
Santaella citando C. S. Peirce coloca que a ciência deve ser vista como aquilo que é levado
a efeito por pesquisadores vivos, fruto da busca concreta de um grupo real de pessoas vivas,
caracterizando-se, desde modo, como algo em permanente metabolismo e crescimento
(2001:103). A ciência seria um processo, uma realidade sempre volúvel, mutável,
contraditória, nunca acabada, um vir a ser. Entretanto, Santaella lembra que o fato de que
nenhuma teoria possa esgotar a realidade, não pode produzir o conformismo, mas
precisamente o contrário: o compromisso de aproximações sucessivas crescentes, pois ―a
ciência não é a acumulação de resultados definitivos, mas principalmente o questionamento
inesgotável de uma realidade reconhecida também como inesgotável‖.

                                              12
Uma vez que a ciência busca, mais do que a mera descrição dos fenômenos,
estabelecer, através de leis e teorias, os princípios gerais capazes de explicar os fatos,
estabelecendo relações e predizendo a ocorrência de relações e acontecimentos ainda não
observados, o conhecimento científico não poderia ser alcançado através da inocência. Por
isso:
                                ―A ciência desenvolve meios que lhe são próprios para chegar
                        àquilo que busca. Esses meios se constituem nos conceitos e redes
                        conceituais que os pesquisadores edificam. Assim são obtidas leis,
                        hipóteses e teorias que nos permitem compreender e ordenar o universo
                        por meio de explicações, previsões e sistematizações‖ (Santaella,
                        2001:110).


        Vem daí o valor das teorias para a ciência. Definida de maneira simples, uma teoria
é uma generalização para explicar como algo funciona. Ela nos fornece princípios gerais
que nos ajudam a compreender um número de fenômenos específicos, porque e como eles
ocorrem e como estão relacionados entre si, pois a teoria faz a síntese dos dados, ajudando
a prever eventos futuros. Contudo, as teorias são limitadas e não podem revelar a verdade
em um sentido absoluto. Além da necessidade das construções teóricas, se a ciência busca o
conhecimento, cumpre perguntar como esta busca se realiza. Consensualmente, acredita-se
que conhecimento se adquire através de pesquisa.


                                ―Quando um hábito de pensamento ou crença é rompido, o
                        objetivo é se chegar a um outro hábito ou crença que se prove estável,
                        quer dizer, que evite a surpresa e que estabeleça um novo hábito. Essa
                        atividade que passa da dúvida à crença, de resolução de uma crença
                        genuína e conseqüente estabelecimento de um hábito estável é o que
                        Peirce chamou de investigação‖ (id., ibid.:112).


        Está definição contém aquilo que se constitui no núcleo de qualquer pesquisa:
livrar-se de uma dúvida. Toda pesquisa nasce, portanto, do desejo de encontrar resposta
para uma questão.
        Raiz do conhecimento científico, a pesquisa se realiza por aplicação de métodos que
servem de guia para o estudo sistemático do enunciado, a compreensão e a busca de


                                              13
solução de um determinado problema. ―O método não seria outra coisa do que a
elaboração, consciente e organizada, dos diversos procedimentos que nos orientam para
realizar o ato reflexivo, isto é, a operação discursiva de nossa mente‖ (Rudio, 1992:15,
apud Santaella, 2001:133).
       Podemos dizer ainda que as metodologias das ciências são especificas, variando
tanto historicamente quanto na passagem de uma ciência para outra. Ainda segundo
Santaella, as tendências metodológicas tomariam um rumo segundo um critério histórico
que podemos observar no positivismo de Comte, no materialismo histórico-dialético de
Marx ou ainda no neopositivismo ou empirismo lógico do século XX; na fenomenologia de
Husserl e sua postulação de que ―o conhecimento é o resultado da interação entre o que o
sujeito observa e o sentido que ele fornece à coisa percebida‖; o estruturalismo e a busca de
leis que presidem às estruturas das mais diversas ordens, assim como a escola de Frankfurt
com sua crítica aguda contra a razão instrumental alimentada pela sociedade capitalista até
o grupo de expoentes da epistemologia contemporânea como Popper, Kuhn e Feyerabend
que discutiremos ainda neste capítulo, só para citar exemplos das ciências sociais e
humanas. Concordo com Lopes (2001: 37) quando cita Kuhn colocando que este autor vê a
história de uma Ciência ―moderna‖ como sendo, essencialmente, uma sucessão de
paradigmas, cada um dos quais com sua própria teoria e seus próprios métodos de pesquisa,
cada um guiando uma comunidade de cientistas durante certo período, sendo depois
substituído por outro. Especificamente com relação às ciências sociais Lopes coloca ainda
que:


                                ―O próprio objeto (das ciências sociais) é dinâmico e mutável
                        porque os problemas estudados são fenômenos históricos, instituições,
                        relações de poder, classes sociais, manifestações culturais etc. E o que
                        muda não é somente o dado ou objeto. As próprias ‗verdades‘ e
                        ‗comprovações‘ produzidas por essas ciências se relacionam com o
                        processo histórico. Daí se reconhecer que o conhecimento científico nas
                        ciências sociais procede normalmente por rupturas, descontinuidades e
                        crises‖ (idem).


       Longe de acreditar que a influência do contexto histórico aplica-se apenas sobre as
ciências sociais e humanas, que não possuem um controle severo sobre seus objetos de

                                             14
estudo como no caso das ciências naturais (física, química, biologia, etc) que podem isolar
e manipular em laboratório seus objetos, acredito que essa variável aplica-se a ciência como
um todo. Desde Galileu, o contexto histórico e social permeia a investigação científica em
qualquer ramo da ciência que venha a se realizar. Vale lembra que grande parte das
inovações tecnológicas que usamos nos dias de hoje, do telefone sem fio à internet,
nasceram da pesquisa científica com fins militaristas, ou seja, perpassados por interesses de
Estado, econômicos, políticos e ideológicos.


                                        ―A tese da dependência contextual é também aplicável à ciência
                               como totalidade. O todo da ciência, certamente, não é o único contexto
                               imaginável, como se os limites da ciência viessem a identificar-se com os
                               limites do nosso mundo. (...) A ciência não é só uma linguagem bem
                               feita, mas uma complexa atividade humana, e enquanto tal imersa na
                               infinita complexidade das demais atividades dos homens‖ (Muguerza,
                               1975:66).1


           Essa discussão divide cientistas e comunidades científicas que se pretendem imunes
a influências externas dentro de seus trabalhos, colocando a ciência e sua busca pela
verdade como questões livres de contornos sócio-históricos. Essa resistência se verifica
mais nas ciências exatas e naturais, onde a figura do cientista isolado em seu laboratório
ainda persiste no nosso imaginário (e não nego que na realidade mesma). Porém, sabemos
que até para que possa se isolar na sua pesquisa o cientista precisa de apoio, sobretudo
financeiro, que vem de fontes com interesses específicos como o Estado ou iniciativa
privada. Acreditar que questões políticas e econômicas inseridas no contexto social e
histórico não participam deste apoio e, conseqüentemente, das pesquisas científicas, seria
muito ingênuo por parte da comunidade científica se realmente se enxergam livres da
história externa que cerca a história interna da ciência e do seu desenvolvimento.


1.2 A noção de progresso da ciência


           Karl Popper, Thomas S. Kuhn e Paul Feyerabend são os três filósofos da ciência
considerados por Maria José R. Faria Coracini em seu livro “Um fazer persuasivo: o
1
    Tradução minha da introdução do livro La critica y el desarrollo del conocimiento.
                                                       15
discurso      subjetivo   da   ciência”,   onde    a   autora    analisa    a   questão    da
objetividade/subjetividade do discurso científico através de reflexões lingüístico-filosóficas
sobre a ciência e o seu fazer persuasivo, sobre a metodologia de análise do discurso e sobre
questões relativas ao ensino das habilidades de compreensão e produção da escrita
científica.
        Os três filósofos são apresentados de forma a tornar mais claro a noção de progresso
da ciência, pois, acredita a autora, as tendências apresentadas por eles são ainda muito
atuais neste sentido. A partir da bibliografia de Coracini, recorri aos textos de Popper, Kuhn
e Feyerabend sobre a ciência e o desenvolvimento do conhecimento presentes no livro “La
critica y el desarrollo del conocimiento”, cuja versão espanhola é de 1975. A obra está
publicada no Brasil pela editora Cultrix/Edusp, mas eu não tive acesso a um volume em
língua portuguesa ficando com a ingrata tarefa de ler obras espinhosas em outro idioma,
ainda que seja o espanhol (a tradução das citações aqui apresentadas foi feita por mim).
        Não pretendo tecer profundas reflexões sobre o pensamento de cada autor (até
porque não julgo que os tenha absorvido tão bem assim), mas, a exemplo de Coracini,
apresentar de maneira sucinta o pensamento de cada um a respeito da ciência. Recorrerei
mais ao trabalho de Coracini que brilhantemente resumiu as idéias dos filósofos que aos
textos dos autores em si por entender que a profundidade dos debates empreendidos no
trabalho deles não tem espaço para esmiuçamento nesta monografia, e se o fizesse estaria
fugindo do propósito real deste trabalho para mergulhar na epistemologia.


O método do falseamento de Karl Popper


        Popper defende o método dedutivo para a ciência, segundo o qual o embasamento
teórico deveria constituir o ponto de partida do trabalho científico, seguindo o esquema
problema-solução. Para ele, à diferença dos indutivistas, os problemas não adviriam da
observação dos fenômenos, mas das próprias teorias vigentes, que já não satisfazem o
cientista diante da sua tarefa de fazê-las corresponder aos fatos. Para Popper, é essa
necessidade de mudança exigida pelo próprio objetivo de estudo que faz progredir a
ciência. São os momentos de revolução científica, em que se busca uma maior adequação
da teoria aos fenômenos observados, aproximação da verdade objetiva, no dizer de Popper,
que interessam para o desenvolvimento da ciência.

                                             16
Segundo esse autor, o progresso do conhecimento científico segue o mesmo método
utilizado para a aquisição do conhecimento pré-científico, isto é, o método de aprender por
ensaio e erro, aprender a partir de nossos erros. A ciência progride à medida que as falhas
nas teorias anteriores, na aplicação a determinados métodos de estudo, provocam períodos
de revolução, caracterizados pelo descontentamento e pela busca de paradigmas mais
adequados; tais revoluções, segundo Popper, acarretariam o avanço da ciência. O autor
considera que é buscando o erro que se busca a verdade; é ‗falseando‘ uma teoria que se
promove a ciência – teoria do falseamento (Popper, 1979:28 apud Coracini, 1991:28).
       Preocupado em perceber, na história da ciência, um método eficiente para submeter
criticamente à prova as teorias e selecioná-las a partir dos resultados obtidos – única
maneira de se fazer teorias novas – Popper se posiciona a favor do método dedutivo da
prova, segundo o qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada.
Alguns dos critérios assinalados por Popper para submeter à prova uma teoria, ou seja, para
testá-la, são: a) a comparação lógica da teoria (para por à prova a coerência interna do
sistema); b) investigação da forma lógica da teoria; e c) comparação com outras teorias
(para determinar se a teoria representa um avanço de ordem científica no caso de ter
passado satisfatoriamente nas várias provas). Desta forma, vêem-se os erros revelados pela
verificação empírica, verificação esta que leva à substituição de uma teoria por outra ou a
sua reformulação.
       É ao método do falseamento que Popper confere a qualidade de ―verdade absoluta‖
ou ―objetiva‖, porém o próprio autor não se considera um ―absolutista‖, pois não acredita
que ele ou qualquer pessoa tenha a verdade ―no bolso‖. A possibilidade de escolha garante,
de certa forma, a existência de critérios adotados mediante reflexões, aplicações e
comparações das várias teorias. Entretanto, as correções teóricas não anulam as teorias
precedentes ou as demais teorias concorrentes. É por isso que Popper considera que é na
ciência e só nela que podemos dizer que fizemos progressos genuínos e que sabemos mais
agora que antes, acreditando no acúmulo de conhecimento. Ele também vê a investigação
científica como um trabalho que exige participação ativa, especulativa e analítica por parte
do pesquisador que dever ter o devido senso crítico para realizar ciência:




                                             17
―Eu creio que a ciência é essencialmente crítica; que consiste em
                        arriscadas conjecturas, controladas pela crítica, e que, por essa razão,
                        pode ser descrita como revolucionária‖ (1975:154).


       Para Popper, o cientista que só se preocupa em aplicar as teorias vigentes, sem
colocá-las à prova, sem questionar sua validade é um não revolucionário que pouco
contribui para o progresso da ciência.


Kuhn e a ciência normal


       Se por um lado Popper enfatiza o período das revoluções científicas, Kuhn, no dizer
de Popper, valoriza em excesso os períodos da chamada ―ciência normal‖ – etapas da
ciência em que predomina um ―paradigma‖, índice de uma teoria dominante, à qual adere o
cientista normal. Na sua crítica a Kuhn, Popper diz:


                                ―A ciência normal, no sentido de Kuhn, existe. É a atividade dos
                        profissionais não revolucionários, ou, dito mais precisamente, não
                        demasiado críticos; do estudioso da ciência que aceita o dogma
                        dominante do momento, que não deseja desafiá-lo, e que aceita uma
                        teoria revolucionária nova somente se quase todos os demais estão
                        dispostos a aceitá-la, se se torna moda‖ (1975:151).


       Para Coracini, o que Popper parece não ter compreendido é que, embora
concordando quanto ao valor das revoluções científicas, Kuhn considera a pesquisa e,
portanto, o período da ciência normal, de grande relevância para a ciência, uma vez que
―nem a ciência nem o desenvolvimento do conhecimento têm probabilidades de serem
compreendidos, se a pesquisa for vista apenas através das revoluções que produz de vez em
quando‖ (Kuhn, 1979:11 apud Coracini, 1991:31). Kuhn afirma ainda que um olhar
cuidadoso dirigido à atividade científica dá a entender que é a ciência normal e não a
ciência extraordinária que quase sempre distingue a ciência de outras atividades. Essa é, na
verdade, uma questão ideológica que distingue os dois filósofos.
       Segundo Kuhn, os cientistas normais se unem em torno do mesmo paradigma e se
constituem em comunidades, cuja principal característica é a de utilizarem instrumentos e

                                              18
métodos de análise próprios e adequados ao paradigma teórico escolhido. Tais
comunidades podem constituir verdadeiras ―escolas‖ científicas, uma vez que, segundo
Kuhn, constituem em grupos de cientistas que se reúnem em torno de uma especialidade,
partilhando o mesmo paradigma e a mesma literatura de base. Opondo-se entre si, essas
―comunidades científicas‖ determinam regras, normas que devem ser seguidas por todo
aquele que desejar a elas pertencer. Para ele, ―seja o que for o progresso científico,
devemos explicá-lo examinando a natureza do grupo científico, descobrindo o que valoriza,
o que tolera e o desdenha‖ (1975:400).
       Definido, dessa maneira, o peso da comunidade científica, Kuhn sugere que a
racionalidade da ciência pressupõe a aceitação de um ―referencial comum‖, determinado
pelo momento histórico. Kuhn considera a ciência como uma atividade envolvida num
contexto histórico-social no qual se insere a comunidade científica. É, aliás, em nome dessa
mesma comunidade que Kuhn é levado a considerar o discurso da ciência como
eminentemente argumentativo, uma vez que tem por objetivo convencer, angariar adeptos
dentre os seus prováveis leitores, membros da mesma comunidade (Coracini, 1991:31).
       Assumindo o discurso da ciência como argumentativo, Kuhn não acredita num
método adequado para se julgar individualmente uma teoria, como poderia ocorrer aos
cientistas revolucionários de Popper. Para Kuhn, é a comunidade científica que propõe os
parâmetros, que escolhe e determina se uma experiência é válida ou não. Fora da
comunidade não se faz ciência: as novas pesquisas devem se coadunar com os padrões
científicos existentes e aceitos pela comunidade (id.,ibid.:32). Tal visão vem explicar o
caráter convencional do discurso científico, no qual a liberdade e a possibilidade de
criatividade do enunciador se acham limitadas por certas regras.
       Quanto ao aspecto evolutivo da ciência, Kuhn é de opinião que são os períodos de
crise, que precedem as chamadas revoluções científicas, que provocam o aparecimento de
novas teorias. Esses períodos críticos se caracterizam, segundo ele, pela proliferação de
versões teóricas ou de paradigmas concorrentes, com o intuito de criar uma alternativa mais
adequada.
       Kuhn declara não aceitar a presença da subjetividade enquanto componente
individual na tarefa de investigação científica, transferindo para comunidade científica a
responsabilidade dos elementos ―subjetivos‖ que passariam a ―intersubjetivos‖: o espírito
seletivo, a intuição e a imaginação criadora se submetem a uma série de regras

                                            19
determinadas pelo grupo de cientistas. Para Coracini, são essas regras que garantem a
permanência e a própria existência da objetividade científica, conceito inteiramente
vinculado à comunidade e não ao indivíduo. ―Se considerarmos, porém, que essa
comunidade (científica) é compostas de indivíduos, perceberemos que o que ocorre, de
fato, é o social (meio científico) agindo sobre o individual, na tarefa pessoal de elaboração
da experiência e do discurso‖ (id., ibid.:33).


O anarquismo científico de Feyerabend


       Paul Feyerabend considera a ciência como ―um empreendimento essencialmente
anárquico: o anarquismo teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular o
progresso do que suas alternativas representadas por ordem e lei‖ (Feyerabend: 1977:9
apud Coracini, 1991:34). Feyerabend se posiciona contra todo método ―objetivo‖ que
pretenda julgar a validade de uma teoria científica, pois, seja ela qual for, funda-se numa
―concepção demasiado ingênua do homem e de sua circunstância social‖. Para ele, o único
princípio que não inibe o progresso é o ‗tudo vale‘. A ocorrência de idéias completamente
diferentes leva o cientista a se questionar e a se posicionar. A proliferação de teorias seria,
portanto, para o autor, benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade lhe debilita o
poder crítico, além de ameaçar o livre desenvolvimento do indivíduo.
       Feyerabend confirma todo o caráter relativo e subjetivo de toda opinião, de todo
método, de todo princípio, enfim, de toda investigação, mesmo científica.


                                 ―As ciências estão especialmente rodeadas de uma aura de
                         perfeição que transforma qualquer dificuldade em benefício próprio.
                         Frases como ‗busca da verdade‘ ou ‗o mais alto objetivo da humanidade‘
                         se empregam com profusão. Sem dúvida enobrecem seu objetivo, mas
                         também o distancia do domínio da discussão crítica‖ (1975:359).


       Defendendo-se das acusações de ser subjetivista e relativista feitas por Popper,
Feyerabend afirma que:


                                 ―(...) uma atividade cujo caráter humano está à vista de todos é
                         preferível a uma que se mostre ‗objetiva‘ e impermeável às ações e

                                                 20
desejos humanos. Depois de tudo, as ciências, incluindo todos os severos
                        padrões que elas parecem impor-nos, são criações nossas‖ (1975:379).


     Com essa afirmação, Feyerabend desmistifica a ciência em sua busca objetiva e
absoluta – toda verdade é, pois, subjetiva e provisória. Mesmo o mais sofisticado aparato
teórico ou metodológico é produto da criação humana e, nesses termos, não escapa à
subjetividade, entendida aqui como relatividade, dependência do seu construtor. É, aliás,
esse caráter provisório da ciência que a faz progredir e avançar. Assim, cai por terra a visão
tradicional que eleva a ciência à posição dogmática de detentora de critérios objetivos,
mensuráveis, capazes de levar o homem à essência dos seres e à verdade dos fenômenos
naturais.
     Podemos encontrar um ponto em comum entre os três filósofos que é a idéia de que a
ciência é construção e como tal pressupõe um sujeito, ativo, capaz de conferir um
significado a um fenômeno natural. Porém, apenas Kuhn se mostra sensível ao aspecto
social das investigações científicas, permitindo explicar ao mesmo tempo a subjetividade e
o caráter convencional da pesquisa, e, portanto, do discurso científico, parecendo-me
relevante para o presente trabalho já que me disponho a examinar a influência de um
contexto histórico, social, econômico e político na construção de um discurso científico que
seria a base de um discurso midiático. Também Feyerabend estaria próximo do propósito
desta monografia pelo caráter crítico que apresenta sobre a pretensão da ciência de ser a
detentora das verdades quando, na opinião deste autor (e também na minha), essas verdades
existem, mas seu caráter é provisório e, como criação humana que é, não escapa das
subjetividades intrínsecas da nossa natureza.


1.3 Jornalismo Científico: breve histórico


       Podemos buscar as raízes do jornalismo científico ainda no século XV com o
advento da imprensa de Gutenberg. Segundo Oliveira (2002:17) os livros de história da
ciência dão como certo que a difusão da imprensa nessa época acelerou a criação de uma
comunidade de cientistas, fazendo com que as idéias e ilustrações científicas se tornassem
disponíveis a um grande número de pessoas, embora essas pessoas não significassem ainda
o grande público, mas uma pequena camada letrada da sociedade como os representantes

                                                21
do clero, da nobreza e da burguesia mercantilista que começava a se espalhar pela Europa.
Entre o advento da imprensa e o desenvolvimento da divulgação científica similar ao que
temos hoje, passaram-se dois séculos, tempo que podemos considerar curto levando-se em
conta a velocidade das transformações sociais da época.
       No século XVI exercia-se sobre a atividade científica uma censura por parte do
Estado e da Igreja. Para informarem uns aos outros sobre suas descobertas, cientistas se
reuniam às escondidas e dessas reuniões de elite brotou a tradição da comunicação aberta e
oral sobre assuntos científicos. A divulgação da ciência surge, portanto, dentro de grupos
fechados. A comunicação científica se desenvolve entre os séculos XVI e XVII durante o
período da chamada revolução científica, fenômeno particularmente europeu que proveu
uma revolução não somente no campo das ciências e da técnica como também provocou
transformações na filosofia, na religião e no pensamento moral, social e político (Oliveira,
2002:18).
       A divulgação da ciência e do pensamento científico, como já foi dito, era feita
essencialmente entre os cientistas, que formaram sociedades para promoverem o debate de
suas idéias e descobertas. Na Itália surge a Accademia Secretorum Naturae, em 1560, como
a primeira de muitas sociedades científicas italianas. Roma tinha sua Accademia di Lincei
que durou de 1603 a 1630, e Florença possuía a Accademia del Cimento, fundada sobre a
proteção dos irmãos Médici e que durou dez anos. Na Inglaterra, a Royal Society for the
Improvement of Natural Knowledge foi proposta por Francis Bacon em 1620 e aprovada
em 1622 por Charles II. Na França, Louis XIV estabeleceu em 1666 a Académie des
Sciences. Frederico da Prússia cria a Academia de Berlim em 1700 e os Estados Unidos
regulamentam sua National Academy of Sciences em 1863 (Burkett, 1990:27). A
Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) é fundada em 1848, e hoje
congrega toda a comunidade científica dos Estados Unidos. Os cientistas se mantinham
atualizados sobre o meio acadêmico científico através da troca de monografias, livros e,
sobretudo cartas que eram impressas e enviadas a vários cientistas.
       O inventor do jornalismo científico, entretanto, não foi um grande cientista de sua
época. O alemão Henry Oldenburg é considerado o pai do jornalismo científico. Membro
da Royal Society inglesa, Oldenburg combinou o caráter informal e fragmentado das cartas
trocadas entre os cientistas com o potencial de alcance do texto impresso e inventou assim a
profissão de jornalista científico. Durante quatro anos, Oldenburg produziu e distribuiu as

                                            22
cartas científicas sem qualquer remuneração. A partir de 1666 ele passa a receber um
salário da instituição pelo seu trabalho de divulgador científico, e posteriormente passaria a
contar com um redator. Antes disso, em 1665, Oldenburg deu início à publicação
Philosophical Transactions, periódico da Royal Society que durante mais de dois séculos
permaneceu como modelo para as modernas publicações científicas. Dominando vários
idiomas, Oldenburg pode traduzir textos de várias fontes para o inglês e o latim. Além
disso, estabeleceu precedentes de cientistas funcionando como editores de periódicos da
sociedade científica e para publicação em vernáculo, o que fortaleceu a pesquisa científica
na Europa. Muito do que era publicado podia ser compreendido por qualquer das pessoas
pouco letradas da época.
       Na Europa e nos Estados Unidos, o jornalismo científico recebe grande impulso a
partir do século XIX apesar do caráter fragmentário na Europa, levando-se em conta que foi
um século de grande descobertas científicas como o barco e a locomotiva a vapor, o
telégrafo e o telefone. É possível que a passagem do título de ―nação mais avançada
cientificamente‖ da Inglaterra para França, nos séculos XVIII e XIX, e da França para
Alemanha no início do século XX, tenha tido reflexos na relativa dispersão do jornalismo
científico na Europa. Nos Estados Unidos é lançado em 1818 o Américan Journal of
Science para noticiar sociedades científicas locais. O Scientific American, fundado em
1845, enfatizava as patentes, as invenções e a tecnologia. Na Inglaterra é lançada a revista
Nature, em 1869 e em 1880, o americano Thomas Edison funda a Science, a revista
científica semanal mais prestigiada no mundo até hoje.
       As duas grandes guerras mundiais certamente contribuíram para o avanço do
jornalismo científico na Europa e nos Estados Unidos.


                                ―A proliferação do desenvolvimento científico e tecnológico
                        provocado pela Primeira Guerra Mundial (1914-1919) resultou no
                        aumento significativo da cobertura jornalística nessa área, pois com a
                        guerra houve uma ênfase da importância da ciência: novas armas de
                        grande potencial, novos explosivos, gases venenosos, aeroplanos e
                        submarinos eram usados pela primeira vez em um conflito de grandes
                        proporções (Oliveira, 2002:22).‖




                                             23
Assim, após a Primeira Guerra Mundial, jornalistas dos dois continentes, ávidos por
reunir informações e conhecimento para interpretar as novas tecnologias bélicas, criam as
primeiras associações de jornalismo científico. Na Inglaterra, o jornalista Richard Calder,
que escrevia sobre ciência no Daily Mail desde o final da década de 1930, cria em 1945,
junto com outros jornalistas, a Associação Britânica dos Escritores da Ciência. Em 1971, as
associações já existentes na Europa se uniram e criaram a União Européia das Associações
de Jornalismo Científico (European Union of Science Journalism Association‟s – EUSJA),
cujo objetivo seria realizar trabalhos comuns com os vários grupos de pesquisa em
jornalismo científico existentes na Europa, além de colaborar para que seja incentivada a
divulgação da ciência por todo o continente (Oliveira, 2002:20). Nos Estados Unidos, um
grupo informal de jornalistas, que durante a década de 1920 se encontrava com freqüência
na cobertura das reuniões de sociedades científicas, começou a sentir necessidade de criar
uma organização voltada para seus interesses e problemas. Os jornalistas acreditavam que
poderiam ter um melhor relacionamento com a comunidade científica se, como ela,
estivessem reunidos em algum tipo de entidade associativa. Assim, em abril de 1934, doze
jornalistas científicos reunidos em Washington criam a Associação Nacional de Escritores
de Ciência (National Association of Science Writers – NASW) com o objetivo de
―promover a disseminação de informações precisas sobre a ciência, em todos os meios
normalmente dedicados à informação pública, bem como estimular a interpretação da
ciência e de seu significado para a sociedade, com os mais elevados padrões de
jornalismo‖.
       É inegável que a comunicação pública de ciência e tecnologia é hoje indispensável à
sociedade. Dizer que a informação é um direito público já se tornou lugar comum. Está
inclusive destacado na Declaração Universal dos Direitos Humanos divulgada pela
Organização das Nações Unidas em 1948. Porém algumas pessoas, incluindo jornalistas
defensores da não-especialização e cientistas-pesquisadores cépticos quanto à capacidade
de jornalistas de traduzir a linguagem científica para o público, ainda questionam se a
informação científica está incluída nessa questão. A ciência e o direito à informação sobre
ela é de interesse social como qualquer outro aspecto da sociedade. Ciência e tecnologia
têm conseqüências comerciais, estratégicas, burocráticas, e igualmente na saúde pública,
não nas margens, mas no âmago desses componentes essenciais do processo político.



                                            24
Alguns cientistas declaram-se, e ao seu trabalho, acima da política. Pretendem
manter uma postura que julgam imparcial, e nesse aspecto muitos jornalistas científicos
procuram também realizar reportagem ―objetivas‖ por verem na ciência um campo neutro,
desvinculado de interesses particulares que busca apenas elucidar e explicar fenômenos,
realizar descobertas e promover o desenvolvimento. Essa posição acrítica com relação à
ciência coloca sobre ela e sobre aqueles que a produzem uma aura de ―inocência‖ que não
condiz com a realidade. Dentro do meio científico existem interesses econômicos, políticos
e financeiros que escapam a questões de objetividade empírica.
       A pesquisa científica é financiada principalmente pelo setor público, sendo, portanto
de interesse do contribuinte saber de que forma seu dinheiro está sendo utilizado e que
benefícios essa ciência patrocinada pelo Estado trará para sociedade. As pessoas têm o
direito de estarem informadas sobre como e em que o dinheiro público está sendo gasto.
Isso é latente quando se fala de educação, saúde, transporte, áreas que estão intimamente
relacionadas à ciência. Concordo com Oliveira quando diz que:


                                ―Os governos em todos os níveis e os pesquisadores de modo
                        geral têm o dever de prestar contas à sociedade sobre as realizações na
                        área, contribuindo para a evolução educacional e cultural da população.
                        A divulgação científica aproxima o cidadão comum dos benefícios que
                        ele tem o direito de reivindicar para a melhoria do bem estar social
                        (Oliveira, 2002:14)‖.


       Quando o investimento é particular os interesses nem sempre sociais se tornam
mais evidentes. Na área de saúde podemos nos perguntar por que as pesquisas para
desenvolvimento de novos medicamentos para doenças como a tuberculose e o mal do sono
estão praticamente paralisadas há anos quando milhares de pessoas ainda são afetadas por
essas doenças em várias partes do mundo? A resposta parece clara quando sabemos quê
―áreas do mundo‖ são essas: países pobres da África, Ásia e América Latina. A indústria
farmacêutica é a grande patrocinadora de pesquisas nessa área e não tem interesse em
investir em tecnologia que não dará o retorno esperado levando-se em conta a condição
econômico-financeira do público alvo.
       O desenvolvimento tecnológico causa impactos em toda sociedade que podem ser
positivos ou negativos. O mau uso dos avanços científicos tem contribuído para o
                                                25
crescimento da miséria nos países em desenvolvimento e para destruição do meio ambiente
do planeta (Oliveira, 2002:25). A busca de soluções para esses problemas passa pela
pesquisa científica e deve ser entendida pela sociedade como um direito essencial como
educação ou saúde. Desta forma, cabe ao divulgador de ciência tratar dos assuntos
relacionados à área de maneira crítica e interpretativa como ocorre (ou espera-se que
ocorra) com outras áreas como a política, a economia e as artes, sem idealizações sobre
ciência-cientistas que venham a obscurecer os fatos. As fontes oficiais podem e devem ser
questionadas. Não são poucos os casos de fraudes e erros. A ciência não está imune a
distorções propositadas ou inocentes. Burkett nos lembra que:


                               ―Como a maioria dos pesquisadores científicos depende de
                        verbas federais e de consultorias que prestam às indústrias, questões
                        legítimas podem ser colocadas a respeito de sua independência, quanto às
                        pressões exercidas por interesses especiais dentro de uma agência, por
                        indústrias associadas com uma agência para a qual trabalham ou da qual
                        recebem fundos para pesquisa (1990:109)‖.


     E Oliveira afirma que ―o jornalismo científico de qualidade deve demonstrar que
fazer ciência e tecnologia é, acima de tudo, atividade estritamente humana, com
implicações diretas nas atividades sócio-econômicas e políticas de um país. Portanto, do
mais alto interesse para o jornalismo e para a sociedade‖ (2002:14).


1.4 O jornalismo científico no Brasil


     Enquanto no século XIX a Europa e os Estados Unidos já publicavam as primeiras
revistas de jornalismo científico, o Brasil da época via nascer a sua imprensa nacional. Só
em 1808, com a chegada da corte real portuguesa ao Brasil, fugindo da invasão das tropas
francesas de Napoleão Bonaparte, é que se inicia oficialmente o jornalismo luso-brasileiro.
     Não era de interesse da metrópole portuguesa que houvesse no Brasil colônia uma
imprensa, pois isso suspenderia a importação dos periódicos lusitanos, ponto negativo para
balança comercial da metrópole. Apesar disso, no século XVII houve duas tentativas de
instalar uma imprensa modesta no Brasil e ambas fracassaram graças à proibição veemente
da Corte portuguesa. Segundo Costella (2002:86) a primeira tentativa ocorreu no Recife.
                                             26
Da oficina ali instalada e do tipógrafo nada se sabe a não ser o que está documentado na
Carta Régia de 8 de junho de 1706 por meio da qual o governo português mandou fechá-la
e apreender os seus tipos. A segunda tentativa é creditada a Antonio Isidoro da Fonseca,
português que veio instalar-se no Rio de Janeiro em 1746. Imprimiu apenas quatro folhetos:
―Relação da entrada do Bispo D. Antonio do Desterro Malheiro‖, um poema de vinte e
quatro quadras, e mais onze epigramas em latim e um soneto português, formando dois
opúsculos ao mesmo bispo, e finalmente, ―Conclusões Metafísicas‖, de Francisco Fraga,
em uma só página. Em maio de 1747 a oficina de Isidoro foi fechada e seus instrumentos
confiscados. Em 1750, de volta a Portugal, solicitou licença para retornar ao Brasil e
instalar sua tipografia. A licença foi negada.
     Na Ásia, onde os portugueses encontraram povos que já utilizavam a escrita e com ela
documentavam sua tradição milenar, a tipografia foi permitida como forma de incutir os
valores e padrões lusitanos, na tentativa de destruir os valores locais. No Brasil, do índio
ágrafo e do colono pouco letrado tipografia era dispensável. O quadro muda com a chegada
da família real em 1808, mas a nossa imprensa já nasce atrelada ao poder e aos seus
interesses. Em 13 de maio daquele ano D. João VI instituiu por decreto a implantação da
Imprensa Régia no Brasil. O primeiro jornal impresso no país foi a ―Gazeta do Rio de
Janeiro‖, cujo número de estréia data de 10 de setembro de 1808 e teve como redator o Frei
Tibúrcio José da Rocha. Outros historiadores preferem instituir como marco histórico do
jornalismo brasileiro o periódico ―Correio Braziliense ou Armazém Literário‖, que teve seu
primeiro número publicado em junho de 1808. Porém, o periódico sempre foi editado e
impresso em Londres onde também vivia exilado seu criador, Hipólito da Costa.
     Além do início tardio, a imprensa brasileira sempre contou com os entraves da
censura política. Em 114 anos de história (1889-2003) a República brasileira viveu dois
longos períodos de ditadura: o Estado Novo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1944, e o
regime militar, de 1964 a 1985. Somando-se a isso os anos de colônia temos 417 anos de
repressão e cerceamento da liberdade de expressão e de controle da informação por parte do
poder público. Quando surgia um investimento na área de imprensa e propaganda nas
épocas dos regimes ditatoriais era tão somente com o intuito de cercear e manipular a
liberdade de expressão e promover as idéias do regime em atividade.
     Se a imprensa começa a fazer parte da agenda brasileira apenas no início do século
XIX, a preocupação com o desenvolvimento científico do país tem início ainda mais tarde.

                                                 27
Com um tipo de colonização voltada para exploração e não para expansão, também a
pesquisa científica e tecnológica no Brasil só se desenvolve tardiamente com um avanço
significativo a partir do final do século XX quando a comunidade científica começou a
organizar-se. É a partir da década de 1940 que a ciência entra definitivamente na agenda do
governo e da sociedade brasileira. Como em vários países, a instituição da ciência no Brasil
foi bastante influenciada pelo término da Segunda Guerra Mundial e pelo impacto que a
força do avanço tecnológico demonstrado pelos aliados causou em todo o mundo. Assim é
que, em 1948 é criada a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade
que congrega hoje todas as sociedades científicas do país.
     Em 1951 foi criado o Conselho Nacional de Pesquisas, o CNPq, que representou o
primeiro esforço significativo nacional de regulamentar a ciência e a tecnologia no país.
Até a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) em 1985, o CNPq foi o
principal órgão responsável pelas ações de ciência e tecnologia empreendidas pelo governo
federal. Em 1974 passou de autarquia à fundação e em 1985 passou a subordinar-se ao
MCT. As origens do CNPq estão intimamente ligadas à ideologia nacionalista, calcada na
idéia de ―segurança nacional‖, defendida por militares e burocratas do aparato estatal desde
fins da década de 1940. Sua criação foi orientada pela necessidade de o Brasil se equiparar
às outras nações na pesquisa de energia nuclear que se mostrou vital para segurança
nacional.
     O regime militar do período 1964-1984 deu grande impulso ao desenvolvimento
científico e tecnológico brasileiro. A doutrina nacionalista do governo militar articulava
grandes projetos tecnológicos que, pretendia-se, levariam o país a ser soberano e
independente. Os grandes investimentos ficaram a cargo da indústria aeronáutica e de
defesa e dos programas nuclear e espacial brasileiros. Apesar dos aspectos ideológicos e
políticos que circundavam esse momento da história brasileira, autores como Oliveira
reconhecem que o período foi de grande incentivo ao desenvolvimento tecnológico do país,
porém lembra que:


                               ―O jornalismo científico durante o regime militar seguia a risca a
                        batuta dos censores, divulgando com ufanismo os grandiosos projetos da
                        época – a Transamazônica, as grande hidrelétricas, as indústrias bélicas,
                        o programa nuclear e o aeroespacial. As entidades de pesquisa


                                              28
governamentais tinham projetos definidos e verbas alocadas (bem ou
                         mal) sem participação alguma da opinião do Congresso e muito menos da
                         sociedade, que, mal informada, jamais nela influiu‖ (2002:31).


     Também Burkett diz que ―a credibilidade científica se aproxima do seu maior perigo
quando misturada na elaboração das normas públicas‖ (1990:109), e lembra ainda que ―o
envolvimento primário entre a ciência e os cientistas e o governo vem através do dinheiro e
conceitos diferentes sobre o bem estar geral‖ (1990:135). De modo que podemos concluir
que o início do jornalismo científico no Brasil, além de estar marcado pela censura política
com relação à imprensa também estava marcado pelo comprometimento da ciência com os
investimentos governamentais maciços nesta área. Questionar a fonte era tarefa impensável
e irrealizável neste período de efervescência científica do país.
     Podemos encontrar ainda em fins do século XIX publicações que tiveram a iniciativa
de divulgar ciência no Brasil. São exemplos a Revista Brazileira (1857), a Revista do Rio
de Janeiro (1876) e a Revista do Observatório (1886) publicada pelo Imperial Observatório
do Rio de Janeiro, atual Observatório Nacional. Oliveira destaca, entretanto, sem
desmerecimento para com esses ―pioneiros pontuais‖, o papel de dois nomes bem
conhecidos do jornalismo brasileiro e da divulgação científica no país. O primeiro seria
Euclides da Cunha, que em 1897 cobre para o jornal O Estado de São Paulo o levante do
Arraial de Canudos, no interior da Bahia liderado por Antonio Conselheiro, contra a
República. O trabalho rende a publicação de Os Sertões, onde o autor faz em vários
momentos profunda reflexão sobre a influência do meio ambiente na formação do homem
brasileiro, em diversas regiões do país. Discute as variações do clima, da qualidade da terra,
da vegetação, da água e dos minerais. Euclides preconiza o jornalismo científico e
ambiental contextualizado e interpretativo, no qual a informação científica dá suporte à
compreensão da realidade. O segundo nome seria o do médico, pesquisador, educador e
jornalista José Reis, considerado patrono do jornalismo científico no Brasil. Reis começou
a publicar, a partir de 1932, artigos e folhetos para público não especializado em problemas
científicos, e de 1947 a 2002, ano de sua morte, manteve na Folha de São Paulo uma
coluna científica semanal. Foi também um dos fundadores da SPBC e publicou mais de
cinco mil trabalhos entre livros, artigos científicos e material jornalístico. Foi também um
dos fundadores em 1977 da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), da qual


                                               29
foi o primeiro presidente. Em 1979, o CNPq criou o Prêmio José Reis de Divulgação
Científica.
     A partir da década de 1980, a divulgação e o jornalismo científico no Brasil cresceram
com o surgimento de novas revistas como Ciência Hoje (SPBC) e Ciência Ilustrada
(Editora Abril). Oliveira (2002:38) afirma que nos anos 1990 a Editora Globo lança a
revista Globo Ciência e no mesmo ano a Editora Abril lança a revista Superinteressante,
porém a autora comete um engano com relação a esta data de lançamento da
Superinteressante. Na edição comemorativa dos 14 anos da revista (nº168, setembro de
2001) está colocada como data de lançamento da primeira edição 29 de setembro de 1987.
Além disso, surgiram programas de televisão com a proposta de divulgar a ciência para o
grande público como o Globo Ciência (TV Globo) e Estação Ciência (da antiga TV
Manchete). Grandes eventos de repercussão internacional influenciaram o desenvolvimento
do jornalismo científico no Brasil durante a década de 1980 como a passagem do cometa
Halley (1986), a descoberta da supernova de Shelton (1987), da supercondutividade, as
viagens espaciais e as questões ambientais. Quando em 1992 realizou-se no Rio de Janeiro
a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio 92, já
havia um número considerável de jornais que contavam com editorias de ciência e meio
ambiente, revistas especializadas e programas de rádio e televisão. Entretanto, Oliveira diz,
com base em suas pesquisas junto a profissionais da área, que faltava ainda ao jornalismo
científico brasileiro fundamentos capazes de integrar áreas como a economia e a política a
temas ligados a ciência e tecnologia.
     É ainda Oliveira que nos diz que, no Brasil:


                                ―O jornalismo científico, se for possível uma analogia, mal saiu
                        da fase romântica, resvala muitas vezes no denuncismo e no alarmismo
                        sem fundamento e é incapaz de análises e exposição de contrapontos (tão
                        necessário ao bom jornalismo), como de resto já é corrente na prática do
                        jornalismo econômico e político‖ (ibid.:39).


     A autora aponta ainda para alguns fatores que dificultariam o trabalho do jornalista
científico brasileiro. O primeiro seria o difícil acesso às fontes, pois, segundo ela, as
entidades e a própria comunidade científica, de modo geral, ainda não levam em conta o
papel estratégico que a comunicação com o público representa para sua própria existência,
                                              30
salvo raras exceções. Em segundo lugar, faltam ofertas de especializações acadêmicas. Em
todo Brasil, até 2002, existia apenas um curso de pós-graduação em comunicação de
ciência, na Universidade Metodista de São Paulo e cursos de especialização na
Universidade de Campinas (Unicamp), na Universidade de São Paulo (USP) e na
Universidade de Taubaté (SP). E, por último, a autora aponta a forte influência de fontes
originárias de países desenvolvidos no noticiário nacional, o que dificultaria a divulgação
da ciência brasileira. As informações já chegam dos países europeus ou dos Estados Unidos
bem documentadas e ilustradas, exigindo pouco esforço editorial, com isso podemos
perceber a preocupação desses países em divulgar a ciência que estão produzindo. A autora
não nega a importância dos temas de ciência e tecnologia dos países desenvolvidos para
produção do jornalismo científico no Brasil, mas sugere um equilíbrio na divulgação das
informações para que a sociedade brasileira fique a par do que está sendo realizado em
ciência e tecnologia no país.


A SUPERINTERESSANTE


     No final dos anos 80 nasce a SUPERINTERESSANTE, mais precisamente em
setembro de 1987. A revista surge em meio à explosão de publicações científicas de grande
circulação que ocorre naquela década em conjunto com uma série de descobertas científicas
de grande repercussão internacional. O número zero traz apenas um aperitivo do que viria a
ser a revista. É uma espécie de folheto que traz na capa a figura de um robô e a manchete
―A era do robô sapiens‖. Na própria capa do número zero está ―Superamostra: assim será
sua revista‖.
     A primeira carta ao leitor, escrita por Victor Civita na edição 01, de outubro de 1987,
começa com uma história sobre a reação da esposa do bispo anglicano de Worcester,
Inglaterra que teria ficado horrorizada ao ouvir dizer que pelas novas teorias postas a
circular por Charles Darwin o homem era um simples descendente do macaco, ao que a
senhora teria dito ―Barbaridade! Esperamos que não seja verdade, mas, se for, rezemos para
que isso não se torne amplamente conhecido‖. Civita coloca então que a posição da recém
nascida publicação é justamente oposta à idéia da religiosa senhora:




                                            31
―Por acreditarmos tanto no valor da descoberta e da acumulação do
                           conhecimento científico e tecnológico quanto na importância da sua
                           divulgação ao maior número de pessoas, estamos apresentando ao
                           público brasileiro uma nova revista mensal‖ (SUPER, ed 01 1987:05).


     A carta coloca ainda que a pauta da revista não terá limites, ―cobrindo da Física à Pré-
história, da Astronomia à Ecologia, da Informática à Psicologia ou à Religião‖. O objetivo
da publicação seria mostrar o conhecimento de forma clara e acessível ao mais leigo dos
leitores por entender que a ciência faz parte do cotidiano das pessoas, ―influenciando e
modificando até mesmo os momentos mais simples de nossa vida‖. Sendo uma revista de
divulgação científica, Civita também promete não descuidar da precisão que a natureza da
notícia científica requer, ―o que significa dizer que em suas páginas não haverá lugar para
meias verdades, o saber por ouvir dizer, a hipótese sem evidência que a legitime‖.
     Em 16 anos de existência a SUPER se tornou a quarta maior revista de circulação do
país, e a segunda maior entre as mensais. Do grupo Abril é a segunda maior, atrás da Veja.
A circulação paga mensal foi estimada em abril de 2003, pelo editorial da revista, em 420
mil exemplares. Os assinantes somariam quase 300 mil ainda naquele ano.
     A partir de agosto de 2000, a revista passa por uma reestruturação editorial. O diretor
de redação André Singer sai da revista depois de seis anos no cargo. No seu lugar entra
Adriano Silva. A mudança se revela nos textos, no planejamento gráfico e nas próprias
palavras do novo editor:


                                ―Estou recebendo uma bela revista para tocar. E trato desde já de
                           torná-la ainda melhor. Ao mergulhar nesta edição, você perceberá que a
                           SUPER está mais atraente, mais saborosa. O design está mais arejado,
                           mais bonito. Os textos são mais suculentos, mais bem humorados,
                           acrescentado alegria ao rigor e à solidez habituais da SUPER. Tudo isso
                           porque lidar com conhecimento é muito divertido, aprender é e deve ser
                           uma aventura emocionante‖ (SUPER, ed 155, 2000:09).


     A proposta parece óbvia: cativar o público jovem. Novas seções são criadas e outras
suprimidas da revista. Seções sobre comercialização de equipamentos avançados de
tecnologia, dicas de sites e guias de arte e mídia figuram na nova cara que é dada à revista.

                                                32
A foto do antigo diretor de redação com cabelinho bem penteado e usando gravata é
substituída pela de um jovem sorridente de camisa pólo. O projeto gráfico é drasticamente
enxugado. Capa mais limpa, poucas chamadas em contraste com o padrão anterior,
destaque no logotipo que vem agora acompanhado do slogan ―Quem lê é‖, e que foi
substituído em julho de 2003 por ―A melhor revista jovem do Brasil‖, tornando bem
evidente o público ao qual a revista está dirigida.
     A mudança editorial também compreendeu o lançamento de uma série de subprodutos
da revista tais como livros, DVDs, e outras revistas que são lançadas paralelamente à
revista principal. As outras publicações trazem a marca da SUPER, mas tratam de temas
específicos tais como a Revista das Religiões lançada em 2003 com a proposta de ser a
primeira revista ecumênica de religiosidade e teologia do Brasil (algo que poderia soar
estranho a uma revista científica); Mundo Estranho (extraída a partir da seção
Superintrigrante); Vida Simples, que começou como edição especial em 2002 e hoje é uma
revista mensal; e a coleção de livros Para Saber Mais, lançada no final de 2002. A proposta
da revista com relação à publicação de livros é formar uma biblioteca básica para o leitor
que ―quer saber mais‖. Os títulos lançados abordam os mais variados assuntos, da Teoria da
Relatividade ao Judaísmo, de Yoga ao Linux (sistema operacional de computadores), da
Maconha à Vida Extraterrestre.
     A lista dos produtos agregados à SUPER não para por aqui. Como podemos ver a
revista aposta no ecletismo das suas publicações para agradar a todos os nichos. Inicia uma
maior abordagem sobre religião e misticismo, temas um tanto espinhosos para quem
trabalha com ciência. Antes da reestruturação da revista, a SUPER havia dado apenas três
capas a assuntos ligados à religião ou espiritualidade (janeiro/1995, abril/1996,
junho/1998), embora a abordagem do tema ―ciência x religião‖ sempre tenha existido na
SUPER (no primeiro número encontramos a reportagem ―Pode a ciência acreditar em
Deus?‖). De 2001 para cá foram onze capas que trataram de religião, misticismo ou
espiritualidade, com matérias que foram do Espiritismo a Yoga. A capa de dezembro de
2002, edição 183, traz a manchete ―A verdadeira história de Jesus‖, e no editorial Adriano
Silva afirma que a capa de Julho daquele mesmo ano, ―Bíblia‖, era a recordista em vendas
de todos os tempos. O número de matérias sobre ciências humanas também cresceu na
publicação, gerando reclamação de alguns leitores e elogios de outros. Alguns chegam a
dizer que a ―revista passou de científica a revista de curiosidades e cultura inútil‖. Outros

                                              33
pedem que, apesar das críticas, ―a revista não deixe de lado as reportagens de ciências
humanas que enriqueceram o conteúdo‖. Conteúdo que atende às expectativas e reflete o
estilo de vida do leitor jovem da SUPER. Em enquête publicada na edição 194, de
novembro de 2003, 85,1% dos leitores da SUPER disseram acreditar que a meditação (tema
da capa do mês anterior) pode melhorar a qualidade de vida de quem a pratica. A revista
também intensificou o tratamento das questões ambientais criando em 2002 o Prêmio Super
Ecologia, onde a revista reconhece ações ecologicamente viáveis de ONGs, Governo e
Iniciativa Privada.


     O objetivo desta pesquisa não é dizer se a revista analisada está melhor ou pior hoje,
ou como ela deveria estar. O que procuro demonstrar é que mudanças sociais e
mercadológicas influenciaram a reestruturação de um discurso jornalístico que teria por
base o discurso científico, ambos pretendendo na teoria serem discursos baseados na
verdade precisa e empiricamente comprovada nos fatos. Porém, o que se verá é que nem
um discurso nem outro está livre das subjetividades que permeiam suas construções
discursivas. Concordo com Lopes quando diz que ―a Ciência não é lida com o objeto
percebido, mas com o objeto construído‖ (2001:104). Com isso, não quero de forma
alguma negar a validade do conhecimento científico e as contribuições deste campo para
vida humana na Terra. Tal atitude invalidaria o próprio propósito desta pesquisa. O ponto
que se quer entender é como a partir do discurso científico e histórico sobre a maconha, a
SUPERINTERESSANTE formulou diferentes discursos abordando em certos momentos
dados e informações pertinentes e em outros ignorando-os na estruturação de três matérias
de capa sobre o tema.




                                           34
Capítulo II

                  Maconha: uma planta com história



        Em primeiro lugar devo esclarecer que durante este capítulo a palavra maconha
poderá ser substituída por cânhamo, ou cannabis, todos os termos se referindo à mesma
planta que aqui será debatida nos seus aspectos industrial, médico, terapêutico, social e
legal. O que espero com esse capítulo não é fazer uma apologia ou reprimenda ao seu uso,
seja ele humano ou industrial, mas apenas colocar questões pertinentes a sua utilização em
vários contextos e épocas e discutir os efeitos de sua proibição ao longo do tempo. A
possibilidade de pequenas incoerências não será de todo descartada, pois a bibliografia
consultada sobre o assunto normalmente apresenta ou um tom apologético ou reacionário,
sendo poucas as fontes lidas que apresentaram um equilíbrio na abordagem do tema. Além
disso, as emoções particulares que permeiam a maioria dos textos sobre a maconha,
inclusive este, podem promover certos recortes da realidade sobre a planta e seus usos que
não seriam falsos, mas apenas um dos possíveis ângulos, dentre os vários que existem sobre
a questão. O que fiz foi justamente abordar um ângulo diferente do habitualmente
apresentado, sem, entretanto, santificar ou demonizar a maconha. O que existe são fatos e
fatos sobre a planta, alguns já bem (ou mal) conhecidos do grande público, e outros
obscurecidos por um discurso médico-político-legal que se propagou ao longo dos anos,
sobre tudo do final do século XIX até hoje. Não se trata simplesmente de negar tal discurso
ainda em voga, mas colocar questões sobre ele, questões que foram omitidas durante a sua
formulação por uma série de interesses políticos, econômicos e sociais, e porque não,
científicos.


2.1 Uma história de milhares de anos

        Dados da Organização Mundial de Saúde afirmam que existe hoje em todo mundo
cerca de 163 milhões de usuários de maconha. Só no Brasil estima-se que sejam três
milhões de consumidores da erva. Os números de fato podem ser bem maiores. Nossa
relação com a erva data de séculos.


                                            35
O nome científico Cannabis sativa, foi atribuído à planta pelo botânico sueco Carl
von Linné, em 1753. Outra variação da espécie, a Cannabis indica foi descrita pelo
biólogo francês Jean Baptiste Lamark. Elas diferem tanto no porte como no formato da
folhas e na configuração do tronco, porém todas contêm canabinóis, substâncias químicas
responsáveis pelos efeitos psicoativos da planta, sendo o principal deles o Delta-9-THC
(tetraidrocanabinol), popularmente conhecido por THC. O clima e as condições de cultivo
são o que determina a maior ou menor concentração de THC na cannabis. A cannabis
sativa pode chegar a quatro metros e é a espécie que fornece as melhores fibras para
produção têxtil. Já a indica não chega a 1,5 metros e é a espécie que tem maior
concentração de THC. Como muitas outras plantas, a cannabis possui dois gêneros, macho
e fêmea. Quando a planta fêmea não é fecundada ela armazena energia e excreta uma
substância pegajosa, uma espécie de resina rica em THC. Essa resina cobre toda a planta,
porém ela está mais concentrada nas flores da fêmea. A planta fêmea é, portanto, a
maconha.
        A história da cannabis atravessa os séculos. Segundo Robinson2 e todos os demais
autores consultados, a planta teve origem na Ásia central, onde se tornou a primeira fibra
vegetal a ser cultivada. Uma abundância de provas obtidas em sepulturas e outros sítios
através de toda China demonstra o cultivo de cânhamo asiático desde tempos pré-
históricos. O autor lista várias dessas provas obtidas em pesquisas arqueológicas que
comprovam o contato do homem com o cânhamo em épocas remotas, chegando a 12 mil
anos. As peças são normalmente cordas e tecidos que revelam a importância do cânhamo
para essas populações na produção de roupas. ―Os pobres dependiam do cânhamo para toda
a sua roupa, só os ricos podiam se dar ao luxo da seda‖ (Robison, 1999:64). O uso
medicinal da planta também está documentado na mais antiga farmacopéia existente, o
Pen-Ts‟ao Ching, que foi compilada no século I ou II a.C. e que recomenda o seu uso como
analgésico, antiespasmódico e sedativo e contra dores menstruais, reumatismo, prisão de
ventre e malária. Outras compilações chinesas, de períodos que vão do século 1000 ao
século I a.C., mencionam o cânhamo que também foi usado na China para produzir papel.
A invenção do papel é atribuída ao chinês Cai Lun, em 105 d.C., mas espécimes de papel
2
  As informações relativas aos usos históricos do cânhamo presentes neste capítulo estão relatadas no livro ―O
grande livro da cannabis‖, de Rowan Robinson. Outras fontes consultadas apresentaram os mesmo relatos,
porém de maneira resumida ou esparsa, o que me fez optar por utilizar apenas este autor no que trata dos usos
históricos da planta. Porém, também eu tratarei de fazer um resumo tendo em conta o grande número de
informações contidas na obra que ultrapassam o espaço desta monografia.
                                                     36
datados de mais de um século antes do período em que viveu Cai Lun foram encontrados
num túmulo perto de Xian, na província de Shaanxi. Esses papéis eram feitos de cânhamo.
       Os chineses foram os pioneiros no uso da fibra do cânhamo, mas foi na Índia que as
demais propriedades da planta foram plenamente apreciadas a tal ponto de se tornar parte
da religião hindu e ter em Shiva sua divindade. Os Vedas, literatura sagrada hindu,
identificam o bangue (nome que é dado à bebida feita com flores secas da cannabis) ao
meio pelo qual uma pessoa tanto comunga com o deus Shiva quanto se livra do pecado. Um
texto hindu do século XVII, Rajvallabha, diz que o ―consumo desse alimento dos deuses
gera energia vital, amplia os poderes mentais e produz deleite para Shiva‖. A cannabis seria
o alimento preferido de Shiva.
       Os arianos que invadiram a Índia penetraram também no Oriente Médio, e se
expandiram para Europa, espalhando a semente do cânhamo. A escavação da cidade de
Gordion, perto de Ancara, na Turquia, revelou tecidos de cânhamo produzidos no final do
século VII. A cannabis é mencionada em tábuas cuneiformes datadas de 650 a.C.
encontradas na biblioteca do imperador babilônico Assurbanipal. A planta era chamada
pelos assírios de qu-nu-bu, e na Pérsia, as sementes de cânhamo eram chamadas
shahdanah, ou ―sementes do imperador‖. O bangue e o haxixe figuram em várias narrativas
das Mil e uma noites, coletânea de histórias árabes compiladas entre os séculos XI e XVIII.
       Na África, as fibras do cânhamo eram usadas para fazer cordas. Pedaços de tecidos
de cânhamo foram encontrados no túmulo do faraó Akhenaton (Amenófis IV), e o pólen
encontrado na múmia de Ramsés II (c. 1200 a.C.) foi identificado como de cânhamo. A
planta também foi usada na construção das pirâmides, nas pedreiras, onde sua fibra seca era
introduzida nas fendas da pedra e depois molhada. Com o inchaço da fibra, a pedra se
fendia. Embora não haja indícios arqueológicos de que os egípcios mais antigos
conhecessem os efeitos psicotrópicos do cânhamo, o consumo de cannabis para fins
espirituais ou recreativos acabou se tornando comum em toda África. O haxixe era
conhecido em todas as terras árabes, mas para o sufismo, religião mística do Islã, ele se
tornou parte da própria religião, mais ou menos como o bangue entre os hindus. Os sufis
divergiam dos demais mulçumanos em sua crença, pois afirmavam que a iluminação
espiritual não podia ser ensinada ou recolhida através de percepção racional, mas somente
em estados de alteração de consciência. O uso do haxixe era um dos métodos utilizados
para atingir o estado de transe. A proibição do álcool pela religião mulçumana também

                                            37
funcionou como estimulo para o uso da cannabis entre os árabes. Porém, durante a Idade
Média o hábito declinou, exceto entre os sufis, que até bem pouco tempo consideravam a
planta essencial nos seus rituais. Acredita-se que foram os africanos que introduziram a
maconha no Brasil. Porém, antes disso o cânhamo já havia aportado nas Américas. No
barco comandado por Cristóvão Colombo havia 70 toneladas de cânhamo, contanto o
velame e as cordas.
       Na Europa, o uso da planta para produção têxtil era largamente difundido, desde o
império romano. Os vikings se valiam do cânhamo para o fabrico de cordas, panos de velas
e calafetagem. Sementes de cânhamo foram encontradas em vestígios de naus vikings
provavelmente construídas em 850. Os agricultores franceses tinham o costume de dançar
durante o carnaval da quaresma para que seu cânhamo crescesse bem. O cânhamo também
teve sua contribuição na difusão da palavra impressa, pois os primeiros livros depois da
invenção da imprensa por Gutenberg no século XV foram impressos em papel de cânhamo.
       Os primeiros colonos europeus usaram o cânhamo silvestre assim que chegaram à
América. Os puritanos cultivavam cânhamo em Jamestown em conformidade com o
contrato que haviam firmado em 1607 com a Virginia Company. O governador da Virgínia,
Sir Thomas Dele, trouxe consigo instruções para o cultivo de um jardim comunitário que
permitiria a experimentação do cânhamo e do linho. Porém, os colonos preferiam plantar
tabaco que tinha maior mercado na Europa. Diante disso, a Virginia Company emitiu em
1616 uma instrução segundo a qual todo colono de Jamestown deveria cultivar cem plantas
de cânhamo, devendo o governador cultivar 5 mil. Várias colônias aprovaram leis pelas
quais certas manufaturas, particularmente a do cânhamo, do linho e do alcatrão, podiam ser
usadas no pagamento de dívidas e impostos. Os governos coloniais incentivaram a
produção de cânhamo com variados graus de rigor e sucesso. As seções de 1720-22 da
Assembléia Geral de Connecticut aprovaram uma recompensa de quatro xelins ―por cento‖
bruto de cânhamo parcialmente processado para incentivar seu cultivo contínuo, enquanto a
Virgínia continuou promulgando leis que forçavam os proprietários de terra a cultivar a
planta, e multando os recalcitrantes. O primeiro e o segundo rascunho da declaração de
independência dos Estados Unidos, de 1776, foi escrita em papel de cânhamo e o primeiro
presidente americano, George Washington, mostrava preocupação com o cultivo da planta,
como atesta trechos de seu diário da fazenda de 1765, quando ainda era apenas um
fazendeiro produtor da planta. A transcrição está no livro de Robinson (1999:81) e detalha

                                           38
passos do cultivo, da plantação à colheita. Também Thomas Jefferson foi um defensor do
cultivo de cânhamo e chegou a inventar o ―quebrador de cânhamo‖, dispositivo que seria
acrescentado a uma debulhadora para trabalhar a planta. O quebrador recebeu a primeira
patente dos Estados Unidos.
        Durante a Guerra Civil americana (1861-1865), o Congresso dos EUA ordenou ao
comissário da agricultura do norte que fizesse investigações para testar a praticabilidade do
cultivo e do preparo de linho ou cânhamo como um substituto para o algodão. A guerra
causou de início um aumento da demanda do cânhamo, mas a expansão foi apenas
temporária. Depois da guerra, o algodão dominou a agricultura sulista, e juta barata
importada veio substituir o cânhamo como o material usado para ensacar o algodão. Mais
ou menos na mesma época o papel de polpa de celulose tornou-se amplamente disponível e
reduziu a demanda do cânhamo como material usado na feitura de papel. Como seqüela da
Guerra Civil, a perda da mão de obra escrava e a falta de colheitadeiras mecânicas
significaram a ruína da indústria do cânhamo e ela nunca se recuperou totalmente, apesar
de um breve ressurgimento do cultivo da planta nas décadas de 1870 e 1880.
        Na virada do século o mercado para cânhamo estava limitado a cordame, barbante e
linha. Mas a invenção do decorticador mecânico prometia mudar isso. O acesso à fibra e à
celulose contida no caule da planta estimulou a criação de novos usos para o cânhamo.
Henry Ford foi um dos que apostaram nas possibilidades do cânhamo na indústria e na
altura da década de 1930 a Ford Motor Company produziu o primeiro carro ―orgânico‖
feito a partir da combinação de cânhamo e outros produtos e projetado para rodar com
combustível também feito de cânhamo. Entretanto, nos fins da década de 1930 a Lei de
Taxação da Marihuana foi aprovada nos EUA, e a promissora indústria do cânhamo ficou
inviabilizada na América3.


2.2 O cânhamo e seus usos


        Muito já foi dito até aqui sobre a cannabis e sua história. Nesta seção procuro
apresentar mais detalhes sobre os usos industrial, médico, terapêutico e religioso da planta



3
  Mais adiante informações mais completas sobre a Lei da Taxação da Marihuana serão apresentadas no
tópico que trata da proibição da planta no mundo.
                                                   39
por entender que sua proibição diz respeito também a essas áreas e não só ao controle social
do uso de uma substância.


Indústria
       Como já foi dito acima, o uso do cânhamo para produção de papel e tecidos remota
há milênios. O papel de cânhamo, segundo Robinson, poderia ser a alternativa econômica e
ecológica viável para o meio ambiente, pois o atual papel produzido de árvores gera o
desmatamento que afeta o ecossistema como um todo, afetando a camada superior do solo e
bacias hidrográficas, bem como aumento do efeito estufa. Mesmo as indústrias que mantêm
reservas renováveis de madeira para produção do papel contribuiriam para efeitos negativos
ao meio ambiente, uma vez que a reciclagem de papel no mundo é muito baixa se
comparada a sua produção e consumo. A fibra do cânhamo é biodegradável e
conseqüentemente o papel produzido a partir dela tem um potencial de reciclagem maior e
causa menos danos ao meio ambiente. Hoje, um dos papéis mais conhecidos feitos de
cânhamo são os papéis para cigarro, a exemplo das marcas Smokingpaper e Pure Hemp,
encontradas em qualquer tabacaria.
       Além de papel, com a fibra do cânhamo pode-se produzir tecido. Os feixes de fibra
da planta chegam a medir 4,5m enquanto as fibras do algodão têm 2cm, o que dá ao
cânhamo uma resistência à tração oito vezes maior que a do algodão e uma durabilidade
quatro vezes maior. O cânhamo, como o linho e outras fibras, pode ser tecido em muitos
níveis, da lona ao tecido fino. Com o processamento adequado, é possível tornar o cânhamo
tão macio quanto o algodão. Por causa do cultivo limitado, os tecidos de cânhamo são hoje
escassos no mercado. A maioria dos itens ainda é vendida por catálogos ou em lojas
especializada. O preço mais alto do cânhamo pode ser compensado por sua qualidade
superior e pela promoção do produto como uma opção ambiental. Aliás, ser ecologicamente
correto é o slogan daqueles que apostam nos produtos à base de cânhamo. Além de ser
biodegradável, a planta requer relativamente pouco fertilizante em comparação a outros
produtos fibrosos e, tendo poucos predadores naturais, precisa de pouco ou nenhum
tratamento com pesticidas.
       Da semente da cannabis pode ser produzido óleo para ser usado como combustível,
e ainda óleo comestível com um dos níveis mais baixos de gordura saturada. A indústria de
cosméticos também pode fazer uso do óleo de cânhamo na produção de xampus, cremes

                                            40
para o corpo e até perfume. As sementes da planta são utilizadas hoje em dia basicamente
como ração para pássaros.


Saúde
        Como já foi dito, a mais antiga farmacopéia do mundo, o Pen-Ts‟ao Ching, já
recomendava o uso da cannabis contra vários males, de prisão de ventre a reumatismo.
Também os hindus, além do uso religioso que faziam da planta, utilizavam-na na sua
medicina. O tratado Anandakanda, do século X, descreve 50 preparados de bangue para
curas, rejuvenescimento e como afrodisíaco. Os médicos ayurvédicos da Índia usavam o
bangue para tratar diarréia, epilepsia, delírio e insanidade, cólica, reumatismo, gastrite,
anorexia, náusea, febre, bronquite, diabetes, tuberculose, anemia, etc. A lista dos males
tratados pela cannabis é extensa.
        O cânhamo se tornou membro oficial do repertório farmacêutico na Europa e nos
Estados Unidos a partir do preparado Esquire‘s Extract utilizado como medicamento
específico no alivío dos sintomas do tétano, do tifo e da hidrofobia. Segundo Robinson:


                               ―No final do século XIX, a cannabis foi incluída em dezenas de
                        remédios disponíveis mediante prescrição ou diretamente no balcão.
                        Entre eles estavam o digestivo Chlorodyne e o Corn Collodium,
                        manufaturados pela Squibb Company. A Park-Davis produzia Casadein,
                        Utroval e medicamento para cólica veterinária e a Eli Lilly produzia os
                        tabletes sedativos Dr. Brown‘s, Xarope composto Tolu, Xarope Lobelia,
                        Neurosine e Cura a Tosse em um Dia. O uso de uma substância hoje
                        ilegal pelas que são algumas das maiores empresas farmacêuticas do
                        mundo não é mais surpreendente que o uso de cocaína pela Coca-Cola
                        nas primeiras décadas do século e ressalta a natureza arbitrária das
                        ‗substâncias controladas‘‖ (1999:33).


        É bem verdade que comprovar a validade dos usos medicinais da cannabis em
épocas passadas fica um pouco difícil. Mas as pesquisas atuais indicam que a planta tem
vários usos medicinais, sendo o mais conhecido deles em pacientes portadores de HIV e
naqueles que enfrentam tratamento quimioterápico contra o câncer. Nos primeiros a planta
estimularia o apetite promovendo uma melhor alimentação do soro positivo e

                                             41
conseqüentemente aumento de suas defesas imunológicas que são afetadas pelo vírus. Nos
segundos, a planta teria efeito contra as fortes náuseas resultantes da quimioterapia. Muitos
médicos, entretanto, alegam que já existem hoje medicamentos legais capazes de produzir
os mesmos efeitos desejáveis da maconha nesses pacientes, sem os inconvenientes do efeito
psicotrópico, que não agrada a todos, e as complicações legais. Porém, tais medicamentos
não surtem efeito em todos os organismos e o paciente fica, devido à proibição,
impossibilitados de testar outra medida. A prova da eficácia da cannabis em pacientes de
câncer que não respondem aos medicamentos tradicionais foi comprovada quando o
governo americano criou o Marinol, o THC sintético. Porém, alguns pacientes vomitam as
pílulas antes mesmo delas fazerem efeito, o que não ocorre com o THC fumado. Desde
2001 o Canadá autoriza o uso medicinal da maconha. Doentes terminais ou portadores de
câncer e Aids podem fumar e até cultivar a planta.
           Ainda com relação ao câncer, não há dados suficientes que comprovem se a
maconha fumada regularmente por anos a fio causaria ou não câncer de pulmão. É provável
que contribua para isso, já que é fumaça inalada, porém não na mesma proporção que o
tabaco, visto que o usuário pesado de maconha fuma em média 3 ou 4 cigarros da erva por
dia, a maioria deles menos que isso (o chamado uso recreativo: somente em festas, finais de
semana) e o uso é reduzido com a idade, enquanto os fumantes de tabaco que desenvolvem
câncer tem um histórico de uso prolongado (em média 30 anos ou mais) e intenso (mais de
30 cigarros por dia).
           A maconha também já foi testada em pacientes com glaucoma, doença caracterizada
por aumento da pressão do líquido dentro do olho que pode levar à cegueira. A maconha
reduz a pressão intraocular. O efeito pode ser obtido oralmente, por via endovenosa ou
aplicação tópica. A cannabis também pode ser usada contra dor, ansiedade e no tratamento
de viciados em drogas pesadas, a exemplo do programa desenvolvido pelo psiquiatra Dartiu
Xavier da Silveira, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, Proad, do
departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo. Em sua pesquisa, o
psiquiatra tratou dependentes de crack incentivando-os a substituir a droga pela maconha.
Quase 70% dos dependentes largaram o crack, e posteriormente a maconha. A erva seria
eficaz no tratamento de cocainômanos porque diminuiria a ansiedade e aumentaria o
apetite.



                                             42
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A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE

  • 1. Universidade Estadual da Paraíba Centro de Ciências Sociais Aplicadas Faculdade de Comunicação Social Waleska de Araújo Aureliano A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico- científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE Fevereiro de 2004
  • 2. A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE Waleska de Araújo Aureliano Monografia apresentada em atendimento às exigências da disciplina “Trabalho Orientado Acadêmico” e para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande em fevereiro de 2004. Orientadora: Maria José Cordeiro Leitão 2
  • 3. Banca Examinadora ___________________________________________________________ Prof ª Maria José Cordeiro Leitão Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba _____________________________________________________________ Prof. Antônio Roberto Faustino da Costa Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba ____________________________________________________________ Prof. Fernando Firmino da Silva Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba 3
  • 4. SUMÁRIO AGRADECIMENTOS---------------------------------------------------------------------------5 RESUMO-------------------------------------------------------------------------------------------6 INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------7 CAPÍTULO I – Ciência e Jornalismo Científico------------------------------------------11 1.1 O que é ciência?------------------------------------------------------------------------------11 1.2 A noção de progresso da ciência---------------------------------------------------------15 1.3 Jornalismo Científico: breve histórico--------------------------------------------------21 1.4 O jornalismo científico no Brasil---------------------------------------------------------26 CAPÍTULO II – Maconha: uma planta com história-----------------------------------35 2.1 Uma história de milhares de anos-------------------------------------------------------35 2.2 O cânhamo e seus usos---------------------------------------------------------------------39 2.3 A proibição-----------------------------------------------------------------------------------47 2.4 A proibição no Brasil----------------------------------------------------------------------50 CAPITULO III – A Maconha, A Ciência e A SUPER----------------------------------57 3.1 Mídia, drogas e rock n’roll --------------------------------------------------------------57 3.2 Nova abordagem histórico-científica: a maconha contextualizada na SUPER-62 CONSIDERAÇÕES FINAIS----------------------------------------------------------------86 BIBLIOGRAFIA------------------------------------------------------------------------------89 ANEXOS----------------------------------------------------------------------------------------92 4
  • 5. Agradecimentos Os agradecimentos são para todos aqueles que direta ou indiretamente me ajudaram neste trabalho: em primeiro lugar, a minha mãe pela paciência em aturar meu mau humor nos momentos de estresse; a Marcos Alexandre, paixão inspiradora, pelo amor, pela amizade e por ter lido todo este trabalho no computador; a minha irmã Waneska que num momento tão difícil de nossas vidas deixou sua casa e veio me ajudar para que eu pudesse dar continuidade não só a esta pesquisa, mas a vários outros assuntos práticos da vida; a Elizângela por sempre acreditar em mim; a Cristiane e Milena pelas boas risadas; aos meus colegas de trabalho e, em especial a Cié, por sempre darem um jeitinho para que eu conciliasse trabalho e faculdade; a minha orientadora Mara, por ter me feito enxergar outras possibilidades dentro da Comunicação Social; e, finalmente, agradeço às plantas de poder pela inspiração desta pesquisa e pelas portas abertas para o Paraíso que deixaram sobre a Terra, por onde, infelizmente, nem todos sabem entrar. 5
  • 6. Resumo O objetivo deste trabalho é fazer uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha em três capas da revista de divulgação científica SUPERINTERESSANTE, da editora Abril. O que se coloca em questão é como o discurso jornalístico alterou o seu enfoque sobre o tema a partir de uma mudança editorial da revista que focou nos jovens seu público alvo e passou a dar mais espaço à abordagem histórico-científica sobre o tema e não apenas médico-científica. Entendendo que tanto ciência como jornalismo são atividades humanas e, portanto, sujeitas às subjetividades do indivíduo e do contexto social no qual ele está inserido, questiono as verdades do discurso científico sobre a maconha, e a formação de um discurso jornalístico que toma por base a ciência para apoiar seus enfoques sobre o mesmo tema, mostrando que nem sempre é a verdade ou a sua busca, o único impulso gerador da pesquisa científica ou da divulgação jornalística. Há outros interesses historicamente contextualizados que interferem na produção científica e na abordagem da divulgação de ciência, que no caso especifico sofreu alterações devido às disposições do público alvo da revista em considerar novos pontos de vista. (Palavras-chave: jornalismo científico; análise do discurso; maconha). 6
  • 7. Introdução A relação da maconha com a imprensa pode-se dizer que é recente. Teve início ao mesmo tempo em que começaram os esforços para promover a proibição do consumo e do cultivo da planta em todo o mundo, nos primeiros anos do século XX. Antes disso, a maconha era consumida livremente, embora vista com maus olhos em diversas sociedades, como a americana, que associava o seu uso a classes consideradas inferiores como negros e hispânicos, e manchetes de capa não estavam na ordem do dia até então. O quadro mudaria a partir dos anos 1930, quando uma forte campanha pela criminalização da planta teve início nos Estados Unidos, e a maconha ganhou páginas e mais páginas de destaque nos jornais. Os primeiros artigos sobre a maconha publicados em jornais americanos estavam baseados no sensacionalismo e em interesses particulares na proibição da erva, interesses esses econômicos, políticos e sociais, menos de saúde pública. É nessa época que se cria e se populariza o termo marihuana, numa forte associação aos mexicanos, freqüentes usuários de maconha e até hoje peso indesejável na sociedade americana. Os artigos falavam de mortes e tragédias provocadas pela maconha e eram apoiados em racismo aberto contra as populações não brancas da América. No Brasil também não era diferente. A planta estava associada aos negros e às populações marginalizadas. A imprensa provavelmente foi a principal arma dos opositores da maconha para formar no imaginário popular estereótipos que perduram até hoje (o maloqueiro, o vagabundo, o criminoso). Entretanto, não se poder dar mais o caráter racista de antes aos textos. Hoje, todos estão embasados na ciência e nas suas descobertas sobre os efeitos da maconha. Porém, podemos nos perguntar até que ponto as descobertas da ciência sobre a cannabis estão isentas de interesses? Está a ciência livre das pressões sociais e morais externas que se exercem sobre ela? Como isentar uma análise científica que está financiada por recursos de Estado que tem interesses particulares na proibição do uso de determinadas substâncias? O objetivo deste trabalho é fazer uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha em três capas da revista de divulgação científica SUPERINTERESSANTE, da editora Abril. O que coloco em questão é como o discurso jornalístico alterou o seu enfoque 7
  • 8. sobre o tema a partir de uma mudança editorial da revista que focou nos jovens seu público alvo e passou a dar mais espaço à abordagem histórico-científica sobre o tema e não apenas médico-científica. A mudança no discurso se permitiu porque nem ciência nem jornalismo puderam ao longo dos anos proibir de fato o consumo da maconha. E hoje o usuário não é mais o negro, o hispânico ou o favelado. É o advogado, o estudante universitário, artistas e intelectuais, pessoas que fazem parte de uma classe que não quer se ver rotulada como criminosa ou doente. E a mídia, ao contrário do que muitos pensam, não apenas influencia, mas é também influenciada pelo contexto e o momento social em que vive. Tanto ciência como jornalismo sempre se propuseram objetivos em seus passos em busca da verdade. Porém, ambos não podem negar a influência do contexto social nas escolhas que fazem dentro de suas áreas específicas. Cientista e jornalista empreendem atividades humanas cujo caráter subjetivo é inegável na sua produção e na formulação de seus discursos, porém devo lembrar que a concepção de subjetividade que defendo neste trabalho: ―Nada tem a ver com a concepção idealista e ingênua do sujeito como ser individual, pensante e racional. Os sujeitos da enunciação são, como bem lembra Orlandi (1983), não apenas seres individuais, com pensamento e capacidades próprios, mas também e, sobretudo, seres sociais que, como tal, partilham com outros sujeitos da comunidade a qual pertencem pontos de vista, atitudes e comportamentos que passam a funcionar como convenções. Enquanto agentes, os sujeitos impregnam com seu ‗eu‘ as atividades que constroem; enquanto participantes de um grupo social, aderem aos princípios que os unem e aceitam (na maioria das vezes de forma inconsciente) as convenções que os caracterizam‖ (Coracini, 1991:191). Assim, a comunidade científica sofre as pressões e convenções da sua comunidade bem como do contexto social em que está inserida. Ainda que se pretenda neutra, carrega outros discursos que influirão na sua busca pela verdade. O jornalista, mais que o cientista, está pressionado por esse contexto. Então, o que coloco é que um discurso jornalístico baseado na objetividade científica, na verdade comprovada cientificamente, pôde mudar e mudou, quando se passou a analisar a questão sobre outro enfoque, o histórico-social. Tal 8
  • 9. mudança de rumo só foi possível graças a uma mudança na discussão do tema dentro da sociedade e, sobretudo, dentro da camada da sociedade em que está centralizado o público alvo da revista. Portanto, ―verdades cientificamente comprovadas‖ dependem de um contexto para sua realização, e não estão objetivamente dadas no universo. Optei pela SUPERINTERESSANTE por ser a revista de divulgação científica de maior circulação no país e está voltada para um público com certo grau de instrução, mas não especializado. Além disso, a SUPER tem se diferenciado das demais revistas de divulgação científica pelo lançamento de subprodutos que levam a marca da revista, mas são publicações independentes como livros, DVS, revistas para crianças, etc procurando atingir um público jovem cada vez maior. Dentre os assuntos abordados pela revista, escolhi a maconha por ser este um tema polêmico dentro da sociedade e pelas ambigüidades que se apresentam dentro dos discursos que aqui serão analisados, o da ciência e o da mídia, quando tratam da maconha. Também influenciou na escolha o fato de ser este um assunto de grande interesse dos jovens, e por tanto, do público alvo da revista SUPERINTERESSANTE. A monografia está dividida em três capítulos, introdução e conclusão. No primeiro capítulo abordo os conceitos vigentes de ciência a partir do trabalho de autores que estudaram o discurso da ciência e os seus críticos, apresentando algumas considerações sobre os objetivos e os métodos das ciências e sobre a noção de progresso científico. Ainda no primeiro capítulo apresentarei um breve histórico do desenvolvimento do jornalismo científico no mundo e uma apresentação da revista SUPERINTERESSANTE. O segundo capítulo apresenta um perfil da maconha e dos seus usos ao longo do tempo, bem como trato proibição da erva no Brasil e no mundo. No terceiro capítulo é feita a análise do discurso das três reportagens de capa da SUPER que trataram da maconha. O que eu pretendo com está pesquisa não é dizer se a revista analisada está melhor ou pior hoje, ou como ela deveria estar. O que quero demonstrar é que mudanças sociais e mercadológicas influenciaram a reestruturação de um discurso jornalístico que teria por base o discurso científico, ambos pretendendo na teoria serem discursos baseados na verdade precisa, empiricamente comprovada nos fatos. Porém, o que se vê é que nem um discurso nem outro está livre das subjetividades que permeiam suas construções discursivas. O capítulo ainda conta com uma introdução onde veremos a relação da mídia impressa com a cannabis em alguns momentos. 9
  • 10. A metodologia aplicada foi a análise do discurso francesa (AD), porém com aplicação reduzida da análise estrutural do texto (análise de palavras) utilizada pela lingüística e com enfoque sobre o funcionamento histórico do discurso, a exemplo de Michel Foulcault. Esse autor trabalha essencialmente com o conceito de ideologia associado ao discurso e nele encontrei uma base melhor por entender como Orlandi (1987) que não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia. Entretanto, a metodologia de outros autores da análise do discurso como Maingueneau, Brandão e Orlandi também foram utilizados num esforço de tornar a discussão mais completa, contudo sem aprofundar nas especificidades da lingüística. Uma revisão bibliográfica da revista em questão foi realizada com todas as edições já lançadas partir dos CDs-Rom que formam a edição comemorativa dos 15 anos da revista e de minha coleção particular. A caixa com seis CDs tem as edições de setembro de 1987 a junho de 2002, num total de 178 edições. Apesar do grande número de edições, apenas formam o foco da pesquisa: as de números 095, 127 e 179, respectivamente de agosto de 1995, abril de 1998 e agosto de 2002. 10
  • 11. Capítulo I Ciência e Jornalismo Científico Entender o discurso científico pressupõe compreender os conceitos vigentes de ciência, os métodos criados, as regras elaboradas para determinados fins, a relação entre o paradigma vigente, a ciência normal e as revoluções científicas. Acompanhando o trabalho de três autoras brasileiras (Coracini, Santaella e Lopes) sobre a ciência e seus discursos e os caminhos da pesquisa científica em comunicação social, procuro apresentar neste capítulo, ainda que de forma sucinta, algumas considerações sobre o objetivo e métodos da ciência e sobre a noção de progresso, focalizando, neste item, as colocações de Coracini (1991) sobre três filósofos da ciência: Popper, Kuhn e Feyerabend. Em seguida, apresento um breve histórico do desenvolvimento do jornalismo científico no mundo, e no Brasil, procurando ressaltar a importância social desse tipo de divulgação quando pensamos que a ciência é feita com dinheiro público e que é para sociedade que se reverte os resultados de suas pesquisas. Como é uma publicação de divulgação científica que analiso, encerro o capítulo com uma breve apresentação da revista SUPERINTERESSANTE cujos textos são objeto desta pesquisa. 1.1 O que é ciência? Não tenho por pretensão responder objetivamente a questão acima, mas apenas apresentar a visão de autores sobre o que viria a ser a ciência e seu desenvolvimento, levando em conta principalmente seus objetivos e métodos. Lembro ainda que essa apresentação será resumida devido ao espaço deste trabalho. Portanto, lacunas existem e não pretendo negá-las, mas indicar aos possíveis leitores interessados uma pesquisa mais aprofundada na bibliografia citada que poderá ajudar àqueles que queiram saber mais sobre a ciência, seu desenvolvimento e seus críticos (no bom e no mal sentido). ―O objetivo da ciência é descobrir uma ordem invisível que transforme os fatos de enigma em conhecimento‖. Esta definição de Alves (1984:40) apresentada em Coracini (1991:25) leva a reconsiderar o aparecimento da ciência e o seu objetivo primeiro: a 11
  • 12. aparência caótica e desorganizada do universo não possibilitava ao homem chegar ao conhecimento, isto é, à compreensão profunda dos seres e fenômenos; isso só parecia ser possível mediante estudos sistematizados e minuciosos dos componentes físicos, do comportamento dos seres, das reações em cadeia, enfim, da apreensão da ordem e organização dos elementos, de modo a tornar os fatos familiares, manipuláveis e, portanto, utilizáveis. Essa visão utilitária da ciência permanece hoje na sua aplicação à tecnologia. Há muitos séculos se acredita que o objetivo magno da ciência está na busca do conhecimento objetivo, ou seja, comprovado, dos seres e fenômenos do universo, e o século XIX nos legou a idéia de que a ciência é corpo sistematizado e organizado do conhecimento. A própria palavra ciência vem do latim scire (saber) e significa conhecimento ou sabedoria. Conhecer é deter alguma informação ou saber a respeito de algo (Santaella, 2001:106). Costuma-se dizer que a ciência existe para nos tirar do senso comum que seria o conhecimento acrítico, imediatista e sem sofisticação, que não problematiza a relação sujeito e objeto. Porém, como não é possível se saber de tudo, mesmo o cientista pratica o senso comum nas áreas que fogem a sua especialidade, de modo que o senso comum é uma dose de conhecimento comum de que dispomos para dar conta das necessidades rotineiras. Retomando a definição de Alves apresentada acima, pode-se afirmar que o objetivo da ciência tem sido não ―descobrir‖, mas construir o conhecimento humano com base na sistematização, na organização dos fatos que se entrelaçam e se relacionam. Captar essas relações é tarefa do cientista que, inserido num determinado contexto histórico-social, partilha com outros cientistas a crença num paradigma, em normas prescritivas que lhe possibilitam ―ver‖ desta ou daquela maneira os fatos, os seres, os fenômenos naturais. Santaella citando C. S. Peirce coloca que a ciência deve ser vista como aquilo que é levado a efeito por pesquisadores vivos, fruto da busca concreta de um grupo real de pessoas vivas, caracterizando-se, desde modo, como algo em permanente metabolismo e crescimento (2001:103). A ciência seria um processo, uma realidade sempre volúvel, mutável, contraditória, nunca acabada, um vir a ser. Entretanto, Santaella lembra que o fato de que nenhuma teoria possa esgotar a realidade, não pode produzir o conformismo, mas precisamente o contrário: o compromisso de aproximações sucessivas crescentes, pois ―a ciência não é a acumulação de resultados definitivos, mas principalmente o questionamento inesgotável de uma realidade reconhecida também como inesgotável‖. 12
  • 13. Uma vez que a ciência busca, mais do que a mera descrição dos fenômenos, estabelecer, através de leis e teorias, os princípios gerais capazes de explicar os fatos, estabelecendo relações e predizendo a ocorrência de relações e acontecimentos ainda não observados, o conhecimento científico não poderia ser alcançado através da inocência. Por isso: ―A ciência desenvolve meios que lhe são próprios para chegar àquilo que busca. Esses meios se constituem nos conceitos e redes conceituais que os pesquisadores edificam. Assim são obtidas leis, hipóteses e teorias que nos permitem compreender e ordenar o universo por meio de explicações, previsões e sistematizações‖ (Santaella, 2001:110). Vem daí o valor das teorias para a ciência. Definida de maneira simples, uma teoria é uma generalização para explicar como algo funciona. Ela nos fornece princípios gerais que nos ajudam a compreender um número de fenômenos específicos, porque e como eles ocorrem e como estão relacionados entre si, pois a teoria faz a síntese dos dados, ajudando a prever eventos futuros. Contudo, as teorias são limitadas e não podem revelar a verdade em um sentido absoluto. Além da necessidade das construções teóricas, se a ciência busca o conhecimento, cumpre perguntar como esta busca se realiza. Consensualmente, acredita-se que conhecimento se adquire através de pesquisa. ―Quando um hábito de pensamento ou crença é rompido, o objetivo é se chegar a um outro hábito ou crença que se prove estável, quer dizer, que evite a surpresa e que estabeleça um novo hábito. Essa atividade que passa da dúvida à crença, de resolução de uma crença genuína e conseqüente estabelecimento de um hábito estável é o que Peirce chamou de investigação‖ (id., ibid.:112). Está definição contém aquilo que se constitui no núcleo de qualquer pesquisa: livrar-se de uma dúvida. Toda pesquisa nasce, portanto, do desejo de encontrar resposta para uma questão. Raiz do conhecimento científico, a pesquisa se realiza por aplicação de métodos que servem de guia para o estudo sistemático do enunciado, a compreensão e a busca de 13
  • 14. solução de um determinado problema. ―O método não seria outra coisa do que a elaboração, consciente e organizada, dos diversos procedimentos que nos orientam para realizar o ato reflexivo, isto é, a operação discursiva de nossa mente‖ (Rudio, 1992:15, apud Santaella, 2001:133). Podemos dizer ainda que as metodologias das ciências são especificas, variando tanto historicamente quanto na passagem de uma ciência para outra. Ainda segundo Santaella, as tendências metodológicas tomariam um rumo segundo um critério histórico que podemos observar no positivismo de Comte, no materialismo histórico-dialético de Marx ou ainda no neopositivismo ou empirismo lógico do século XX; na fenomenologia de Husserl e sua postulação de que ―o conhecimento é o resultado da interação entre o que o sujeito observa e o sentido que ele fornece à coisa percebida‖; o estruturalismo e a busca de leis que presidem às estruturas das mais diversas ordens, assim como a escola de Frankfurt com sua crítica aguda contra a razão instrumental alimentada pela sociedade capitalista até o grupo de expoentes da epistemologia contemporânea como Popper, Kuhn e Feyerabend que discutiremos ainda neste capítulo, só para citar exemplos das ciências sociais e humanas. Concordo com Lopes (2001: 37) quando cita Kuhn colocando que este autor vê a história de uma Ciência ―moderna‖ como sendo, essencialmente, uma sucessão de paradigmas, cada um dos quais com sua própria teoria e seus próprios métodos de pesquisa, cada um guiando uma comunidade de cientistas durante certo período, sendo depois substituído por outro. Especificamente com relação às ciências sociais Lopes coloca ainda que: ―O próprio objeto (das ciências sociais) é dinâmico e mutável porque os problemas estudados são fenômenos históricos, instituições, relações de poder, classes sociais, manifestações culturais etc. E o que muda não é somente o dado ou objeto. As próprias ‗verdades‘ e ‗comprovações‘ produzidas por essas ciências se relacionam com o processo histórico. Daí se reconhecer que o conhecimento científico nas ciências sociais procede normalmente por rupturas, descontinuidades e crises‖ (idem). Longe de acreditar que a influência do contexto histórico aplica-se apenas sobre as ciências sociais e humanas, que não possuem um controle severo sobre seus objetos de 14
  • 15. estudo como no caso das ciências naturais (física, química, biologia, etc) que podem isolar e manipular em laboratório seus objetos, acredito que essa variável aplica-se a ciência como um todo. Desde Galileu, o contexto histórico e social permeia a investigação científica em qualquer ramo da ciência que venha a se realizar. Vale lembra que grande parte das inovações tecnológicas que usamos nos dias de hoje, do telefone sem fio à internet, nasceram da pesquisa científica com fins militaristas, ou seja, perpassados por interesses de Estado, econômicos, políticos e ideológicos. ―A tese da dependência contextual é também aplicável à ciência como totalidade. O todo da ciência, certamente, não é o único contexto imaginável, como se os limites da ciência viessem a identificar-se com os limites do nosso mundo. (...) A ciência não é só uma linguagem bem feita, mas uma complexa atividade humana, e enquanto tal imersa na infinita complexidade das demais atividades dos homens‖ (Muguerza, 1975:66).1 Essa discussão divide cientistas e comunidades científicas que se pretendem imunes a influências externas dentro de seus trabalhos, colocando a ciência e sua busca pela verdade como questões livres de contornos sócio-históricos. Essa resistência se verifica mais nas ciências exatas e naturais, onde a figura do cientista isolado em seu laboratório ainda persiste no nosso imaginário (e não nego que na realidade mesma). Porém, sabemos que até para que possa se isolar na sua pesquisa o cientista precisa de apoio, sobretudo financeiro, que vem de fontes com interesses específicos como o Estado ou iniciativa privada. Acreditar que questões políticas e econômicas inseridas no contexto social e histórico não participam deste apoio e, conseqüentemente, das pesquisas científicas, seria muito ingênuo por parte da comunidade científica se realmente se enxergam livres da história externa que cerca a história interna da ciência e do seu desenvolvimento. 1.2 A noção de progresso da ciência Karl Popper, Thomas S. Kuhn e Paul Feyerabend são os três filósofos da ciência considerados por Maria José R. Faria Coracini em seu livro “Um fazer persuasivo: o 1 Tradução minha da introdução do livro La critica y el desarrollo del conocimiento. 15
  • 16. discurso subjetivo da ciência”, onde a autora analisa a questão da objetividade/subjetividade do discurso científico através de reflexões lingüístico-filosóficas sobre a ciência e o seu fazer persuasivo, sobre a metodologia de análise do discurso e sobre questões relativas ao ensino das habilidades de compreensão e produção da escrita científica. Os três filósofos são apresentados de forma a tornar mais claro a noção de progresso da ciência, pois, acredita a autora, as tendências apresentadas por eles são ainda muito atuais neste sentido. A partir da bibliografia de Coracini, recorri aos textos de Popper, Kuhn e Feyerabend sobre a ciência e o desenvolvimento do conhecimento presentes no livro “La critica y el desarrollo del conocimiento”, cuja versão espanhola é de 1975. A obra está publicada no Brasil pela editora Cultrix/Edusp, mas eu não tive acesso a um volume em língua portuguesa ficando com a ingrata tarefa de ler obras espinhosas em outro idioma, ainda que seja o espanhol (a tradução das citações aqui apresentadas foi feita por mim). Não pretendo tecer profundas reflexões sobre o pensamento de cada autor (até porque não julgo que os tenha absorvido tão bem assim), mas, a exemplo de Coracini, apresentar de maneira sucinta o pensamento de cada um a respeito da ciência. Recorrerei mais ao trabalho de Coracini que brilhantemente resumiu as idéias dos filósofos que aos textos dos autores em si por entender que a profundidade dos debates empreendidos no trabalho deles não tem espaço para esmiuçamento nesta monografia, e se o fizesse estaria fugindo do propósito real deste trabalho para mergulhar na epistemologia. O método do falseamento de Karl Popper Popper defende o método dedutivo para a ciência, segundo o qual o embasamento teórico deveria constituir o ponto de partida do trabalho científico, seguindo o esquema problema-solução. Para ele, à diferença dos indutivistas, os problemas não adviriam da observação dos fenômenos, mas das próprias teorias vigentes, que já não satisfazem o cientista diante da sua tarefa de fazê-las corresponder aos fatos. Para Popper, é essa necessidade de mudança exigida pelo próprio objetivo de estudo que faz progredir a ciência. São os momentos de revolução científica, em que se busca uma maior adequação da teoria aos fenômenos observados, aproximação da verdade objetiva, no dizer de Popper, que interessam para o desenvolvimento da ciência. 16
  • 17. Segundo esse autor, o progresso do conhecimento científico segue o mesmo método utilizado para a aquisição do conhecimento pré-científico, isto é, o método de aprender por ensaio e erro, aprender a partir de nossos erros. A ciência progride à medida que as falhas nas teorias anteriores, na aplicação a determinados métodos de estudo, provocam períodos de revolução, caracterizados pelo descontentamento e pela busca de paradigmas mais adequados; tais revoluções, segundo Popper, acarretariam o avanço da ciência. O autor considera que é buscando o erro que se busca a verdade; é ‗falseando‘ uma teoria que se promove a ciência – teoria do falseamento (Popper, 1979:28 apud Coracini, 1991:28). Preocupado em perceber, na história da ciência, um método eficiente para submeter criticamente à prova as teorias e selecioná-las a partir dos resultados obtidos – única maneira de se fazer teorias novas – Popper se posiciona a favor do método dedutivo da prova, segundo o qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada. Alguns dos critérios assinalados por Popper para submeter à prova uma teoria, ou seja, para testá-la, são: a) a comparação lógica da teoria (para por à prova a coerência interna do sistema); b) investigação da forma lógica da teoria; e c) comparação com outras teorias (para determinar se a teoria representa um avanço de ordem científica no caso de ter passado satisfatoriamente nas várias provas). Desta forma, vêem-se os erros revelados pela verificação empírica, verificação esta que leva à substituição de uma teoria por outra ou a sua reformulação. É ao método do falseamento que Popper confere a qualidade de ―verdade absoluta‖ ou ―objetiva‖, porém o próprio autor não se considera um ―absolutista‖, pois não acredita que ele ou qualquer pessoa tenha a verdade ―no bolso‖. A possibilidade de escolha garante, de certa forma, a existência de critérios adotados mediante reflexões, aplicações e comparações das várias teorias. Entretanto, as correções teóricas não anulam as teorias precedentes ou as demais teorias concorrentes. É por isso que Popper considera que é na ciência e só nela que podemos dizer que fizemos progressos genuínos e que sabemos mais agora que antes, acreditando no acúmulo de conhecimento. Ele também vê a investigação científica como um trabalho que exige participação ativa, especulativa e analítica por parte do pesquisador que dever ter o devido senso crítico para realizar ciência: 17
  • 18. ―Eu creio que a ciência é essencialmente crítica; que consiste em arriscadas conjecturas, controladas pela crítica, e que, por essa razão, pode ser descrita como revolucionária‖ (1975:154). Para Popper, o cientista que só se preocupa em aplicar as teorias vigentes, sem colocá-las à prova, sem questionar sua validade é um não revolucionário que pouco contribui para o progresso da ciência. Kuhn e a ciência normal Se por um lado Popper enfatiza o período das revoluções científicas, Kuhn, no dizer de Popper, valoriza em excesso os períodos da chamada ―ciência normal‖ – etapas da ciência em que predomina um ―paradigma‖, índice de uma teoria dominante, à qual adere o cientista normal. Na sua crítica a Kuhn, Popper diz: ―A ciência normal, no sentido de Kuhn, existe. É a atividade dos profissionais não revolucionários, ou, dito mais precisamente, não demasiado críticos; do estudioso da ciência que aceita o dogma dominante do momento, que não deseja desafiá-lo, e que aceita uma teoria revolucionária nova somente se quase todos os demais estão dispostos a aceitá-la, se se torna moda‖ (1975:151). Para Coracini, o que Popper parece não ter compreendido é que, embora concordando quanto ao valor das revoluções científicas, Kuhn considera a pesquisa e, portanto, o período da ciência normal, de grande relevância para a ciência, uma vez que ―nem a ciência nem o desenvolvimento do conhecimento têm probabilidades de serem compreendidos, se a pesquisa for vista apenas através das revoluções que produz de vez em quando‖ (Kuhn, 1979:11 apud Coracini, 1991:31). Kuhn afirma ainda que um olhar cuidadoso dirigido à atividade científica dá a entender que é a ciência normal e não a ciência extraordinária que quase sempre distingue a ciência de outras atividades. Essa é, na verdade, uma questão ideológica que distingue os dois filósofos. Segundo Kuhn, os cientistas normais se unem em torno do mesmo paradigma e se constituem em comunidades, cuja principal característica é a de utilizarem instrumentos e 18
  • 19. métodos de análise próprios e adequados ao paradigma teórico escolhido. Tais comunidades podem constituir verdadeiras ―escolas‖ científicas, uma vez que, segundo Kuhn, constituem em grupos de cientistas que se reúnem em torno de uma especialidade, partilhando o mesmo paradigma e a mesma literatura de base. Opondo-se entre si, essas ―comunidades científicas‖ determinam regras, normas que devem ser seguidas por todo aquele que desejar a elas pertencer. Para ele, ―seja o que for o progresso científico, devemos explicá-lo examinando a natureza do grupo científico, descobrindo o que valoriza, o que tolera e o desdenha‖ (1975:400). Definido, dessa maneira, o peso da comunidade científica, Kuhn sugere que a racionalidade da ciência pressupõe a aceitação de um ―referencial comum‖, determinado pelo momento histórico. Kuhn considera a ciência como uma atividade envolvida num contexto histórico-social no qual se insere a comunidade científica. É, aliás, em nome dessa mesma comunidade que Kuhn é levado a considerar o discurso da ciência como eminentemente argumentativo, uma vez que tem por objetivo convencer, angariar adeptos dentre os seus prováveis leitores, membros da mesma comunidade (Coracini, 1991:31). Assumindo o discurso da ciência como argumentativo, Kuhn não acredita num método adequado para se julgar individualmente uma teoria, como poderia ocorrer aos cientistas revolucionários de Popper. Para Kuhn, é a comunidade científica que propõe os parâmetros, que escolhe e determina se uma experiência é válida ou não. Fora da comunidade não se faz ciência: as novas pesquisas devem se coadunar com os padrões científicos existentes e aceitos pela comunidade (id.,ibid.:32). Tal visão vem explicar o caráter convencional do discurso científico, no qual a liberdade e a possibilidade de criatividade do enunciador se acham limitadas por certas regras. Quanto ao aspecto evolutivo da ciência, Kuhn é de opinião que são os períodos de crise, que precedem as chamadas revoluções científicas, que provocam o aparecimento de novas teorias. Esses períodos críticos se caracterizam, segundo ele, pela proliferação de versões teóricas ou de paradigmas concorrentes, com o intuito de criar uma alternativa mais adequada. Kuhn declara não aceitar a presença da subjetividade enquanto componente individual na tarefa de investigação científica, transferindo para comunidade científica a responsabilidade dos elementos ―subjetivos‖ que passariam a ―intersubjetivos‖: o espírito seletivo, a intuição e a imaginação criadora se submetem a uma série de regras 19
  • 20. determinadas pelo grupo de cientistas. Para Coracini, são essas regras que garantem a permanência e a própria existência da objetividade científica, conceito inteiramente vinculado à comunidade e não ao indivíduo. ―Se considerarmos, porém, que essa comunidade (científica) é compostas de indivíduos, perceberemos que o que ocorre, de fato, é o social (meio científico) agindo sobre o individual, na tarefa pessoal de elaboração da experiência e do discurso‖ (id., ibid.:33). O anarquismo científico de Feyerabend Paul Feyerabend considera a ciência como ―um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular o progresso do que suas alternativas representadas por ordem e lei‖ (Feyerabend: 1977:9 apud Coracini, 1991:34). Feyerabend se posiciona contra todo método ―objetivo‖ que pretenda julgar a validade de uma teoria científica, pois, seja ela qual for, funda-se numa ―concepção demasiado ingênua do homem e de sua circunstância social‖. Para ele, o único princípio que não inibe o progresso é o ‗tudo vale‘. A ocorrência de idéias completamente diferentes leva o cientista a se questionar e a se posicionar. A proliferação de teorias seria, portanto, para o autor, benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade lhe debilita o poder crítico, além de ameaçar o livre desenvolvimento do indivíduo. Feyerabend confirma todo o caráter relativo e subjetivo de toda opinião, de todo método, de todo princípio, enfim, de toda investigação, mesmo científica. ―As ciências estão especialmente rodeadas de uma aura de perfeição que transforma qualquer dificuldade em benefício próprio. Frases como ‗busca da verdade‘ ou ‗o mais alto objetivo da humanidade‘ se empregam com profusão. Sem dúvida enobrecem seu objetivo, mas também o distancia do domínio da discussão crítica‖ (1975:359). Defendendo-se das acusações de ser subjetivista e relativista feitas por Popper, Feyerabend afirma que: ―(...) uma atividade cujo caráter humano está à vista de todos é preferível a uma que se mostre ‗objetiva‘ e impermeável às ações e 20
  • 21. desejos humanos. Depois de tudo, as ciências, incluindo todos os severos padrões que elas parecem impor-nos, são criações nossas‖ (1975:379). Com essa afirmação, Feyerabend desmistifica a ciência em sua busca objetiva e absoluta – toda verdade é, pois, subjetiva e provisória. Mesmo o mais sofisticado aparato teórico ou metodológico é produto da criação humana e, nesses termos, não escapa à subjetividade, entendida aqui como relatividade, dependência do seu construtor. É, aliás, esse caráter provisório da ciência que a faz progredir e avançar. Assim, cai por terra a visão tradicional que eleva a ciência à posição dogmática de detentora de critérios objetivos, mensuráveis, capazes de levar o homem à essência dos seres e à verdade dos fenômenos naturais. Podemos encontrar um ponto em comum entre os três filósofos que é a idéia de que a ciência é construção e como tal pressupõe um sujeito, ativo, capaz de conferir um significado a um fenômeno natural. Porém, apenas Kuhn se mostra sensível ao aspecto social das investigações científicas, permitindo explicar ao mesmo tempo a subjetividade e o caráter convencional da pesquisa, e, portanto, do discurso científico, parecendo-me relevante para o presente trabalho já que me disponho a examinar a influência de um contexto histórico, social, econômico e político na construção de um discurso científico que seria a base de um discurso midiático. Também Feyerabend estaria próximo do propósito desta monografia pelo caráter crítico que apresenta sobre a pretensão da ciência de ser a detentora das verdades quando, na opinião deste autor (e também na minha), essas verdades existem, mas seu caráter é provisório e, como criação humana que é, não escapa das subjetividades intrínsecas da nossa natureza. 1.3 Jornalismo Científico: breve histórico Podemos buscar as raízes do jornalismo científico ainda no século XV com o advento da imprensa de Gutenberg. Segundo Oliveira (2002:17) os livros de história da ciência dão como certo que a difusão da imprensa nessa época acelerou a criação de uma comunidade de cientistas, fazendo com que as idéias e ilustrações científicas se tornassem disponíveis a um grande número de pessoas, embora essas pessoas não significassem ainda o grande público, mas uma pequena camada letrada da sociedade como os representantes 21
  • 22. do clero, da nobreza e da burguesia mercantilista que começava a se espalhar pela Europa. Entre o advento da imprensa e o desenvolvimento da divulgação científica similar ao que temos hoje, passaram-se dois séculos, tempo que podemos considerar curto levando-se em conta a velocidade das transformações sociais da época. No século XVI exercia-se sobre a atividade científica uma censura por parte do Estado e da Igreja. Para informarem uns aos outros sobre suas descobertas, cientistas se reuniam às escondidas e dessas reuniões de elite brotou a tradição da comunicação aberta e oral sobre assuntos científicos. A divulgação da ciência surge, portanto, dentro de grupos fechados. A comunicação científica se desenvolve entre os séculos XVI e XVII durante o período da chamada revolução científica, fenômeno particularmente europeu que proveu uma revolução não somente no campo das ciências e da técnica como também provocou transformações na filosofia, na religião e no pensamento moral, social e político (Oliveira, 2002:18). A divulgação da ciência e do pensamento científico, como já foi dito, era feita essencialmente entre os cientistas, que formaram sociedades para promoverem o debate de suas idéias e descobertas. Na Itália surge a Accademia Secretorum Naturae, em 1560, como a primeira de muitas sociedades científicas italianas. Roma tinha sua Accademia di Lincei que durou de 1603 a 1630, e Florença possuía a Accademia del Cimento, fundada sobre a proteção dos irmãos Médici e que durou dez anos. Na Inglaterra, a Royal Society for the Improvement of Natural Knowledge foi proposta por Francis Bacon em 1620 e aprovada em 1622 por Charles II. Na França, Louis XIV estabeleceu em 1666 a Académie des Sciences. Frederico da Prússia cria a Academia de Berlim em 1700 e os Estados Unidos regulamentam sua National Academy of Sciences em 1863 (Burkett, 1990:27). A Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) é fundada em 1848, e hoje congrega toda a comunidade científica dos Estados Unidos. Os cientistas se mantinham atualizados sobre o meio acadêmico científico através da troca de monografias, livros e, sobretudo cartas que eram impressas e enviadas a vários cientistas. O inventor do jornalismo científico, entretanto, não foi um grande cientista de sua época. O alemão Henry Oldenburg é considerado o pai do jornalismo científico. Membro da Royal Society inglesa, Oldenburg combinou o caráter informal e fragmentado das cartas trocadas entre os cientistas com o potencial de alcance do texto impresso e inventou assim a profissão de jornalista científico. Durante quatro anos, Oldenburg produziu e distribuiu as 22
  • 23. cartas científicas sem qualquer remuneração. A partir de 1666 ele passa a receber um salário da instituição pelo seu trabalho de divulgador científico, e posteriormente passaria a contar com um redator. Antes disso, em 1665, Oldenburg deu início à publicação Philosophical Transactions, periódico da Royal Society que durante mais de dois séculos permaneceu como modelo para as modernas publicações científicas. Dominando vários idiomas, Oldenburg pode traduzir textos de várias fontes para o inglês e o latim. Além disso, estabeleceu precedentes de cientistas funcionando como editores de periódicos da sociedade científica e para publicação em vernáculo, o que fortaleceu a pesquisa científica na Europa. Muito do que era publicado podia ser compreendido por qualquer das pessoas pouco letradas da época. Na Europa e nos Estados Unidos, o jornalismo científico recebe grande impulso a partir do século XIX apesar do caráter fragmentário na Europa, levando-se em conta que foi um século de grande descobertas científicas como o barco e a locomotiva a vapor, o telégrafo e o telefone. É possível que a passagem do título de ―nação mais avançada cientificamente‖ da Inglaterra para França, nos séculos XVIII e XIX, e da França para Alemanha no início do século XX, tenha tido reflexos na relativa dispersão do jornalismo científico na Europa. Nos Estados Unidos é lançado em 1818 o Américan Journal of Science para noticiar sociedades científicas locais. O Scientific American, fundado em 1845, enfatizava as patentes, as invenções e a tecnologia. Na Inglaterra é lançada a revista Nature, em 1869 e em 1880, o americano Thomas Edison funda a Science, a revista científica semanal mais prestigiada no mundo até hoje. As duas grandes guerras mundiais certamente contribuíram para o avanço do jornalismo científico na Europa e nos Estados Unidos. ―A proliferação do desenvolvimento científico e tecnológico provocado pela Primeira Guerra Mundial (1914-1919) resultou no aumento significativo da cobertura jornalística nessa área, pois com a guerra houve uma ênfase da importância da ciência: novas armas de grande potencial, novos explosivos, gases venenosos, aeroplanos e submarinos eram usados pela primeira vez em um conflito de grandes proporções (Oliveira, 2002:22).‖ 23
  • 24. Assim, após a Primeira Guerra Mundial, jornalistas dos dois continentes, ávidos por reunir informações e conhecimento para interpretar as novas tecnologias bélicas, criam as primeiras associações de jornalismo científico. Na Inglaterra, o jornalista Richard Calder, que escrevia sobre ciência no Daily Mail desde o final da década de 1930, cria em 1945, junto com outros jornalistas, a Associação Britânica dos Escritores da Ciência. Em 1971, as associações já existentes na Europa se uniram e criaram a União Européia das Associações de Jornalismo Científico (European Union of Science Journalism Association‟s – EUSJA), cujo objetivo seria realizar trabalhos comuns com os vários grupos de pesquisa em jornalismo científico existentes na Europa, além de colaborar para que seja incentivada a divulgação da ciência por todo o continente (Oliveira, 2002:20). Nos Estados Unidos, um grupo informal de jornalistas, que durante a década de 1920 se encontrava com freqüência na cobertura das reuniões de sociedades científicas, começou a sentir necessidade de criar uma organização voltada para seus interesses e problemas. Os jornalistas acreditavam que poderiam ter um melhor relacionamento com a comunidade científica se, como ela, estivessem reunidos em algum tipo de entidade associativa. Assim, em abril de 1934, doze jornalistas científicos reunidos em Washington criam a Associação Nacional de Escritores de Ciência (National Association of Science Writers – NASW) com o objetivo de ―promover a disseminação de informações precisas sobre a ciência, em todos os meios normalmente dedicados à informação pública, bem como estimular a interpretação da ciência e de seu significado para a sociedade, com os mais elevados padrões de jornalismo‖. É inegável que a comunicação pública de ciência e tecnologia é hoje indispensável à sociedade. Dizer que a informação é um direito público já se tornou lugar comum. Está inclusive destacado na Declaração Universal dos Direitos Humanos divulgada pela Organização das Nações Unidas em 1948. Porém algumas pessoas, incluindo jornalistas defensores da não-especialização e cientistas-pesquisadores cépticos quanto à capacidade de jornalistas de traduzir a linguagem científica para o público, ainda questionam se a informação científica está incluída nessa questão. A ciência e o direito à informação sobre ela é de interesse social como qualquer outro aspecto da sociedade. Ciência e tecnologia têm conseqüências comerciais, estratégicas, burocráticas, e igualmente na saúde pública, não nas margens, mas no âmago desses componentes essenciais do processo político. 24
  • 25. Alguns cientistas declaram-se, e ao seu trabalho, acima da política. Pretendem manter uma postura que julgam imparcial, e nesse aspecto muitos jornalistas científicos procuram também realizar reportagem ―objetivas‖ por verem na ciência um campo neutro, desvinculado de interesses particulares que busca apenas elucidar e explicar fenômenos, realizar descobertas e promover o desenvolvimento. Essa posição acrítica com relação à ciência coloca sobre ela e sobre aqueles que a produzem uma aura de ―inocência‖ que não condiz com a realidade. Dentro do meio científico existem interesses econômicos, políticos e financeiros que escapam a questões de objetividade empírica. A pesquisa científica é financiada principalmente pelo setor público, sendo, portanto de interesse do contribuinte saber de que forma seu dinheiro está sendo utilizado e que benefícios essa ciência patrocinada pelo Estado trará para sociedade. As pessoas têm o direito de estarem informadas sobre como e em que o dinheiro público está sendo gasto. Isso é latente quando se fala de educação, saúde, transporte, áreas que estão intimamente relacionadas à ciência. Concordo com Oliveira quando diz que: ―Os governos em todos os níveis e os pesquisadores de modo geral têm o dever de prestar contas à sociedade sobre as realizações na área, contribuindo para a evolução educacional e cultural da população. A divulgação científica aproxima o cidadão comum dos benefícios que ele tem o direito de reivindicar para a melhoria do bem estar social (Oliveira, 2002:14)‖. Quando o investimento é particular os interesses nem sempre sociais se tornam mais evidentes. Na área de saúde podemos nos perguntar por que as pesquisas para desenvolvimento de novos medicamentos para doenças como a tuberculose e o mal do sono estão praticamente paralisadas há anos quando milhares de pessoas ainda são afetadas por essas doenças em várias partes do mundo? A resposta parece clara quando sabemos quê ―áreas do mundo‖ são essas: países pobres da África, Ásia e América Latina. A indústria farmacêutica é a grande patrocinadora de pesquisas nessa área e não tem interesse em investir em tecnologia que não dará o retorno esperado levando-se em conta a condição econômico-financeira do público alvo. O desenvolvimento tecnológico causa impactos em toda sociedade que podem ser positivos ou negativos. O mau uso dos avanços científicos tem contribuído para o 25
  • 26. crescimento da miséria nos países em desenvolvimento e para destruição do meio ambiente do planeta (Oliveira, 2002:25). A busca de soluções para esses problemas passa pela pesquisa científica e deve ser entendida pela sociedade como um direito essencial como educação ou saúde. Desta forma, cabe ao divulgador de ciência tratar dos assuntos relacionados à área de maneira crítica e interpretativa como ocorre (ou espera-se que ocorra) com outras áreas como a política, a economia e as artes, sem idealizações sobre ciência-cientistas que venham a obscurecer os fatos. As fontes oficiais podem e devem ser questionadas. Não são poucos os casos de fraudes e erros. A ciência não está imune a distorções propositadas ou inocentes. Burkett nos lembra que: ―Como a maioria dos pesquisadores científicos depende de verbas federais e de consultorias que prestam às indústrias, questões legítimas podem ser colocadas a respeito de sua independência, quanto às pressões exercidas por interesses especiais dentro de uma agência, por indústrias associadas com uma agência para a qual trabalham ou da qual recebem fundos para pesquisa (1990:109)‖. E Oliveira afirma que ―o jornalismo científico de qualidade deve demonstrar que fazer ciência e tecnologia é, acima de tudo, atividade estritamente humana, com implicações diretas nas atividades sócio-econômicas e políticas de um país. Portanto, do mais alto interesse para o jornalismo e para a sociedade‖ (2002:14). 1.4 O jornalismo científico no Brasil Enquanto no século XIX a Europa e os Estados Unidos já publicavam as primeiras revistas de jornalismo científico, o Brasil da época via nascer a sua imprensa nacional. Só em 1808, com a chegada da corte real portuguesa ao Brasil, fugindo da invasão das tropas francesas de Napoleão Bonaparte, é que se inicia oficialmente o jornalismo luso-brasileiro. Não era de interesse da metrópole portuguesa que houvesse no Brasil colônia uma imprensa, pois isso suspenderia a importação dos periódicos lusitanos, ponto negativo para balança comercial da metrópole. Apesar disso, no século XVII houve duas tentativas de instalar uma imprensa modesta no Brasil e ambas fracassaram graças à proibição veemente da Corte portuguesa. Segundo Costella (2002:86) a primeira tentativa ocorreu no Recife. 26
  • 27. Da oficina ali instalada e do tipógrafo nada se sabe a não ser o que está documentado na Carta Régia de 8 de junho de 1706 por meio da qual o governo português mandou fechá-la e apreender os seus tipos. A segunda tentativa é creditada a Antonio Isidoro da Fonseca, português que veio instalar-se no Rio de Janeiro em 1746. Imprimiu apenas quatro folhetos: ―Relação da entrada do Bispo D. Antonio do Desterro Malheiro‖, um poema de vinte e quatro quadras, e mais onze epigramas em latim e um soneto português, formando dois opúsculos ao mesmo bispo, e finalmente, ―Conclusões Metafísicas‖, de Francisco Fraga, em uma só página. Em maio de 1747 a oficina de Isidoro foi fechada e seus instrumentos confiscados. Em 1750, de volta a Portugal, solicitou licença para retornar ao Brasil e instalar sua tipografia. A licença foi negada. Na Ásia, onde os portugueses encontraram povos que já utilizavam a escrita e com ela documentavam sua tradição milenar, a tipografia foi permitida como forma de incutir os valores e padrões lusitanos, na tentativa de destruir os valores locais. No Brasil, do índio ágrafo e do colono pouco letrado tipografia era dispensável. O quadro muda com a chegada da família real em 1808, mas a nossa imprensa já nasce atrelada ao poder e aos seus interesses. Em 13 de maio daquele ano D. João VI instituiu por decreto a implantação da Imprensa Régia no Brasil. O primeiro jornal impresso no país foi a ―Gazeta do Rio de Janeiro‖, cujo número de estréia data de 10 de setembro de 1808 e teve como redator o Frei Tibúrcio José da Rocha. Outros historiadores preferem instituir como marco histórico do jornalismo brasileiro o periódico ―Correio Braziliense ou Armazém Literário‖, que teve seu primeiro número publicado em junho de 1808. Porém, o periódico sempre foi editado e impresso em Londres onde também vivia exilado seu criador, Hipólito da Costa. Além do início tardio, a imprensa brasileira sempre contou com os entraves da censura política. Em 114 anos de história (1889-2003) a República brasileira viveu dois longos períodos de ditadura: o Estado Novo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1944, e o regime militar, de 1964 a 1985. Somando-se a isso os anos de colônia temos 417 anos de repressão e cerceamento da liberdade de expressão e de controle da informação por parte do poder público. Quando surgia um investimento na área de imprensa e propaganda nas épocas dos regimes ditatoriais era tão somente com o intuito de cercear e manipular a liberdade de expressão e promover as idéias do regime em atividade. Se a imprensa começa a fazer parte da agenda brasileira apenas no início do século XIX, a preocupação com o desenvolvimento científico do país tem início ainda mais tarde. 27
  • 28. Com um tipo de colonização voltada para exploração e não para expansão, também a pesquisa científica e tecnológica no Brasil só se desenvolve tardiamente com um avanço significativo a partir do final do século XX quando a comunidade científica começou a organizar-se. É a partir da década de 1940 que a ciência entra definitivamente na agenda do governo e da sociedade brasileira. Como em vários países, a instituição da ciência no Brasil foi bastante influenciada pelo término da Segunda Guerra Mundial e pelo impacto que a força do avanço tecnológico demonstrado pelos aliados causou em todo o mundo. Assim é que, em 1948 é criada a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade que congrega hoje todas as sociedades científicas do país. Em 1951 foi criado o Conselho Nacional de Pesquisas, o CNPq, que representou o primeiro esforço significativo nacional de regulamentar a ciência e a tecnologia no país. Até a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) em 1985, o CNPq foi o principal órgão responsável pelas ações de ciência e tecnologia empreendidas pelo governo federal. Em 1974 passou de autarquia à fundação e em 1985 passou a subordinar-se ao MCT. As origens do CNPq estão intimamente ligadas à ideologia nacionalista, calcada na idéia de ―segurança nacional‖, defendida por militares e burocratas do aparato estatal desde fins da década de 1940. Sua criação foi orientada pela necessidade de o Brasil se equiparar às outras nações na pesquisa de energia nuclear que se mostrou vital para segurança nacional. O regime militar do período 1964-1984 deu grande impulso ao desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro. A doutrina nacionalista do governo militar articulava grandes projetos tecnológicos que, pretendia-se, levariam o país a ser soberano e independente. Os grandes investimentos ficaram a cargo da indústria aeronáutica e de defesa e dos programas nuclear e espacial brasileiros. Apesar dos aspectos ideológicos e políticos que circundavam esse momento da história brasileira, autores como Oliveira reconhecem que o período foi de grande incentivo ao desenvolvimento tecnológico do país, porém lembra que: ―O jornalismo científico durante o regime militar seguia a risca a batuta dos censores, divulgando com ufanismo os grandiosos projetos da época – a Transamazônica, as grande hidrelétricas, as indústrias bélicas, o programa nuclear e o aeroespacial. As entidades de pesquisa 28
  • 29. governamentais tinham projetos definidos e verbas alocadas (bem ou mal) sem participação alguma da opinião do Congresso e muito menos da sociedade, que, mal informada, jamais nela influiu‖ (2002:31). Também Burkett diz que ―a credibilidade científica se aproxima do seu maior perigo quando misturada na elaboração das normas públicas‖ (1990:109), e lembra ainda que ―o envolvimento primário entre a ciência e os cientistas e o governo vem através do dinheiro e conceitos diferentes sobre o bem estar geral‖ (1990:135). De modo que podemos concluir que o início do jornalismo científico no Brasil, além de estar marcado pela censura política com relação à imprensa também estava marcado pelo comprometimento da ciência com os investimentos governamentais maciços nesta área. Questionar a fonte era tarefa impensável e irrealizável neste período de efervescência científica do país. Podemos encontrar ainda em fins do século XIX publicações que tiveram a iniciativa de divulgar ciência no Brasil. São exemplos a Revista Brazileira (1857), a Revista do Rio de Janeiro (1876) e a Revista do Observatório (1886) publicada pelo Imperial Observatório do Rio de Janeiro, atual Observatório Nacional. Oliveira destaca, entretanto, sem desmerecimento para com esses ―pioneiros pontuais‖, o papel de dois nomes bem conhecidos do jornalismo brasileiro e da divulgação científica no país. O primeiro seria Euclides da Cunha, que em 1897 cobre para o jornal O Estado de São Paulo o levante do Arraial de Canudos, no interior da Bahia liderado por Antonio Conselheiro, contra a República. O trabalho rende a publicação de Os Sertões, onde o autor faz em vários momentos profunda reflexão sobre a influência do meio ambiente na formação do homem brasileiro, em diversas regiões do país. Discute as variações do clima, da qualidade da terra, da vegetação, da água e dos minerais. Euclides preconiza o jornalismo científico e ambiental contextualizado e interpretativo, no qual a informação científica dá suporte à compreensão da realidade. O segundo nome seria o do médico, pesquisador, educador e jornalista José Reis, considerado patrono do jornalismo científico no Brasil. Reis começou a publicar, a partir de 1932, artigos e folhetos para público não especializado em problemas científicos, e de 1947 a 2002, ano de sua morte, manteve na Folha de São Paulo uma coluna científica semanal. Foi também um dos fundadores da SPBC e publicou mais de cinco mil trabalhos entre livros, artigos científicos e material jornalístico. Foi também um dos fundadores em 1977 da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), da qual 29
  • 30. foi o primeiro presidente. Em 1979, o CNPq criou o Prêmio José Reis de Divulgação Científica. A partir da década de 1980, a divulgação e o jornalismo científico no Brasil cresceram com o surgimento de novas revistas como Ciência Hoje (SPBC) e Ciência Ilustrada (Editora Abril). Oliveira (2002:38) afirma que nos anos 1990 a Editora Globo lança a revista Globo Ciência e no mesmo ano a Editora Abril lança a revista Superinteressante, porém a autora comete um engano com relação a esta data de lançamento da Superinteressante. Na edição comemorativa dos 14 anos da revista (nº168, setembro de 2001) está colocada como data de lançamento da primeira edição 29 de setembro de 1987. Além disso, surgiram programas de televisão com a proposta de divulgar a ciência para o grande público como o Globo Ciência (TV Globo) e Estação Ciência (da antiga TV Manchete). Grandes eventos de repercussão internacional influenciaram o desenvolvimento do jornalismo científico no Brasil durante a década de 1980 como a passagem do cometa Halley (1986), a descoberta da supernova de Shelton (1987), da supercondutividade, as viagens espaciais e as questões ambientais. Quando em 1992 realizou-se no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio 92, já havia um número considerável de jornais que contavam com editorias de ciência e meio ambiente, revistas especializadas e programas de rádio e televisão. Entretanto, Oliveira diz, com base em suas pesquisas junto a profissionais da área, que faltava ainda ao jornalismo científico brasileiro fundamentos capazes de integrar áreas como a economia e a política a temas ligados a ciência e tecnologia. É ainda Oliveira que nos diz que, no Brasil: ―O jornalismo científico, se for possível uma analogia, mal saiu da fase romântica, resvala muitas vezes no denuncismo e no alarmismo sem fundamento e é incapaz de análises e exposição de contrapontos (tão necessário ao bom jornalismo), como de resto já é corrente na prática do jornalismo econômico e político‖ (ibid.:39). A autora aponta ainda para alguns fatores que dificultariam o trabalho do jornalista científico brasileiro. O primeiro seria o difícil acesso às fontes, pois, segundo ela, as entidades e a própria comunidade científica, de modo geral, ainda não levam em conta o papel estratégico que a comunicação com o público representa para sua própria existência, 30
  • 31. salvo raras exceções. Em segundo lugar, faltam ofertas de especializações acadêmicas. Em todo Brasil, até 2002, existia apenas um curso de pós-graduação em comunicação de ciência, na Universidade Metodista de São Paulo e cursos de especialização na Universidade de Campinas (Unicamp), na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade de Taubaté (SP). E, por último, a autora aponta a forte influência de fontes originárias de países desenvolvidos no noticiário nacional, o que dificultaria a divulgação da ciência brasileira. As informações já chegam dos países europeus ou dos Estados Unidos bem documentadas e ilustradas, exigindo pouco esforço editorial, com isso podemos perceber a preocupação desses países em divulgar a ciência que estão produzindo. A autora não nega a importância dos temas de ciência e tecnologia dos países desenvolvidos para produção do jornalismo científico no Brasil, mas sugere um equilíbrio na divulgação das informações para que a sociedade brasileira fique a par do que está sendo realizado em ciência e tecnologia no país. A SUPERINTERESSANTE No final dos anos 80 nasce a SUPERINTERESSANTE, mais precisamente em setembro de 1987. A revista surge em meio à explosão de publicações científicas de grande circulação que ocorre naquela década em conjunto com uma série de descobertas científicas de grande repercussão internacional. O número zero traz apenas um aperitivo do que viria a ser a revista. É uma espécie de folheto que traz na capa a figura de um robô e a manchete ―A era do robô sapiens‖. Na própria capa do número zero está ―Superamostra: assim será sua revista‖. A primeira carta ao leitor, escrita por Victor Civita na edição 01, de outubro de 1987, começa com uma história sobre a reação da esposa do bispo anglicano de Worcester, Inglaterra que teria ficado horrorizada ao ouvir dizer que pelas novas teorias postas a circular por Charles Darwin o homem era um simples descendente do macaco, ao que a senhora teria dito ―Barbaridade! Esperamos que não seja verdade, mas, se for, rezemos para que isso não se torne amplamente conhecido‖. Civita coloca então que a posição da recém nascida publicação é justamente oposta à idéia da religiosa senhora: 31
  • 32. ―Por acreditarmos tanto no valor da descoberta e da acumulação do conhecimento científico e tecnológico quanto na importância da sua divulgação ao maior número de pessoas, estamos apresentando ao público brasileiro uma nova revista mensal‖ (SUPER, ed 01 1987:05). A carta coloca ainda que a pauta da revista não terá limites, ―cobrindo da Física à Pré- história, da Astronomia à Ecologia, da Informática à Psicologia ou à Religião‖. O objetivo da publicação seria mostrar o conhecimento de forma clara e acessível ao mais leigo dos leitores por entender que a ciência faz parte do cotidiano das pessoas, ―influenciando e modificando até mesmo os momentos mais simples de nossa vida‖. Sendo uma revista de divulgação científica, Civita também promete não descuidar da precisão que a natureza da notícia científica requer, ―o que significa dizer que em suas páginas não haverá lugar para meias verdades, o saber por ouvir dizer, a hipótese sem evidência que a legitime‖. Em 16 anos de existência a SUPER se tornou a quarta maior revista de circulação do país, e a segunda maior entre as mensais. Do grupo Abril é a segunda maior, atrás da Veja. A circulação paga mensal foi estimada em abril de 2003, pelo editorial da revista, em 420 mil exemplares. Os assinantes somariam quase 300 mil ainda naquele ano. A partir de agosto de 2000, a revista passa por uma reestruturação editorial. O diretor de redação André Singer sai da revista depois de seis anos no cargo. No seu lugar entra Adriano Silva. A mudança se revela nos textos, no planejamento gráfico e nas próprias palavras do novo editor: ―Estou recebendo uma bela revista para tocar. E trato desde já de torná-la ainda melhor. Ao mergulhar nesta edição, você perceberá que a SUPER está mais atraente, mais saborosa. O design está mais arejado, mais bonito. Os textos são mais suculentos, mais bem humorados, acrescentado alegria ao rigor e à solidez habituais da SUPER. Tudo isso porque lidar com conhecimento é muito divertido, aprender é e deve ser uma aventura emocionante‖ (SUPER, ed 155, 2000:09). A proposta parece óbvia: cativar o público jovem. Novas seções são criadas e outras suprimidas da revista. Seções sobre comercialização de equipamentos avançados de tecnologia, dicas de sites e guias de arte e mídia figuram na nova cara que é dada à revista. 32
  • 33. A foto do antigo diretor de redação com cabelinho bem penteado e usando gravata é substituída pela de um jovem sorridente de camisa pólo. O projeto gráfico é drasticamente enxugado. Capa mais limpa, poucas chamadas em contraste com o padrão anterior, destaque no logotipo que vem agora acompanhado do slogan ―Quem lê é‖, e que foi substituído em julho de 2003 por ―A melhor revista jovem do Brasil‖, tornando bem evidente o público ao qual a revista está dirigida. A mudança editorial também compreendeu o lançamento de uma série de subprodutos da revista tais como livros, DVDs, e outras revistas que são lançadas paralelamente à revista principal. As outras publicações trazem a marca da SUPER, mas tratam de temas específicos tais como a Revista das Religiões lançada em 2003 com a proposta de ser a primeira revista ecumênica de religiosidade e teologia do Brasil (algo que poderia soar estranho a uma revista científica); Mundo Estranho (extraída a partir da seção Superintrigrante); Vida Simples, que começou como edição especial em 2002 e hoje é uma revista mensal; e a coleção de livros Para Saber Mais, lançada no final de 2002. A proposta da revista com relação à publicação de livros é formar uma biblioteca básica para o leitor que ―quer saber mais‖. Os títulos lançados abordam os mais variados assuntos, da Teoria da Relatividade ao Judaísmo, de Yoga ao Linux (sistema operacional de computadores), da Maconha à Vida Extraterrestre. A lista dos produtos agregados à SUPER não para por aqui. Como podemos ver a revista aposta no ecletismo das suas publicações para agradar a todos os nichos. Inicia uma maior abordagem sobre religião e misticismo, temas um tanto espinhosos para quem trabalha com ciência. Antes da reestruturação da revista, a SUPER havia dado apenas três capas a assuntos ligados à religião ou espiritualidade (janeiro/1995, abril/1996, junho/1998), embora a abordagem do tema ―ciência x religião‖ sempre tenha existido na SUPER (no primeiro número encontramos a reportagem ―Pode a ciência acreditar em Deus?‖). De 2001 para cá foram onze capas que trataram de religião, misticismo ou espiritualidade, com matérias que foram do Espiritismo a Yoga. A capa de dezembro de 2002, edição 183, traz a manchete ―A verdadeira história de Jesus‖, e no editorial Adriano Silva afirma que a capa de Julho daquele mesmo ano, ―Bíblia‖, era a recordista em vendas de todos os tempos. O número de matérias sobre ciências humanas também cresceu na publicação, gerando reclamação de alguns leitores e elogios de outros. Alguns chegam a dizer que a ―revista passou de científica a revista de curiosidades e cultura inútil‖. Outros 33
  • 34. pedem que, apesar das críticas, ―a revista não deixe de lado as reportagens de ciências humanas que enriqueceram o conteúdo‖. Conteúdo que atende às expectativas e reflete o estilo de vida do leitor jovem da SUPER. Em enquête publicada na edição 194, de novembro de 2003, 85,1% dos leitores da SUPER disseram acreditar que a meditação (tema da capa do mês anterior) pode melhorar a qualidade de vida de quem a pratica. A revista também intensificou o tratamento das questões ambientais criando em 2002 o Prêmio Super Ecologia, onde a revista reconhece ações ecologicamente viáveis de ONGs, Governo e Iniciativa Privada. O objetivo desta pesquisa não é dizer se a revista analisada está melhor ou pior hoje, ou como ela deveria estar. O que procuro demonstrar é que mudanças sociais e mercadológicas influenciaram a reestruturação de um discurso jornalístico que teria por base o discurso científico, ambos pretendendo na teoria serem discursos baseados na verdade precisa e empiricamente comprovada nos fatos. Porém, o que se verá é que nem um discurso nem outro está livre das subjetividades que permeiam suas construções discursivas. Concordo com Lopes quando diz que ―a Ciência não é lida com o objeto percebido, mas com o objeto construído‖ (2001:104). Com isso, não quero de forma alguma negar a validade do conhecimento científico e as contribuições deste campo para vida humana na Terra. Tal atitude invalidaria o próprio propósito desta pesquisa. O ponto que se quer entender é como a partir do discurso científico e histórico sobre a maconha, a SUPERINTERESSANTE formulou diferentes discursos abordando em certos momentos dados e informações pertinentes e em outros ignorando-os na estruturação de três matérias de capa sobre o tema. 34
  • 35. Capítulo II Maconha: uma planta com história Em primeiro lugar devo esclarecer que durante este capítulo a palavra maconha poderá ser substituída por cânhamo, ou cannabis, todos os termos se referindo à mesma planta que aqui será debatida nos seus aspectos industrial, médico, terapêutico, social e legal. O que espero com esse capítulo não é fazer uma apologia ou reprimenda ao seu uso, seja ele humano ou industrial, mas apenas colocar questões pertinentes a sua utilização em vários contextos e épocas e discutir os efeitos de sua proibição ao longo do tempo. A possibilidade de pequenas incoerências não será de todo descartada, pois a bibliografia consultada sobre o assunto normalmente apresenta ou um tom apologético ou reacionário, sendo poucas as fontes lidas que apresentaram um equilíbrio na abordagem do tema. Além disso, as emoções particulares que permeiam a maioria dos textos sobre a maconha, inclusive este, podem promover certos recortes da realidade sobre a planta e seus usos que não seriam falsos, mas apenas um dos possíveis ângulos, dentre os vários que existem sobre a questão. O que fiz foi justamente abordar um ângulo diferente do habitualmente apresentado, sem, entretanto, santificar ou demonizar a maconha. O que existe são fatos e fatos sobre a planta, alguns já bem (ou mal) conhecidos do grande público, e outros obscurecidos por um discurso médico-político-legal que se propagou ao longo dos anos, sobre tudo do final do século XIX até hoje. Não se trata simplesmente de negar tal discurso ainda em voga, mas colocar questões sobre ele, questões que foram omitidas durante a sua formulação por uma série de interesses políticos, econômicos e sociais, e porque não, científicos. 2.1 Uma história de milhares de anos Dados da Organização Mundial de Saúde afirmam que existe hoje em todo mundo cerca de 163 milhões de usuários de maconha. Só no Brasil estima-se que sejam três milhões de consumidores da erva. Os números de fato podem ser bem maiores. Nossa relação com a erva data de séculos. 35
  • 36. O nome científico Cannabis sativa, foi atribuído à planta pelo botânico sueco Carl von Linné, em 1753. Outra variação da espécie, a Cannabis indica foi descrita pelo biólogo francês Jean Baptiste Lamark. Elas diferem tanto no porte como no formato da folhas e na configuração do tronco, porém todas contêm canabinóis, substâncias químicas responsáveis pelos efeitos psicoativos da planta, sendo o principal deles o Delta-9-THC (tetraidrocanabinol), popularmente conhecido por THC. O clima e as condições de cultivo são o que determina a maior ou menor concentração de THC na cannabis. A cannabis sativa pode chegar a quatro metros e é a espécie que fornece as melhores fibras para produção têxtil. Já a indica não chega a 1,5 metros e é a espécie que tem maior concentração de THC. Como muitas outras plantas, a cannabis possui dois gêneros, macho e fêmea. Quando a planta fêmea não é fecundada ela armazena energia e excreta uma substância pegajosa, uma espécie de resina rica em THC. Essa resina cobre toda a planta, porém ela está mais concentrada nas flores da fêmea. A planta fêmea é, portanto, a maconha. A história da cannabis atravessa os séculos. Segundo Robinson2 e todos os demais autores consultados, a planta teve origem na Ásia central, onde se tornou a primeira fibra vegetal a ser cultivada. Uma abundância de provas obtidas em sepulturas e outros sítios através de toda China demonstra o cultivo de cânhamo asiático desde tempos pré- históricos. O autor lista várias dessas provas obtidas em pesquisas arqueológicas que comprovam o contato do homem com o cânhamo em épocas remotas, chegando a 12 mil anos. As peças são normalmente cordas e tecidos que revelam a importância do cânhamo para essas populações na produção de roupas. ―Os pobres dependiam do cânhamo para toda a sua roupa, só os ricos podiam se dar ao luxo da seda‖ (Robison, 1999:64). O uso medicinal da planta também está documentado na mais antiga farmacopéia existente, o Pen-Ts‟ao Ching, que foi compilada no século I ou II a.C. e que recomenda o seu uso como analgésico, antiespasmódico e sedativo e contra dores menstruais, reumatismo, prisão de ventre e malária. Outras compilações chinesas, de períodos que vão do século 1000 ao século I a.C., mencionam o cânhamo que também foi usado na China para produzir papel. A invenção do papel é atribuída ao chinês Cai Lun, em 105 d.C., mas espécimes de papel 2 As informações relativas aos usos históricos do cânhamo presentes neste capítulo estão relatadas no livro ―O grande livro da cannabis‖, de Rowan Robinson. Outras fontes consultadas apresentaram os mesmo relatos, porém de maneira resumida ou esparsa, o que me fez optar por utilizar apenas este autor no que trata dos usos históricos da planta. Porém, também eu tratarei de fazer um resumo tendo em conta o grande número de informações contidas na obra que ultrapassam o espaço desta monografia. 36
  • 37. datados de mais de um século antes do período em que viveu Cai Lun foram encontrados num túmulo perto de Xian, na província de Shaanxi. Esses papéis eram feitos de cânhamo. Os chineses foram os pioneiros no uso da fibra do cânhamo, mas foi na Índia que as demais propriedades da planta foram plenamente apreciadas a tal ponto de se tornar parte da religião hindu e ter em Shiva sua divindade. Os Vedas, literatura sagrada hindu, identificam o bangue (nome que é dado à bebida feita com flores secas da cannabis) ao meio pelo qual uma pessoa tanto comunga com o deus Shiva quanto se livra do pecado. Um texto hindu do século XVII, Rajvallabha, diz que o ―consumo desse alimento dos deuses gera energia vital, amplia os poderes mentais e produz deleite para Shiva‖. A cannabis seria o alimento preferido de Shiva. Os arianos que invadiram a Índia penetraram também no Oriente Médio, e se expandiram para Europa, espalhando a semente do cânhamo. A escavação da cidade de Gordion, perto de Ancara, na Turquia, revelou tecidos de cânhamo produzidos no final do século VII. A cannabis é mencionada em tábuas cuneiformes datadas de 650 a.C. encontradas na biblioteca do imperador babilônico Assurbanipal. A planta era chamada pelos assírios de qu-nu-bu, e na Pérsia, as sementes de cânhamo eram chamadas shahdanah, ou ―sementes do imperador‖. O bangue e o haxixe figuram em várias narrativas das Mil e uma noites, coletânea de histórias árabes compiladas entre os séculos XI e XVIII. Na África, as fibras do cânhamo eram usadas para fazer cordas. Pedaços de tecidos de cânhamo foram encontrados no túmulo do faraó Akhenaton (Amenófis IV), e o pólen encontrado na múmia de Ramsés II (c. 1200 a.C.) foi identificado como de cânhamo. A planta também foi usada na construção das pirâmides, nas pedreiras, onde sua fibra seca era introduzida nas fendas da pedra e depois molhada. Com o inchaço da fibra, a pedra se fendia. Embora não haja indícios arqueológicos de que os egípcios mais antigos conhecessem os efeitos psicotrópicos do cânhamo, o consumo de cannabis para fins espirituais ou recreativos acabou se tornando comum em toda África. O haxixe era conhecido em todas as terras árabes, mas para o sufismo, religião mística do Islã, ele se tornou parte da própria religião, mais ou menos como o bangue entre os hindus. Os sufis divergiam dos demais mulçumanos em sua crença, pois afirmavam que a iluminação espiritual não podia ser ensinada ou recolhida através de percepção racional, mas somente em estados de alteração de consciência. O uso do haxixe era um dos métodos utilizados para atingir o estado de transe. A proibição do álcool pela religião mulçumana também 37
  • 38. funcionou como estimulo para o uso da cannabis entre os árabes. Porém, durante a Idade Média o hábito declinou, exceto entre os sufis, que até bem pouco tempo consideravam a planta essencial nos seus rituais. Acredita-se que foram os africanos que introduziram a maconha no Brasil. Porém, antes disso o cânhamo já havia aportado nas Américas. No barco comandado por Cristóvão Colombo havia 70 toneladas de cânhamo, contanto o velame e as cordas. Na Europa, o uso da planta para produção têxtil era largamente difundido, desde o império romano. Os vikings se valiam do cânhamo para o fabrico de cordas, panos de velas e calafetagem. Sementes de cânhamo foram encontradas em vestígios de naus vikings provavelmente construídas em 850. Os agricultores franceses tinham o costume de dançar durante o carnaval da quaresma para que seu cânhamo crescesse bem. O cânhamo também teve sua contribuição na difusão da palavra impressa, pois os primeiros livros depois da invenção da imprensa por Gutenberg no século XV foram impressos em papel de cânhamo. Os primeiros colonos europeus usaram o cânhamo silvestre assim que chegaram à América. Os puritanos cultivavam cânhamo em Jamestown em conformidade com o contrato que haviam firmado em 1607 com a Virginia Company. O governador da Virgínia, Sir Thomas Dele, trouxe consigo instruções para o cultivo de um jardim comunitário que permitiria a experimentação do cânhamo e do linho. Porém, os colonos preferiam plantar tabaco que tinha maior mercado na Europa. Diante disso, a Virginia Company emitiu em 1616 uma instrução segundo a qual todo colono de Jamestown deveria cultivar cem plantas de cânhamo, devendo o governador cultivar 5 mil. Várias colônias aprovaram leis pelas quais certas manufaturas, particularmente a do cânhamo, do linho e do alcatrão, podiam ser usadas no pagamento de dívidas e impostos. Os governos coloniais incentivaram a produção de cânhamo com variados graus de rigor e sucesso. As seções de 1720-22 da Assembléia Geral de Connecticut aprovaram uma recompensa de quatro xelins ―por cento‖ bruto de cânhamo parcialmente processado para incentivar seu cultivo contínuo, enquanto a Virgínia continuou promulgando leis que forçavam os proprietários de terra a cultivar a planta, e multando os recalcitrantes. O primeiro e o segundo rascunho da declaração de independência dos Estados Unidos, de 1776, foi escrita em papel de cânhamo e o primeiro presidente americano, George Washington, mostrava preocupação com o cultivo da planta, como atesta trechos de seu diário da fazenda de 1765, quando ainda era apenas um fazendeiro produtor da planta. A transcrição está no livro de Robinson (1999:81) e detalha 38
  • 39. passos do cultivo, da plantação à colheita. Também Thomas Jefferson foi um defensor do cultivo de cânhamo e chegou a inventar o ―quebrador de cânhamo‖, dispositivo que seria acrescentado a uma debulhadora para trabalhar a planta. O quebrador recebeu a primeira patente dos Estados Unidos. Durante a Guerra Civil americana (1861-1865), o Congresso dos EUA ordenou ao comissário da agricultura do norte que fizesse investigações para testar a praticabilidade do cultivo e do preparo de linho ou cânhamo como um substituto para o algodão. A guerra causou de início um aumento da demanda do cânhamo, mas a expansão foi apenas temporária. Depois da guerra, o algodão dominou a agricultura sulista, e juta barata importada veio substituir o cânhamo como o material usado para ensacar o algodão. Mais ou menos na mesma época o papel de polpa de celulose tornou-se amplamente disponível e reduziu a demanda do cânhamo como material usado na feitura de papel. Como seqüela da Guerra Civil, a perda da mão de obra escrava e a falta de colheitadeiras mecânicas significaram a ruína da indústria do cânhamo e ela nunca se recuperou totalmente, apesar de um breve ressurgimento do cultivo da planta nas décadas de 1870 e 1880. Na virada do século o mercado para cânhamo estava limitado a cordame, barbante e linha. Mas a invenção do decorticador mecânico prometia mudar isso. O acesso à fibra e à celulose contida no caule da planta estimulou a criação de novos usos para o cânhamo. Henry Ford foi um dos que apostaram nas possibilidades do cânhamo na indústria e na altura da década de 1930 a Ford Motor Company produziu o primeiro carro ―orgânico‖ feito a partir da combinação de cânhamo e outros produtos e projetado para rodar com combustível também feito de cânhamo. Entretanto, nos fins da década de 1930 a Lei de Taxação da Marihuana foi aprovada nos EUA, e a promissora indústria do cânhamo ficou inviabilizada na América3. 2.2 O cânhamo e seus usos Muito já foi dito até aqui sobre a cannabis e sua história. Nesta seção procuro apresentar mais detalhes sobre os usos industrial, médico, terapêutico e religioso da planta 3 Mais adiante informações mais completas sobre a Lei da Taxação da Marihuana serão apresentadas no tópico que trata da proibição da planta no mundo. 39
  • 40. por entender que sua proibição diz respeito também a essas áreas e não só ao controle social do uso de uma substância. Indústria Como já foi dito acima, o uso do cânhamo para produção de papel e tecidos remota há milênios. O papel de cânhamo, segundo Robinson, poderia ser a alternativa econômica e ecológica viável para o meio ambiente, pois o atual papel produzido de árvores gera o desmatamento que afeta o ecossistema como um todo, afetando a camada superior do solo e bacias hidrográficas, bem como aumento do efeito estufa. Mesmo as indústrias que mantêm reservas renováveis de madeira para produção do papel contribuiriam para efeitos negativos ao meio ambiente, uma vez que a reciclagem de papel no mundo é muito baixa se comparada a sua produção e consumo. A fibra do cânhamo é biodegradável e conseqüentemente o papel produzido a partir dela tem um potencial de reciclagem maior e causa menos danos ao meio ambiente. Hoje, um dos papéis mais conhecidos feitos de cânhamo são os papéis para cigarro, a exemplo das marcas Smokingpaper e Pure Hemp, encontradas em qualquer tabacaria. Além de papel, com a fibra do cânhamo pode-se produzir tecido. Os feixes de fibra da planta chegam a medir 4,5m enquanto as fibras do algodão têm 2cm, o que dá ao cânhamo uma resistência à tração oito vezes maior que a do algodão e uma durabilidade quatro vezes maior. O cânhamo, como o linho e outras fibras, pode ser tecido em muitos níveis, da lona ao tecido fino. Com o processamento adequado, é possível tornar o cânhamo tão macio quanto o algodão. Por causa do cultivo limitado, os tecidos de cânhamo são hoje escassos no mercado. A maioria dos itens ainda é vendida por catálogos ou em lojas especializada. O preço mais alto do cânhamo pode ser compensado por sua qualidade superior e pela promoção do produto como uma opção ambiental. Aliás, ser ecologicamente correto é o slogan daqueles que apostam nos produtos à base de cânhamo. Além de ser biodegradável, a planta requer relativamente pouco fertilizante em comparação a outros produtos fibrosos e, tendo poucos predadores naturais, precisa de pouco ou nenhum tratamento com pesticidas. Da semente da cannabis pode ser produzido óleo para ser usado como combustível, e ainda óleo comestível com um dos níveis mais baixos de gordura saturada. A indústria de cosméticos também pode fazer uso do óleo de cânhamo na produção de xampus, cremes 40
  • 41. para o corpo e até perfume. As sementes da planta são utilizadas hoje em dia basicamente como ração para pássaros. Saúde Como já foi dito, a mais antiga farmacopéia do mundo, o Pen-Ts‟ao Ching, já recomendava o uso da cannabis contra vários males, de prisão de ventre a reumatismo. Também os hindus, além do uso religioso que faziam da planta, utilizavam-na na sua medicina. O tratado Anandakanda, do século X, descreve 50 preparados de bangue para curas, rejuvenescimento e como afrodisíaco. Os médicos ayurvédicos da Índia usavam o bangue para tratar diarréia, epilepsia, delírio e insanidade, cólica, reumatismo, gastrite, anorexia, náusea, febre, bronquite, diabetes, tuberculose, anemia, etc. A lista dos males tratados pela cannabis é extensa. O cânhamo se tornou membro oficial do repertório farmacêutico na Europa e nos Estados Unidos a partir do preparado Esquire‘s Extract utilizado como medicamento específico no alivío dos sintomas do tétano, do tifo e da hidrofobia. Segundo Robinson: ―No final do século XIX, a cannabis foi incluída em dezenas de remédios disponíveis mediante prescrição ou diretamente no balcão. Entre eles estavam o digestivo Chlorodyne e o Corn Collodium, manufaturados pela Squibb Company. A Park-Davis produzia Casadein, Utroval e medicamento para cólica veterinária e a Eli Lilly produzia os tabletes sedativos Dr. Brown‘s, Xarope composto Tolu, Xarope Lobelia, Neurosine e Cura a Tosse em um Dia. O uso de uma substância hoje ilegal pelas que são algumas das maiores empresas farmacêuticas do mundo não é mais surpreendente que o uso de cocaína pela Coca-Cola nas primeiras décadas do século e ressalta a natureza arbitrária das ‗substâncias controladas‘‖ (1999:33). É bem verdade que comprovar a validade dos usos medicinais da cannabis em épocas passadas fica um pouco difícil. Mas as pesquisas atuais indicam que a planta tem vários usos medicinais, sendo o mais conhecido deles em pacientes portadores de HIV e naqueles que enfrentam tratamento quimioterápico contra o câncer. Nos primeiros a planta estimularia o apetite promovendo uma melhor alimentação do soro positivo e 41
  • 42. conseqüentemente aumento de suas defesas imunológicas que são afetadas pelo vírus. Nos segundos, a planta teria efeito contra as fortes náuseas resultantes da quimioterapia. Muitos médicos, entretanto, alegam que já existem hoje medicamentos legais capazes de produzir os mesmos efeitos desejáveis da maconha nesses pacientes, sem os inconvenientes do efeito psicotrópico, que não agrada a todos, e as complicações legais. Porém, tais medicamentos não surtem efeito em todos os organismos e o paciente fica, devido à proibição, impossibilitados de testar outra medida. A prova da eficácia da cannabis em pacientes de câncer que não respondem aos medicamentos tradicionais foi comprovada quando o governo americano criou o Marinol, o THC sintético. Porém, alguns pacientes vomitam as pílulas antes mesmo delas fazerem efeito, o que não ocorre com o THC fumado. Desde 2001 o Canadá autoriza o uso medicinal da maconha. Doentes terminais ou portadores de câncer e Aids podem fumar e até cultivar a planta. Ainda com relação ao câncer, não há dados suficientes que comprovem se a maconha fumada regularmente por anos a fio causaria ou não câncer de pulmão. É provável que contribua para isso, já que é fumaça inalada, porém não na mesma proporção que o tabaco, visto que o usuário pesado de maconha fuma em média 3 ou 4 cigarros da erva por dia, a maioria deles menos que isso (o chamado uso recreativo: somente em festas, finais de semana) e o uso é reduzido com a idade, enquanto os fumantes de tabaco que desenvolvem câncer tem um histórico de uso prolongado (em média 30 anos ou mais) e intenso (mais de 30 cigarros por dia). A maconha também já foi testada em pacientes com glaucoma, doença caracterizada por aumento da pressão do líquido dentro do olho que pode levar à cegueira. A maconha reduz a pressão intraocular. O efeito pode ser obtido oralmente, por via endovenosa ou aplicação tópica. A cannabis também pode ser usada contra dor, ansiedade e no tratamento de viciados em drogas pesadas, a exemplo do programa desenvolvido pelo psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, Proad, do departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo. Em sua pesquisa, o psiquiatra tratou dependentes de crack incentivando-os a substituir a droga pela maconha. Quase 70% dos dependentes largaram o crack, e posteriormente a maconha. A erva seria eficaz no tratamento de cocainômanos porque diminuiria a ansiedade e aumentaria o apetite. 42