1. EDITORIAL
C
inema e psicanálise marcaram o século XX e forneceram argumen-
tos para muitas das discussões que sustentam nosso século atual.
Freud duvidou da capacidade plástica do cinema para representar o
inconsciente, o que não impediu K. Abraham e H. Sachs de colaborar na
primeira tentativa de colocar o cinema na tela (Segredos de uma alma, G.
Pabst, 1926). Lacan, desde cedo – como lembrava Luís Buñuel em suas
memórias – tinha o cinema como uma referência para os psicanalistas. Do
lado dos cineastas podemos citar dois entre outros: Alfred Hitchcok e Woody
Allen que se utilizaram da psicanálise explicitamente, sem falar nos críticos
que se valeram dos conceitos psicanalíticos como ferramenta de análise.
Tudo isto para dizer que a discussão está longe de terminar e tem um
valor para nós. Em nosso entender, ainda produz atualidade; esta capacida-
de de nos re-apresentar, nos devolver, em forma discursiva, os assuntos
coletivos e individuais, nos situar entre a massa e a intimidade.
No sul do Brasil, agosto é o mês do Festival de Cinema de Gramado,
agora brasileiro e latino-americano. Bom mote para que o Correio da APPOA
pudesse propor novamente o diálogo, a abordagem das interfaces entre cine-
ma e psicanálise. Já havíamos feito isto anteriormente (n. 48, julho de 1997),
e esta será uma oportunidade de avaliarmos as diferenças que o tempo pro-
piciou. Uma delas, o fato de cineastas e estudiosos de cinema fazerem suas
considerações sobre a complexidade destas relações, mostrando que esta
discussão não está somente do lado dos psicanalistas. Não se trata mais
de fazer psicanálise aplicada (faz tempo), mas de discutir as influências
recíprocas e as conseqüências para cada um dos campos, tão diversos
quanto fascinantes. Uma espécie de trabalho na transferência, onde cada
um se coloca um pouco em questão.
Enfim, segue a história, o rio de três margens, numa conversa que
está longe de terminar como dissemos. Ainda bem; não estamos à procura
de verdades universais. Outras cenas, vozes, escutas virão.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 1
2. NOTÍCIAS NOTÍCIAS
CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE O corpo masculino deixa assim de ser imaginado como a encarnação
A MASCULINIDADE da potência por sua própria natureza. O falo circula com infinitas máscaras,
DIAS: 22, 23 E 24 DE OUTUBRO DE 2004 até mesmo com cara de mulher. Se o pênis não é mais o representante do
falo, se a relação tangencial com a morte não é mais prova da virilidade, se o
A civilização, nas suas mais diversas variantes, tem se estruturado homem já não pode mais tirar a sua identidade de uma oposição imaginária
em torno de representações fálicas. Pais criadores e cultos totêmicos cons- entre forte e o fraco, onde reside atualmente a masculinidade?
tituíram o pivô das crenças sobre as origens e garantia da continuidade hu-
mana. Ao longo dos tempos foi encomendado aos homens e não às mulhe- Eixos de trabalhos:
res a representação, vigilância, preservação e proliferação desse tesouro – As representações da masculinidade hoje;
simbólico. As mulheres podiam ser importantes sacerdotisas, deusas até, – Desejo, amor e gozo sexual;
mas a eles cabia encarnar e executar a lei e a ordem de toda e qualquer – As relações de trabalho, sexo e poder;
cosmogonia. – Mudanças na estruturação familiar e na educação de meninos e meninas;
Durante milênios, os homens foram lançados aos campos de batalha – História das diferenças sexual;
para provar a glória dos impérios, a honra das etnias, a potência da estirpe. – A lei e a violência: a relação do masculino com a morte.
Como conseqüência disso, percorreram léguas a esmo em busca deste santo
Graal. Arriscando suas vidas, em nome de qualquer missão incerta, que PALESTRANTES CONFIRMADOS
passava a ser vital desde que lhe fosse designada. Navegaram por mares
desconhecidos, penetraram mundos ignorados, morreram por causas que Alfredo Jerusalinsky – APPOA
nem sempre eram suas. Ana Laura Giongo – APPOA
Nas mais diversas culturas, as mulheres eram compreendidas e cria- Ana Maria Costa – APPOA
das como carentes do atributo que permitia tal potência. Tal modo de conce- Ângela Lângaro Becker – APPOA
ber as coisas era uma lógica conseqüência da costura social, que privilegia- Benilton Bezerra Jr. – Rio de Janeiro
va o convívio entre os homens e o resguardo do tesouro fálico de cada civili- Contardo Calligaris – APPOA, São Paulo
zação como uma incumbência masculina. Desta forma, partindo do campo Edson Luiz André de Sousa – APPOA
da anatomia, a diferença sexual tomou uma extensão imaginária: os ho- Gerard Pommier (a confirmar) – PARIS
mens seriam o sexo forte, as mulheres o sexo frágil, dito em outros termos, Ieda Prates da Silva – APPOA
os homens são os detentores do falo e as mulheres castradas. Inajara Erthal Amaral – APPOA
O divórcio entre a anatomia e a condição fálica (que se registra a partir Jaime Betts – APPOA
do século XX) separa pênis e falo, assumindo este último múltiplas formas Jean-Louis Chassing – PARIS
de representação. O poder deixou de depender de modos diretos de influên- Jurandir Freire Costa – Rio de Janeiro
cia, relacionados à força física e ao risco de vida. A inteligência e a diploma- Ligia Gomes Víctora – APPOA
cia, assim como a valorização da invenção e da criação, abriram espaço Lucia Alves Mees – APPOA
para que o falo pudesse se desamarrar dos corpos e seus atributos viris. Lúcia Serrano Pereira – APPOA
2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 3
3. NOTÍCIAS NOTÍCIAS
Marcelo Masagão – São Paulo MENTO DEVIDAMENTE PREENCHIDO, para a inscrição ser efetivada.
Marcio Pizarro Noronha – Goiânia – Horário da secretaria da APPOA das 13h30min às 21h30min.
– Agência de viagens oficial: BMZ turismo – (51) 3321.1133.
Maria Ângela Cardaci Brasil – APPOA
Maria Cristina Poli – APPOA
Maria Rita Kehl – APPOA, São Paulo
Miriam Schnaiderman – São Paulo RELENDO FREUD E CONVERSANDO SOBRE A APPOA
Otávio Augusto Winck Nunes – APPOA
Robson de Freitas Pereira – APPOA Entre os dias 18 e 20 de junho, estivemos reunidos em Canela para
Rosane Monteiro Ramalho – APPOA mais um “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA”. Mais uma vez, o
Rossana Oliva – APPOA encontro foi atravessado por um clima acolhedor e informal, o qual tem se
Sandrine Malem – PARIS tornado uma marca constante do evento.
Dessa vez, foi proposta uma novidade: ao invés de um texto de Freud,
Data: 22, 23 e 24 de outubro de 2004. trabalhamos com um conjunto de três artigos – “Um tipo especial de escolha
Local: Centro de Eventos Plaza São Rafael de objeto feita pelos homens” (1910), “Sobre a tendência universal à depreci-
Endereço: Avenida Alberto Bins, 509 – Porto Alegre – RS – Brasil ação na esfera do amor” (1912) e “O tabu da virgindade” (1918) –, os quais
foram reunidos por Freud sob o título “Contribuições à psicologia do amor”.
INSCRIÇÕES: Mesmo que uma certa unidade possa ser delimitada entre eles, cada um
aborda questões bastante específicas a respeito da vida amorosa de ho-
Antecipadas Associados Universitários Profissionais mens e mulheres. Por este motivo, no encontro, optamos por dedicar um dia
ou parceladas da APPOA de graduação de trabalho para cada um desses artigos.
À vista R$ 100,00 À vista R$ 110,00 À vista R$ 160,00 As discussões no evento giraram em torno da atualidade das formula-
ATÉ 02/09 ou 3 cheques ou 3 cheques ou 3 cheques ções propostas por Freud nesses três textos. Entre os pontos abordados,
de R$ 40,00 de R$ 45,00 de R$ 60,00 discutimos a divisão entre objeto de amor e objeto de desejo, se haveria uma
diferença com relação ao ciúme nos homens e nas mulheres, que tabus
ATÉ 30/09 R$ 120,00 R$ 130,00 R$ 180,00 relativos ao corpo tem vigência na atualidade, qual o limite das modificações
impostas pela cultura em relação à estrutura. Mesmo que algumas das idéi-
Após ou R$ 150,00 R$ 160,00 R$ 210,00
as desses artigos necessitem ser revistas, a partir das modificações do
no local
contexto cultural contemporâneo, as “Contribuições à psicologia do amor”
continuam mantendo toda sua validade. Reler este conjunto de textos e pen-
– As vagas são limitadas
– Inscrições para universitários, inscrições antecipadas e/ou parceladas: na sar sua atualidade foi uma tarefa fundamental para a seqüência do trabalho
secretaria da APPOA. que temos feito em torno do tema do masculino e da diferença sexual.
– Inscrições mediante depósito bancário, para: Banco Itaú, agência 0604, conta- Os momentos reservados ao “Conversando sobre a APPOA” dedica-
corrente: 32910-2. Neste caso, ENVIAR POR FAX O COMPROVANTE DE PAGA- ram-se a pensar as relações da APPOA com outras instituições. Este deba-
4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 5
4. NOTÍCIAS SEÇÃO TEMÁTICA
te, denso e consistente, pôde resgatar a história e o lugar de nossa Associ- SONHOS E LEMBRANÇAS
ação no movimento psicanalítico, tanto na cidade quanto em nível internaci- NO CINEMA E NA PSICANÁLISE
onal. É verdade que as interrogações ali trabalhadas já vem sendo ponto de
pauta em vários âmbitos da instituição. Porém, como de costume, o trabalho Liliane Seide Froemming
do “Conversando sobre a APPOA” teve um importante efeito de produção e
O
elaboração sobre as mesmas. cinema combina imagem e narrativa. Ao se movimentar de uma
imagem para outra os fotogramas produzem uma narrativa. O efeito
Gerson Smiech Pinho produzido pelo encadeamento de imagens se converte em lingua-
gem, desde os tempos do cinema mudo. Mas foi longo o processo e os
instrumentos forjados pelo cinema para contar histórias.
NÚCLEO DAS TOXICOMANIAS Algumas disposições seqüenciais dos filmes tendem a repetir certos
modelos adotados como consenso para representar algumas idéias. Filmes
O Núcleo das Toxicomanias convida a todos os interessados para um antigos tendiam a usar o recurso da imagem trêmula ou fora de foco para
importante debate que será realizado no dia 07/08/2004, sábado, com o dr. indicar uma passagem para a dimensão de irrealidade do sonho, da imagina-
Luiz Matias Flach, advogado, magistrado aposentado, professor de Direito ção ou do delírio. Hoje este recurso é considerado tão pueril quanto um pôr
Penal da Escola Superior da Magistratura, ex-presidente do Conselho Fede- do sol ou um galo cantando sobre uma cêrca para indicar a passagem da
ral de Entorpecentes e ex-Secretário Nacional de Entorpecentes. noite para o dia.
O eixo do debate será a respeito da lei de drogas e a cidadania dos Como é que os sonhos representam os pensamentos oníricos e as
usuários. relações entre estes? Um problema para os sonhos – formados predomi-
Contamos com sua presença, lembrando que esta é uma atividade nantemente por imagens visuais – é dar forma a idéias abstratas. A elabora-
aberta a todos os interessados. ção onírica consiste, em certa medida, na modelagem de pensamentos
oníricos e na busca de encontrar imagens que representem as relações
Coordenação do Núcleo estabelecidas entre os diversos pensamentos.
Freud busca em Herbert Silberer (1882-1923) alguns procedimentos
para observar a transformação de idéias em imagens e cita exemplos: um
MUDANÇA DE ENDEREÇO escritor adormece enquanto se impõe como tarefa suavizar seu estilo, consi-
derando-o um pouco áspero; o sonho que surge é de se ver envolvido em
Centro Lydia Coriat informa seu novo endereço: Av. Independência, 944 – Porto uma tarefa que consiste em lapidar e lixar um pedaço de madeira. Silberer
Alegre – RS. Fones: 3311.0091 e 3311.2243. fez várias pesquisas sobre o simbolismo nos sonhos e sobre os estados
transitórios entre a vigília e o sonho.
O sonho se afasta muito do texto que motivou sua elaboração, tanto nas
formas de expressão de idéias como nos enlaces lógicos que se estabelecem
entre elas. A censura atua determinando um trabalho de deformação.
6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 7
5. SEÇÃO TEMÁTICA FROEMMING, L. S. Sonhos e lembranças...
O uso da simultaneidade no sonho opera como em certas pinturas, ou literatura mas extrai lições destes diferentes campos da arte. É a sétima
reunindo numa comunidade filósofos ou poetas que nunca se encontraram arte, marcada pelo significante “mais um”.
efetivamente, nem conviveram no mesmo período histórico, mas que apre- A introdução do som no cinema colocou questões diferentes do que
sentam afinidades de alguma ordem. O uso da antítese ou da contradição no as postas ao tempo do cinema mudo. Questões técnicas e artísticas novas
sonho é singular: para o sonhador não há contradição e duas idéias opostas se imbricam. Como articular som e imagem? Como sincronizá-los? Como
podem estar reunidas numa só. contar uma história com diálogos e imagens combinados? O cinema tende a
“Sempre que um elemento psíquico se acha unido a outro por se fazer narrativo e um novo trabalhador entra em cena: o roteirista. O roteirista
uma associação absurda ou superficial existe ao mesmo tem- é um escritor singular que opera uma transposição narrativa buscando com-
po entre ambos uma conexão correta e mais profunda, que binar texto e imagem.
sucumbiu à censura” (Freud, cap. VII, Interpretação dos So- Tarkovski (1998) relembra a cena inaugural do trem avançando sobre
nhos. p. 669). os telespectadores realizada pelos irmãos Lumiére para afirmar que, no campo
O dispositivo da continuidade narrativa no cinema mudo começa a ser da arte, fora encontrada uma forma ímpar de registrar uma impressão da
construído visando fazer o espectador “esquecer” o caráter descontínuo das passagem do tempo. A retrospectiva sobre seu método de trabalho e o relato
imagens coladas umas às outras. Convenções começam a ser criadas li- da experiência da realização de vários filmes como “A Infância de Ivan”, “O
gando as cenas. Assim, dois planos consecutivos onde aparece um sujeito Espelho” e “Nostalgia” estão expostos em seu livro “Esculpir o Tempo”. Ele
que olha e logo, no plano seguinte, um objeto, leva o espectador a deduzir propõe, em seu trabalho, substituir a causalidade narrativa pelas articula-
que o alvo do olhar do sujeito do primeiro plano é o objeto representado no ções poéticas. Para filmar os sonhos de Ivan, Tarkovski utiliza as imagens
plano subseqüente. em negativo, causando um efeito sobrenatural, produzindo um estranhamento.
Algumas imagens inaugurais do cinema demonstram a constante Nem narrativa, nem discurso designam o “texto” fílmico. Diegese é o
pesquisa que se desenvolvia. A roda e o movimento da máquina de costura termo proposto, enquanto substituto de história e oposto à descrição. A
servem de modelo para fazer rodar a seqüência de fotogramas no primeiro diegesis e a mimesis são modalidades da lexis para Platão e Aristóteles. A
cinematógrafo dos irmãos Lumière. Por injunções técnicas, como a ilumina- acepção é mais ampla do que a de história. Falar em universo diegético
ção, as tomadas tinham que ser externas. Assim, dada a amplitude dos “compreende tanto a série de ações, seu suposto contexto (seja ele geográ-
planos destas tomadas foi possível perceber variações no ângulo e na pro- fico, histórico ou social), quanto o ambiente de sentimentos e de motivações
fundidade que a posição da câmera permitia apreender. Na primeira fase de nos quais elas surgem” (Aumont, 1995, p. 114).
coleta de imagens pelos irmãos Lumiére o modelo fotográfico era dominante. E ao “texto” produzido por um paciente mediante a consigna da asso-
A câmera era fixa e buscava captar os movimentos circundantes: folhas, ciação livre (nem tão livre assim pois guiado pelas amarras transferenciais,
fumaça, pessoas caminhando, meios de transportes. Foi o olhar de um via- pela suposição da escuta do analista) que nome daremos? Discurso, narra-
jante – dos tantos que partiram em busca de imagens com protótipos de tiva, diegese, fala?
filmadoras – que percebeu a possibilidade de movimentar a própria câmera. Um analisante diz: “É difícil explicar, tenho muitas lembranças contadas.
Com Eisenstein temos a reflexão sobre a montagem como elemento Não sei se são minhas. Me dão uma sensação muito vaga de me sentir culpa-
singular da produção fílmica, situando o cinema como justaposição de se- do... Lembro tão pouco. Me sinto inventando, como se tivesse que encher um
qüências de imagens em movimento. O cinema não é fotografia, nem teatro pouco esta história. Têm fotos desta época... Têm dores que não passam...”
8 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 9
6. SEÇÃO TEMÁTICA FROEMMING, L. S. Sonhos e lembranças...
Contadas, lembradas, inventadas – como são construídas estas ce- é o caso do filme “Amnésia” (2000) exigindo do espectador um exercício “de
nas na memória? Nos sonhos, o infantil não surge como passado, mas sem- ver o filme de trás pra diante”. A construção do filme está baseada em cons-
pre como uma marca do atual. Um sujeito diz sonhar com um rio semelhante tantes flashbacks, onde o sentido de uma cena é ressignificado pela cena
ao de sua terra natal, porém bem maior. As associações seguintes levam-no que a antecede mas que aparece, na seqüência, só depois.
a considerar que não é o rio que é grande, mas ele é que é pequeno no Há filmes que nos inspiram, nos fazem romper com a crono-lógica,
sonho. instaurando a lógica do significante. São como exercícios para a escuta
O momento em que o sujeito situa sua fala num determinado tempo, clínica.
conectando o momento atual com outros momentos nos remete a uma iden- No Seminário 8, Lacan faz referência à tela do cinema como o revelador
tificação que se opera por sucessivos deslocamentos. Há que atentar para o mais sensível de como se modela no imaginário popular um certo ideal da
tempo dos verbos, para o uso de advérbios e outros indicadores da lingua- figura do analista e aponta o filme “mais recente” de Hitchcock. A data em
gem que aparecem no decurso de uma cadeia associativa. Que recursos o questão é do seminário proferido no dia 16 de novembro de 1960. “Vertigo” é
sujeito utiliza para nos dizer de sua posição no tempo, no espaço? Alguns um filme de 1958 e “Psicose” de 1960, mas não parece se endereçar a eles
consideram que compartilhamos com eles tais referências e por isso dispen- a referência. Talvez o filme tenha passado recentemente. Algumas linhas
sam maiores explicações? Outros explicam com extremos detalhes supon- depois, Lacan nomeia o filme “De Repente, no Último Verão” que é de 1959
do uma ignorância naquele que o escuta? e cujo diretor é Joseph Mankiewicz – uma adaptação da peça de Tenessee
O flashback é um recurso muito difundido no cinema para costurar Williams. Neste momento do texto, a cena do beijo descrita também guarda
relações causais e documentar lembranças. A cena que determina as ra- semelhanças com uma cena de “Quando fala o coração”.
zões de certos atos de determinados personagens aparecem com atraso, Quanto ao que vem a ser amar e ao que vem ser o amor, não há que
só depois, redimensionando sentidos até então insuspeitados. se fazer confusão, nos alerta Lacan, a propósito da transferência.
Desde 1945, quando Hitchcock filmou “Quando fala o coração” colo- Definir-se como cinéfilo tende a ser registrado na ordem do fetichismo.
cando em pauta a conexão entre a formação de sintomas e o esquecimento Glauber Rocha se definia, baseado em Buñel, como um “Amador”, recusan-
de cenas da infância numa explícita referência à Psicanálise muito se produ- do ser nomeado como um profissional do Cinema.
ziu nesta intersecção. Seria mais próprio dizer que Cinema e Psicanálise
constituem inter-sessões. Antes temos os antológicos filmes de Pabst (Se- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
gredos de uma alma, 1926) e de John Houston (Freud, Além d’Alma, 1962). Aumont, J. (1995). A Estética do Filme. São Paulo: Ed. Papirus.
A questão que se coloca para a Psicanálise e para o Cinema quando Freud, S. (1899/1976). Lembranças Encobridoras. Rio: Ed. Imago.
se trata de pensar a produção de cadeias associativas, de operar com a Freud, S. (1900/1976). A Interpretação dos Sonhos. Rio: Ed. Imago.
Froemming, L. (2002). A Montagem no Cinema e a Associação Livre na Psicaná-
lógica das representações, das considerações quanto a figurabilidade de
lise Tese de Doutorado. Porto Alegre:UFRGS (não publicada)
idéias expressas em sonhos ou lembranças tem alguma similitude?
Lacan, J. (1992). A Transferência. Livro 8. O Seminário. Rio: Jorge Zahar.
O Cinema tem construído formas mais elaboradas do que a ondula-
Tarkovski, A. (1998). Esculpir o Tempo. São Paulo: Ed. Martins Fontes.
ção da tela ou o movimento das folhinhas de um calendário para demarcar a
passagem do tempo. Têm construído formas muito elaboradas de demons-
trar o efeito provocado pelo esquecimento!de acontecimentos recentes como
10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 11
7. SEÇÃO TEMÁTICA LUNARDELLI, F. No jogo dos olhares.
NO JOGO DOS OLHARES renascentista predominou sobre todas as demais formas de representação
do espaço, e a partir dela foi desenvolvido o sistema ótico da câmera fotográ-
Fatimarlei Lunardelli1 fica e, depois, da cinematográfica.
Autores, como Pierre Francastel, já haviam estabelecido relação en-
E
ntre as muitas possibilidades de aproximação entre a psicanálise e o tre a predominância da perspectiva renascentista e a ideologia humanista
cinema, encontra-se uma das principais contribuições da psicanáli- burguesa como representação dominante do mundo. Baudry recupera esta
se para a teoria do cinema: entender a condição do espectador em linha de pensamento para enfatizar a função preenchida pelo cinema como
relação ao filme. O momento de maior aproximação desses dois campos suporte e instrumento desta ideologia, fazendo o espectador acreditar, pelo
ocorreu na primeira metade dos anos 70, sob o impacto da revisão de Freud fato dele ocupar um ilusório lugar central, que é um Deus sabe-tudo, vê tudo,
feita por Jacques Lacan e sua forte inserção nos temas da cultura. No ambi- conhece tudo. Esta crença do espectador só é possível porque o instrumen-
ente francês de ressaca do Maio de 68 e dos impasses do estruturalismo e to ótico/mecânico é oculto, sem nunca dar a conhecer a este sujeito/espec-
da lingüística como instrumentos para as formulações da linguagem cinema- tador que ele só está vendo o que lhe é dado ver.
tográfica, a psicanálise ofereceu a oportunidade de novas abordagens. Em Dessas discussões queremos reter o tema do olhar. O prazer associ-
“O significante imaginário”, Christian Metz2 aproximou-se da psicanálise para ado ao olhar em muito elucida os artifícios de uma linguagem montada para
entender porque as pessoas escolhem retornar ao cinema, mantendo em sustentar a indústria do entretenimento. O voyeurismo é central na estruturação
funcionamento a indústria do entretenimento. da linguagem cinematográfica e seu significado está associado ao grau de
Um outro autor, Jean-Louis Baudry 3, articulou conceitos da psicanáli- prazer experimentado pelos espectadores. No final do século XIX, enquanto
se à ideologia dominante no cinema narrativo, demonstrando como ela se Freud assombrava a ordem da época dizendo que possuímos internamente
apresenta no próprio dispositivo cinematográfico, válido ainda hoje. Chamou um inconsciente produtor de imagens reguladas por desejos não manifestos
atenção para o fato do equipamento cinematográfico (a máquina de capta- (ou revelados apenas simbolicamente), as primeiras máquinas davam aces-
ção e o projetor de imagens) serem concebidos a partir da perspectiva so a imagens fixadas em emulsões para uma prazerosa experiência visual,
artificialis surgida no Renascimento. Nela, todo o espaço representado no com forte componente erótico.
plano é organizado a partir de um ponto de fuga central, a partir do olhar do Arlindo Machado4 lembra muito bem que as primeiras imagens cine-
pintor que constrói a cena (e do sujeito que irá vê-la). Oferecendo-se como matográficas não foram as do cinematógrafo dos irmãos Louis e August
uma representação natural, científica e verdadeira do espaço, a perspectiva Lumière, dos operários saindo da fábrica da família ou do trem chegando na
estação de Ciotat. Antes dos franceses, Thomas Edison concebeu o
quinetoscópio, uma máquina para visualização individual de imagens, ou seja,
para uma experiência de “espiar” através de visores. O voyeurismo, enquanto
1
Jornalista. Professora. Doutora em cinema ECA/USP. prática de espiar algo da instância íntima e privada do outro, se confirma pelo
2
METZ, Christian. O significante imaginário: psicanálise e cinema. Lisboa :Livros Horizon- erotismo destas primeiras imagens. Para o desejo de ver, eram oferecidas
te, 1980. O livro reúne textos escritos entre 1973 e 1976 e o original francês foi publicado em
1977. desde cenas ingênuas de garotas em trajes de dormir brincando de guerra
3
BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base in
XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro : Edições Graal/
Embrafilme, 1983. O artigo foi originalmente publicado na revista Cinéthique, n. 7/8 (1970).
4
MACHADO, A. Pré-cinemas & pós-cinemas . Campinas : Papirus, 1997.
12 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 13
8. SEÇÃO TEMÁTICA LUNARDELLI, F. No jogo dos olhares.
de travesseiros, até de mulheres nuas saindo como pérolas de dentro de eram oferecidas ao espectador a visão aproximada das cenas. Invariavel-
conchas. mente íntimas. Machado ressalta o tema do buraco de fechadura como uma
Desde sua origem, o cinema foi concebido (e ainda hoje se sustenta) das chaves para a compreensão do próprio cinema como lugar da pulsão
sobre o prazer do olhar. É uma máquina de espiar um mundo que se oferece escópica, preparando o espectador para uma nova experiência do olhar, que
para o olhar e cuja satisfação é intensificada pela experiência da sala escu- hoje chamamos de subjetiva. A partir de uma variedade de argumentos, des-
ra, o sentimento suscitado pela proteção do escuro que convida à entrega e de mensageiros procurando destinatários de cartas, mulheres em busca de
ao abandono. Edgar Morin5, um dos primeiros autores a aproximar a psicolo- maridos infiéis, até funcionários de hotel procurando localizar clientes, fazia-se
gia do cinema na década de 50, já havia chamado atenção para a liberação desfilar uma infinidade de cenas da ordem do privado através do olhar de perso-
do imaginário sob o efeito do intenso foco de luz concentrador da tela em nagens abelhudos e indiscretos. Naqueles filmes, do chamado primeiro cine-
contraste com a escuridão da sala de cinema. ma, que vigorou até o estabelecimento da narratividade, o objetivo era produzir
A narratividade torna-se hegemônica na linguagem cinematográfica a gag e o riso. Ao final da cena, o “espião” era punido de forma exemplar e divertida.
por meio de um processo gradativo que se consolida no filme exemplar “O Os filmes de pulsão escópica conduziram gradativamente o especta-
nascimento de uma nação” (Birth of a nation, EUA) de David W. Griffith, em dor cinematográfico para a assimilação do plano aproximado como recurso
1914. Nele há um pleno domínio dos recursos de enquadramento do real, expressivo, naturalizando o corte do plano geral para o plano aproximado. Ao
alternância de planos e montagem para envolvimento e emoção do especta- mesmo tempo, deslocou o ponto de vista do personagem interno ao filme
dor em uma história com longas duas horas de duração. A esta altura, o para a internalização do ponto de vista do filme pelo espectador. Antes da
parque industrial norte-americano já estava instalado, com uma ampla rede narratividade havia uma frontalidade na linguagem, que reconhecia a presen-
de salas espalhadas por todo o país, e necessitava de um tipo de produto ça do espectador para o qual o filme estava sendo dirigido. Em alguns ca-
capaz de manter e expandir a estrutura nascente. O espectador foi captura- sos, os atores dirigiam-se diretamente à câmera, interpelando o espectador
do pelo olhar. As técnicas vinham sendo depuradas pelo sistema desde os com gestos como piscadelas de olhos, convidando à cumplicidade. À
primeiros filmetes, antes mesmo de 1895. linearização narrativa corresponde a substituição do público das feiras e dos
A relevância do olhar na história do cinema é demonstrada, desde o cinturões marginais dos grandes centros urbanos por uma classe média e
princípio, por um tipo de filme cujo volume de produção nos primeiros anos uma pequena burguesia com melhores condições financeiras para sustentar
do cinematógrafo levou a constituir-se em um gênero. Eram os filmes de a indústria nascente. Conseqüentemente, uma nova ordem moral se estabe-
buraco de fechadura ou de voyeurismo. Através deles ocorreu a passagem lece, deslocando o jogo dos olhares.
da linguagem do plano geral para o primeiro plano, oportunizando aos reali- O avanço da narratividade vai eliminando as intermediações óticas,
zadores vencer o obstáculo de aproximar a câmara de um objeto, sem, com fazendo a câmera assumir pontos de vistas dos personagens envolvidos no
isso, provocar um estranhamento para o espectador do final do século XIX. enredo, através do campo/contracampo. As decisões de seleção e articula-
Sob a justificativa de fazer os personagem verem algo através de dis- ção dos planos visam atender as demandas do olhar do espectador, sua
positivos óticos como lupas, lunetas ou através de buracos de fechadura, necessidade e prazer de ver para acompanhar o desenrolar dos aconteci-
mentos na tela. Já não mais através da frontalidade, mas de uma certa
angulação oblíqua, para que os personagens e objetos possam ser compre-
5
MORIN, E. A alma do cinema. in XAVIER, Is. Op. cit. Publicação original Paris : Ed. De Minuit,
1958. endidos como campos ou pontos de vista contrapostos.
14 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 15
9. SEÇÃO TEMÁTICA GERBASE, C. Um cineasta embaixo...
Nos anos 70, Metz6 usou o conceito psicanalítico da denegação para UM CINEASTA EMBAIXO DO DIVÃ
dizer como o filme narrativo é exibicionista e, ao mesmo tempo, não é. O
espectador olha para o filme, mas o filme não olha para o espectador. O filme Carlos Gerbase1
sabe que é olhado, mas finge que não sabe. É um objeto fechado, que apaga
A
o suporte discursivo, fazendo predominar apenas e, tão somente, a “histó- s relações do cinema com o mundo da psicanálise e das psicoterapias
ria”, o narrado sem narrador. Mas o discurso existe e quem enuncia é a em geral têm origens variadas, múltiplos objetivos e resultados, às
instituição cinema. vezes, bastante discutíveis, mas há um fato inegável: filmes e divãs
Retornando à transição dos filmes de buraco de fechadura para a têm papéis fundamentais em todas as representações possíveis dos tempos
narratividade, vamos descobrir o momento de formação do discurso que se modernos. Fecundados no final do século 19, paridos nas primeiras décadas
tornaria dominante nos filmes de entretenimento da indústria cinematográfi- do século 20, em constante crescimento desde então e, eventualmente,
ca. Nos filmes voyeuristas, o olhar “interno” do personagem, que o especta- chamados de senis, ou coisa pior, nos tempos iconoclastas que vivemos,
dor assumia até com as mesmas motivações psicológicas, é substituído cinema e psicanálise não apenas refletiram e interpretaram o nosso mundo,
pelo olhar externo e interpretante que rege a narrativa. É uma cisão brutal e como também o protagonizaram e o construíram.
irreconciliável, salienta Arlindo Machado, apontando como esta regulação Sabemos (eu, via Foucalt; vocês, através de Lacan) que os discursos
será ordenada a partir da moral protestante e burguesa da sociedade norte- nos atravessam, nos conformam e nos definem enquanto seres. Somos o
americana representada em Griffith. Ele não inventa a linguagem, como su- que somos porque, entre outras atividades menos modernas, assistimos
jeito de uma sociedade, manifesta-se nele a cultura e o pensamento de uma emocionadamente a alguns filmes e ouvimos (ou lemos) atentamente a al-
época e uma classe social, cujo discurso é dominante. guns psicanalistas. O singelo objetivo deste texto é cruzar estas duas áreas
Poderíamos considerar que, passados 109 anos da sessão inaugural discursivas a partir das minhas experiências como cineasta e de algumas
do cinematógrafo pelos irmãos Lumière, essas questões estariam supera- idéias – bem primárias, já que sou quase um leigo no assunto – sobre o
das. Penso que não. A relação do espectador com o filme narrativo, com o mundo da psicanálise. A lista que se segue, assim, pretende ser apenas o
qual estabelece um prazeroso jogo de voyeurismo/exibicionismo continua pontapé inicial para reflexões mais consistentes. Vamos a ela.
sendo a base que sustenta a indústria cinematográfica. É em busca desta
fórmula narrativa que ainda se desenrolam muitos debates estéticos nas (1) OS PERSONAGENS DOS FILMES
cinematografias não hegemônicas, que lutam por espaço no circuito exibidor. COMO PACIENTES DE PSICANALISTAS
Podemos celebrar a contemporaneidade das novas formas narrativas, mas Este cruzamento é dos mais divertidos, tanto para os psicanalistas,
basta um olhar sobre a grade de exibição da cidade para verificar o predomí- que podem fazer todo tipo de exercício associativo entre os signos presen-
nio do filme narrativo, de inspiração norte-americana, cuja indústria audiovisual tes num filme, como para os cineastas, que, em debates animados que se
ocupa, em média, 80% dos mercados mundiais. seguem à projeção de seus filmes, descobrem, que, em suas obras, o pai
não é o pai, e sim a mãe; que a filha não é a filha, e sim o pai; e que o guarda-
6
METZ, C. História/Discurso (Nota sobre dois voyeurismo) in ISMAIL, Xavier. Op. Cit., p.
403.
1
Cineasta e Doutor em Comunicação Social pela PUCRS.
16 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 17
10. SEÇÃO TEMÁTICA GERBASE, C. Um cineasta embaixo...
chuva não é o guarda-chuva, e sim a filha. Isso, é claro, se a análise for (3) A PSICANÁLISE COMO MODELO
freudiana. Se for lacaniana, o guarda-chuva é o falo do pai. Brincadeiras à DE ANÁLISE DE FILMES E INFLUÊNCIA
parte, já participei de discussões muito interessantes, que tentavam explicar IMPORTANTE NAS TEORIAS CINEMATOGRÁFICAS
prosaicos detalhes da trama do filme à luz de intrincados modelos psicana- Maurice Merleau-Ponty escreveu que “para o cinema, como para a
líticos, e eu estava quase acreditando neles, quando lembrava que a sombri- psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio traduzem
nha vermelha estava na cena porque o diretor de arte achara bonito, e não comportamento” e “o filósofo e o cineasta têm em comum um certo modo de
porque ela representava o desejo homossexual do personagem. Creio, sin- ser, uma determinada visão do mundo que é aquela de uma geração. Uma
ceramente, que colocar os personagens de filmes num divã é tão divertido ocasião ainda de constatar que o pensamento e a técnica se correspondem
quanto inconseqüente (para não dizer inútil). Mas podem continuar me con- e que, segundo Goethe, o que está no interior também está no exterior.” Boa
vidando, que eu adoro ver os personagens que criei deitados num divã, tão parte das teorias cinematográficas dos anos 50 para cá são dominadas pela
indefesos quanto quando estavam no roteiro e na tela. semiologia e incluem a psicanálise em suas formulações estéticas e ideoló-
gicas. A figura paradigmática de Freud é a mais evidente nos filmes (vide as
(2) A PSICANÁLISE COMO FERRAMENTA muitas apropriações feitas por Hitchcock, algumas delas até didáticas), mas
DO CINEASTA PARA CONSTRUIR E é Lacan, com sua rebeldia, que domina as teorias narrativas, tanto na litera-
MELHOR DEFINIR SEUS PERSONAGENS tura como no cinema. Se o inconsciente é estruturado como uma lingua-
Um cruzamento utilíssimo! Digamos que um roteirista esteja escre- gem, e o cinema é a linguagem por excelência do século XX, compreender
vendo uma história sobre um motorista de táxi psicótico. Digamos que ele como funcionam os filmes pode ser útil para entender as pessoas, e vice-
nunca tenha conversado com um psicótico. Como imaginar e tornar verossí- versa. Outra constatação importante é que filmes não são feitos para “curar”
mil um personagem distante da experiência pessoal do criador? Há dois as pessoas, no sentido da psicanálise freudiana clássica, que pretende ex-
grandes riscos: a idealização pura e simples, sem vínculo com a realidade, plicar e, de certa forma, iluminar os sofrimentos mentais usando um determi-
e o uso abusivo de clichês narrativos, retirados, quase todos, dos romances nado discurso. Porém, se acreditarmos, como faz Lacan, que não há saída
do século XIX. Aí entra a psicanálise, com mais de um século de observa- possível da linguagem, que nós não a “usamos”, mas a “somos”, a lingua-
ções sobre o comportamento da humanidade, e vai dar ao roteirista uma gem do cinema, com sua sofisticada combinação de matrizes lingüísticas,
espécie de “mapa” para as psicopatologias. Por contraste e por exclusão, a surge como uma nova e extraordinária oportunidade de expressão existenci-
psicanálise também fala de um personagem bastante comum nos filmes al dos seres humanos. E, para compreender a estrutura dessa linguagem, é
contemporâneos, o “normopata”, o cara que se adaptou perfeitamente a preciso, ao mesmo tempo, entender como funcionam as mentes do cineasta
todas as restrições que lhe foram impostas e parece ser um sujeito muito e do espectador.
saudável. Eu tenho que confessar que sempre utilizei bastante o conceito
de esquizofrenia na hora de construir os traços fundamentais dos persona- (4) O CINEMA, COMO LINGUAGEM
gens que crio. E, para mim, uma certa dose de esquizofrenia, principalmen- E FENÔMENO SOCIAL, “ANALISADO” PELA PSICANÁLISE
te num personagem “saudável”, é fundamental para que haja verossimilhan- Lembram do sujeito que matou não sei quantos espectadores depois
ça. Talvez isso prove que eu é que sou esquizofrênico. Por favor, não espa- de, segundo as primeiras reportagens, ver “O clube da luta” num cinema de
lhem. shopping em São Paulo? Lembram que depois descobriu-se que ele não
18 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 19
11. SEÇÃO TEMÁTICA GERBASE, C. Um cineasta embaixo...
tinha visto o filme coisa nenhuma? A psicanálise tem o dever de impedir que roteiros como para dirigir atores. E cada filme que faço, é claro, não deixa de
os jornalistas – esta raça tão útil quanto apressada, e na qual às vezes me ser uma pequena e secreta auto-análise, uma catarse estética, que alivia
incluo – façam acusações absurdas ao cinema e à TV. E mostrem o grau de tensões, provoca descobertas e, eventualmente, até diverte aos espectado-
imbecilidade de certos programas pretensamente bem intencionados. A psi- res.
canálise deve mostrar a todos que a mente humana é um mecanismo sofis-
ticado, que as ações de um sujeito só podem ser explicadas até certo ponto
(e que é preciso um grande esforço para chegar a esse ponto). Acho que a
psicanálise deveria se meter muito mais do que se mete na questão da
censura e da classificação dos espetáculos por faixa etária. Tenho certeza
que a psicanálise é ferramenta fundamental no embate que travamos todos
os dias entre o indivíduo e a coletividade. Onde termina a liberdade de ex-
pressão de um drama sobre uma mulher explorada pelos homens e começa
o exercício sádico de misoginia? Onde termina a comédia satírica a um
homossexual e começa o mais baixo preconceito?
(5) A PSICANÁLISE COMO FORMA
DISCURSIVA “RETRATADA” NOS FILMES
Lembrei logo de “Um estranho no ninho” e “Vida em família” (“Taking
off”), ambos de Milos Forman. São dois filmes extraordinários, que discutem
questões relativas à saúde mental – dos indivíduos, da família e da socieda-
de. Creio que, assim como a psicanálise pode ajudar o cinema, defendendo-
o de acusações fundamentalistas, o cinema pode ajudar a psicanálise,
sociabilizando alguns conceitos e fazendo críticas a procedimentos de saú-
de mental equivocados (como em “Um estranho no ninho”). Claro que a quan-
tidade de filmes ruins sobre psicanálise ou psicanalistas é muito grande,
mas a psiquê humana será sempre importante para filmes que colocam o
ser humano em frente à câmara para carinhosamente (ou não) dissecá-lo e
dar-lhe sentido.
É claro que existem muitos outros cruzamentos possíveis entre cine-
ma e psicanálise. Só estes, contudo, já são suficientemente desafiadores.
Como acadêmico, gostaria de, um dia, me dedicar um pouco a estas ques-
tões. O cineasta, porém, fala mais alto, e, por enquanto, faço um uso bas-
tante funcional (mesmo que inconsciente) da psicanálise, tanto para escever
20 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 21
12. SEÇÃO TEMÁTICA SELIGMAN, F. Quem é o marginal...
QUEM É O MARGINAL? A TÊNUE FRONTEIRA ENTRE O do com que personagens e público sintam-se invadidos, usurpados de sua
LÍCITO E O ILÍCITO NO FILME O INVASOR privacidade e segurança. Tudo isto é mostrado no filme com uma delicadeza
irônica e sem apresentar nenhuma cena de violência explícita.
Flávia Seligman1 Neste meio tempo Ivan, o sócio que mais sofre com a incômoda inva-
são (também com um pouco de culpa e remorso, mas isto fica apenas na
N
uma das primeiras cenas de “O Invasor”2 (Beto Brant, 2001, São intenção) envolve-se com uma prostituta (Malu Mader) e parece ver nela a
Paulo, Brasil), a personagem Gilberto / Giba (Alexandre Borges) rendição de sua vida infeliz. O lado podre da vida é escancarado em todos os
está se despedindo de seu sócio Ivan (Marco Ricca) depois de acer- lados do filme. Quase todos são infelizes, mentirosos ou marginais, ou sim-
tarem a sentença de morte do sócio majoritário da empresa na qual traba- plesmente tem uma vida vazia, sem grandes emoções, apenas vivem o dia a
lham, uma construtora paulistana, contratando um matador para realizar o dia.
crime (o músico integrante da banda Titãs, Paulo Miklos no papel do assas- Adaptado da novela homônima de Marçal Aquino pelo próprio autor,
sino Anísio). Ivan não parece bem certo do que fez, parece até estar arrepen- pelo diretor e pelo produtor do filme Renato Ciasca, “O Invasor” é o terceiro
dido, mas Giba leva a situação com uma naturalidade repugnante. Ao se longa-metragem de Brant e o terceiro no qual o tema assassino / assassina-
despedir do amigo sentencia: “Qual é o problema, Ivan? Não pense que você to é abordado, margeando sem delicadeza a sociedade brasileira contempo-
não está sujando as mãos só porque é outro cara que vai fazer o serviço. Dá rânea. É a primeira vez, no entanto, em que o cineasta mescla os setores
na mesma, meu velho. Bem vindo ao lado podre da vida.”3 legais da sociedade com a dita marginalidade, misturando situações e ações
Em seguida Estevão, o sócio majoritário, é morto e o assassino con- e deixando para o espectador decidir afinal, quem é o marginal.
tratado para o serviço decide conviver forçadamente com seus contratantes. No seu primeiro longa-metragem, “Os Matadores” (São Paulo, 1997),
Anísio praticamente invade a empresa querendo trabalhar lá como seguran- Beto Brant enfoca como tema principal a ação do pistoleiro profissional. O
ça, namora Marina (Mariana Ximenez), a filha de Estevão e transtorna um filme conta uma história de matadores no Brasil Central, na fronteira com o
plano que parecia perfeito. Sua presença constante e inadequada vai fazen- Paraguai. Dois homens, um velho e um estreante (Wolney de Assis e Murilo
Benício, respectivamente) estão num bar, um boteco sujo na beira de uma
estrada, e esperam por um terceiro homem que virá encontrá-los e deverá
ser assassinado por eles. Esta é a linha mestra e por ali vagueiam uma série
1
Cineasta e Professora do Curso de Realização Audiovisual, Unisinos, RS de histórias e personagens interessantes. Dentro da narrativa apresentada,
flavias@mercurio.unisinos.br
2
Sinopse: Companheiros desde os tempos de faculdade de Engenharia, Estevão, Ivan e a atividade principal das personagens do filme é inquestionável. A vida é
Gilberto são sócios em uma construtora há mais de 15 anos. Tudo corre bem até o dia em assim, resta-nos apenas conhecer melhor seus macetes e detalhes. A per-
que o desentendimento na condução dos negócios os coloca em conflito. De um lado,
Estevão, o sócio majoritário, que ameaça desfazer a sociedade; de outro, Ivan e Gilberto, sonagem de Wolney de Assis, Alfredão, é um homem mais velho, calejado,
que, acuados, resolvem eliminar o sócio, acreditando que poderão conduzir a construtora que tem uma linda família, uma casa e que almoça aos domingos, cercado
ao seu estilo após a morte de Estevão. Para isso, contratam Anísio, um matador, que executa
o serviço. É o início de uma nova fase para Ivan e Gilberto e também de um pesadelo pela esposa e filhas, após o dever cumprido. O matador mais novo tem a vida
inesperado. Anísio tem planos de ascensão social e pouco a pouco invade a vida dos dois toda para aprender e o exemplo dos matadores mais experientes para seguir
amigos, confrontando-os com o processo de violência que desencadearam. (Disponível em
http://www.brazilianfilmfestival.com/scripts/filmes/oinvasor.asp)
e se inspirar. A atividade é considerada como estabilizada: é uma profissão
3
AQUINO, 2002, p.151. exercida por pessoas que têm este dom, esta vocação. Fala-se no filme na
22 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 23
13. SEÇÃO TEMÁTICA SELIGMAN, F. Quem é o marginal...
extrema habilidade de uma personagem específica, Múcio, vivido pelo ator CARA À CARA COM A REALIDADE
Chico Dias, que só se deu mal porque se envolveu com a mulher do patrão Os “trabalhadores” apresentados por Beto Brant em seus filmes fa-
(Adriano Stuart), vivida pela atriz Maria Padilha. lam a linguagem da periferia, do dia a dia de um país real. Talvez isto seja o
O segundo filme, “Ação entre amigos”, 1999, conta a história de qua- mais dolorido para o espectador na obra do cineasta, um Brasil cruel, mos-
tro homens marcados por uma atuação política nos anos sessenta no Brasil. trado sem maquiagem. Brant fala da falta de fronteira ética entre as persona-
Participantes da luta armada, os quatro foram presos e tiveram a vida modi- gens, a falta de diferença entre aqueles que seguem as regras, que “fazem o
ficada pela crueldade e truculência das força militares. Anos mais tarde um bem” e os que não fazem. Em “O Invasor”, a diferença entre os dois sócios,
deles (Zécarlos Machado), certo de que encontrou o policial que fora seu que no início do filme planejam e contratam o assassinato de um terceiro, é
algoz, inclusive tendo assassinado sua namorada que estava grávida, arma que um deles se arrepende e o outro não. Dentro da safra dos filmes da
uma emboscada levando os demais amigos para que possam vingar sua primeira década do século XXI5 é, portanto, um dos mais sinceros. O filme é
juventude. A atitude criminosa de pessoas ditas normais está então justificada. honesto com o país em que vive. “O Invasor” parece em alguns momentos
“Aquilo era uma guerra”4, diz o velho torturador quando é cercado pelo grupo estar documentando determinadas situações. O filme trabalha de uma ma-
que subjugou. neira tão naturalista que fica difícil diferenciar o que é ficção e o que não é.
No primeiro e no terceiro filme as personagens “matadores” são consi- Numa das cenas em que força a sua entrada e aceitação na constru-
deradas assim pela sua opção profissional. Ocupam, explicitamente, a mar- tora de Giba e Ivan, Anísio tenta que os dois financiem um CD de um rapper
gem da sociedade. São assassinos, bem definidos que usam deste ofício amigo seu, o músico Sabotage que aparece no filme fazendo o papel dele
para viver. No segundo longa o diretor desenhou toda uma trajetória que leva mesmo6. Além desta participação, o músico foi responsável por uma parte
as personagens a se tornarem assassinos, mas não profissionais. Na verda- da trilha e ajudou a compor a personagem de Anísio, escrevendo inclusive
de nem assassinos. Os ex-militantes de “Ação entre amigos” penam tentan- alguns dos diálogos.
do colocar o passado em ordem. São justiceiros e assim estão à margem da A cena do encontro dos dois sócios com o músico poderia ser abso-
sociedade temporariamente e por uma boa causa. lutamente real. Ivan, muito irritado, quer dar um fim naquela situação:
A razão deste ensaio é a observação da representação do lícito e do “Péra aí, Anísio, isso tá passando dos limites. Você tá pensando que
ilícito através da construção de personagens marginais e a tênue linha que isso aqui é um banco ?” (...) “Não”, diz Anísio ameaçador, “Eu tô pensando
as separa das personagens “não marginais”. Em “O invasor”, Anísio é o que o meu chegado aqui andou duas horas de ônibus e não vai voltar sem o
matador contratado e, em nenhum momento do filme é questionada a sua dinheiro”7 .
“profissão”. As outras personagens, os contratantes, o sócio que morreu e a
filha dele são todos integrantes da classe “não marginal” da sociedade e,
mesmo assim, têm um comportamento naturalmente ilícito. Lidam com situ-
ações e ações ilegais como se estivessem lidando com suas profissões,
5
Entre várias estréias encontramos alguns títulos que também abordam de forma bastante
incisiva a questão da violência como Bicho de sete cabeças de Laís Bodansky, São Paulo,
suas famílias, seu cotidiano. 2000; Cidade de Deus de Fernando Meirelles, Rio de Janeiro, 2002 e Ônibus 174, José
Padilha, Rio de Janeiro, 2002.
6
Sabotage morreu baleado em 24 de janeiro de 2003, quando saia de uma festa perto de sua
4
BRANT, Beto. Ação entre amigos. Videocoleção ISTOÉ/ Novo Cinema Brasileiro. VHS/ casa, na região da Saúde, na Zona Sul da cidade de São Paulo.
NTSC/ 80 minutos. Editora Três, São Paulo, 1998.
7
AQUINO, 2002,p.206.
24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 25
14. SEÇÃO TEMÁTICA SELIGMAN, F. Quem é o marginal...
Ao lado de “temas suaves, visões festivas do país e (re)visões históri- atuar na ilegalidade. Por sua vez, o desenho da personagem Anísio é até
cas”8 em filmes feitos para assegurar um lugar no circuito de exibição, o previsível: frio, calculista, sem nenhuma emoção (tanto é que conta sem a
cinema brasileiro também entrou no século XXI perdendo a vergonha de ser menor preocupação que acabou matando a mulher do homem encomendado
explícito e sem nenhuma necessidade de contar uma história com final feliz. porque ela o estava olhando, a princípio sem nenhum motivo mais forte,
Convivendo com comédias de costumes e com a estética da teledramaturgia, apenas o olhar da mulher o ameaçara): “A mulher dele não estava no trato”,
surgiram filmes que causam agonia e desconforto, inseridos no sangue ruim diz Ivan quando Anísio vem cobrar o restante do dinheiro combinado pelo
da sociedade nacional. A voz dos oprimidos que já foi tema de protesto e serviço; “Não se preocupe. Eu não vou cobrar a mais por isso” 10, diz Anísio.
vanguarda nos anos do Cinema Novo agora vem à tona sem tanto compro- Como “trabalhador” e membro da parte “marginal” da sociedade, Aní-
misso com a ideologia. “Estamos aqui”, nos diz o invasor Anísio todo o sio tem atitudes compatíveis com seu modo de encarar a vida e mais, com-
tempo, “não adianta nos mandar embora porque vamos voltar sempre”. patíveis com o modo com que seus contratantes também agem. Tudo é uma
Neste filme, a periferia não está se mobilizando por um mundo melhor. questão de oportunidade nos diz o filme. Não importa se estamos certos ou
Anísio, por exemplo, quer apenas resolver a sua vida. Na Revista Sinopse, o errados, o importante é não perder a viagem.
crítico de cinema Cléber Eduardo define bem a posição do filme quanto ao Anísio vai indo muito bem dentro da previsão de Giba e Ivan, até o
contraste social: momento em que resolve ocupar um lugar ao lado deles. Equipara-se à clas-
“Saímos do terreno da visão marxista da luta de classes. Anísio não se dominante, tão marginal quanto, e resolve trabalhar também na constru-
quer protagonizar uma inversão de pólos entre periferia e burguesia. Deseja tora. “Gostei daqui. Tô pensando em trampar aqui com vocês”11, diz ele.
apenas se incorporar à classe dominante. Dispõe-se a defender os interes- Depois de conhecer o paraíso, o marginal não quer mais voltar para a favela.
ses dela para compartilhar seus prazeres. ‘ Tô pensando em me envolver, dar O grande problema colocado aqui, porém, não tem resposta. A per-
um trampo, cuidar da segurança para vocês irem à praia – diz a Giba e Ivan’ gunta fica no ar: quem é o marginal? De um lado personagens verossímeis,
os patrões à contragosto que ele vê como sócios em potencial.” 9 ricas, bonitas morando em bairros nobres da cidade de São Paulo e convi-
vendo normalmente com o crime, com a mentira e com a oportunidade de
TUDO É UMA QUESTÃO DE OPORTUNIDADE levar vantagem sobre seus pares. Do outro lado a personagem marginal, a
As personagens apresentadas no filme “O Invasor” são, em geral, muito favela, a criminalidade cotidiana, porém também com um lado banal, de um
infelizes. Mesmo aquelas que desfrutam de uma vida abastada com privilégi- cotidiano sem grandes emoções. Numa das cenas mais bonitas do filme a
os das classes altas, são vazias e enfrentam uma grande falta de emoção câmera faz um passeio pela periferia acompanhando Anísio e Marina. Eles
pela vida. Ivan tem um casamento desmoronado e praticamente não fala vão até um bar, visitam uma cabeleireira. Tudo muito normal, sem nenhuma
com a esposa nas poucas cenas em que ela aparece. Giba parece ser feliz maquiagem. Tranqüila é a vida longe dos bairros nobres da cidade e deslum-
com sua família, mas, ao mesmo tempo, vive cercado por uma outra realida- brante para aqueles que a estão descobrindo. Marina parece, todo o tempo,
de, como o convívio com prostitutas e bandidos. Seu sócio no prostíbulo é fascinada pela novidade que a periferia apresenta.
um delegado de polícia que usa de seus contatos e conhecimentos para
8
CLÉBER EDUARDO, Revista Sinopse, p.20.
10
AQUINO, 2002, p.181
9
CLÉBER EDUARDO, Revista Sinopse, p.21.
11
IDEM, p.189
26 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 27
15. SEÇÃO TEMÁTICA SELIGMAN, F. Quem é o marginal...
No lado nobre da sociedade, o fascínio pela marginalidade vai mais Gilberto (rindo): Eu sabia. Ta vendo como você é inocente, Ivan? O
longe. Giba, um dos mandantes do crime, além de engenheiro, também tem Estevão e os amigos dele vão lá toda terça, depois do futebol. Ele é cliente
sociedade numa boate, uma espécie de prostíbulo de luxo. Uma atividade preferencial da casa. Foi assim que ele descobriu. E da Alessandra, ele
que ele encara com a maior naturalidade, e isto acontece durante todo o falou alguma coisa? A menina preferida dele. Procê ter uma idéia eu sei até
filme: atividades ilícitas ou mesmo antiéticas são encaradas como naturais. o que ele gosta de fazer com ela... (...) Ponha uma coisa na cabeça, Ivan. O
“Não acredito, você é sócio de um puteiro e eu nunca desconfiei de nada. É Estevão não é santo. Se a gente bobear, ele põe no nosso rabo. É só uma
de fuder”, diz Ivan quando descobre a sociedade do amigo. “Diversificação de questão de oportunidade, meu amigo.”13
negócios. É a onda do momento”12, responde Giba. Uma vez desencadeado A questão da violência neste filme não é tratada como uma questão
o “lado podre da vida”, ele não volta atrás. Mais marginal talvez seja este bom isolada. A violência não aparece como uma conseqüência de uma socieda-
pai de família, que conta histórias para a filha dormir, que cursou engenharia, de desigual, de uma crise social, política e econômica. A violência aparece
que tira férias na praia e à noite toca um prostíbulo em parceria com um como uma questão de oportunidade, que pode surgir em qualquer classe
delegado de polícia amigo de assassinos. social, dependendo da hora e da vez. Esta foi a oportunidade de Giba e Ivan.
“O Invasor” é, portanto, um filme sem mocinhos. Todos têm alguma E de Anísio no momento em que ele descobre como é bom viver entre a
culpa e se ainda não fizeram nada de errado é porque não tiveram oportuni- burguesia. Quando finalmente não agüenta mais, Giba interpela Anísio: “Es-
dade. Um filme sem esperança, talvez. O realizador trabalha apenas com cuta aqui, Anísio, quanto você quer para sumir da minha vida ?” Porém Aní-
um dos lados da moeda: o lado do mal. sio é categórico: “Nada. Tô gostando daqui.”14
Avaliando os retratos da classe média e da periferia nas personagens Um bom exemplo disto é a personagem Marina, que é uma garota de
de Anísio, Giba e Ivan, consideramos que a grande violência que o filme nos classe média alta preocupada com festas, baladas e drogas. Sem nenhuma
apresenta é o retrato cru de indivíduos da classe média, bem nascidos e reação ao assassinato dos pais, ela torna-se a ponte de Anísio para uma
instruídos que, para conseguir uma ascensão profissional, contratam um vida nova. Por uma coincidência previsível acaba conhecendo e envolvendo-
matador para acabar com o sócio “careta”. O pior de tudo é que quando se com o matador. Nem a juventude burguesa e bem nascida se salva da
sentimos pena do sócio que sabemos, vai morrer, descobrimos que ele tam- artilharia do filme. A menina parece fazer pouco caso da morte dos pais e
bém tem as suas artimanhas para conquistar seus objetivos. Numa cena como nova sócia da construtora quer apenas retirar um dinheiro por mês.
inicial, antes do assassinato, Ivan se arrepende e tenta desistir do plano. Fascinada pelo novo e talvez até pelo proibido, namora um sujeito marginal
Procura Giba e o sócio acaba por desvendar-lhe a outra face de Estevão: (embora não saiba que ele matou seus pais, sabe que ele veio da periferia e
“Ivan: Conversei com o Estevão hoje de manhã. Ele sabe do teu negó- que provavelmente leva uma vida “diferente da sua”) e para se divertir, toma
cio com aquele puteiro. ecstasy e dança nas “baladas”.
Gilberto: Eu sei que ele sabe. Mas ele te contou como ele descobriu
isso ?
Ivan: Não, não contou.
13
AQUINO, 2002, p. 165.
12
AQUINO, 2002, p. 151 14
AQUINO, 2002, p. 214.
28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 29
16. SEÇÃO TEMÁTICA SELIGMAN, F. Quem é o marginal...
NO FINAL, NINGUÉM É BOM... para a maturidade do cinema brasileiro. A heterogeneidade da safra de fil-
O filme encerra com uma afirmativa: ninguém é bom. O sócio que mes nacionais dos últimos tempos permite que cada realizador trabalhe com
morreu queria ganhar mais em cima de seus parceiros, os outros sócios honestidade, tenha espaço para expor sua visão e represente a sociedade
para aumentarem suas chances na empresa mandam matá-lo, o assassino em que vive da forma que melhor lhe couber.
resolve que vai desfrutar da vida boa ao lado de seus contratantes e a filha A opção pela falta de perspectivas é uma opção ideológica dos seus
órfã e rica herdeira namora um marginal. “O Invasor” é um filme sem esperan- criadores. Autores, atores, diretor, todos entram num acordo de mostrar um
ça, e talvez, uma história sem final. O realizador retrata com muita dureza a Brasil sem rumos. Do jeito que estamos não vamos a lugar nenhum, nos diz
falta de esperança que a sociedade brasileira vive hoje e que assusta a to- o filme. E mais, somos todos culpados e a linha que separa o certo e o
dos, sem exceção. Segundo Vanoye e Goliot-Lété: errado na sociedade brasileira está por se romper, é só aguardar.
“Um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto
sócio-histórico. Embora o cinema usufrua de relativa autonomia como arte REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(com relação a outros produtos culturais como a televisão ou a imprensa), os AQUINO, Marçal. O Invasor. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
filmes não poderiam ser isolados dos outros setores de atividade da socieda- CLÉBER EDUARDO. A convivência forçada com O Invasor. Revista Sinopse,
de que os produz (quer se trate da economia, quer da política, das ciências São Paulo, São Paulo: CINUSP / Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universi-
e das técnicas, quer, é claro, das outras artes).”15 tária / Universidade de São Paulo. n. 8, ano IV, p. 20-24, abr. 2002.
SELIGMAN, Flávia. Os matadores de tirar o fôlego. Revista Eletrônica Motim Cul-
Uma opção difícil: um filme sem personagens bons. Uma opção esté-
tural (Cidades Virtuais www.zaz.com.br), setembro de 1998.
tica: uma fotografia trêmula e inquieta que procura por algo o tempo todo. Na
VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise filmica.Campinas,
cena em que Marina e Anísio tomam ecstasy, numa boate, a câmera parece
SP: Papirus Editora, 1994.
estar também drogada, girando para todos os lados sem uma base fixa.
Assim é o filme todo, não há certezas, bases ou algum porto seguro na
sociedade retratada. É o momento histórico na visão do diretor, sem espe-
ranças.
“O Invasor” é um filme que em alguns momentos nos causa repulsa.
Como conviver com esta realidade tão dura e não ter condições de mudá-la ?
Como conseguir entender uma história sem mocinhos e sem personagens
bons ? Este é o filme, que não consegue fugir da sua época na história e na
sociedade brasileira. Importante que visões como estas apareçam no meio
de tantas outras num momento em que a cultura brasileira está tão
diversificada. Nunca tantas tendências e tantos estilos diferentes conviveram
no mesmo período cinematográfico e isto configura um encaminhamento
15
VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p 54.
30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 31
17. SEÇÃO TEMÁTICA GOLDENBERG, R. Adeus, Lênin...
ADEUS, LÊNIN! OU, DA MISTIFICAÇÃO psiquismo da nossa civilização. Podemos dizer que quanto mais perto da
estrutura esteja, menos livre será o escritor nas escolhas dos avatares das
Ricardo Goldenberg personagens da trama ficcional. Qualquer escritor sabe disso, que ele é
mais conduzido do que condutor de suas personagens. É nesta submissão
É
difícil pensar num gênero de cinema mais puro do que a comédia e às coerções da estrutura, precisamente, que o psicanalista enxerga a gran-
o musical, cinematograficamente falando. Digo “puro” no sentido em deza da obra. Motivo que me leva a centrar meu comentário na lógica que
subtende a trama do enredo, em detrimento dos aspectos mais logrados de
que a forma se liberta da tirania do realismo, do dever de fingir a
comicidade e ternura, assim como da fotografia, a direção ou o desempenho
realidade, para ocupar-se apenas da coisa cinematográfica, liberando o es-
dos atores, que deveriam constar de qualquer resenha crítica deste filme
pectador, ao mesmo tempo, da exigência de Coleridge de suspender a des-
encantador.
crença para apreciar a ficção. São filmes irônicos por sua própria natureza, em
Não é por livre arbítrio, portanto, mas empurrado pela lógica da trama,
que a composição mesma declara publicamente a sua essência de artifício.
que o roteirista decide fazer entrar em coma a personagem depois de um
Deste ponto de vista, a decisão dos exibidores de classificar como
infarto acontecido... Quando? No momento de testemunhar a cena do filho
comédia o “Adeus, Lênin!”, de Wolfgang Becker, é duplamente pertinente.
lhe sendo tomado pela polícia durante uma manifestação contra o regime
Primeiro, por ser um filme que cumpre com uma das convenções do gênero:
que ela serve como cão fiel. Coma que reproduz, um grau acima, a depres-
explorar a comicidade inerente aos maus entendidos do amor, aqui, materno
são catatônica em que ficara durante longos meses quando anos antes des-
e filial. Segundo, por fazer da ilusão mesma o eixo da sua trama.
cobrira que o marido nunca mais voltaria, tendo fugido para o lado ocidental
Com efeito, temos a ação situada em Berlim do leste durante a que-
do Muro da Vergonha.
da do muro, e um filho empenhado em ocultar da sua mãe a realidade do fim
E o filho empenha todas as horas do seu dia em conceber e realizar a
do comunismo e a ocidentalização da Alemanha Oriental. Trata-se de um
mistificação destinada a manter a convalescente ignorante do fato de que o
conluio organizado entre amigos, família e vizinhos para mistificar esta se-
mundo, seu mundo, desabou durante a sua “ausência”. Restaura, pois, o
nhora, cuja vida, nos é dito, fora dedicada e só faz sentido pela Causa
quarto da acamada, como estava antes das mudanças e fecha a janela que
Socialista. O núcleo de nonsense, origem das situações cômicas, é a pres-
dá para a rua, abrindo outra, virtual, a televisão, que, mediante falsos jornais
crição médica de evitar “absolutamente” a esta mulher cardíaca – sobrevi-
de notícias, gravados em vídeo por um amigo, cria a ilusão, primeiro, de que
vente de um infarto que a deixara em coma durante os oito meses em que o
o status quo continua o mesmo e, depois, inventa um desfecho para o soci-
comunismo era varrido de Alemanha – qualquer emoção violenta. E, claro,
alismo, não como de fato foi, mas como deveria ter sido, conforme o ideal
que emoção mais violenta para uma militante de coração que o fim da cau-
materno interpretado pelo filho. Reprodução irônica da real politik do stalinismo
sa pela qual milita?
que, ao invés de adaptar a realidade e reescrever a história conforme os
Um observação, antes de continuar. A psicanálise costuma se deter
interesses do partido, está motivada pelo bem do outro. O bem do outro
em obras de arte compostas de tal modo que a realidade do inconsciente se
interpretado, claro, por aquele que apresenta a realidade para que coincida
apresenta de modo a obrigar o espectador a implicar-se naquilo que vê ou
com uma fantasia.
escuta, sem poder permanecer indiferente. É nesta implicação que reside,
para o psicanalista, o interesse da obra. Assim, por exemplo, Freud credita É difícil não lembrar, neste ponto, o oscarizado filme de Begnini, “A
a durabilidade do impacto estético do Rei Édipo de Sófocles, ao fato de esta vida é bela”, cujo enredo e fonte de comicidade (e de polêmica) consistia
tragédia pôr em cena a textura de uma fantasia universal constituinte d o também num engano. Desta vez, do filho pelo pai, que pretende salvá-lo do
32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 33
18. SEÇÃO TEMÁTICA PEREIRA, R. DE F. Woody Allen e outras...
horror da rotina de tortura e morte de um campo de extermínio nazista fazen- WOODY ALLEN E OUTRAS
do com que ele acredite que tudo não passa de uma gincana com prêmios. CONTRIBUIÇÕES AOS PSICANALISTAS
O núcleo cômico sendo precisamente os esforços para que o ludibriado per-
maneça inocente (cego?) apesar das sucessivas fraturas da montagem Robson de Freitas Pereira
ficcional pelas quais irrompe a insuportável realidade. Insuportável, em tese,
H
para o mistificado (o filho, no caso de Begnini; a mãe, no de Becker), mas á algum tempo, depois de assistir “Dirigindo no escuro”, de Woody
que o filme não consegue evitar mostrar como uma “paixão de ignorar” me- Allen (“Driving mad”, no original), fiquei pensando que esta era mais
nos do enganado que do “enganador”. uma de suas contribuições à psicanálise e, mais especificamente,
O enredo de “Adeus” mostra isso quando nos surpreende com a con- aos psicanalistas. Explico melhor: na filmografia de Allen, pelas próprias
fissão da mãe de que tinha mentido o tempo todo no concernente ao suposto características de seu humor e estilo (onde fazem parte o personagem ju-
abandono do lar pelo pai deles atrás de uma saia. Não teria havido tal; o deu, classe média, intelectualizado e urbano / nova iorquino), a psicanálise é
marido dela fora obrigado a fugir para o outro lado da cortina de ferro para não constantemente referida1. Freqüentemente de forma irônica ou satírica, ou-
cair nas mãos da Stasi e ela, que devia seguí-lo, por medo de ser surpreen- tras vezes mordaz (em “Desconstruindo Harry”, por exemplo), a maior parte
dida e terminar os dias num campo de concentração, separada dos seus, do tempo em aparecimento pontual e secundário e, por vezes, sendo perso-
opta por tocar a vida contando para si mesma e para os filhos a estória da nagem seu filme – lembremo-nos de “A outra” (Another woman).
esposa abandonada. Desta vez, a especificidade estaria articulada ao desenrolar de um
A aplicada militante passara a vida ocultando(se) a própia covardia: tratamento e sua descontinuidade, onde no decorrer do filme podemos ob-
“Quando meu pai foi embora”, nos diz o filho, “a minha mãe casou definitiva- servar a demanda de análise, o desdobramento das sessões e seus efeitos
mente com o Partido.” Não é um detalhe menor as cartas escondidas e surpreendentes para o analisante. Mesmo correndo o risco de incorrer numa
jamais abertas, que o homem abandonado do lado da “liberdade”, escrevera metáfora irônica (dirigindo no escuro); pois para os analistas a direção da
para a sua família, que desistira de juntar-se a ele sem uma única palavra. cura é um tema caro, acreditamos que vale a pena a discussão.
Podemos indicar, então, os dois pontos em que o autor, quando perto Como para comprovar que as escolhas são sempre circunstanciais,
do real da estrutura, revela-se arrastado pela ficção talvez à sua revelia. Um recentemente participei de uma “mesa redonda” num ciclo dedicado a obra
deles é o infarto e conseqüente estado de coma da mãe, no momento em de David Lynch2. Ocasião de rever “A estrada perdida” (Lost Highway) pelícu-
que vê o filho – pelo qual renunciara ao marido – ser levado dela pela polícia. la emblemática na filmografia do diretor que reafirma algumas marcas de seu
Outro, o momento em que, ainda sem saber supostamente que está sendo
ludibriada, confessa a verdade sobre o abandono do pai. Revela-se neste
momento, senão para a personagem ao menos para o público, que a mistifi- 1
Estas observações, com o acréscimo de considerar Woody Allen como o maior humorista
cação toda era um exemplo da lógica pela qual o emissor recebe do receptor do cinema, podem ser conferidas no “Dicionário de Cinema – os diretores”, de Jean Tulard,
a sua própia mensagem de modo invertido. A mentira amorosa filial, com ed. LPM; “Dicionário de cineastas”, de Rubens Ewald Filho, ed. LPM e na biografia “Woody
Allen”, escrita por Eric Lax, ed. Cia das Letras.
efeito, reproduz em espelho a mentira amorosa materna, destinada menos a 2
O ciclo “Tarja Preta – a obra de David Lynch”, produzido e coordenado por estudantes de
enganá-lo do que a ocultar a si própria sua opção de abandonar o homem Comunicação da UFRGS, apresentou, além dos longa-metragens,diversos filmes de Lynch,
muitos deles praticamente inéditos no Brasil – curtas e filmes experimentais. A oportunidade
para ficar com o filho. da discussão deu outro rumo ao texto pensado inicialmente, daí a menção às contingências.
34 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 35
19. SEÇÃO TEMÁTICA PEREIRA, R. DE F. Woody Allen e outras...
estilo e prenuncia outras (A cidade dos sonhos/Mulholand Drive). Com este articulou para que ele voltasse a dirigir um longa metragem de grande orça-
“estímulo”, pude articular que a contribuição de Lynch para a psicanálise mento.
seria diferente daquela propiciada pelos filmes de Allen. Para o diretor nasci- Nas vésperas de iniciar as filmagens, o inesperado: o diretor fica cego!
do em 1946, a psicanálise não é referência enquanto terapia. Ele coloca em Estava lendo o roteiro do filme. Deitou-se para cochilar um pouco e, ao des-
cena muito mais a dimensão do inconsciente com seus aspectos oníricos, pertar, não enxergava mais. Escuridão completa. Levado ao analista por seu
seus elementos recalcados, seu gosto pelas cores, pelos detalhes que ad- agente, faz sua demanda: está cego e precisa recuperar a visão em poucos
quirem importância fundamental, na transformação dos restos em objetos dias (estamos na quinta-feira e ele começa a trabalhar na segunda). Ao que
desejáveis e na inclusão e valorização dos excluídos. o psicanalista lhe responde com as restrições habituais: um tratamento não
pode prometer resultados, é demorado, mas ele pode retornar na sessão
DEIXANDO O SIGNIFICANTE DIRIGIR seguinte.
“Dirigindo no escuro” pode não ser o melhor filme de Woody Allen. Wal vai retornar para suas sessões, enquanto inventa estratégias para
Nem precisa. Alfred Hitchcock dizia que bons livros nunca deram ótimos que ninguém possa perceber sua mais completa “deficiência visual”. As tra-
filmes. Ele preferia roteirizar obras medianas. Parafraseando o diretor inglês palhadas se sucedem. Escolhe um fotógrafo chinês que não entende sua
que tinha a psicanálise em alta conta para sua cinematografia, talvez possa- língua e assim consegue um tradutor que seja seu cúmplice. Sua ex-espo-
mos afirmar que películas muito empolgantes podem inibir nossas associa- sa, num primeiro momento supostamente só interessada na realização do
ções. Fica difícil elaborar alguma coisa que vá um pouco além do lugar co- filme, também se transforma em cúmplice da farsa.
mum, tamanho o impacto causado no espectador. Há controvérsias, a dis- No decorrer de suas entrevistas com o “shrink” , o diretor vai relatando
cussão é tão antiga quanto o advento do cinema falado x cinema mudo. as condições que desencadearam seu sintoma – cegueira – e como ele teve
Façamos então a ressalva de que isto não precisa ser uma regra; pois há início. Nestes relatos e na importância que lhe dá o analista a determinados
pessoas corajosas que, depois de assistir a uma obra prima, sempre tem temas, vai-se operando uma mudança de posição do “analisante”. Suas as-
sua contribuição a dar ao diretor. Neste caso particular, vamos nos ater a sociações da noite em que perdeu a visão são exemplares. Estava lendo o
alguns aspectos da película em questão; pois a multiplicidade de significa- roteiro e começou a ficar cansado e com sono. Qual a história? Simples; um
ções ou o feixe de significantes que performa um filme exigiria um esforço caso policial, onde um matador mafioso tem que assassinar o próprio pai.
muito maior do que os parâmetros deste texto. Não cumprindo a “missão”, coloca sua vida em jogo. A partir deste episódio,
Wal Waxman é um diretor de cinema que, depois de algum sucesso, vê ele começa a falar das relações com o próprio filho. Estão rompidos, briga-
sua carreira entrar em franca decadência. Atualmente, limita-se a dirigir comer- ram chegando as vias de fato. Afinal, seu filho é adito às drogas e formou
ciais – tipo vender geladeiras para os esquimós. No decorrer do filme, apresen- uma banda de rock, quando seu pai desejava que ele fosse músico clássico
tam-se alguns aspectos que o levaram a decadência. Todos ligados a seu e cursasse uma universidade.
comportamento cada vez mais obsessivo no set e outras bizarrices que Mesmo com suas queixas, sem saber muito bem porque vai procurar
fizeram ruir seu reconhecimento junto aos grandes estúdios. A derrocada foi o filho e retoma um diálogo há muito interrompido. É obrigado a ouvir o que
tamanha que até sua mulher o deixou para ir viver com um chefão de estúdio. nunca quis. Por exemplo: “não sei como você foi atirar-se nas drogas”. “Ora
Subitamente, surge uma grande chance: ele é contratado para dirigir pai, você foi meu maior exemplo. Tomava medicamentos todo o dia! Sem
um blockbuster. Sem que ele saiba, sua ex-mulher – agora produtora – falar nas bebedeiras que presenciei”.
36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 37