O documento apresenta vários poemas de autores portugueses e brasileiros. Três poemas destacam a fuga do tempo e a necessidade de aproveitar o presente, a dor da perda de um ente querido, e a busca pelo amor em meio às dificuldades da vida.
2. Joana Kruse
Amanhecer
Navego no cristal da madrugada,
Na dureza do frio reflectido,
Onde a voz ensurdece, laminada,
Sob o peso da noite e do gemido.
Abre o cristal em nuvem desmaiada,
Foge a sombra, o silêncio e o sentido
Da nocturna memória sufocada
Pelo murmúrio do dia amanhecido.
José Saramago
In “Os Poemas Possíveis”
3. Conrad Kiesel
Pudesse Eu
Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!
Sophia de Mello Breyner Andresen
In “Poesia I”
4. William Orpen
À Tua Espera
Tranquila e serena
a nossa casa
nos quatro cantos
o sol do meio-dia
à tua espera alegre
e descansada
injecto-me de amor às
escondidas
Sobre a garganta passo
os dedos espessos
e a roupa uma a uma
vai caindo
para que então amor
com os teus dedos
quando vieres me vás
depois vestindo
Maria Teresa Horta
in “Candelabro”
6. John Singer Sargent
Gota de Água
Eu, quando choro,
não choro eu.
Choro aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.
António Gedeão
In “Movimento Perpétuo”
7. Jean-Honore Fragonard
Urgentemente
É urgente o amor
É urgente um barco no mar
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio de Andrade
in "Até Amanhã"
8. Carl Wilhelm Holsoe
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
vede que perigosas seguranças:
que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar perdido o lenho
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê;
que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como e dói não sei por quê.
Luís Vaz de Camões
10. Lembra-te
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny
in "Pena Capital"
Edward John Poynter
11. Charles Perugini
Deixei de ouvir-te. E sei que sou
mais triste com o teu silêncio.
Preferia pensar que só adormeceste; mas
se encostar ao teu pulso o meu ouvido
não escutarei senão a minha dor.
Deus precisou de ti, bem sei. E
não vejo como censurá-lo
ou perdoar-lhe.
Maria do Rosário Pedreira
12. Delphin Enjolras
Primeira Palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo
Mia Couto
in “Raiz de Orvalho”
14. Mona Hopton Bell
Soneto do Amor Total
Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Vinicius de Moraes
15. Lilian Matilda Genth
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre.
Manuel Bandeira
16. Sally Rosenbaum
Da Tua Vida
Da tua vida o que não podem entender
Nem oiro nem poder nem segurança
Mas a paixão do Tempo e de seus riscos
Tu buscaste o instante e a intensidade
E foste do combate e da mudança
Por isso um rastro de ruptura e de viagem
Ou talvez este fogo inconquistado
Como breve eternidade
De passagem
Manuel Alegre
in "Chegar Aqui"
18. Vladimir Volegov
Amo o Que Vejo Porque Deixarei
Amo o que vejo porque deixarei
Qualquer dia de o ver.
Amo-o também porque é.
No plácido intervalo em que me sinto,
Do amar, mais que ser,
Amo o haver tudo e a mim.
Melhor me não dariam, se voltassem,
Os primitivos deuses,
Que também, nada sabem.
Ricardo Reis
In “Poemas de Ricardo Reis”
(Fernando Pessoa)
19. William McGregor Paxton
O Poeta é um Guardador
o poeta é um guardador
guarda a diferença
guarda da indiferença
no incerto
guarda a certeza da voz
Ana Hatherly
in “Um Calculador de Improbabilidades”
20. Harold Knight
Entre o Luar e a Folhagem
Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.
Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.
Segue-o meu ser em liberdade.
Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.
Fernando Pessoa
22. Sue Halstenberg
Quando Tornar a Vir a Primavera
Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
Alberto Caeiro
In “Poemas Inconjuntos. Poemas de Alberto Caeiro” (Fernando Pessoa)
23. Thomas Benjamin Kennington
Dez Chamamentos ao Amigo (I)
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse.
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Hilda Hilst
In “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”
24. Sally Rosenbaum
Os Poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Mário Quintana
In “Esconderijos do Tempo”
26. A.C.W. Duncan.
Canção
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Cecília Meireles
in “Viagem”
27. Sally Rosenbaum
Cai a Chuva no Portal
Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa cortina
Não a corras, não a rasgues, está caindo
Fina chuva no portal da nossa vida.
Gotas caem separando-nos do mundo
Para vivermos em paz a nossa vida.
Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa toalha
Ela nos cobre, não a rasgues, está caindo
Chuva fina no portal da nossa casa.
Por um dia todos longe e nós dormindo
Lado a lado, como páginas dum livro.
Lídia Jorge
28. Fernando Álvarez de Sotomayor
O Mundo é Grande
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.
Carlos Drummond de Andrade
in “Amar se Aprende Amando”
30. Asta Nørregaard
Estigma
Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos
O que os homens não querem.
Ao vento arremessamos
As verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.
José Carlos Ary dos Santos
In “Obra Poética”
31. Andre Fontaine
Auto-Retrato
Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
Natália Correia
33. Albert Anker
Canção do Verdadeiro Abandono
Podem todos rir de mim,
podem correr-me à pedrada,
podem espreitar-me à janela
e ter a porta fechada.
Com palavras de ilusão
não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
não tem vislumbres de além.
Não sou irmã das estrelas,
nem das pombas nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
de bicho que sofre as pedras
e se desloca de rastos.
Natércia Freire
34. Dennis Perrin
Voar
Deve ser bom voar! Abrir as asas,
fechar os olhos e partir sem rumo,
pairar sobre as cidades, sobre as casas,
como pássaro, estrelas, nuvem, fumo...
Deve ser bom voar! Erguer os braços
e acima dos telhados e dos ninhos,
esquecer os sinais de inúteis passos,
fugir ao pó de todos os caminhos...
Mas onde as asas para assim voar,
para subir às nuvens e às estrelas?
As dos homens, são asas de matar...
...e as dos anjos, quem pode pretendê-las?
Fernanda de Castro
In “Trinta e Nove Poesias”