O documento conta a história de uma pessoa que iniciou uma viagem sem identidade ou passaporte, apenas com as roupas do corpo. Ao longo da vida, a pessoa continuou viajando e caminhando pelas trilhas da vida. Há também poemas que descrevem paisagens, cores, cheiros e saudades de Angola.
Viagem pela vida através de poemas e memórias de Angola
1. Assim que nasceu o dia, o quarto daquele mês de agosto, que
poderia muito bem ter sido o primeiro ou o sexto, mas foi o
quarto, porque assim quiseram os deuses da Natureza que
fosse, dum ano que já distante vai, iniciei a travessia. Maleta
não tinha, nem identidade, tampouco passaporte carimbado.
Estava nua e chorei. O caminho estava aberto para que os
meus pés descalços o percorressem. Como o melhor da
viagem não é a chegada, mas sim o seu percurso, estou na
estrada até hoje, caminhante que sou pelas trilhas da Vida.
2. Embondeiro
Vejo-te solitário e fulgido
Em fundo vermelho de sol poente
Como monumento p´la natureza erigido
Sobre a planície agreste e inclemente;
Como se benfazeja chuva mendigasses
Teus secos braços nus aos céus lanças
E como se a árida paisagem afagasses
Pelo espaço te estendes e avanças;
Caem-te, como lágrimas, frutos tão pesados
A saciar o faminto e sedento caminheiro
Que, de pés descalços, gretados e cansados,
Te reverencia e te atribuiu dons de curandeiro;
Tens bravia beleza e mistérios de feiticeiro
Habitas o meu chão, a minha história por contar,
Sempre estiveste no meu caminho, Embondeiro,
Quisera eu nunca de ti me separar.
3. A minha rua
Rua feita de pedra e sol
De largueza pouca entre o casario
Por onde passavam dias modorrentos
E gente carregada de estio
Rua que, da longa avenida,
Era sossegada travessa,
Por onde passava a vida
Num caminhar sem pressa
Rua que à noite era vazia
Sem nela ninguém passar
Só o silêncio se ouvia
E as pedras eram feitas de luar
Rua que hoje é lembrança
De quando a dizia minha
À época eu a criança
Que por ela ia e vinha
Por ela há muito não passo
Perdi-a no tempo e na distância
Mas de mim será sempre pedaço
Aquela rua chamada infância
4. Dormia ainda a manhã
fechei a porta
sem alarde
parti
levei na memória a cor
vermelha da terra
e do sangue no verdejante capim
encarnada do jindungo e das pitangas
das missangas
cravejando peles escuras
descalças no cafezal
a brancura do sisal
do algodão em flor
zarcão dos poentes sobre o cais
dourada das fogueiras nos quintais
rubra das acácias nos umbrais
o verde dançante das palmas
entre areias e céu em tardes calmas
anil do mar ao sol do meio-dia
à noite envolto em ardentia
levei na memória o odor da maresia
da poeira suspensa quando não chovia
da goiaba do maboque e do caju
do suor do povo quase nu
parti
nada mais tinha para levar
a não ser a vontade de ficar
Exílio – Cores e Odores
5. Exílio - Saudade de mim
São as de outrora
as casas, as ruas e os becos;
iguais aos de antes,
as angústias, os prantos e os medos;
são os mesmos e sempre tantos
os ritmos e os cantos,
os encantos,
os acalantos;
ainda lá habitam os vermelhos
do sangue e da terra,
os dos últimos raios de sol
entornados sobre o mar
da baía e das praias do farol
de areias velhas e brancas
de onde partem os dongos
em noites de aragens brandas
e de luares antigos
a esculpirem sombras dançantes
das esguias casuarinas ...
São hoje, como eram antes,
os sabores de gajaja e tamarindo,
as cores vivas do céu, do capim
e das acácias florindo ...
És como sempre foste, Luanda.
Tu ficaste, eu parti.
Saudade tenho de mim,
de como fui enquanto te percorri.
6. Olhos-mar
trago em meus olhos
tanto mar
em tempestade
também em calmaria
de sal
de saudade
e ardentia
são meus olhos
lágrimas-mar
por um Mar
que já não tenho
distante que é de meu
olhar
7. Abandono
Lá longe - tão longe
Onde o tempo é sempre azul
E há noites encharcadas de luar
Lá longe - tão a Sul
Onde o areal encontra o mar
Deixei meus sonhos espalhados
Não voltei para os buscar
Continuam lá
Abandonados
8. Mesa Vazia
Quando pão não havia
- e se havia era pouco -
Quando não era o vinho bastante
Para embriagar a fome,
Sentávamo-nos à mesa
E repartíamos migalhas.
Tempo de medo e de incerteza.
Tempo de guerra!
Povo em fuga, destroçado,
A manchar de vermelho a terra.
Quando já nem migalhas havia
Para repartir,
Ainda assim sentávamo-nos à mesa,
Deixávamos o Sonho afluir,
Dizíamosnão à tristeza
E alimentávamo-nos de Esperança.
9. Zinco ao meio-dia
Meio-dia
Terra vermelha nos cumes
Reflectida em espelhos
Como lâminas de dois gumes
Lado a lado
Que cortam
Desfazem
E cobrem
Sonhos agrilhoados
De todos os esquecidos
Que de tão empobrecidos
De esperança
Ali ficaram calados
Com olhos amargurados
Vendo o brilho
De seus telhados de zinco
10. Retirante
Ter de ir
Não poder ficar
Sair sem deixar sinais
Calar o riso brando
O breve pranto
Levar nas mãos o nada
Na alma o desencanto
Que tem doído tanto
Todo o desalento
Toda a afeição
Cortar os laços
Seguir o vento
Apressar os passos
Buscar um novo chão
Partir
Sem olhar pra trás
O medo despir
E recomeçar ...
11. Fotografias: Angola – Retiradas da Internet
Música: Angola (Cesária Évora)
Texto e poemas: Guida Burt (guidaburt@gmail.com)